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Mas de que não é capaz uma mulher, quando sabe desenfrear as paixões dos homens, e até imprimir ao crime o selo da religião e da piedade? Gênero e narrativa na imigração alemã no Rio Grande do Sul

But what is not a woman capable of, when she knows how to unleash the passions of men, and even put the stamp of religion and piety on crime? Gender and narrative in German immigration in Rio Grande do Sul

RESUMO

Discute-se a produção da narrativa sobre Jacobina Mentz Maurer, na liderança do movimento messiânico dos Mucker (Colônia Alemã de São Leopoldo, RS, 1868-1874), a partir da principal obra de referência sobre o tema, de autoria do padre jesuíta alemão Ambrósio Schupp. A narrativa produzida por Schupp constitui-se na primeira obra publicada sobre o tema, que foi originalmente escrita em língua alemã e, posteriormente, traduzida para a língua portuguesa. A pesquisa analisa a relação existente entre as questões de gênero e o processo de culpabilização de Jacobina, representada pelo autor como uma mulher criminosa, de caráter duvidoso e responsável por diversos crimes na Colônia Alemã. A imposição de uma imagem negativa da líder dos Mucker construiu-se, antes de tudo, a partir da sua identidade de gênero e de seu perfil psicológico desequilibrado.

Palavras-chave:
gênero; imigração alemã; Jacobina Maurer; fanatismo religioso; crime

ABSTRACT

The production of the narrative about Jacobina Mentz Maurer, head of the messianic movement of the Mucker (German Colony of São Leopoldo – RS/Brazil, 1868-1874) is discussed, based on the main work of reference on the subject, written by the German Jesuit priest Ambrósio Schupp. The narrative produced by Schupp is the first published work on the subject, which was originally written in German and later translated into Portuguese. The research analyzes the relationship between gender issues and the process of declaring Jacobina guilty, when she was represented by the author as a criminal woman of doubtful character and responsible for many crimes in the German Colony. The imposition of a negative image of the female leader of the Mucker was, first of all, through her gendered identity and unbalanced psychological profile.

Keywords:
gender; german immigration; Jacobina Maurer; religious fanaticism; crime

Introdução

Os movimentos messiânicos são temas bastante recorrentes na historiografia brasileira, uma vez que esses movimentos são parte importante do processo de formação do espaço social do país. De forma especial, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, esses movimentos, de caráter essencialmente religioso e social, foram expressivos nas diferentes regiões do Brasil. A dinâmica desses conflitos permite melhor compreender as desigualdades e os processos de exclusão social dessas comunidades, que se organizam em torno de um líder espiritual, tradicionalmente representadas como violentas, desordeiras e criminosas, ou seja, fora dos padrões de comportamento estabelecidos pelos grupos dominantes.

O movimento messiânico dos Mucker ocorreu entre 1868 e 1874, na Antiga Colônia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O conflito envolveu um grupo de colonos, formado basicamente por imigrantes alemães e seus descendentes. Esse grupo constituiu uma seita religiosa1 1 Seita provém do grego hairesis, e significa partido. O termo esteve bastante associado aos protestantes, demonstrando a visão católica do império brasileiro. Na historiografia brasileira, o termo seita é comumente empregado para identificar os movimentos de caráter messiânicos, enfatizando seu caráter religioso. No caso dos Mucker, o termo seita foi empregado por diversos autores, para enfatizar o caráter de fanatismo religioso, que seria atribuído à Jacobina, que seria responsável pela realização de cenas teatrais, com o propósito de enganar os adeptos e estimular o fervor religioso. de caráter messiânico. A seita contava, inicialmente, com cerca de 150 pessoas e chegou a agrupar entre 700 e 1000 simpatizantes (AMADO, 1978AMADO, Janaína. Conflito Social no Brasil: A Revolta dos “Mucker”. São Paulo: Símbolo, 1978.). Sua líder era Jacobina Maurer, a qual, junto com seu marido João Jorge Maurer, exercia atividades de curandeirismo e promovia cultos domésticos com leituras e interpretações da Bíblia.

Desde 1873, os integrantes do grupo vinham sofrendo acusações por parte da população local2 2 Na obra de Schupp, bem como na obra dos principais autores sobre o tema, os detratores do movimento são descritos como “colonos”. No entanto, além de moradores locais esse grupo era composto por pessoas de, vários segmentos sociais, como, por exemplo, comerciantes, líderes políticos e religiosos. e foram objetos de inquéritos policiais e prisões. Jacobina Maurer também foi alvo de inquérito policial e levada à reclusão na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, enquanto seu marido teve 45 dias de reclusão, sendo preso novamente meses depois. A reação ao movimento desencadeou uma série de atos de violência, tais como incêndios e assassinatos atribuídos aos Mucker e a seus seguidores, mas também violências do mesmo porte por parte dos colonos. O conflito acabou em 1874, com o extermínio dos adeptos pelas forças oficiais do império, lideradas pelo Coronel Genuíno Sampaio. Após o desfecho trágico dos eventos, instalou-se um processo que se estendeu por seis anos (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018.), no qual todos os foram absolvidos, inclusive os mortos.

O conflito ocorreu ao pé do morro Ferrabraz, lugar que serviu de moradia de Jacobina e seu marido. Era lá que Jacobina celebrava os cultos e João Maurer realizava suas práticas de curandeirismo. O Ferrabraz (cuja grafia também é aceita como Ferrabrás) ficou conhecido em toda a região como o “lugar dos Mucker” e teve sua imagem, especialmente até as primeiras décadas do século XX, associada ao massacre, no qual “um grupo de fanáticos religiosos” acabou exterminado em nome de uma falsa fé, sob a liderança de uma “mulher sem moral.”

O grupo de colonos liderado pelo casal Maurer foi denominado pelo pastor protestante como “Mucker”. Nesse sentido, vale lembrar que o termo Mucker apresenta diferentes significados, como santarrão, embusteiro ou até mesmo fanático religioso. No imaginário coletivo, o termo pode ser associado ao zumbido das abelhas, o que apontava para o fervor e o fanatismo religioso. Essa ideia se associa principalmente à mística que envolvia a figura de Jacobina, que, conforme relatos, era acometida de desmaios e visões proféticas. Segundo seus detratores, essas cenas eram intencionais e teatralizadas a sim de enganar aqueles que compareciam aos cultos.

Em obra de referência sobre o tema, Amado (1978AMADO, Janaína. Conflito Social no Brasil: A Revolta dos “Mucker”. São Paulo: Símbolo, 1978.) afirma que os Mucker foram resultado das profundas transformações econômicas que romperam com a estrutura da região da Colônia Alemã de São Leopoldo, em especial a partir de 1845. Até então, os imigrantes alemães viviam em uma situação na qual as diferenças sociais não eram acentuadas, mas, no final do século XIX, ocorreu um aumento significativo das desigualdades sociais na área de imigração alemã. Alguns prosperaram e outros - entre eles os Mucker - acabaram excluídos do processo de desenvolvimento. Associado a esse contexto, tem-se o desamparo religioso, uma vez que as igrejas eram ainda pouco atuantes nas localidades mais distantes da Colônia. Decorre daí o fato de esses colonos voltarem-se para a nova religião, liderada por Jacobina, no morro Ferrabraz, onde se encontrava a casa de Jacobina e onde eram celebrados seus cultos domésticos.

Outra referência sobre o tema é a pesquisa desenvolvida por Dickie (1996DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Paulo, 1996. Tese de Doutorado em Antropologia Social. USP.), em sua tese de doutorado, publicada em livro em 2018, que problematiza a construção dos discursos difamatórios, que buscaram justificar - e legitimar - o massacre dos Mucker. A partir da análise de Autos do Inquérito, de Registros de Terras, de Correspondências e de Relatórios Provinciais, a autora amplia o debate sobre o tema e apresenta explicações mais complexas para o conflito. Um dos pontos de destaque em sua análise é o fato de que o conflito ocorreu em uma área de “identidade étnica homogênea”, constituída por pessoas da mesma etnia, e provenientes da mesma “pátria-mãe”, que, nesse caso, é a Alemanha.

