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Uma bandeira com a divisa “Liberdade”: terra e trabalho no pós-abolição. Mariana, Minas Gerais

A flag with the word “Freedom”: land and work at post-abolition. Mariana, Minas Gerais

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar o processo de “construção da liberdade” que norteou a formação do mercado de trabalho livre no Brasil, ao longo do século XIX e início do século XX, tendo como foco o município de Mariana, Minas Gerais, entre 1871 e 1920. A partir da análise de corpos documentais diversificados, como os registros paroquiais, registros civis, processos criminais, investigamos os laços familiares e as redes de sociabilidade constituídas pelos antigos cativos, assim como os impactos dessas “vivências” da escravidão na vida em liberdade.

Palavras-chave
liberdade; terra; escravidão; pós-abolição

ABSTRACT

This aim of this study is to analyze the process of “construction of liberty” that guided the formation of the free labor market in Brazil throughout the nineteenth century and early twentieth century, we turned our attention to the Municipality of Mariana, Minas Gerais, between 1871 and 1920. From the analysis of a diverse body of documents such as parish records, civil records, criminal records and we investigated the family ties and social networks constructed by former slaves, as well as the impacts of these “experiences” of slavery on their life of freedom.

Keywords
freedom; land; slavery; post-abolition

Ao discutir a experiência do processo abolicionista na Jamaica, nos anos iniciais da década de trinta do século XIX, Thomas C. Holt alerta sobre o cuidado que os estudos contemporâneos das sociedades pós-emancipação1 1 A utilização dos termos pós-abolição/pós-emancipação respeita a opção dos autores citados no texto acima. Em nosso trabalho, optamos por utilizar o termo pós-abolição. Em sua definição jurídica, abolir “é o termo que designa, também, a revogação de uma instituição ou de uma praxe adotada” (SILVA, 1993, v. I, p. 9). O termo emancipar possui definição semelhante, já que, além da livre alienação de bens, pode significar ainda “dom ou dádiva da liberdade.” (SILVA, 1993, v. II, p. 141). Emancipar compreende, ainda, a antecipação da maioridade de uma pessoa, a qual passaria a ter plena capacidade jurídica para dispor de seus bens ou gerir os seus negócios, eximindo-se do pátrio poder. Nesse sentido, se por um lado os libertos adquiriram mobilidade, autonomia e reconhecimento jurídico de sua liberdade, por outro, vários anos após a extinção da escravidão, eles permaneceram identificados como “ex-escravo de” em diferentes fontes documentais de nossa amostragem. Logo, compreendemos que eles se encontravam livres sim, mas nem sempre emancipados do “pátrio poder” ou do “despotismo beneficente” de seus antigos senhores. devem ter ao dimensionar tal contexto como uma “ruptura histórica dramática” marcada pela “transição para uma sociedade ‘livre’ e as vastas convulsões e transformações sociais provocadas por esta transição” (HOLT, 2005HOLT, Thomas. A essência do contrato. A articulação entre raça, gênero sexual e economia política no programa britânico de emancipação, 1838-1866. In: COOPER, Frederik; HOLT, Thomas Cleveland; SCOTT, Rebecca Jarvis. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 89-129., p. 91). De acordo com Holt, a emancipação não teria trazido, sob o ponto de vista das primeiras gerações, um rompimento “assim radical” com o passado de escravidão (HOLT, 2005HOLT, Thomas. A essência do contrato. A articulação entre raça, gênero sexual e economia política no programa britânico de emancipação, 1838-1866. In: COOPER, Frederik; HOLT, Thomas Cleveland; SCOTT, Rebecca Jarvis. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 89-129., p. 91). Nesse sentido, descortinar os diálogos entre a escravidão e a liberdade viabiliza uma visão matizada dos processos históricos que englobam a passagem da sociedade e dos seus membros, com passado ou ascendência escrava, para um mundo “novo”, em princípio regido por relações contratuais e impessoais. Buscamos, aqui, compreender as disputas pelo acesso à terra e ao trabalho a partir dessa chave de leitura, ou seja, dos impactos provocados pelas vivências e experiências da escravidão na vida em liberdade dos inúmeros homens e mulheres que se tornaram livres após o 13 de maio de 1888. O corpo documental a que recorremos neste estudo compreende, principalmente, autos judiciais cujas demandas visavam à obtenção e/ou manutenção da terra. Passamos a seguir para as histórias protagonizadas por esses atores sociais.

A terra e a liberdade

No dia 27 de maio de 1888, após o término das festas do mês de Maria, um “agrupamento” de pessoas saiu do adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e seguiu pelas ruas da freguesia de Paulo Moreira. Segundo testemunhas, “adiante do povo ia um crioulo de nome Caborge [sic] carregando uma bandeira”, na qual havia “uma divisa = Liberdade”.2 2 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (daqui para frente ACSM), processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. Testemunhos de Antônio José de Lima e de Adriano Felix da Silva. A cena descrita poderia ser facilmente interpretada como a continuidade das festividades religiosas que se seguiram pelas ruas da referida freguesia. Trata-se, na verdade, de excertos dos relatos de duas testemunhas arroladas em um processo criminal cujo desfecho deu-se em 29 de março de 1889. Dois protagonistas dividiram entre si o palco dessa contenda jurídica: a terra e os libertos de maio de 1888. No libelo crime,3 3 O vocábulo exprime a “exposição articulada do fato ou dos fatos criminosos, narrados circunstancialmente, para que se evidenciem os elementos especiais da composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são imputados e o pedido, afinal, de sua condenação, na forma da regra instituída pela lei.” (SILVA, 1993, v. III, p. 83) o advogado dos reclamantes descreve a ação da “horda de desordeiros” dirigidos pelo subdelegado e fazendeiro José Innocêncio de Abreu Lima:

[...] o referido subdelegado, o qual abusando de sua posição como autoridade e mantenedor das Leis e garantia do sossego público, de seu nobre ofício, aliou o agrupamento de gente do povo, em parte composto por ex-escravos, irresponsáveis por sua ignorância e com tal guarda de honra, procedeu aos estragos constantes dos autos de corpo de delito que se junta ou pelo menos autorizou promovendo-os. Entretanto consta aos suplicantes que diversos cidadãos aqui residentes fizeram parte de tal ajuntamento, e concorreram para o ataque e destruição das propriedades dos suplicantes, auxiliando a demolição dos tapumes, destruindo plantações e expondo-as a devastação de animais pela demolição das tapagens.4 4 ACSM, processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. Grifo do documento.

Além do subdelegado, foram indiciados: Olympio Lutero da Silva; Francisco José Tavares, proprietário de uma casa de negócios; José Soares de Brito, alfaiate; Francisco Eugênio de Souza Lobo e o liberto Joaquim José Daniel. Dois outros libertos foram citados pelas testemunhas, Anastácio e Antônio, filho de Ângelo de Tal. Os reclamantes eram todos proprietários de terras, fato subentendido pela descrição dos estragos que constaram no libelo crime. Os maiores prejuízos recaíram sobre a fazenda do padre Anastácio d’Azevedo Correia Barros, sendo os danos avaliados em um “conto cento e noventa mil réis”.5 5 ACSM, processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. O arrolamento dos reclamantes na demanda define o tipo de propriedade rural de cada um deles. Ver no referido processo crime o item “Avaliação dos danos”. O padre Anastácio d’Azevedo Correia Barros era presbítero secular da Ordem de São Pedro. Em momento algum do processo foi citado o nome de sua fazenda. A sentença final absolveu os réus, embora os reclamantes/autores da demanda tenham apelado ao egrégio Tribunal da Relação do Distrito para a revisão da absolvição anterior.

A passagem do “ajuntamento”, “agrupamento” ou “horda”, como são qualificados os participantes do evento, ao longo dos autos criminais, nos revela muito mais do que os atos e consequentes prejuízos descritos minuciosamente pelos avaliadores dos danos, nomeados para a causa. Mais do que o mês da devoção mariana, naquele ano, 1888, maio renovou-se como o tempo da recém-conquistada liberdade. Afinal, apenas catorze dias separavam a Lei Áurea6 6 A Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, decretou o fim da instituição escravista no Brasil. dos eventos ocorridos na freguesia de Paulo Moreira. O “agrupamento” partiu da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, cuja devoção estava associada à libertação do cativeiro, sendo que, à frente do grupo, um crioulo carregava uma bandeira com a palavra “liberdade”.7 7 Sobre as origens da devoção à Virgem do Rosário em Portugal, ver SANTOS, 2012. A devoção ao Rosário foi exortada pelo Papa Leão XIII, em sua encíclica de 3 de outubro de 1893, como um caminho para aplacar os três males sociais que ameaçavam a sociedade: o afastamento da vida modesta e laboriosa; o horror do sofrimento; o esquecimento da vida futura. “O primeiro destes males produz o aniquilamento da disciplina doméstica, e desejo, para a classe operária, de mudar de condições, de deixar o campo para habitar as grandes cidades e de lançar nas agitações populares.” Periódico O VIÇOSO, caixa 332, Biblioteca da FAFICH/UFMG. Microfilme. Pelo caminho, os participantes dessa violenta “procissão” destruíram cercas, porteiras e todo tipo de marcação que simbolizava a propriedade daquelas terras. Nesse sentido, terra e liberdade tornaram-se as duas faces da mesma moeda. A princípio, podemos julgar que o grupo escolheu a esmo quais terras atingir. Entretanto, a leitura dos depoimentos das testemunhas evidenciou que o alvo eram os terrenos franqueados,8 8 Franquear: 1 ( t.d.bit. ) [prep.: a] fazer franco, livre; liberar, permitir; 2 ( bit. ) [prep.: a] facultar o uso de; permitir a entrada em; 3 ( t.d. ) dispensar do pagamento de impostos. (Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=franquear>. Acesso em: 14 jun. 2015). em virtude de um mandado judicial, os quais deveriam ser abertos a título de patrimônio e convertidos em lugares públicos. Entre o mandado judicial e os distúrbios ocorridos, há uma lacuna difícil de ser preenchida. Se existia uma ordem legal para o franqueamento das terras, por que o tumulto havia se organizado?

Ao analisar a formação dos arraiais nas zonas agrícolas na capitania de Minas Gerais, Cláudia Damasceno Fonseca afirma que, em muitos casos, os proprietários de sesmarias doavam o patrimônio para a capela procurando antecipar a futura organização de um povoado. Essas doações poderiam ser oficializadas em época posterior à formação dos arraiais ou, ainda, os fazendeiros poderiam impor condições ao doarem terras para a constituição dos patrimônios religiosos, chegando mesmo a adiar ou a impedir a formação dos arraiais. Segundo a autora, o interesse dos fazendeiros poderia variar em função da existência ou não de um mercado consumidor para os seus produtos. Aqueles que já possuíam mercado para a sua produção não se interessavam pela criação de povoações em suas terras (FONSECA, 2011FONSECA, Claudia Damasceno. Arraiais e vilas D’El Rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011., p. 430-446).

Essa situação estendeu-se ao longo do século XIX. A povoação de Paulo Moreira iniciou-se a partir de uma fazenda cujo proprietário era o sertanista Paulo Moreira da Silva. O patrimônio em torno da capela do Rosário foi constituído, em escritura, pelo sertanista e sua mulher, Maria Paula da Silva, em 26 de agosto de 1775. Já em 1801, a capela encontrava-se ameaçada de interdito pois o seu patrimônio não existia mais. Ele havia sido ocupado por diversos moradores da freguesia. Naquele mesmo ano, o novo proprietário das terras, o alferes Manuel Antônio Rodrigues, fez outra doação de patrimônio para a capela, a qual foi ratificada pelo seu filho em 1824 (BARBOSA, 1995BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1995., p. 23).

Discorrer brevemente sobre as origens da freguesia e os reveses sofridos pelo patrimônio da capela pode lançar algumas luzes sobre o questionamento que fizemos acima. A trajetória das terras destinadas ao desenvolvimento do povoado parece ter se repetido após a nova doação ratificada em 1827. Arriscamos a hipótese de que esses terrenos teriam sido novamente apropriados por particulares, mais especificamente por aqueles que moveram o processo contra o subdelegado e os seus seguidores. Em seus depoimentos, os réus alegavam que as acusações que sofriam eram motivadas por inimizades pessoais alimentadas pelos autores. Se conduzirmos a análise por esse viés, podemos pressupor que o fato implicou apenas em disputas por terras entre esses proprietários. Dessa forma, a participação dos libertos limitá-los-ia a meros instrumentos utilizados para a intimidação por um dos grupos envolvidos na contenda.9 9 Trabalhamos com a hipótese de que as disputas envolvendo a ampliação das terras do patrimônio poderiam estar vinculadas a um processo de expansão econômica e populacional da freguesia. No auto criminal, testemunhas fizeram referências ao trabalho na construção da indústria de tecelagem, introduzida pelo padre Marciano de Aguiar, denominada Sociedade Industrial Paulo Moreirense. A construção do prédio e seu posterior funcionamento pode ter contribuído para atrair novos moradores à freguesia. Ou ainda, prestar-se como uma alternativa de trabalho para os recém-libertos. Pouco tempo após a contenda, o Decreto nº 365, de 5 de fevereiro de 1891, elevou a freguesia de Paulo Moreira à condição de vila, constituindo-a em município, sob a denominação de Alvinópolis. O mesmo decreto desmembrou a vila do Município de Mariana (BARBOSA, 1995, p. 23). Afinal, o advogado dos autores atribuiu qualificações que opõem de maneira inequívoca os envolvidos da desordem: os ex-escravos, ignorantes, logo, irresponsáveis em seus atos; e os cidadãos residentes na freguesia, capazes de compreender a extensão de suas ações criminosas.

Esta não seria a primeira vez que proprietários envolviam escravos ou libertos em suas disputas por terras, por diferenças políticas ou pessoais.10 10 Os obstáculos no acesso à terra dizem respeito à Lei nº 6.012, de 18/9/1850, conhecida como Lei de Terras. Posteriormente, Rui Barbosa, Manoel Ferraz de Campos Salles e Francisco Salles apresentaram uma nova proposta de regularização fundiária. Por meio do Decreto 31/5/1890, na nascente República brasileira, foi estabelecido o Registro Torrens, o qual teve suas funções definidas pelo Decreto nº 955, de 5/11/1890, transferindo para os estados a responsabilidade do controle sobre as terras devolutas. Ambas as legislações tratavam da regulação e do controle sobre as terras devolutas e estabeleceram os critérios para caracterizá-las e discriminar as terras públicas das privadas. Visaram, ainda, definir os limites das propriedades rurais no intuito de eliminar as disputas por terras e consolidar um mercado de terras no Brasil, impossibilitando, assim, o acesso dos libertos à propriedade das terras. Ver: MOTTA, 2010, p. 279-280; 393-398. No dia 27 de julho de 1888, Custódio de Araújo Fonseca, tenente da Guarda Nacional, encontrava-se preso sob a acusação de ter mandado o seu ex-escravo Egydio assassinar um desafeto pessoal.11 11 Arquivo Público Mineiro (daqui para frente APM), POL 1/2, caixa 4, pacotilha 10, 1888. Em 1852, Francisco José das Neves ultrapassou o espigão divisório da Fazenda do Gualaxo e invadiu, “por meio de seus escravos”, terras da referida fazenda usando de força e de violência. Essa ação resultou no primeiro processo judicial de delimitação das terras disputadas pelos Neves e pelos Lopes Camello, envolvendo a Gualaxo.12 12 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Em 1889, no arraial de Barra Longa, libertos e livres uniram-se contra os partidários da República, percorrendo as ruas e “insultando as autoridades e pacíficos Cidadãos Pais [sic] de família”.13 13 APM, POL 1/3, caixa 12, pacotilha 48, 1889. Nesse mesmo ano, em 27 de janeiro, na freguesia de Vargem Alegre, o doutor Benevenuto da Silveira Lobo organizava uma conferência republicana. Fiel propagandista da República, esse advogado participou ativamente da campanha chefiada por João Pinheiro em Minas Gerais. Sua visita à referida freguesia visava angariar apoio político, “visto como, os principais fazendeiros são hoje republicanos com a lei de Maio.”14 14 O autor refere-se, aqui, à Lei de 13 de maio de 1888, que levou muitos proprietários rurais a retirarem o apoio político à monarquia. Ver: TRINDADE, 1943, p. 258-259. Os acontecimentos que se seguiram ao início da conferência foram narrados pelo padre José Pinheiro da Silva, irmão de João Pinheiro da Silva (TRINDADE, 1943TRINDADE, Cônego Raimundo. Genealogias da Zona do Carmo. Ponte Nova: Gutenberg, 1943. , p. 258-259):

[...] Começou a correr que J. C. [sic] fazendeiro, chefe do partido liberal, reunia capangas para opor-se, sendo nisto ajudado por um seu filho, que tem sido e é o terror destes lugares [...] Apenas o doutor Benevenuto começou a conferência no largo da matriz à porta de uma casa ouvem-se gritos: era J. C. que à frente de uma malta de desordeiros afamados, ex-escravos embriagados, diz ao doutor que não continuasse (TRINDADE, 1943TRINDADE, Cônego Raimundo. Genealogias da Zona do Carmo. Ponte Nova: Gutenberg, 1943. , p. 258-259).