Com isso, os discursos das autoridades religiosas e civis procuraram desvincular os Mucker dos demais colonos, atribuindo-lhes uma origem “não germânica”, associada a uma espécie de caboclo, que havia sido degenerado pelo mundo tropical. Nesse contexto, Jacobina não poderia ser associada à imagem desejada da mulher alemã, mas, sim, associada ao “mundo tropical”, considerado selvagem, o que fez, inclusive, com que Jacobina fosse comparada a uma “índia velha”, atestando uma visão carregada de juízo de valor.

Outro aspecto discutido por Dickie refere-se à atuação das Igrejas, as quais, em defesa da fé e da moral, defendiam que somente padres e pastores eram a fonte da verdade e, portanto, a eles competiam a responsabilidade dos cultos e a interpretação da Bíblia. Esse último elemento, a interpretação da Bíblia, conferiu à Jacobina seu caráter mais desqualificador e até mesmo criminoso, uma vez que a mulher que liderava os Mucker não possuía formação para tal. Esse fato serviu também como mote para a disputa entre católicos e protestantes na colônia alemã de São Leopoldo. Nesse sentido, a atitude de Jacobina, de leitura e interpretação da Bíblia, era atribuída por Schupp aos perigos do protestantismo, em especial da mulher protestante, a qual, lendo a Bíblia sem formação adequada, era um perigo para a família, já que esta era de sua reponsabilidade: “uma mulher protestante e analfabeta se arvorava de autoridade sobre a palavra escrita de Deus” (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p.272). Associado a isso, o surgimento de uma nova prática religiosa poderia ameaçar o poder exercido pelas igrejas oficiais e, consequentemente, o fracasso das missões religiosas na região de imigração e colonização alemã no sul do Brasil.

A representação dos Mucker como um grupo de fanáticos, liderados por uma mulher, ocorreu , na percepção de Dickie, pelo fato de esses não serem considerados portadores da cultura alemã trazida pelos imigrantes, além da falta de erudição, defendida pela elite germânica. Contribuíram significativamente para esse processo de desqualificação dos Mucker as publicações do jornal Deutsche Zeitung, no qual o intelectual Karl Von Koseritz, importante representante da intelectualidade germânica do Rio Grande do Sul, divulgava suas ideias, classificando Jacobina e seus adeptos como “não alemães”, na medida em que os Mucker representavam o contrário do que ele considerava como cultura.

Koseritz foi o primeiro a publicar vários textos detratores dos Mucker e, em especial, de Jacobina. Como seus escritos foram contemporâneos aos acontecimentos, eles serviram como principal fonte para as narrativas posteriores, em especial o texto de Ambrósio Schupp. Ainda, segundo Dreher (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.119), ele “pode ser considerado o inventor dos Mucker”. Por isso retomaremos, aqui, parte de seus escritos, que forneceram para Schupp um arsenal de (pré)conceitos sobre o movimento e sobre Jacobina, fundamentando sua narrativa condenatória. Afinal, “os Mucker eram a antítese da ideia que faziam dos colonos elementos realizadores do futuro que ele almejava para aquela comunidade, o futuro de realizações da cidadania brasileira reservado à ‘civilizada e religiosa raça alemã’” (DICKIE, 1996DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Paulo, 1996. Tese de Doutorado em Antropologia Social. USP., p.323). Esse processo contribuiu para que o imaginário coletivo representasse Jacobina e seu grupo como o não civilizado.

Após o desfecho do conflito, em 1874, os Mucker permaneceram no imaginário coletivo como a representação de um passado do qual ninguém deveria se orgulhar. Ao contrário, os Mucker deveriam servir de lição para que os erros do passado jamais voltassem a ser cometidos. Foi precisamente nesse contexto, logo após o final do conflito, que o padre jesuíta Ambrósio Schupp, recém-chegado da Alemanha, percorreu a Colônia Alemã em busca dos testemunhos que serviram de fonte para sua obra, originalmente escrita e publicada em alemão em 1900, na Alemanha, observando-se que a primeira edição brasileira é de 1901.

É fundamental lembrar que a obra produzida por Ambrósio Schupp tem papel singular na difusão das ideias sobre o conflito Mucker e, de forma mais particular, sobre Jacobina, que conforme se percebe na leitura da obra, parece ter recebido atenção especial por parte do autor, que dedicou grande parte de sua narrativa à personagem. Além disso, a obra do jesuíta deu voz a diversos testemunhos, que concederam a ele o direito de falar em seus nomes. Dickie (2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018.) observa que, na segunda edição, publicada em Porto Alegre, Schupp:

[...] adicionou um prólogo em que reenfatizou a veracidade de sua versão e, como ‘prova’, indicou a anexação de uma declaração dos colonos que haviam sido seus informantes. Nela, estes colonos atestam terem acompanhado os acontecimentos ‘do seu começo até o fim’ e, por isto, terem certeza de que tudo o que Schupp relata em seu livro, ‘nos mínimos detalhes, é verdadeiro’ (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p. 268).

Com isso, Schupp teve sua versão dos fatos legitimada pelos testemunhos orais, reunidos em suas peregrinações pela Colônia Alemã, além de ter tido acesso aos autos do processo. Soma-se a isso o fato de que, até 1957, essa era a única obra de referência disponível sobre o conflito. Ela formava, junto com os escritos fundantes de Koseritz, “a” narrativa condenatória de Jacobina e do conflito. Foi apenas em 1957 que Leopoldo Petry lançou sua obra, questionando a versão apresentada por Schupp e propondo uma releitura do conflito. Ressalta-se ainda o fato de a obra ter sido reeditada inúmeras vezes no Brasil e, mais recentemente, foi publicada em versão eletrônica, em 2004, pelo Senado Federal, com acesso gratuito.

De acordo com nota publicada, o “Conselho Editorial do Senado criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997, buscará editar, sempre, obras de valor histórico e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política, econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país” (PORTAL DOMÍNIO PÚBLICO, 2004PORTAL DOMÍNIO PÚBLICO, 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 13 de jan. 2019.
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). Essa versão mais recente, de 2004, foi utilizada para a realização deste estudo.

A versão apresentada pelo jesuíta pode ser considerada, portanto, a versão oficial dos fatos no período compreendido entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, permitindo compreender a sua importância na formação dos leitores sobre o tema, bem como seu alcance nas gerações futuras. Para a historiografia, a obra constitui-se em uma fonte fundamental, não só pelo fato de o autor ter tido contato direto com as testemunhas que vivenciaram o episódio, mas por sua declarada parcialidade, tanto na defesa dos pressupostos do projeto da Igreja Católica na colônia alemã de São Leopoldo, quanto na defesa da versão dos colonos detratores dos Mucker. Seu relato, assim, deixa explícito o aspecto seletivo da memória do conflito em sua narrativa.

A imagem criminosa de Jacobina, associada à sua “condição de mulher”, serviu de instrumento de condenação moral, uma vez que o fato de ser mulher foi empregado na narrativa (RICOEUR, 2012RICOEUR, Paul. A memoria, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2012.) de Schupp para condená-la moralmente. A discussão sobre a condenação moral de mulheres na área de colonização e imigração alemã no Rio Grande do Sul foi discutida por Gevehr e Rodrigues (2017GEVEHR, Daniel Luciano; RODRIGUES, Salete. Comportamentos impostos ao gênero: representações da submissão feminina no Rio Grande do Sul na República Velha. Outros tempos, v.14, n.23 (2017), p.1-26. Disponível em: Disponível em: https://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/view/570/pdf . Acesso em 10 dez. 2018.
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), revelando que, nessa região, houve uma série de casos de mulheres vítimas de agressão praticada por homens que não se calaram. Ao contrário, a análise de autos de processos e queixas-crime mostrou o quanto a noção de “passividade” atribuída às mulheres na Colônia não se sustenta, uma vez que elas nem sempre se calavam. Por outro lado, os autores afirmam que, no caso das mulheres que denunciaram seus agressores, a maioria não conseguiu provar as acusações e nem mesmo teve seus agressores condenados pela justiça, o que releva que a “condição de gênero” era, sem dúvida, um elemento que pesava contra as mulheres.

Tendo essas questões como ponto de partida, propõe-se uma análise do processo que envolve a produção da narrativa sobre a líder dos Mucker, problematizando a construção da imagem de Jacobina a partir da sua “condição de gênero” (STEARNS, 2012STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. 2a. ed. São Paulo: Contexto , 2012.) e como esse elemento identitário - o gênero - contribuiu para justificar e legitimar sua condição de criminosa e louca, responsável por vários crimes cometidos por seus seguidores na Colônia Alemã de São Leopoldo. Assim, loucura, crime e gênero feminino aparecem associados na narrativa de Schupp para desqualificar Jacobina.

Adultério, assassinato, infanticídio, roubo e incêndio às propriedades e outros diversos crimes ocorridos na Colônia tiveram sua autoria ligada à Jacobina. Ela era, na versão construída pelo padre, a “mandante” de todos os atos criminosos. Por meio de sua narrativa, em um complexo sistema de significações, Schupp contribuiu para “colocar Jacobina no banco dos réus” na memória coletiva sobre o evento. Com suas posições claras, frases e palavras de efeito, produziu a condenação moral e simbólica de Jacobina. O próprio Schupp diz que seu relato é a voz dos colonos, que ele define como inimigos dos Muckers (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p. 268).

A pesquisa propõe uma linha investigativa distinta daquelas já apresentadas sobre o conflito, uma vez que pretende compreender a principal narrativa construída sobre Jacobina, a partir da categoria gênero associada ao crime e à loucura, na produção discursiva de sua culpabilização. Essa perspectiva mais recente na historiografia brasileira se deve, principalmente, ao fato de que diversos estudos se dedicaram a analisar a participação de mulheres na criminalidade, na condição de subordinação em relação ao sujeito masculino, assumindo, na maioria das vezes, um papel secundário no processo de construção das narrativas sobre as mulheres (SANTOS, 2016SANTOS, Hermílio. Mulheres como autoras de violência: Evidências e agenda de pesquisa. Civitas, Rev. Ciênc. Soc., Porto Alegre, v.16, n.1, p.42-58, mar. 2016. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-60892016000100004&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 03 fev. 2019.
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). Nessa perspectiva, o estudo propõe uma discussão sobre o lugar atribuído a Jacobina no conflito, a partir do discurso de um padre jesuíta alemão, produzido a partir de sua relação com testemunhos que vivenciaram o episódio, de sua vivência e de seu projeto ideológico-religioso.

Compreende-se o objeto de pesquisa também a partir daquilo que Santillan Esqueda (2017SANTILLAN ESQUEDA, Martha. Mujeres delincuentes e imaginarios. Criminología, cine y nota roja en México, 1940-1950. Varia hist., Belo Horizonte, v.33, n.62, p.389-418, ago.2017. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752017000200389&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 15 jan. 2019.
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) identificou em relação à produção de narrativas de atos associados à violência e ao crime, praticados pelas mulheres, configurando o que ela chamou de espacialização da criminologia e especialização dos meios de comunicação. Para a autora, isso serviu de instrumento eficaz de difusão de narrativas sobre mulheres, enquanto sujeitos “delinquentes” e com “comportamentos criminosos” (Ibidem, 2017), inserindo-as em um lugar de significação caracterizado pelo “relaxamento da moral” e uma verdadeira “delinquência feminina”.

Jacobina e as manipulações da memória: uma questão de gênero

O livro de Ambrósio Schupp atuou como suporte da memória coletiva do grupo, instrumentalizando-a para a construção de um consenso sobre esse passado, legitimador de determinadas posições e/ou ideias. No caso do autor, entendemos, em conformidade com Ricoeur (2012RICOEUR, Paul. A memoria, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2012.), que recordar é um ato de alteridade. Sendo assim, há uma analogia entre a estrutura subjetiva do autor e o presente que confere direção a vida coletiva. Nesse entendimento, a memória sobre os Mucker, produzida na obra de Schupp, situa-se no que Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006) define como horizontes de expectativas, nesse caso, enraizadas no espaço de experiências vivenciadas pelo autor e que se entrecruzam com o passado ocorrido e com a esperança ou projeções de futuro.

A narrativa elaborada por Schupp sobre o episódio dos Mucker é entendida aqui, na perspectiva de Foucault (1997FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar , 1997.), como prática discursiva construtora de determinados regimes de verdade, em conformidade com o momento histórico específico. Para o autor, os estudos das práticas discursivas possibilitam a análise dos sistemas de pensamento. Elas são definidas como:

[...] sistemática que não é do tipo lógico nem de tipo linguístico. As práticas discursivas caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definição de uma perspectiva legítima para o sujeito de conhecimento, pela fixação de normas para elaboração de conceitos e teorias. Cada uma delas supõe, então, um jogo de prescrições que determina exclusões e escolhas (RICOUER, 1997, p.11).

Esse entendimento permite pensar a obra de Ambrósio Schupp inserida no contexto do projeto de restauração da Igreja Católica Romana, mais especificamente dos jesuítas, que tinham como missão adaptar o catolicismo dos imigrantes às novas determinações de Roma (DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017.). Nesse sentido, o texto de Schupp obtém legitimidade na sua posição como representante oficial dessa Igreja. A partir dessa posição, bem como de sua vivência em um contexto de restauração católica europeia, o narrador, instrumentalizado com um variado leque de conceitos e teorias, elabora sua narrativa selecionando, excluindo, adequando fatos, situações e sujeitos a esse sistema de pensamento. Para Dreher (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017.), a obra de Schupp, pode ser compreendida como um ataque aos luteranos, ao mesmo tempo em que procura inocentar a ação dos jesuítas.

Entretanto, ainda seguindo Foucault (1997FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar , 1997., p.12), “[...] tais conjuntos de regularidades não coincidem com obras individuais, mesmo que se manifestem através delas, mesmo que aconteça de aparecerem, por uma primeira vez em alguma delas, ultrapassam-nas largamente [...]”. Assim, se a narrativa de Schupp é a materialização das práticas discursivas, essas, entretanto, estão ligadas a um conjunto de transformações produzidas externamente. Nesse caso, pode-se alegar as transformações sociais, econômicas e religiosa-ideológicas ocorridas na Colônia alemã de São Leopoldo à época. Estão ligadas também a fatores internos da própria narrativa, que faz uso de argumentos religiosos, morais e científicos. Nesse último caso, chama atenção, conforme já assinalado, a preocupação do autor em afirmar que está reproduzindo a verdade dos fatos, recorrendo para isso às testemunhas que vivenciaram o episódio, tendo assinado uma declaração da veracidade dos relatos.

A narrativa de Schupp também está relacionada a outras práticas discursivas em circulação no período. Conforme citado, o autor dispõe, para a construção de seu relado, de variadas fontes, entre as quais estão os documentos produzidos por ocasião dos processos impetrados pelos próprios colonos, detratores dos Mucker. Um desses documentos é um abaixo-assinado de 1873, “de autoria do pastor da comunidade, do professor católico de Linha Padre Eterno e subscrito por 47 chefes de família” (DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.135). Ele descreve um histórico das ações dos seguidores do movimento desde 1869 até 1873, na perspectiva desse grupo, que via os Mucker como inimigos. Para Dreher (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p. 135), o documento “traz o resumo do senso comum”.

Além desses discursos atribuídos aos colonos, tanto representantes da Igreja Católica, quanto Protestantes, fizeram veicular suas versões dos fatos nos meios de comunicação da época. Outro núcleo de discursos que Schupp teve a sua disposição, conforme visto, foi o de Koseritz, que por sua vez acusava protestantes e católicos pelo episódio, bem como denunciava o abandono cultural e social sofrido pelos imigrantes e descendentes. Tanto Dreher (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017.) quanto Dickie (2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018.) apontam para a existência de três discursos conflitantes naquele contexto, decorrentes de três novos grupos, chegados naquele espaço em meados do século XIX: os Brumers (representados por Koseritz), os jesuítas e os pastores ordenados. Para Dickie, “essas retóricas foram a expressão de três projetos culturais que queriam modificar a visão de mundo dos colonos, de acordo com metas claras e definidas” (2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p. 227). Para Dreher, “os três novos grupos lutavam entre si e desqualificavam a religião colona” (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.159).