A situação de confronto entre os adversários políticos foi contornada pela chegada do padre ao local da conferência. O clérigo assumiu a defesa do líder republicano e, em um ato de heroísmo, abraçou o doutor “exclamando: morramos juntos, Doutor!” (TRINDADE, 1943TRINDADE, Cônego Raimundo. Genealogias da Zona do Carmo. Ponte Nova: Gutenberg, 1943. , p. 258-259). As notícias do evento chegaram às páginas do jornal O Movimento, em sua edição de 13 de fevereiro de 1889.15 15 APM, periódicos, JM-1233119, edição 4, filme 001, Ouro Preto, 13/02/1889. Nas páginas do periódico, os libertos foram duramente responsabilizados pelo acontecido. As qualificações a eles atribuídas acabavam por resgatar a imagem do “inimigo doméstico” atribuída aos cativos durante a vigência da instituição escravista.16 16 A concepção do escravo como um inimigo doméstico e público foi discutida por MALHEIRO, 1866. v. I. A Revolução do Haiti, em 1804, e a Revolta dos Malês, em 1835, fortaleceram essa concepção. O “fantasma” dessas insurreições escravas rondou o imaginário da sociedade brasileira até a abolição, em 1888. O medo de levantes escravos no Brasil oitocentista foi analisado por AZEVEDO, 2003. Seres embrutecidos, sem noção de direitos ou de deveres, recém-saídos da escuridão das senzalas, não tardariam muito em identificar os ex-senhores, republicanos ou não, como um inimigo. Segundo o jornal, qualquer homem de “cor contrária” seria visto pelos libertos com hostilidade. A “luta eterna entre o escravo e o senhor, e consequentemente contra a sociedade” (MALHEIRO, 1866MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social pelo Dr. A.M.P.M. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866-1867. Parte 1., v. 1, p. 15) estendia-se para o pós-abolição e apontava para um novo critério de hierarquização, e de confronto social, sustentado pelas tendências racialistas do período.

De acordo com Lília Moritz Schwarcz, ao final da escravidão, a raça e a biologia passaram a orientar as novas diretrizes de hierarquização social e de formação de uma nova civilização. Durante o período do Império, a ascensão de indivíduos até então excluídos em função da cor ou da origem sinalizava para “uma integração sem obstáculos e barreiras intransponíveis” (SCHWARCZ, 2012SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introdução. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Coord.). História do Brasil Nação: 1808-2010. Madrid: Fundacíon Mapfre; Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. v. 3. p. 19-34., p. 19-22). Essa “abertura social”, contudo, foi freada por novos critérios de alteridade racial, religiosa, étnica, geográfica e sexual que representavam marcadores sociais de diferenças baseados em um novo racismo científico que recorria aos sinais físicos para definir a inferioridade e a falta de civilização. Nas palavras da autora:

[...] a abolição “aboliu” um complexo sistema de mecanismos sociais de distinção, próprios e necessários em uma sociedade de tipo estamental cuja diferenciação era dada pelo nascimento. Durante o Império e pela própria natureza do regime escravocrata, previa-se a mobilidade social e, no limite, a alforria, o que significa dizer que a escravidão possibilitava, por vezes a mobilidade individual, mas não a social, ou em maior escala. Ora, com a República e a entrada em vigor de uma ordem social em mudança, e que passou a classificar os cidadãos com base em critérios raciais, a instabilidade desses grupos tornou-se evidente, e, ademais tão ameaçadora quanto embaraçosa. Afinal, antigos privilégios e distinções mais próprios do Antigo Regime foram transformados em tábula rasa nesse mundo de cidadãos desempatados por critérios raciais (SCHWARCZ, 2012SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introdução. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Coord.). História do Brasil Nação: 1808-2010. Madrid: Fundacíon Mapfre; Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. v. 3. p. 19-34., p 25).

Nesse sentido, os libertos passaram a compor a massa de homens livres e pobres que não pertenciam ao “mundo do trabalho” ou ao “mundo da ordem”.17 17 Fosse nos centros urbanos em expansão ou no mundo agrário predominante, a massa dos “quase cidadãos”, composta pela população recém-liberta do cativeiro, era vista como elemento de risco à estabilidade da ordem excludente definida pela incipiente República (MATTOS, 2004; SCHWARCZ, 2012, p. 19-33). Constatações que geravam inquietude entre os cidadãos da recém-formada República brasileira. Afinal, despreparados para o exercício da cidadania, identificados com a vadiagem e a indolência, esses homens e mulheres, herdeiros do “obscurantismo das senzalas”, eram considerados uma massa disforme, marcada pela anomia social e incapazes de enquadrar-se nos parâmetros definidos para o cidadão/trabalhador.18 18 As leis de regulamentação do trabalho livre que constavam do corpo das leis relacionadas à escravidão, como a Lei Eusébio de Queiróz, a Lei do Ventre Livre de 1871 e a Lei dos Sexagenários, de 1885, referiam-se principalmente ao trabalho dos libertos. O trabalho livre teve sua primeira regulamentação após a Independência do Brasil, com a Lei de 13 de setembro de 1830. Em 11 de outubro de 1837, regulamentou-se o trabalho dos colonos, e, em 15 de março de1879, foi promulgada a última lei de locação de serviços do Estado imperial. As regulamentações do trabalho livre foram ainda feitas por meio das leis civis e do Código Comercial. Essas leis buscavam estabelecer o controle e a fixação da mão da obra, combater a mendicância e a vadiagem com vistas a formar um mercado de trabalho livre no Brasil. Ver: GEBARA, 1986. O Código Penal, de 11 de outubro de 1890, também trazia normas relacionadas ao trabalho e ao controle da mendicância e da vadiagem. Código Penal de 1890; Livro II, Título IV, Capítulo VI, Dos crimes contra a liberdade de trabalho; Livro III, Capítulo XII e Capítulo XIII. Nada mais que “massa de manobra” manipulada ao bel-prazer das redes clientelares às quais possivelmente pertenciam.

Entretanto, podemos compreender a participação “irresponsável e ignorante” dos libertos sob uma perspectiva diversa da colocada acima. A tarefa implicará retroceder ao ano de 1875, quando o cativo João Pardo, conhecido também como João Curto, morador na freguesia de Paulo Moreira, na paragem denominada Cabeceiras do Prata, iniciou demanda judicial pela manutenção de sua liberdade. Segundo João Curto, o seu senhor, Francisco Teixeira dos Passos, o abandonara havia mais de oito anos. Nesse período, ele estivera em “posse e gozo de perfeita liberdade [...] em casa própria, cultivando roça e chácara feita em terreno que comprou”.19 19 ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875. IL= ilegível. Abandonado por motivo de doença, o cativo considerava haver adquirido um direito incontestável à liberdade, afinal, vivia “sobre si” como uma pessoa livre. Para manter-se, João dedicou-se inicialmente à produção de gamelas. Por meio de uma dedicação assídua ao trabalho, adquiriu meios para comprar quatro alqueires de “terras de cultura” nas mãos de João Teixeira, sobrinho de seu senhor, em área vizinha à fazenda onde viveu como cativo. Nas terras compradas, o escravo construiu um rancho, no qual começou a morar. Fez paiol, abriu uma taberna, plantou café, algodão e outros gêneros, criava animais, e comercializava toda a sua produção.

A versão senhorial dos fatos, obviamente, destoa da imagem laboriosa atribuída a João Curto. Segundo o advogado de seu senhor, o cativo primava pela insubordinação e influenciava negativamente os demais escravos que serviam a Francisco Teixeira dos Passos, homem de avançada idade. Considerado “sagaz e velhaco” por uma das testemunhas, sua insubordinação teria chegado a tal ponto que seu proprietário o vendeu a José Vieira Marques, residente no município de Santa Bárbara. A transação comercial, com o consequente afastamento do local onde estavam os bens que havia adquirido, teria levado João a fugir e a acionar a justiça no intuito de permanecer a viver “sobre si”. Impossível saber a quem pertencia a verdade dos fatos. Os papéis atribuídos a senhores e cativos encontram-se expressos nas falas dos advogados de ambas as partes. João Curto ora é apresentado como dedicado, laborioso e que tudo fazia com o consentimento de seu senhor; ora é “velhaco”, insubordinado e péssima influência para os demais cativos. O senhor ora é um homem idoso, impossibilitado de conter os seus escravos e permissivo com estes ao ponto de permitir-lhes dormir “em pequenos ranchos feitos nas proximidades da Casa grande” e cultivar e vender os frutos de suas produções próprias; ora é acusado de abandonar um escravo doente à própria sorte e resgatá-lo como propriedade após a sua plena recuperação física.

O que nos interessa, aqui, não são as imagens construídas ou os papéis socialmente esperados de senhores e de cativos, mas outra faceta das dinâmicas escravistas que teriam marcado a freguesia de Paulo Moreira, reveladas nas palavras do advogado de Francisco Teixeira dos Passos:

O fato de viver o autor [João Curto] em casa separada da que morava o Réu seu Senhor não é um indício de liberdade pelo abandono de domínio, é apenas um fato puro simples da moderação do cativeiro sem a fiscalização constante do Senhor, o que entre nós é muito usual, tanto assim que na freguesia [Paulo Moreira] onde reside o Réu é costume os Senhores tolerarem ou permitirem tacitamente que seus escravos morem fora da Casa senhorial, e dessa benévola concessão gozavam não só o autor como mais alguns de seus parceiros, o que tudo evidencia dos autos. Se houvessem declarados livres os escravos nessas circunstâncias, isto prejudicá-los-ia por que os Senhores negar-lhes-iam o consentimento para o seu estabelecimento que lhes faculta aliás a formação de seu pecúlio.20 20 ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875.

O advogado segue argumentando sobre a questão do pecúlio e da necessidade de anuência do senhor para que o escravo o acumulasse, fato que reforçava a condição de propriedade que cabia ao cativo. O que chama a atenção, na fala do advogado, é a ênfase em uma prática, aparentemente arraigada, de se permitir que os escravos tivessem o acesso a parcelas de terra. Mais ainda, que eles comercializassem os frutos do que nela produziam. Nesse sentido, os conflitos ocorridos em Paulo Moreira, poucos dias após o fim da escravidão, podem ser compreendidos sob a perspectiva dos interesses dos libertos no evento de abertura das terras franqueadas.

Ao analisar o processo crime de furto envolvendo os trabalhadores Hermenegildo João Corrêa e Christino, Sonia Maria de Souza afirma que o furto não era compreendido pelos escravos como uma prática ilegal. Segundo a autora, a leitura do processo criminal envolvendo o liberto Christino leva a crer que ele cometia esse tipo de delito desde os seus tempos de escravidão. Na verdade, o ato de furtar era compreendido como um direito a uma parcela daquilo que era produzido pelos próprios escravos, ou seja, uma compensação pelo trabalho nas lavouras. Os relatos sobre os acontecimentos na freguesia de Lage, Termo de São José del Rei, ocorridos poucos meses após o Treze de Maio de 1888, revelam como essa percepção pode ter-se estendido para o imediato pós-abolição:

Depois da promulgação da Lei de 13 de Maio do corrente ano, que extinguiu a escravidão no Brasil, os libertos desta freguesia na maior parte desprezaram as casas de seus ex-senhores, os quais oferecendo-lhes pagarem para continuarem nos serviços este oferecimento era por eles recebido com pouco caso e respondido com zombaria, e não aceitação, só para conservarem-se na vadiação, e faltando-lhes o necessário para sua alimentação invadem as roças de seus ex-senhores para roubarem e estragarem suas plantações.21 21 APM, POL, série ¼, caixa 10, pacotilha 5.

Claramente, este foi o relato de um fazendeiro que se sentia prejudicado pelos atos dos recém-egressos do cativeiro. O ex-senhor Francisco Pinto de Assis Rezende falava em nome dos demais fazendeiros do local. Sua missiva foi encaminhada ao juiz municipal do Termo para que este pedisse a intervenção governamental visando à contenção das desordens. Entretanto, não é a dicotomia desordem/ordem que buscamos ressaltar, e, sim, o fato de que os ex-cativos buscavam nos seus antigos locais de trabalho o necessário para a sobrevivência. Assim como Christino, compreendiam as “invasões” e os consequentes furtos como uma compensação pelos anos de cativeiro.

Acreditamos que esse mesmo sentido de “direito adquirido” estendeu-se à questão do acesso à terra no pós-abolição. A prática de se conceder aos cativos uma parcela do terreno para o cultivo de gêneros ou para a criação de animais, que seriam destinados à comercialização e formação de pecúlio próprio, era disseminada entre os senhores. No caso específico da freguesia de Paulo Moreira, o advogado classifica o fato de os cativos morarem distantes da “Casa grande” como um costume e que isso lhes facilitava a formação do pecúlio. Com o fim da escravidão, os antigos deveres senhoriais deixaram de existir, ou seja, a alimentação, o vestuário e a moradia passavam a ser responsabilidade do indivíduo libertado. Nas palavras de Sonia Maria de Souza: “o senhor não tinha mais obrigação de sustentar o liberto, e o que antes lhe era concedido como um direito costumeiro ou adquirido passou a ser vendido” (SOUZA, 2007SOUZA, Sonia Maria de. Terra, família, solidariedade: estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição - Juiz de Fora (1870-1920). Bauru: EDUSC, 2007., p. 194). A partir dessas colocações, arriscamos a hipótese de que os libertos compreenderam que ter acesso às terras franqueadas do patrimônio, em Paulo Moreira, significava a preservação de um direito adquirido na vida em cativeiro. Abrir mão de tal conquista poderia significar para muitos desses homens e mulheres uma maior dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de garantir as condições concretas de sobrevivência na vida em liberdade. Tal situação poderia ainda colocar em risco a estabilidade ou a união familiar em função de migrações em busca de trabalho.

A luta pela preservação de costumes/direitos adquiridos durante a escravidão, assim como por uma visão própria da liberdade, não se limitou aos cativos de Paulo Moreira. De acordo com Eric Foner, no caso do Caribe, os negros definiam que a liberdade não deveria diminuir os seus direitos ou deixá-los com um padrão de vida mais baixo do que aquele que tinham em cativeiro. No caso do sul dos Estados Unidos, a definição de liberdade defendida pelos negros não se limitava à noção “da simples posse de si” (FONER, 1988FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988., p. 23-24). Esta concepção colocava-os em notória desvantagem no mercado de trabalho livre do qual agora faziam parte. Pelo contrário, para os antigos cativos a liberdade significava o direito à terra que eles sempre limparam e cultivaram (FONER, 1988FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988., p. 24).

Nesse sentido, a liberdade e seus significados, a cidadania, o acesso à terra foram temas comuns às sociedades que compartilharam a experiência dos processos emancipacionistas. O que as diferenciou foram as respostas obtidas para essas temáticas: respostas construídas pelas experiências particulares do cativeiro. No caso que aqui analisamos, para além da preservação de um costume/direito antigo, o acesso às terras franqueadas poderia significar a ruptura com possíveis laços de dependência entre esses libertos e os seus antigos senhores mediante a possibilidade de se tornarem proprietários de uma parcela da área em disputa. Dessa forma, a participação dos libertos nos eventos de destruição dos marcos definidores das propriedades rurais significou a luta pela construção da vida em liberdade - não como meros espectadores ou “massa de manobra” na defesa de interesses de outrem, e sim dos seus próprios objetivos de autonomia.

Terra, liberdade e trabalho: o caso da Fazenda do Gualaxo

A prática de concessão de terrenos aos libertos para cultivo por parte dos ex-senhores pode ser identificada nos depoimentos de algumas das testemunhas envolvidas no processo de disputa pelas terras da Fazenda do Gualaxo. Em 1902, foi instaurado o processo de força nova turbativa de demarcação de divisas envolvendo as fazendas do Gualaxo, do Mirandinha e de Cruz das Almas. Nesse auto, o capitão Torquatro José Lopes Camello, proprietário da Gualaxo, demandou na justiça contra o tenente-coronel José Francisco Neves, conforme relatado no libelo crime redigido pelo advogado dos autores:

Que os suplicantes [Torquatro José Lopes Camello e sua mulher] são senhores e possuidores da fazenda do Gualaxo, sita no distrito de Camargos, por compra feita a seus irmãos, como prova o documento número 1, exibido tão somente para fundamentar a origem de sua posse, mas que protestam não aceitar discussão sobre domínio, ainda que provado incontinente com o imposto territorial pago, documento número 2, da qual fazenda estão os suplicantes de posse mansa e pacífica por si e seus antepossuidores a mais de cinquenta anos exercida ininterruptamente por todo esse tempo já com criações, já cultivando-a e já dando de arrendamento a uns e grátis a outros, partes das Terras da mesma, dividindo precisamente nos pontos perturbados e violentados pelo suplicado [José Francisco das Neves] com a fazenda do Mirandinha pelo espigão até a ponte de pedras, no rio Gualaxo, estrada de Camargos para Bento Rodrigues, e pelo Córrego de Camargos com a fazenda da Cruz das Almas.22 22 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso.