Essas práticas discursivas garantiam sua eficácia na medida em que promoviam a condenação moral de Jacobina. Também são eficazes no momento em que os discursos vão ganhando autonomia, não remetendo mais a um único sujeito do conhecimento (neste caso, Ambrósio Schupp), mas passam a designar uma “comunidade de saber anônima e polimorfa” (FOUCAULT, 1997FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar , 1997., p.13). Assim, corroborando com o pensamento de Foucault, a verdade é determinada muito mais a partir de um jogo de interesses que falsamente determinam e naturalizam o verdadeiro e o falso, o certo e o errado. Produzem-se, assim, efeitos de verdade. Por sua vez, essa verdade produziu uma sentença condenatória ao movimento, cujas permanências ainda são identificáveis na memória atual.

Dessa forma, a construção da imagem de Jacobina associada ao crime e à loucura é entendida a partir de práticas discursivas de vários emissores - colonos, luteranos, católicos, intelectuais - que alimentam e são retroalimentadas pela narrativa de Ambrósio Schupp. Nesses discursos, a referência ao gênero feminino de Jacobina é constantemente acionada como argumento para sua condenação. É nesse sentido que Jacobina nos oferece uma rica possibilidade para reflexão sobre a relação de sua condenação, por parte da comunidade, e sua condição de gênero. Assim, ao perguntar qual o crime cometido por Jacobina, e de que ela era acusada, encontraremos várias referências de ordem exclusivamente moral, na medida em que ela transgrediu as regras e os papéis atribuídos ao sexo feminino da época. Interessante pensar, nesse sentido, as diferenças nas acusações feitas aos homens participantes do conflito. Enquanto as ações masculinas são da ordem do social, ou antissocial, as ações de Jacobina, com frequência, são vistas como antinaturais.

Amélia Dickie dá um exemplo dessas diferenças ao analisar os depoimentos dos Maurer no inquérito policial instaurado em 1873. A autora observa que o chefe de polícia interrogou todos os homens sobre uma suposta gravidez de Jacobina, porém ela mesma não foi inquerida sobre o assunto. Descreve que o boato da gravidez continha um tom difamatório sem, contudo, conseguir especificar a origem. No entanto, há no inquérito referência ao papel de mãe de Jacobina, Desta vez, a pergunta foi dirigida a ela e seu marido: “continuava cumprindo todos os seus deveres conjugais e de mãe de família? Ambos responderam que sim e que, além disto, interpretava Bíblia” (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p.316).

Dreher (2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p. 138), citando Dickie observa que os ataques dos depoentes no inquérito policial realizado em 1873 são todos de ordem moral: “eles têm padrões contrários à organização social vigente na colônia: não vão à igreja, não mandam os filhos à escola, desestruturam famílias”. O autor ainda chama atenção para a resistência do delegado em aplicar penas mais rígidas aos Mucker, pois juridicamente eles não haviam praticado nenhum crime. Entretanto, prossegue o autor, para os colonos, o comportamento citado acima era visto como crime.

Pode-se, assim, associar o fato de seus atos serem relacionados ao seu estado de saúde mental. Quando o casal Maurer é chamado a depor no inquérito instaurado pelo chefe de polícia, este determinou a prisão de João Jorge e o internamento de Jacobina em um hospital. “O médico, João Daniel Hillebrand atestara que ela se encontrava com ‘transtorno do sistema nervoso, que se tem agravado pela leitura e má interpretação da Santa Escritura e de escritos misteriosos’ [...]” (DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.138). Os “ataques” de Jacobina receberam as mais diferentes interpretações desde seus contemporâneos até os estudos mais recentes. Schupp refere-se à existência da doença de Jacobina, desde os 12 anos, quando o mesmo Dr. Hillebrand teria recomendado como remédio o casamento.

Lembramos que a loucura assume um caráter moral no século XIX, para fazer frente aos novos padrões culturais e sociais de uma burguesia em processo de consolidação de sua hegemonia. Para tal, “precisava reajustar alguns fatores e personagens sociais a sua realidade e visão de mundo” (FREITAS, 2018FREITAS, Muriel Rodrigues de. Camilles, Pierinas e Eunices - condenadas pela razão: mulheres, loucura, documentário e ensino de história. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ensino de História. UFRGS. Porto Alegre, 2018., p.21). É nesse período que o saber médico psiquiátrico se impõe como juiz das condutas e comportamentos. “Do ponto de vista dos padrões construídos pelo saber psiquiátrico, em suas tentativas de generalização e teorização sobre o ‘normal’ e o ‘patológico’, a quebra do modelo normalizado de comportamento feminino significará sempre alguma forma de recusa ou resistência ao papel ‘natural’ de mãe-e-esposa” (CUNHA, 1989CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Loucura, Gênero feminino: as mulheres do Juquery na São Paulo do início do século XX”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n.18, p. 121-144, ago/set 1989., p.129).

Importante frisar que nesse estudo partimos do entendimento de Gênero na sua interseccionalidade, na medida em que é transpassado por outras categorias como classe, etnia e religião. Jacobina não era somente uma mulher transgressora. Ela era uma transgressora social uma vez queassumia um padrão moral diferenciado das “famílias de bem”. Não seguia as “regras do bem viver” em família, tão difundidas no século XIX nos discursos médicos, folhetins e romances. A identidade étnica entra aqui também para culpabilizá-la, já que os valores idealizados da germanidade, acentuados nos discursos de Koseritz, não se coadunavam com suas práticas, enraizadas nas experiências dos imigrantes e descendentes no solo brasileiro, no seu processo de adaptação. Jacobina era de família evangélica, por isso a livre interpretação da Bíblia não se chocava com sua religião. Entretanto, ela transgrediu os limites dessa liberdade, uma vez que sua interpretação, portanto seu discurso, teve efeitos que não se adequavam ao sistema de pensamento e regras do culto oficial que aportava, então, na colônia por intermédio dos pastores e padres formados na Europa.

O detrator: com a palavra, o jesuíta alemão Ambrósio Schupp

O autor da obra, Ambrósio Schupp, nasceu em Montabaur, Alemanha, em 26 de maio de 1840. Sua formação iniciou no Curso de Filosofia e Teologia da Universidade de Würzburg (Alemanha). Após concluir sua formação acadêmica na Europa, Schupp emigrou para o Brasil, chegando em 10 de outubro de 1874, logo após o desfecho do conflito Mucker. No Brasil, exerceu diversas atividades profissionais, como Prefeito de Estudos no Colégio Nossa Senhora da Conceição, na Antiga Colônia Alemã de São Leopoldo, onde também exerceu as atividades eclesiásticas nas diversas capelas localizadas na região. Mais tarde, em 1901, tornou-se diretor do Seminário Episcopal, sendo transferido para Rio Grande, onde assumiu a direção do colégio dos jesuítas. Em 1914, quando já atuava como professor no Ginásio São Luís, de Pelotas, veio a falecer.

Um dos trabalhos que deu maior visibilidade para o jesuíta, sem dúvida, foi a publicação da obra Os Mucker, que originalmente foi publicada na Alemanha, no final do século XIX e, anos mais tarde, em 1901, foi traduzida e publicada em português, no Brasil. A obra teve um alcance significativo, sendo amplamente divulgada na região de imigração e colonização alemã no sul do Brasil e também em centros urbanos, como Porto Alegre. Conforme citado, a obra se transformou na principal e única referência sobre o episódio dos Mucker até a primeira metade do século XX, o que permite afirmar que a narrativa do padre jesuíta influenciou profundamente o imaginário coletivo sobre a mulher que liderou o grupo de religiosos do Ferrabraz.

Na produção da obra, o jesuíta se valeu de recursos de linguagem (BARTHES, 2004BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.), fazendo lembrar aquilo que Barthes denomina de “rumores da língua”, valendo-se de expressões com forte significado e adjetivos, que revelam a intenção de denunciar juízos de valor para explorar o imaginário de seus leitores (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS, 2002.). A obra está organizada em 59 capítulos, cujos títulos revelam a intenção do autor de chamar a atenção dos leitores, apresentando termos de forte expressão. Exemplos são os capítulos identificados como “Jacobina na polícia - o seu despertar - cena grotesca - interrogatório; A primeira cena de sangue; Plano de nova atrocidade; Uma façanha de canibais; A noite da carnificina; A manhã seguinte à noite da matança; A orgia de sangue nas picadas.”

No prólogo da edição brasileira, encontra-se um importante fragmento textual, que procura qualificar o autor responsável pela obra, identificando seus principais trabalhos literários e científicos, inclusive alemães, além de chamá-lo de “o bom do padre”, deixando clara a intenção de, além de exaltar suas qualidades profissionais, mostrar qualidades pessoais, aproximando os leitores de seu autor.

Não obstante as árduas tarefas do magistério e do sacerdócio, encontra ainda o bom do Padre tempo para entregar-se a trabalhos literários e científicos, escrevendo artigos para importantes revistas alemãs, como: o Alte und Neue Welt, Natur und Offenbarung, Die katholischen Missionen, Dichters timmen. Também no Anuário do Rio Grand e do Sul, publica do sob a direção do Dr. Graciano de Azambuja, e em revistas de S. Paulo e Pará, encontram-se numerosos trabalhos seus (PRÓLOGO DA EDIÇÃO BRASILEIRA, 2004, p.XVII).

Em seguida, o prólogo apresenta a obra em questão, referendando suas qualidades e a preocupação do autor em revelar na obra a “realidade histórica”, ou seja, a verdade dos fatos. O texto apresenta termos de forte apelo sensacionalista, como “sangue” e “horrenda tragédia”, dando pistas sobre o conteúdo que seguem nas próximas páginas.

Porém, a obra principal do Pe. Schupp, a que mais nos interessa, é a história dos Muckers, que agora oferecemos aos leitores brasileiros. É um episódio de sangue, extraído dos anais do Rio Grande; é a reprodução fiel dessa horrenda tragédia que trouxe em contínuo e atroz sob ressalto, ensangüentando-a e enlutando-a durante dois longos anos, a laboriosa e pacífica colônia alemã estabelecida no Município de São Leopoldo. Não é um romance, como tal vez possa afigurar a muitos, mas sim a realidade histórica em todas as suas particularidades. Disso é penhor não só a palavra autorizada e ver az do autor, como também os documentos autênticos por ele escrupulosamente compulsados e as testemunhas presenciais, ainda sobreviventes, por ele ouvidas. É, pois, o livro, como se vê, um subsídio poderoso e interessante para os que se interessam das coisas pátrias. Na tradução, pusemos peito em conservar o cunho da simplicidade aliada à elegância de estilo, que o autor soube imprimir ao original, como costuma fazê-lo em tudo o que brota da sua pena fecundíssima; mas, força é confessar, para consegui-lo, fora mister ser, como o é o autor, um artista da palavra; e por vezes sentimo-nos desalentados diante das dificuldades que a cada passo se nos apresentaram. O desejo, porém, de tornar conhecido dos nossos patrícios este trabalho importante e a esperança de que o público relevaria com indulgência os muitos senões, estimularam-nos a não desistir da empresa e a levar a cabo a tradução. Oxalá a versão brasileira, não obstante os seus de feitos e imperfeições, tenha o mesmo acolhimento que encontrou o original alemão (PRÓLOGO DA EDIÇÃO BRASILEIRA, 2004, p.XVII- XVIII).

A apresentação da obra pretende não deixar dúvidas, quanto à idoneidade e à veracidade do conteúdo, que, como assinalado, recorreu a depoimentos dos colonos que vivenciaram o episódio. Chama atenção aqui a diferença com relação ao texto de Koseritz, que,em suas narrativas, mesmo tratando-as como verdadeiras, frequentemente, remete suas fontes “ao que ouviu falar”, valendo-se do “dito”, sem preocupação com a racionalidade dos relatos (SILVA, 2016). No prólogo, o autor chama a atenção dos leitores, para que, ainda que com objetivos distintos, encontrarão na obra uma análise séria, por meio da qual poderão “formar um juízo” sobre a “história das seitas”. O texto coloca em evidência a noção que se tinha sobre a narrativa histórica, no período [em que foi redigido o prólogo da edição brasileira. O livro se propunha, portanto, a publicar a verdade dos fatos:

O que ele vai narrar neste livro é também a verdade, a realidade pura. É a história verdadeira da origem e desenvolvimento inexplicável, dos excessos sangrentos e do fim trágico de uma seita de fanáticos, tal qual ela se desenrolou, quase no último quartel do século XIX, entre os colonos alemães estabelecidos no Rio Grande, província então do extinto império do Brasil. [...] Os curiosos, os que são ávidos de leitura talvez não enxerguem nestas páginas senão uma série de aventuras a qual mais empolgante, mais rica de lances e peripécias dramáticas. Os que se ocupam da história eclesiástica, os que se dedicam à história da civilização, esses poderão encontrar nelas um subsídio não sem interesse para a história das seitas do século XIX e o filantropo pensador terá ocasião de formar um juízo proveitoso e salutar a respeito das paixões e aberrações humanas (PRÓLOGO DA 1ª EDIÇÃO, 2004, p.XXIII-XXI).

Realizadas as apresentações da obra, inicia-se a narrativa produzida pelo padre jesuíta, que, ao longo de mais de 300 páginas, procurou descrever, com detalhes, o cenário, os personagens e a história que envolveu os colonos alemães do Ferrabraz. Para tanto, o autor inicia, precisamente, apresentando o cenário, o morro Ferrabraz, que ele chama de “teatro principal”, fazendo clara relação com as “cenas teatrais” realizadas por Jacobina, as quais, segundo sua versão, eram evidentemente enganosas, estando aí mais um dos seus crimes, o de enganar os fiéis, em meio ao ambiente “mal assombrado e carrancudo” do morro Ferrabraz:

No decurso da nossa narrativa, teremos ocasião de voltar a esses lugares, como cenas secundárias da tremenda tragédia. O teatro principal, porém, ainda não o apresentamos ao leitor. Fica este situado no prolongamento da serra de que acima falamos. Se, com a vista, acompanhamos esta cadeia, na direção de leste, descortinamos um ponto onde a mesma parece quebrar-se abruptamente; uma como muralha de rocha alcantilada ergue-se a pino da planície, para onde está voltada com a sua fronte carrancuda, mal assombrada e coberta de escuro mato. É o Ferrabrás, que, dentre os morros do Rio Grande do Sul, granjeou, embora efêmera, a maior celebridade (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.16).

Recorrendo a figuras de linguagem que reforçam o significado desejado pelo autor, ele descreve o ambiente como hostil. Assim, com um repertório linguístico que busca despertar o medo e até mesmo o pavor, Schupp aproxima seus leitores do ambiente no qual ele irá inserir os personagens, especialmente a protagonista do conflito, Jacobina. O local é descrito a partir de características negativas, uma vez que é nele que a sucessão de fatos será apresentada, contribuindo, assim, para sua narrativa condenatória sobre os atos cometidos pelos Mucker no Ferrabraz. O texto deu ênfase aos pequenos detalhes do conflito, tomando cuidado especial com a descrição dos episódios e suas minúcias, recriando a sensação de realidade dos fatos. De acordo com sua versão, o ambiente de criminalidade permeava a realidade no Ferrabraz. Criminalidade, transgressão, imoralidade são elementos que acompanham todos os capítulos da obra, conteúdos já denunciados pelos títulos.

A obra se preocupa em descrever o ambiente e os colonos destituídos da fé católica como aspectos negativos. Lembramos que o padre integra a missão de levar às colônias alemãs no sul do Brasil o catolicismo romano oficial para combater as práticas religiosas autônomas ou o que foi denominado como “padre colono”. Integra essa visão a superação de um mundo ainda selvagem e a imposição da “civilização”. Nesse contexto, não é fortuita a ênfase dada pelo autor às forças militares que combateram o movimento. De acordo com essa lógica, percebe-se que o autor apresenta os feitos militares como símbolos do poder das forças imperiais contra a barbárie praticada pelos Mucker. Podemos entender essa visão a partir de Elias (1993ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 2v.), que vê a emergência de uma força policial oficial para controlar a violência nas mãos de grupos privados como parte da “pacificação” inerente ao estágio civilizado. Um dos pontos de destaque na obra, e no qual se identifica maior entusiasmo na retórica utilizada, encontra-se precisamente, nos capítulos em que descreve as operações militares de Genuíno Sampaio, num primeiro momento e, posteriormente do Capitão Dantas, que assume o posto de liderança com a morte de Genuíno em combate.