O advogado segue descrevendo outras formas de exploração da terra existentes na Gualaxo: um engenho de socar formação aurífera na lavra denominada São João; carvoaria; uma olaria de telhas e lenheiro; retirada de madeira a ser comercializada com a Companhia de Passagem. Arrolar todos os usos da terra implicava comprovar a longevidade da propriedade da mesma pela família de Torquatro José Lopes Camello, assim como elucidar que essas atividades desenvolveram-se inclusive na área que se encontrava em litígio, sem que houvesse contestação pelos réus. Já em 1852, Francisco José das Neves, pai do réu, reuniu seus escravos e invadiu parte das terras da Fazenda do Gualaxo, queimando carvão em seus matos. Superado o episódio, os Lopes Camello mantiveram a posse incontestada da terra por mais de cinquenta anos. No transcorrer desse período, as famílias Lopes Camello e Neves estabeleceram laços de sociabilidade por meio do apadrinhamento de escravos pertencentes às suas posses. Em 1870, o casal José Francisco das Neves e Miquelina Antônia da Costa testemunhou o casamento dos cativos Levy e Laura, pertencentes às posses de Torquatro José Lopes Camello.23 23 Livro de Matrimônio 1.792, Outubro-1922, Julho. Imagem 83. Disponível em: <https://familysearch.org/search/image/index#uri=https://familysearch.org/recapi/sord/collection/2177275/waypoints>. Dezenove anos depois, o mesmo José Francisco das Neves testemunhou o casamento do filho de Levy e Laura, Firmino Pinto Nery. Os registros de casamentos dos Pinto Nery revelam muito mais do que apenas os laços de sociabilidade horizontais - entre os Lopes Camello e os Neves - ou verticais - entre esses fazendeiros e aquela família de libertos; eles colocam às claras a imbricada teia de relações sociais e de dependência pessoal que conectou esses atores sociais no pós-abolição. Essa teia acabou por colocar o protagonismo da contenda nas mãos do liberto Levy Pinto Nery. Os relatos das testemunhas revelam as diversas facetas das relações sociais ou de trabalho que marcaram as vivências da antiga comunidade de cativos da Gualaxo.

O testemunho de Appolinário Antônio da Silva lança luzes sobre essa prática ao narrar sobre a sua recusa em manter a roça oferecida pelo capitão Torquatro José Lopes Camello. Ele rejeita, em seu nome e no de seus companheiros, as roçadas oferecidas por localizarem-se distantes de suas casas e por ser o terreno constantemente atacado por animais (porcos do mato) que colocavam em risco as plantações. Contudo, não teve qualquer receio em propor, ao capitão, a concessão, ou mesmo o arrendamento, de terras mais próximas às sua moradas. Além disso, naquele local das terras da Gualaxo, os porcos do mato costumavam estragar as roças.24 24 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Todavia, Appolinário propôs ao capitão que desse ou que arrendasse terras a ele e aos demais trabalhadores que o acompanhavam, em lugares próximos a suas moradas. Negociação cujo resultado não aparece no auto jurídico. Entre os companheiros de Appolinário, encontravam-se Dionísio de tal e Levy Pinto Nery, os quais acabaram por aceitar a oferta de cultivar a roça feita por Lopes Camello. Ainda de acordo com a testemunha, Levy só teria aceitado a proposta por estar

[...] convencido de que o terreno Catita, que desde menino conhece como pertencente a fazenda do Gualaxo e nas mesmas terras os pais [Antônio José Lopes Camello e Rita Florinda da Silva] dos autores [Torquatro José Lopes Camello] tiveram plantações e tiraram varas para fazer cercas, sendo que o mesmo Levy era quem ajudava a fazer todos estes serviços.25 25 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.

Uma segunda testemunha, José Jorge Penna, afirmou conhecer outros depoentes que haviam jurado na causa: Francisco Paulino, Nicolau Fausto da Silva e Levy Pinto Nery. Ressaltou que Francisco Paulino era afilhado de um dos herdeiros da Fazenda do Gualaxo e que aí foi criado. E mais, que Levy, assim como outros ex-escravos nascidos e criados na Gualaxo, “moram hoje em casas suas e separadas da dita fazenda, não sabendo ele testemunha se essas testemunhas são dependentes ou Camaradas [sic] dos autores”.26 26 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso. Face a esses relatos, as disputas pelo cultivo da roça no local denominado Catita aparentava estar resolvido. O que Levy não contava era que, ao assumir a roça, se visse na obrigação de requerer autorização do tenente-coronel Neves para dar prosseguimento ao cultivo da terra. Para que pudesse plantar e colher os frutos de seu trabalho, assinou uma carta declarando que só continuava naquela terra por consentimento do tenente-coronel José Francisco. O depoimento do próprio Levy Pinto Nery lança luz para que possamos compreender sua posição nessa demanda jurídica. Na época de seu depoimento, Levy tinha 62 anos de idade, ainda estava casado, era lavrador e não sabia ler ou escrever. Vejamos o registro de seu testemunho:

[Levy] disse [...] que tendo feito a cerca de oito anos uma roça no lugar denominado Catita por autorização dos Autores, aí plantou e (IL) a mesma roça e nas vésperas da colheita o Coronel Neves exigiu dele depoente uma carta pedindo-lhe consentimento para colher a mesma roça tendo ele depoente assinado uma carta que lhe apresentada [sic] em casa do Tenente Miquelim Soares [...] carta essa que foi assinada a seu rogo e que tudo fez por que sendo pobre não queria saber de dúvidas embora sabendo que estes terrenos eram de propriedades dos autores.27 27 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso. IL: Ilegível.

Por meio de seu depoimento, Levy deu voz a muitos outros homens e mulheres que se defrontaram com a dura realidade do controle sobre o campo pelos antigos proprietários de terras e de gentes. Por trás do autorreconhecimento de sua condição de pobre, encontrava-se implicitamente sua situação de dependência em relação aos proprietários locais; afinal, ele assinou a carta pois não “queria saber de dúvidas”. Ou seja, aquiescia à solicitação do tenente-coronel para manter a sua roça e colher os frutos de sua produção. Como veremos adiante, Levy não foi o único a procurar manter-se em uma posição de “neutralidade” em relação aos desafetos existentes entre estas famílias de proprietários. Além de Levy, vários outros antigos escravos foram convocados a testemunhar na demanda judicial pelos limites da Gualaxo. Nicolau Fausto da Silva, parceiro de Levy na roça que motivou a demanda; Secunda Pulcheria de Souza, destinada em 1876 ao quinhão de herança de Albina Pulcheria Clementina da Silva, irmã do capitão Torquatro; Crescencio de tal, carpinteiro, parte do quinhão de Clara Josephina da Silva, em 1876, também irmã do capitão, e Eloy Pinto Nery, irmão de Levy.

Trabalhamos com a hipótese de que duas outras testemunhas arroladas neste auto judicial possivelmente viveram sob a condição de cativos: Raymundo José de Moura, 70 anos de idade, casado, carpinteiro, sabia ler e escrever, nasceu e foi criado na fazenda do Mirandinha; Donato Bonifácio de Sousa, 69 anos de idade, casado, não sabia ler ou escrever, indicou em seu depoimento que o engenho de moer cana, cuja guarda havia sido confiada ao seu avô, conhecido como Pai Manoel, ficava em terras do tenente-coronel Neves. Ambos eram naturais de Camargos, local onde as terras em litígio se localizavam. Raymundo, em suas próprias palavras, “nasceu e foi criado na fazenda do Mirandinha cujos limites conhece [...] pois que era campeiro que lidava com o gado da fazenda do Mirandinha e isto por muitos anos”.28 28 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. As conexões entre os depoentes e o tenente-coronel Neves tinham suas origens nas vivências de ambos nas terras daquele, como indicam suas referências aos limites da fazenda do Mirandinha e à localização do engenho. Pelo menos duas gerações da família de Raymundo haviam vivido/nascido na fazenda do Mirandinha em um período no qual a mão de obra era predominantemente cativa. Esse era também o contexto no qual a família de Donato estava inserida. Um passado de cativeiro em terras dos Neves pode ter sido a razão para convocá-los como testemunhas no processo.

No município de Mariana, a reprodução natural foi uma forte alternativa no processo de reposição da mão de obra escrava antes mesmo da proibição do tráfico atlântico em 1850. Dessa forma, gerações sucessivas de cativos permaneceram sob propriedade de uma mesma família senhorial. Os relatos de Raymundo e Donato descrevem atividades de trabalho em terras do proprietário da Mirandinha que conectam suas raízes familiares à referida fazenda.29 29 Sobre a reprodução natural de cativos em Mariana, ver: TEIXEIRA, 2001. A participação dos antigos escravos nesta causa judicial foi fundamental para a compreensão dos limites geográficos definidores das terras pertencentes a cada um dos proprietários, assim como dos usos aos quais a terra era destinada. Foram esses homens e mulheres que participaram ativamente do cotidiano de trabalho nas lavouras, nos engenhos, nas queimadas das roçadas, nos plantios, nas colheitas, nos engenhos de cana ou de mineração, nas fábricas de olaria etc. Nesse sentido, aventamos a hipótese acima de que Raymundo e Nonato foram convocados como testemunhas em função de um passado de cativeiro na Mirandinha. A disputa pelas terras trouxe à tona, mais uma vez, as pontes entre o passado escravo e a vida em liberdade, reconectando antigos senhores e seus cativos. Desvelou ainda as barreiras a serem transpostas para o acesso à terra e ao trabalho na lavoura.