O comando da força foi confiado, pelo presidente, ao coronel Genuíno. De estatura meã, organização robusta, e, posto que não fosse moço, era Genuíno ainda vigoroso e cheio de energia militar. A sua fisionomia denunciava um ânimo corajoso e resoluto, e, com efeito, ambas as qualidades ele as possuía em grau elevado. As fadigas, durante a guerra do Paraguai, haviam-no curtido, e o concerto das balas inimigas o tornaram destemido, familiarizando-o com o perigo [...].SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.252).

Este oficial era Dantas, o valoroso capitão de artilharia, que o leitor já conhece das anteriores refregas. Para os homens de energia, entre a resolução e a ação não medeia senão um passo; o mesmo sucedia com o nosso capitão. Em primeiro lugar dirigiu-se, por escrito ao presidente da Província, pedindo-lhe permissão para dar o último assalto ao covil dos Muckers. - Vencer ou morrer - era sua divisa (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.296).

O poder inquisitório da Igreja: as narrativas sobre a líder dos Mucker

É fundamental compreender a narrativa de Schupp enquanto um discurso oficial tanto da Ordem dos Jesuítas, quanto da Igreja Católica. A perseguição dos Mucker, defendida pelo jesuíta, parte da premissa de que Jacobina era não apenas uma falsa profetisa, mas, antes de mais nada, mulher. A identidade de gênero (MEYRER; GEVEHR, 2014MEYRER, Marlise R.; GEVEHR, Daniel L. Gênero, identidade étnica e poder: mulheres na imigração alemã no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2014.), em especial no contexto da zona colonial alemã, serviu, dessa forma, como um dos argumentos para a condenação da líder dos Mucker.

Jacobina, na condição de mulher, ousou ultrapassar os limites morais impostos ao gênero feminino em uma sociedade que, tradicionalmente, invisibilizou o papel social das mulheres (PEDRO, 2004PEDRO, Joana Maria. Mulheres do sul. In: PRIORE, Mary Del. (Org). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p.278-321.). Na tentativa de desqualificá-la, Schupp valeu-se da descrição de suas características psicológicas:

À MAURER assistia-lhe sua esposa, Jacobina, mulher ainda jovem, meio pesadona, de estatura meã e de expressão fisionômica singularmente fanática. Jacobina Mentz - tal o seu nome todo - descendia de pais anabatistas. Contando apenas oito anos de idade, começaram a apresentar-se nela fenômenos anormais, cuja explicação cabal ninguém sabia dar. Aos doze anos, adoeceu gravemente. Já antes da enfermidade, e depois, ainda mais a miúdo, caía em profunda depressão, não dando acordo de si e pondo em alarme a todos os de casa. A vizinhança tomava o mais vivo interesse pela saúde da criança. A princípio, consultaram ao velho médico Hildebrand, em São Leopoldo; mais tarde, porém, acostumando-se a essas crises, acabaram por abrir mão do auxílio da medicina. Jacobina resignou-se à sua sorte. A duração desses acessos aumentava de ano em ano. No começo, duravam de3 a 4horas; depois, 6 horas; e, mais tarde, até 12 horas; e, na vigília da festa da Ascensão, sucedeu cair ela nesse sono incompreensível antes do meio-dia, e permaneceu assim até à tarde do dia da festa, ao todo cerca de 30 horas (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p. 23-24).

Ao analisar esses discursos sob o viés dos estudos de gênero, pensamos o corpo e a doença de Jacobina como lugares de transgressão e, em consequência, motivos da criminalização feminina, na medida em que se trata de um corpo não adequado ao discurso normativo do lar e maternidade. Esse discurso reflete o pensamento médico do século XIX, que vai fundamentar a criminologia e cujo expoente mais conhecido é Cesare Lombroso. Nesse período, os médicos, amparados nos avanços científicos da biologia, vão dar ênfase à diferenciação biológica entre os sexos e sua relação com o comportamento social. Rhoden (2001ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001,) afirma que a postura com relação aos atos praticados pelas mulheres sofre mudanças no final do século XIX. Se até 1870 crimes como infanticídio ou a loucura eram abrandados pelo entendimento de que as mulheres não eram responsáveis pelos seus atos pela sua fragilidade, a postura muda no final do século, quando passa a "enfatizar a periculosidade natural do sexo feminino", em consonância com o modelo da degeneração em voga (p. 70).

As acusações de Schupp fundamentam-se também na prática religiosa de Jacobina, que teria origem em uma tradição familiar. Para o religioso, a família Maurer era conhecida pelas suas tendências ao misticismo, que teria sido muito bem explorado por Jacobina, em sua “obstinação religiosa”. Essa versão consta nos escritos de Koseritz, que afirma que a família de Jacobina pertencera na Alemanha ao pietismo moraviano. Escreve também que “todas as mulheres da família Mentz eram umas mais outras menos levadas ao excesso e propensas ao entusiasmo religioso [...]” (citado por DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.189).3 3 Sobre as origens pietistas das práticas religiosas de Jacobina, ver DREHER, 2017. Entretanto, conforme apontado por DREHER, essas acusações tinham também como objetivo atacar aos protestantes.

Como todos os demais membros da sua família, tinha Jacobina bem pronunciada tendência para o misticismo. O seu livro predileto era a Bíblia. Com verdadeira sofreguidão, apanhava ela um ou outro texto, gravava-o na memória e explicava-o de uma maneira consoante às exigências do estado religioso do seu espírito doentio. Casada, depois, com Jorge Maurer, auxiliava com dedicação ao marido na clínica. Era ela quem, com piedosas palavras de animação, apresentava aos enfermos as beberagens e pomadas que aquele aviava e manipulava. Não tardou, porém, que o método curativo de João Jorge tomasse outro caráter; começando então Jacobina a representar, nele, o papel mais importante. (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.24).

Freqüentemente, era ela vista sentada numa cadeira, rodeada de homens, mulheres e crianças, formando um círculo. Diante dela, em cima da mesa, estava aberta a Bíblia. Os seus olhos cintilavam de um brilho sinistro, as suas feições tomavam uma expressão misteriosa, fantástica. Punha-se a ler. As palavras saíam-lhe arrastadas, difíceis: percebia-se que a leitura lhe custava muito. Concluída, porém, uma frase ou um texto, passava a explicá-lo; mudava, então, de voz: as palavras afluíam-lhe, espadanavam da sua boca, e, como se fora uma iluminada, dava à passagem lida as interpretações mais singulares e estrambólicas (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.25).

Schupp condena verbalmente as ações de Jacobina que, segundo ele, age como criminosa, na medida em que engana “aquela gente simples”. Ao referir-se à “boca daquela mulher”, evidencia sua visão carregada de juízo de valor e de recriminações, acusando Jacobina de ser responsável por ações como “embuste religioso” e de se valer “de uma torpe sensualidade”. A sensualidade, denunciada pelo religioso, revela de forma mais explícita a condenação moral atrelada à questão de gênero. Para o autor, a protagonista valeu-se do fato de ser mulher para seduzir os homens, chefes de família, que se dirigiram até o Ferrabraz:

Aquela gente simples da colônia, sem nenhuma, ou quase nenhuma instrução, e, portanto, incapaz de discernir a verdadeira da falsa interpretação, ali se quedava muda, pasmada, embebida, em respeitoso silêncio, suspensa da boca daquela mulher. Quanto mais extravagantes eram as interpretações de Jacobina, e quanto menos as entendiam, mais alevantado era o conceito que formavam da sua sabedoria, chegando a acreditar que era ela inspirada por um espírito superior (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.25).

É bem de ver que não lhe podia passar despercebida a grande veneração e o alto conceito em que a tinha o povo; e, se, a princípio, não teve a intenção de intrujar, deparava-se-lhe, agora, o ensejo de explorar, em seu proveito, essa disposição dos ânimos. De feito, os mais avisados, pelo menos, começaram, já então, a enxergar no caso sinais evidentes de calculado embuste. Causava estranheza que esses sonos de visionária se amiudassem cada vez mais, parecendo obedecer, tão-somente, à vontade da profetisa. Esta suspeita cresceu de ponto, quando Jacobina entrou a misturar ao seu embuste religioso outros meios, que claramente visavam a armar ao efeito, prendendo os corações dos seus adoradores e emaranhando-os nas malhas de uma torpe sensualidade (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.26).