Uma outra testemunha, Prudêncio Antônio Cardoso, declarou que o liberto Belizário, ex-escravo do doutor Francisco Carlos Pereira Macedo, afirmou-lhe que o referido doutor havia consentido a Francisco Silva que fizesse roça nos terrenos da Fazenda Cruz das Almas. O capitão Torquatro concedeu a Joaquim Pereira permissão para que cultivasse uma roça de milho e um mandiocal, culturas que conservou por um período de dois anos. A testemunha descreve a localização das roças com minuciosa precisão. Estas encontravam-se situadas “na ponte de pedra no Rio Gualaxo, na estrada que veio de Camargos para Bento Rodrigues em um mato logo que salta a ponte a esquerda”.30 30 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Essa preocupação indica o quanto as informações poderiam ser fundamentais para a garantia de preservação da propriedade sobre as parcelas das terras contestadas no auto judicial. Ainda nas terras da Gualaxo, Lucio Ferreira de Aguiar, José Bonifácio, Sebastião Anastácio, João Ferreira, Leonardo da Silva e Luiz da Silva roçaram e “plantaram cultura” [sic] e colheram os frutos das mesmas nos matos da Lavra de São João. Muitos anos antes, em 1826, Maria Izabel Florinda de Assis vendeu parte de suas terras de cultura, situadas “no Gualaxo de Antônio Pereira”, ao senhor Antônio Lopes Muniz com a condição de que fossem conservados, no rancho aí existente, Matheus Lopes e Antônia Mina, “somente enquanto fossem vivos”.31 31 ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Testemunho de Severino Ferreira de Aguiar. Consideramos a possibilidade de que, no caso do referido Luiz da Silva, trate-se de Tude Luiz da Silva. No cativeiro, Tude tinha por ofício ser roceiro. Seu filho Estulano consta como lavrador nos registros de nascimentos de seus filhos, em 1908 e 1913. Ao que tudo indica, parte dos membros desta família permaneceu na lida do trabalho na lavoura. Como o processo pela disputa das terras envolveu vários ex-escravos da Gualaxo, acreditamos tratar-se da mesma pessoa.

A preocupação com a preservação dos direitos sobre a terra cedida a esses “ocupantes ocasionais” parece ter sido frequente entre os proprietários rurais do Termo de Mariana. Em 1897, Manoel Agostinho Gomes e sua mulher, Francisca Virgínia Carneiro, agricultores, residentes no distrito da Barra Longa, citaram, em uma ação de despejo, a Manoel Theodoro Bispo e sua mulher, Ludovina da Conceição, residentes no Gesteira, localizado no mesmo distrito. De acordo com o advogado dos autores do processo, a ação estava fundamentada nos seguintes motivos:

Que os Suplicantes são senhores e possuídores de oito alqueires e uma quarta de terras de cultura e parte das casas e moinho com suas divisas descriminadas sitas no Gesteira, distrito de Barra Longa, desta Comarca, como mostra o documento junto. Que Manoel Theodoro Bispo e sua mulher estão ocupando como intrusos um pedaço pequeno das ditas terras, onde já fizeram uma casinha com plantações e pretendem aumentá-la com mais uma varanda ou água furtada, e que tudo tem feito sem consentimento dos Suplicantes.32 32 ACSM, ação de despejo, 1897. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.

A ação foi cancelada pelo juiz em função do não comparecimento dos autores ou dos réus do processo. Ao que parece, segundo o testemunho de José Luiz de Castro, os réus, Theodoro Bispo e sua mulher, acabaram por desistir da construção da varanda mediante a oposição dos autores. Os autos processuais não informaram qual legislação seria utilizada para a ação de despejo. Contudo, o temor dos autores poderia estar vinculado à prática do usucapião. A Lei de Terras de 1850 garantia “o posseiro na parte cultivada da terra, com morada habitual” (SILVA, 1996SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp, 1996., p. 325). O texto da lei referia-se prioritariamente às terras devolutas pertencentes ao Estado, mas a precariedade dos registros sobre a propriedade da terra pode ter reforçado o receio de que os “ocupantes ocasionais” das mesmas recorressem à justiça reivindicando a posse da parcela de terra ocupada pelo uso da mesma ou pela construção de benfeitorias.33 33 Sobre os efeitos da Lei de Terras de 1850, ver SILVA, 1996.

Nossa amostragem documental não permitiu mensurarmos o quanto essa prática de concessão de terras aos libertos era comum entre os antigos senhores. Entretanto, ao cruzarmos as declarações das testemunhas arroladas nos autos do processo da Fazenda do Gualaxo com a informação de que, na freguesia de Paulo Moreira, era costumeiro os senhores autorizarem seus cativos a possuírem roças próprias,34 34 Demanda jurídica de manutenção de liberdade movida pelo cativo João Curto. ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875. arriscamos afirmar a existência de uma linha de continuidade e de preservação desse antigo costume no pós-abolição. Não temos como comprovar que esta era uma prática generalizada para o município de Mariana. Mas não podemos deixar de ressaltar a importância dos casos acima mencionados para a compreensão das diferentes experiências de liberdade. De acordo com Eric Foner, ao fim do perído de “aprendizado”,35 35 O período de “aprendizagem” (apprenticeship) - na verdade, um período legalmente imposto entre a escravidão e a liberdade - não viabilizou a transição para o trabalho livre programada pelas autoridades britânicas no Caribe inglês. A pressuposição entre as elites de que “todos os homens seriam capazes de se aproveitar das oportunidades supostamente iguais de adquirir propriedades, instrução ou habilidades que lhes confeririam a admissão na esfera pública” acabou por expor, na prática, as contradições da ideologia liberal na política de emancipação formulada pela burocracia colonial (HOLT, 2005, p. 103). os direitos costumeiros de propriedade foram descartados e os fazendeiros jamaicanos passaram a cobrar preços exorbitantes pelo privilégio de ter acesso a terras de cultivo ou para que os libertos pudessem viver nas casas que haviam sido construídas por eles próprios. A retirada dos direitos consuetudinários teria gerado uma fonte de conflitos entre os fazendeiros e os libertos por todo o Caribe. O objetivo dos fazendeiros era manter a força de trabalho disciplinada e evitar o surgimento das aldeias camponesas, as quais acabavam por pressionar o aumento do salário dos libertos remanescentes no trabalho das fazendas (FONER, 1988FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988., p. 40-43). Para os casos com os quais trabalhamos, podemos pensar na possibilidade de uma lógica inversa, ou seja, manter o antigo costume de conceder terras para o cultivo de roças próprias pelos libertos pode ter-se apresentado como um recurso, por parte dos proprietários rurais, de fixação da mão de obra, e, ao mesmo tempo, de evitar a pressão por salários mais altos.

O uso da terra para atividades diversas não se constituiu um privilégio da Fazenda do Gualaxo. A diversificação da produção das fazendas mineiras, ou melhor dizendo, da região da Metalúrgica-Mantiqueira, vinha de longa data (MARTINS, 1982MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no XIX. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1982.; SLENES, 1985SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes - centro dinâmico e mercado interno em Minas oitocentista. Cadernos IFCH, Campinas, Unicamp, n. 17, p. 217-227, jun. 1985.; LIBBY, 1988LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. ; ALMEIDA, 1994ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana - 1750-1850. 1994. 220 f. Dissertação (Mestrado em História Social Moderna e Contemporânea). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.; PAIVA, 1996PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. 1996. 254 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.; TEIXEIRA, 2001TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana 1850-1888. 2001. 168 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.; ANDRADE, 2008ANDRADE, Francisco Eduardo de. Entre a roça e o engenho: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. Viçosa: Editora UFV, 2008.). A própria sazonalidade das diferentes culturas poderia favorecer o uso rotativo da mão de obra nas diversas atividades desenvolvidas nessas propriedades rurais, como os engenhos de cana-de-açúcar, as lavras de mineração, ou ainda, a criação de animais. Dessa forma, ao contrário dos fazendeiros jamaicanos, os fazendeiros aos quais aqui nos referimos atentaram para o fato de que as terras de cultivo criavam, para muitas das famílias de ex-escravos, “um forte laço com as fazendas” (FONER, 1988FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988., p. 40). Este poderia ser um importante atrativo na disputa, entre os proprietários rurais, pela obtenção de braços para a lavoura.

Por outro lado, a sobrevivência dessa prática pode ter propiciado uma maior autonomia para os libertos na escolha de para quem trabalhar ou como trabalhar. A recusa de Appolinário, falando também por seus companheiros de labor, em cultivar uma roça distante de sua casa põe às claras o exercício da autonomia, de escolha a quem servir ou como servir. Além disso, sua opção por terras mais próximas à sua moradia nos possibilita pensar na importância da localização das roças. Partimos da hipótese de que essa relevância estaria vinculada à existência de arraiais, ou de vilas próximas, os quais serviriam como mercados consumidores dos “gêneros da terra” produzidos. Esta condição, localização das roças, viabilizaria aos jornaleiros recorrer ao trabalho familiar, das mulheres e das crianças, aumentando o volume da produção e as possibilidades de comercialização da mesma. Envolver a família no cultivo das roças poderia resultar, ainda, em uma maior autonomia do trabalhador jornaleiro. As roças próximas às moradias seriam cultivadas pelos demais membros da família enquanto o “chefe da casa” poderia buscar trabalho em áreas mais distantes. Essa “divisão do trabalho” garantiria, pelo menos, os recursos básicos de sobrevivência para aqueles que laboravam na terra.36 36 De acordo com Eric Foner, as aldeias camponesas na Jamaica ter-se-iam originado em terras desocupadas da Coroa, distantes dos mercados ou das estradas existentes. Contudo, muitas dessas aldeias desenvolveram-se nas fazendas ou próximas a elas. Não estamos sugerindo, aqui, que os casos citados acima tenham propiciado a formação de aldeias camponesas no município de Mariana. Contudo, trabalhamos com a hipótese de que os laços de comunidade contribuíram para uma maior autonomia desses libertos nas relações de trabalho estabelecidas no pós-abolição (FONER, 1988, p. 43). Sonia Maria de Souza aborda a questão da importância de propriedade da terra pelos libertos como uma forma de controle sobre o tempo e o trabalho, deles e de suas famílias.

Outro aspecto a ser destacado nos remete ao senso de comunidade existente entre Appolinário e seus companheiros de trabalho, o qual transparece na sua narrativa dos fatos. Em seu testemunho, ele sempre colocou-se como parte integrante de um grupo de jornaleiros, e, ao que tudo indica, de libertos, que buscavam cultivar as roças coletivamente. De acordo com Sonia Maria de Souza, o significado da propriedade da terra para os ex-escravos ultrapassava o aspecto meramente econômico, simbolizando a liberdade, a base para a formação de laços familiares e de parentesco. Mais ainda, conferia-lhes um sentido de comunidade e de identidade. Essa relação manifestava-se, principalmente, nos casos em que a terra era comprada e cultivada coletivamente (SOUZA, 2007SOUZA, Sonia Maria de. Terra, família, solidariedade: estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição - Juiz de Fora (1870-1920). Bauru: EDUSC, 2007., p. 212). No caso de Appolinário e seus companheiros, a terra não foi comprada, mas a proposta de arrendamento e cultivo coletivo foi claramente colocada para o capitão Torquatro. Conforme colocado acima, esse auto jurídico envolveu diversos ex-escravos da Gualaxo; dessa forma, podemos inferir que pelo menos parte dos companheiros de Appolinário fossem originários dessa fazenda e que preservaram seus laços de sociabilidade, e de comunidade, na vida em liberdade.

Considerações finais

Os pequenos “fragmentos” de liberdade aqui desvelados constituem preciosos informantes de um amplo conjunto das dinâmicas escravistas - características da região sobre a qual debruçamos os nossos olhares - e de seus impactos, nas vivências dos libertos, após o Treze de maio de 1888. Esses breves relatos de vidas nos revelaram que os seus protagonistas não se apartaram de suas vivências da escravidão. Pelo contrário, retomando Thomas Holt, as permanências do passado escravista, para as primeiras gerações de libertos que vivenciaram as experiências do pós-abolição, mantiveram-se presentes em suas lutas pela afirmação da liberdade.

Embora houvesse por parte do Estado imperial um projeto de liberdade que atendesse aos interesses das elites dirigentes - norteado por uma legislação que visava ao controle e à fixação da mão de obra -, esses homens e mulheres desenvolveram ações que se vincularam aos recursos disponíveis, fossem eles individuais, familiares ou de grupos. Por meio de suas escolhas individuais, elaboraram “uma política da vida cotidiana que tem seu centro na utilização estratégica das regras sociais” (LEVI, 1989 apudREVEL, 1998REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas , 1998. p. 15-38., p. 22). Construíram, dessa forma, suas visões particulares de liberdade buscando caminhos diversos para concretizá-las. As possibilidades de resistência dos grupos ou indivíduos, e por que não, de “acomodação”37 37 Compreendemos por “acomodação” o entendimento entre pessoas, combinação, no sentido da utilização dos recursos acionados por meio das redes de sociabilidade nas quais o indivíduo encontrava-se inserido. às estruturas sociais, políticas ou econômicas vigentes propiciam uma visão matizada dos poderes institucionalizados em uma sociedade. Analisar como esses poderes submeteram-se às lógicas sociais particulares de indivíduos ou de grupos enriquece a compreensão das múltiplas facetas de um dado momento histórico. O conceito de “estratégia” adquire, diante dessa discussão, uma importância fundamental para os estudos dos grupos subalternos. Privilegiar as percepções e as ações dos atores sociais nos espaços de conformação ou de confronto com as normas instituídas confere novos significados às relações desses atores com uma dada realidade. As “estratégias” são compreendidas, dessa forma, não apenas como os comportamentos e as ações sociais bem-sucedidos, mas, sim, como as ações individuais ou de grupo resultantes dos recursos próprios disponíveis em um dado contexto social. A reconstrução de redes de relações ou a identificação de escolhas específicas (individuais ou coletivas) possibilita que esse conceito, reservado à análise da história das elites, seja estendido como recurso analítico para a reconstituição histórica das ações dos grupos subalternos.38 38 Sobre a redefinição do conceito de estratégia social, ver: REVEL, 1998, p. 20. O uso do conceito para os estudos dos grupos subalternos foi discutido por GRENDI, 1998, p. 253. Nesse sentido, as estratégias, as identidades e os costumes constituir-se-iam como elementos conectores entre as experiências vivenciadas na escravidão e, posteriormente, na vida em liberdade.

REFERÊNCIAS

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    » http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
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  • TRINDADE, Cônego Raimundo. Genealogias da Zona do Carmo Ponte Nova: Gutenberg, 1943.