O discurso sobre esse poder oculto e ardiloso das mulheres estava presente na literatura do século XIX. Ao mesmo tempo em que, juridicamente, o período definia a inferioridade da mulher e a confinava ao espaço privado, permanecia a imagem do livro de Gênesis, como sedutora e origem de todo o mal. Mesmo que não seja ela a criminosa, é apontada como instigadora do crime (PERROT, 1988.p.168). O protagonismo atribuído a Jacobina nos acontecimentos serve, na narrativa de Schupp, como argumento para desqualificar sua imagem, como mostra o trecho no qual afirma que “Tudo estava a denunciar que o que se tinha em mira era fundar uma seita religiosa, cuja alma devia ser Jacobina” (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
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, p.33).

Em outro trecho, acrescenta que “Jacobina conhecia o terreno em que pisava: ela sabia com quem estava lidando, e até que ponto chegava a credulidade dos seus sequazes” (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.44) . Somado a isso: “À farsa sacrílega só restava que Jacobina, como Cristo, escolhesse também os seus apóstolos: e ela o fez” (Ibidem, p.44). Essa avaliação está em concordância com a literatura criminal europeia do século XIX, segundo a qual os crimes femininos são “os que exigem mais dissimulação e astúcia do que força e audácia [...]“a criminalidade é mais perigosa do que a do homem, porque é mais contagiosa, da mesma forma que sua moralidade é talvez mais útil, porque mais expansiva” (PERROT, 1988,p. .257).

Na visão apresentada por Schupp, o poder exercido por Jacobina, aspecto discutido por Meyrer eGevehr (2014MEYRER, Marlise R.; GEVEHR, Daniel L. Gênero, identidade étnica e poder: mulheres na imigração alemã no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2014.), era tal que “Donas de casa assisadas, homens circunspectos, cheios de energia e de juízo, eram vistos regressar, da casa de Maurer, como que alucinados. Os parentes ficavam amedrontados, vendo tão demudado o pai, a mãe, ou o irmão” (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.45). Em outra página, é categórico ao se referir à Jacobina, como a “dona” que determinava todas as ações da matilha de sabujos da seita, sempre solícito em farejar os passos, em espiar as ações e adivinhar os pensamentos não só dos sectários, mas também dos adversários, a fim de comunicá-los à sua dona (Ibidem, p.51).

Na descrição dos fatos praticados por Jacobina, o autor afirma que se tornava cada vez mais perigosa sua presença no Ferrabraz e que era necessário trazê-la até o centro da Colônia, a fim de prestar contas às autoridades policiais. Schupp descreve a cena da chegada da líder dos Mucker no centro da Colônia como grotesca (Ibidem, p.95):

Grande foi o alvoroço na cidade. Não houve vivalma que não corresse à Câmara Municipal, para ver a profetisa. Ali já se achava o chefe de polícia, à espera. O carro parou em frente do edifício. Jacobina continuava entregue ao sono, hirta, inerte como dantes, e mostrava-se alheia a tudo quanto se passava em derredor dela. Alguns soldados ergueram-na do carro, e transportaram-na para dentro da sala de audiências, pousando-a, ao comprido, em cima de uma mesa.

Essa cena foi descrita pela primeira vez por Koseritz, em 1874, e publicada no Deutscher Volkskalender, em 1875, como “ridícula cena do despertamento” (DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.193). Enfatiza-se a recorrência dessa descrição nas narrativas posteriores, sendo uma das imagens mais referidas sobre o episódio. Para a maioria dos autores, entre os quais Schupp, a cena representa a prova da farsa. Para seus seguidores, entretanto, eram esses “ataques” legitimavam a santidade de Jacobina (DICKIE, 2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018., p.322). O episódio também coloca em evidência as questões relativas à saúde mental de Jacobina. Nessa cena, é o corpo (doente) de Jacobina que é escrutinado pelos homens (policiais, autoridades civis e médico) que a transportam e avaliam o seu estado. Dickie (2018DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e Circunstâncias. Um Estudo Sobre os Mucker e Seu Tempo. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2018.) cita depoimentos dos seguidores de Jacobina em que eles relatam que o médico tentava despertá-la com manipulações consideradas por eles como ofensivas. Sabe-se que, no século XIX, a chamada “histeria feminina” era amplamente discutida na psiquiatria e era tratada com massagem genital.

Schupp, entretanto, não recorre aos depoentes adeptos dos Mucker, mas apresenta. em sua obra, uma coletânea de testemunhos orais e documentos escritos, que buscam, de acordo com o próprio autor, respaldar suas afirmações. Dentre essas fontes, chama a atenção uma carta escrita por Jacobina em 19 de maio de 1874 e enviada ao seu primo, delegado de polícia de São Leopoldo, Lúcio Schreiner. Nela, Jacobina expressa o clima de discórdia e animosidade existente entre os dois. Em um trecho da carta, Jacobina chama a atenção do primo delegado, lembrando-o de que:

Está escrito: - Quem com ferro fere, com ferro será ferido. - Nós estamos bem informados que parte você tomou na petição monstro e nas suspeitas divulgadas nos jornais. Em breve, definir-se-á a situação de cada um de nós. Continue a cevar os seus instintos na sua própria carne e no seu próprio sangue, isto é, nos seus próprios parentes. Tome tento, porém, que o Dia do Juízo não tarda. E não sabe você que cada dia que passa é tal, ao pé da letra? Feliz daquele que não teme as conseqüências que geralmente só se atribuem ao Dia do Juízo Final (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p. 158).

A carta encerra com a frase “Sua prima, Jacobina Maurer”, revelando o laço familiar que os unia e tentando, talvez, despertar no primo (e autoridade policial) certa sensibilidade com sua parente próxima, ainda que, em outros momentos, revele certa ameaça nas próprias palavras. Na carta, aparece, ainda, uma referência a sua condição de gênero, na qual Jacobina expressa o fato de que, assim como ele, Nero, na Roma Antiga, também perseguiu as mulheres de sua família.

O ambiente de terror da Colônia Alemã é caracterizado pela série de crimes, cuja responsabilidade recaía sobre os Mucker. Esses, sob o comando de Jacobina, passaram a perseguir e assassinar aqueles que se perfilaram contra seus ideais. Para dar veracidade à sua narrativa, Schupp se vale dos testemunhos de pessoas que estiveram do lado oposto aos Mucker.

Exemplo disso é a narrativa na qual Schupp descreve, com detalhes, o episódio do ataque à casa de Carlos Brenner, um morador da Colônia que teria se indisposto ao grupo do Ferrabraz. O padre se vale do testemunho da esposa de Carlos Brenner. O trecho abaixo apresenta as atrocidades cometidas, que, segundo a testemunha, foram praticadas a mando de Jacobina:

Sem detença, começaram as bestas-feras a sua obra de extermínio. Num berço, estava deitada uma criancinha de peito. Um dos Muckers abeirou-se do berço e, brandindo o revólver, com a coronha da arma, vibrou tremendo golpe no crânio da inocente. Esta não soltou um ai! Um gemido: estava morta. Ali, ao pé, numa caminha, dormia outra criança, de dois anos. De um salto, aproxima-se-lhe um dos sicários, e, desferindo um golpe, fendeu a cabeça da criaturinha, que solta um grito capaz de fazer enregelar o sangue nas veias. A pobre mãe, lá em cima, sentia o coração estalar de dor: esteve a ponto de gritar, quis implorar misericórdia. Mas teve de calar-se e sopitar a sua dor. Ainda alguns golpes, e a infeliz criança cessava de gemer (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.195).

A construção da imagem dos Mucker, sempre ligada à de Jacobina, é cuidadosamente construída, aludindo a valores como família, maternidade, solidariedade como contraponto às ações dos Mucker, recorrendo a um discurso maniqueísta. Ao descrever o ambiente de terror produzido pelos Mucker, os sentimentos de ódio e de alegria em atacar seus inimigos são enfatizados, na medida em que a destruição propagada pelos “fanáticos do Ferrabraz” - expressão cunhada pelo próprio padre - se associava com a alegria das gargalhadas em meio à paisagem do Ferrabraz:

Os Muckers encarregados da destruição das vendas de Klei e de Jacó Schmidt, tendo desempenhado a sua tarefa, montaram a cavalo, e, a galope rasgado, lá se foram. Irreprimível devia ser a alegria que experimentavam, porque, durante todo o caminho, se podiam ouvir as suas gargalhadas, que chegavam até a abafar o estrupido das montadas (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.203).