Notas

  • 1
    A utilização dos termos pós-abolição/pós-emancipação respeita a opção dos autores citados no texto acima. Em nosso trabalho, optamos por utilizar o termo pós-abolição. Em sua definição jurídica, abolir “é o termo que designa, também, a revogação de uma instituição ou de uma praxe adotada” (SILVA, 1993SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993., v. I, p. 9). O termo emancipar possui definição semelhante, já que, além da livre alienação de bens, pode significar ainda “dom ou dádiva da liberdade.” (SILVA, 1993SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993., v. II, p. 141). Emancipar compreende, ainda, a antecipação da maioridade de uma pessoa, a qual passaria a ter plena capacidade jurídica para dispor de seus bens ou gerir os seus negócios, eximindo-se do pátrio poder. Nesse sentido, se por um lado os libertos adquiriram mobilidade, autonomia e reconhecimento jurídico de sua liberdade, por outro, vários anos após a extinção da escravidão, eles permaneceram identificados como “ex-escravo de” em diferentes fontes documentais de nossa amostragem. Logo, compreendemos que eles se encontravam livres sim, mas nem sempre emancipados do “pátrio poder” ou do “despotismo beneficente” de seus antigos senhores.
  • 2
    Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (daqui para frente ACSM), processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. Testemunhos de Antônio José de Lima e de Adriano Felix da Silva.
  • 3
    O vocábulo exprime a “exposição articulada do fato ou dos fatos criminosos, narrados circunstancialmente, para que se evidenciem os elementos especiais da composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são imputados e o pedido, afinal, de sua condenação, na forma da regra instituída pela lei.” (SILVA, 1993SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993., v. III, p. 83)
  • 4
    ACSM, processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. Grifo do documento.
  • 5
    ACSM, processo crime, Iº Ofício, códice 349, auto 7.711, 1889. O arrolamento dos reclamantes na demanda define o tipo de propriedade rural de cada um deles. Ver no referido processo crime o item “Avaliação dos danos”. O padre Anastácio d’Azevedo Correia Barros era presbítero secular da Ordem de São Pedro. Em momento algum do processo foi citado o nome de sua fazenda.
  • 6
    A Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, decretou o fim da instituição escravista no Brasil.
  • 7
    Sobre as origens da devoção à Virgem do Rosário em Portugal, ver SANTOS, 2012SANTOS, Georgina Silva dos. Devoções atlânticas: a construção da identidade social e religiosa de cativos e libertos na Bahia colonial. Afro-Ásia, Salvador, n. 46, p. 303-310, 2012.. A devoção ao Rosário foi exortada pelo Papa Leão XIII, em sua encíclica de 3 de outubro de 1893, como um caminho para aplacar os três males sociais que ameaçavam a sociedade: o afastamento da vida modesta e laboriosa; o horror do sofrimento; o esquecimento da vida futura. “O primeiro destes males produz o aniquilamento da disciplina doméstica, e desejo, para a classe operária, de mudar de condições, de deixar o campo para habitar as grandes cidades e de lançar nas agitações populares.” Periódico O VIÇOSO, caixa 332, Biblioteca da FAFICH/UFMG. Microfilme.
  • 8
    Franquear: 1 ( t.d.bit. ) [prep.: a] fazer franco, livre; liberar, permitir; 2 ( bit. ) [prep.: a] facultar o uso de; permitir a entrada em; 3 ( t.d. ) dispensar do pagamento de impostos. (Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=franquear>. Acesso em: 14 jun. 2015).
  • 9
    Trabalhamos com a hipótese de que as disputas envolvendo a ampliação das terras do patrimônio poderiam estar vinculadas a um processo de expansão econômica e populacional da freguesia. No auto criminal, testemunhas fizeram referências ao trabalho na construção da indústria de tecelagem, introduzida pelo padre Marciano de Aguiar, denominada Sociedade Industrial Paulo Moreirense. A construção do prédio e seu posterior funcionamento pode ter contribuído para atrair novos moradores à freguesia. Ou ainda, prestar-se como uma alternativa de trabalho para os recém-libertos. Pouco tempo após a contenda, o Decreto nº 365, de 5 de fevereiro de 1891, elevou a freguesia de Paulo Moreira à condição de vila, constituindo-a em município, sob a denominação de Alvinópolis. O mesmo decreto desmembrou a vila do Município de Mariana (BARBOSA, 1995BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1995., p. 23).
  • 10
    Os obstáculos no acesso à terra dizem respeito à Lei nº 6.012, de 18/9/1850, conhecida como Lei de Terras. Posteriormente, Rui Barbosa, Manoel Ferraz de Campos Salles e Francisco Salles apresentaram uma nova proposta de regularização fundiária. Por meio do Decreto 31/5/1890, na nascente República brasileira, foi estabelecido o Registro Torrens, o qual teve suas funções definidas pelo Decreto nº 955, de 5/11/1890, transferindo para os estados a responsabilidade do controle sobre as terras devolutas. Ambas as legislações tratavam da regulação e do controle sobre as terras devolutas e estabeleceram os critérios para caracterizá-las e discriminar as terras públicas das privadas. Visaram, ainda, definir os limites das propriedades rurais no intuito de eliminar as disputas por terras e consolidar um mercado de terras no Brasil, impossibilitando, assim, o acesso dos libertos à propriedade das terras. Ver: MOTTA, 2010MOTTA, Márcia (Org.). Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2010., p. 279-280; 393-398.
  • 11
    Arquivo Público Mineiro (daqui para frente APM), POL 1/2, caixa 4, pacotilha 10, 1888.
  • 12
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 13
    APM, POL 1/3, caixa 12, pacotilha 48, 1889.
  • 14
    O autor refere-se, aqui, à Lei de 13 de maio de 1888, que levou muitos proprietários rurais a retirarem o apoio político à monarquia. Ver: TRINDADE, 1943TRINDADE, Cônego Raimundo. Genealogias da Zona do Carmo. Ponte Nova: Gutenberg, 1943. , p. 258-259.
  • 15
    APM, periódicos, JM-1233119, edição 4, filme 001, Ouro Preto, 13/02/1889.
  • 16
    A concepção do escravo como um inimigo doméstico e público foi discutida por MALHEIRO, 1866MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social pelo Dr. A.M.P.M. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866-1867. Parte 1.. v. I. A Revolução do Haiti, em 1804, e a Revolta dos Malês, em 1835, fortaleceram essa concepção. O “fantasma” dessas insurreições escravas rondou o imaginário da sociedade brasileira até a abolição, em 1888. O medo de levantes escravos no Brasil oitocentista foi analisado por AZEVEDO, 2003AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003..
  • 17
    Fosse nos centros urbanos em expansão ou no mundo agrário predominante, a massa dos “quase cidadãos”, composta pela população recém-liberta do cativeiro, era vista como elemento de risco à estabilidade da ordem excludente definida pela incipiente República (MATTOS, 2004MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadanias no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.; SCHWARCZ, 2012SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introdução. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Coord.). História do Brasil Nação: 1808-2010. Madrid: Fundacíon Mapfre; Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. v. 3. p. 19-34., p. 19-33).
  • 18
    As leis de regulamentação do trabalho livre que constavam do corpo das leis relacionadas à escravidão, como a Lei Eusébio de Queiróz, a Lei do Ventre Livre de 1871 e a Lei dos Sexagenários, de 1885, referiam-se principalmente ao trabalho dos libertos. O trabalho livre teve sua primeira regulamentação após a Independência do Brasil, com a Lei de 13 de setembro de 1830. Em 11 de outubro de 1837, regulamentou-se o trabalho dos colonos, e, em 15 de março de1879, foi promulgada a última lei de locação de serviços do Estado imperial. As regulamentações do trabalho livre foram ainda feitas por meio das leis civis e do Código Comercial. Essas leis buscavam estabelecer o controle e a fixação da mão da obra, combater a mendicância e a vadiagem com vistas a formar um mercado de trabalho livre no Brasil. Ver: GEBARA, 1986GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.. O Código Penal, de 11 de outubro de 1890, também trazia normas relacionadas ao trabalho e ao controle da mendicância e da vadiagem. Código Penal de 1890Código Penal de 1890. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>.
    http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decr...
    ; Livro II, Título IV, Capítulo VI, Dos crimes contra a liberdade de trabalho; Livro III, Capítulo XII e Capítulo XIII.
  • 19
    ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875. IL= ilegível.
  • 20
    ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875.
  • 21
    APM, POL, série ¼, caixa 10, pacotilha 5.
  • 22
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso.
  • 23
    Livro de Matrimônio 1.792, Outubro-1922, Julho. Imagem 83. Disponível em: <https://familysearch.org/search/image/index#uri=https://familysearch.org/recapi/sord/collection/2177275/waypoints>.
  • 24
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 25
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 26
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso.
  • 27
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Grifo nosso. IL: Ilegível.
  • 28
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 29
    Sobre a reprodução natural de cativos em Mariana, ver: TEIXEIRA, 2001TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana 1850-1888. 2001. 168 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001..
  • 30
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 31
    ACSM, processo de demarcação das fazendas Gualaxo, Mirandinha, Cruz das Almas e São José. 1902/1911. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo. Testemunho de Severino Ferreira de Aguiar. Consideramos a possibilidade de que, no caso do referido Luiz da Silva, trate-se de Tude Luiz da Silva. No cativeiro, Tude tinha por ofício ser roceiro. Seu filho Estulano consta como lavrador nos registros de nascimentos de seus filhos, em 1908 e 1913. Ao que tudo indica, parte dos membros desta família permaneceu na lida do trabalho na lavoura. Como o processo pela disputa das terras envolveu vários ex-escravos da Gualaxo, acreditamos tratar-se da mesma pessoa.
  • 32
    ACSM, ação de despejo, 1897. Documentação do Fórum de Mariana. Fora de catálogo.
  • 33
    Sobre os efeitos da Lei de Terras de 1850, ver SILVA, 1996SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp, 1996..
  • 34
    Demanda jurídica de manutenção de liberdade movida pelo cativo João Curto. ACSM, ação cível, IIº Ofício, códice 319, auto 7.609, 1875.
  • 35
    O período de “aprendizagem” (apprenticeship) - na verdade, um período legalmente imposto entre a escravidão e a liberdade - não viabilizou a transição para o trabalho livre programada pelas autoridades britânicas no Caribe inglês. A pressuposição entre as elites de que “todos os homens seriam capazes de se aproveitar das oportunidades supostamente iguais de adquirir propriedades, instrução ou habilidades que lhes confeririam a admissão na esfera pública” acabou por expor, na prática, as contradições da ideologia liberal na política de emancipação formulada pela burocracia colonial (HOLT, 2005HOLT, Thomas. A essência do contrato. A articulação entre raça, gênero sexual e economia política no programa britânico de emancipação, 1838-1866. In: COOPER, Frederik; HOLT, Thomas Cleveland; SCOTT, Rebecca Jarvis. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 89-129., p. 103).
  • 36
    De acordo com Eric Foner, as aldeias camponesas na Jamaica ter-se-iam originado em terras desocupadas da Coroa, distantes dos mercados ou das estradas existentes. Contudo, muitas dessas aldeias desenvolveram-se nas fazendas ou próximas a elas. Não estamos sugerindo, aqui, que os casos citados acima tenham propiciado a formação de aldeias camponesas no município de Mariana. Contudo, trabalhamos com a hipótese de que os laços de comunidade contribuíram para uma maior autonomia desses libertos nas relações de trabalho estabelecidas no pós-abolição (FONER, 1988FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988., p. 43). Sonia Maria de Souza aborda a questão da importância de propriedade da terra pelos libertos como uma forma de controle sobre o tempo e o trabalho, deles e de suas famílias.
  • 37
    Compreendemos por “acomodação” o entendimento entre pessoas, combinação, no sentido da utilização dos recursos acionados por meio das redes de sociabilidade nas quais o indivíduo encontrava-se inserido.
  • 38
    Sobre a redefinição do conceito de estratégia social, ver: REVEL, 1998REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas , 1998. p. 15-38., p. 20. O uso do conceito para os estudos dos grupos subalternos foi discutido por GRENDI, 1998GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 251-262., p. 253.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2017
  • Aceito
    12 Dez 2017
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