NA SUA sanha, os Mucker não conheciam parentes nem amigos; neles, as qualidades afetivas estavam de todo obliteradas. Recusar-se a pertencer à seita e, o que era ainda mais grave, retirar-se dela - era, para os sequazes de Jacobina, o maior dos crimes: e quem o tivesse praticado, embora fosse algum irmão carnal, estava irremissivelmente condenado à pena última (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.207).

Nessa descrição maniqueísta do conflito, Schupp divide os bons colonos dos maus (seguidores de Jacobina). Os “bons colonos” são os moradores da colônia a quem Schupp dá voz em sua narrativa. Nenhum sobrevivente Mucker aparece como testemunha em sua narrativa, o que permite afirmar que a interpretação dos fatos feita pelo jesuíta foi parcial e seletiva. Buscou apenas naqueles que concordavam com suas ideias os elementos factuais, que permitiram construir sua versão dos fatos. Essa versão, como vimos, criminalizou o episódio e atribuiu à Jacobina sua liderança e a responsabilidade pelos crimes cometidos pelo grupo. Foi na luta contra os seguidores de Jacobina que, de acordo com sua versão, os moradores da Colônia se uniram no combate contra o mal, que, em 1874, tomou grandes proporções nas picadas, conforme se pode ver nos trechos apresentados na sequência:

As atrocidades cometidas nos últimos dias tinham acabado de convencer os moradores de S. Leopoldo e das colônias de que só da ação coletiva e do esforço de todos dependia a salvação individual. Esta convicção provocara, na colônia, uma agitação extraordinária. (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p. 232).

[...] em S. Leopoldo, a ansiedade pública subia de ponto: a cada instante, chegavam mensageiros após mensageiros, trazendo notícias de novos atentados; e os moradores da cidade (ornados de verdadeiro pânico), escancaravam as janelas, subiam aos telhados das casas, e até à torre da igreja, para se certificarem, por seus próprios olhos, da veracidade das notícias. (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.248).

Ali, pairava uma atmosfera carregada: todos sentiam um mal-estar, uma ansiedade. Percebia-se que o que quer que fosse de extraordinário havia sucedido durante a noite; mas notava-se também que nem todos tinham conhecimento do que havia ocorrido. Uns formavam grupos, e, separados dos outros, palestravam com ares misteriosos: eram os incitados, os íntimos de Jacobina (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.248-249).

O relato descreve o ambiente de medo, que aumentava a cada dia, causado pelos constantes ataques liderados por Jacobina contra os colonos que se recusaram a participar de sua “seita”. Por isso, fez-se necessária a interferência das forças oficiais do império, lideradas pelo Coronel Genuíno Sampaio. O militar tinha como missão a rendição do grupo liderado por Jacobina, que estava confinado no local que Schupp chamou de “cidadela dos Mucker”. A dicotomia entre o bem e o mal associa-se à barbárie versus civilização, por meio dos qualitativos atribuídos a Jacobina (desgrenhada e desiquilibrada) em oposição a Genuíno Sampaio. Recorrendo a Elias (1993ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 2v.), podemos dizer que a primeira liderança - mulher e líder religiosa - teve sua imagem e seu papel desqualificados, especialmente a partir de seus atributos morais, que a associaram à barbárie, enquanto que o segundo líder - homem e militar - teve sua ação glorificada e legitimada em nome da civilização.

[...] na cidadela, tudo andava numa roda-viva: homens e mulheres, armados até aos dentes, aguardavam o momento em que deviam se envolver no combate. Jacobina, com alguns íntimos, achava-se no seu aposento. Do campo da luta, vinham mensageiros após mensageiros, os quais, com a mesma rapidez, para lá voltavam. Ao troar o primeiro tiro, Jacobina, lançando-se, desgrenhada, para fora do quarto, achou-se entre os seus, bradando: - Não temais! Os madianistas vão cair em vossas mãos: não vos importeis com os seus alaridos; eles não vos farão nenhum mal (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.260).

Sobre os atos de resistência, orquestrados por Jacobina no Ferrabraz, Schupp enfatiza a comoção popular da Colônia e afirma que, nesse momento, diversos homens da localidade se apresentaram para lutar contra os Mucker. Por seu turno, o “coronel Genuíno acolheu-os com prazer, mandando fornecer armamento e munições aos menos apercebidos” (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.264), uma vez que, segundo o autor, “os fanáticos não vacilam” (IbidemSCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.271). Acrescenta, ainda, que o coronel em combate afirma: “Aos brados de - Abaixo os miseráveis! Morram os assassinos! - os soldados avançam sempre” (IbidemSCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.271). Descrevendo o ambiente marcado pela violência, praticada pelos adeptos de Jacobina, o jesuíta recria, mais uma vez, o cenário de crimes e animosidade entre os grupos rivais, afinal:

Ali, tudo estava em armas: homens, mulheres, rapazes, raparigas e até os que, no último combate, a 28 de junho, haviam sido feridos e estavam convalescendo, tinham pegado de uma espingarda ou de um revólver, e estavam prontos à primeira voz. Das janelas, das portas, das fendas, aparecem as bocas das armas, apontadas para os assaltantes (IbidemSCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.272).

Após as incursões das forças oficiais no morro Ferrabraz e algumas vitórias, nas quais muitos adeptos de Jacobina caíram em combate, ficava ainda uma pergunta: “No exame dos cadáveres, se verificara que entre os mortos, não se achavam os magnates dos Muckers. - Onde está Maurer? Que é feito de Jacobina?” (IbidemSCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.277).

Dizimados, desalentados, cabisbaixos, chegaram ao acampamento, e não podiam sequer informar se entre os Muckers havia algum morto ou ferido. Estes voltaram triunfantes para suas choupanas, sendo recebidos com ovações pelos seus comparsas. Nessa ocasião, porém, vieram a saber de uma grande novidade: Jacobina mandara degolar o próprio filho, criança de peito, para que o choro desta não descobrisse o seu esconderijo; ordenando mais que, em dia determinado, se fizesse o mesmo a todas as crianças menores de cinco anos; pois, assim como o Salvador fora salvo pelo sangue dos recém-nascidos, assim também ela devia ser salva pelo sangue das crianças de tenra idade. Aos sequazes de Jacobina não lhes acudiu a menor objeção a tão diabólica ordem (IbidemSCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.287-288).

Nesse trecho, o autor dá a sentença final à Jacobina ao acusá-la de infanticídio, crime que também tem sua fonte principal nos escritos de Koseritz: “Alguns dias antes (da sua morte), essa mulher desalmada degolara sua própria criança, de penas alguns meses de vida e metera-a debaixo da terra nas proximidades do leito no qual dormia com Rudolf Sehn!” (DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017., p.205). No relato de Koseritz, a referência a Rudolf Sehn indica também o crime de adultério.

Trata-se, portanto, de acusações de crimes intrinsecamente ligados àcondição de gênero de Jacobina, crimes contra a natureza. Essa narração sobre o desfecho e o ato infanticida de Jacobina não encontra nenhuma comprovação ou testemunho, mas a sentença proferida nas várias narrativas ao longo do tempo se estabeleceu como verdade, mesmo que não confirmada pela justiça. Este, aliás, é um ponto importante com relação ao episódio. O discurso condenatório presente nas diferentes narrativas não encontra respaldo nos processos de crimes impetrados contra os seguidores do movimento, inocentados em todas as etapas.

Ainda que se considere longo, o excerto que apresentamos a seguir é fundamental transcrevê-lo na íntegra, uma vez que a narrativa descreve, na perspectiva do autor e na de suas testemunhas, o momento final do conflito, em 02 de agosto de 1874, quando o grupo, reunido em torno de sua líder, é finalmente descoberto. Schupp descreve com riqueza de detalhes as cenas finais do massacre, legitimando a força utilizada pelo exército e expressa sua satisfação frente ao o resultado da operação, que resulta na morte de Jacobina. Para o autor, aquele era o momento de se festejar a vitória e anunciar a paz, que, segundo ele, havia sido banida “daquelas paragens”:

Com verdadeiro desprezo da morte, toda a coluna acometeu o inimigo, já completamente desnorteado. Semelhante a um tigre ensangüentado, que luta com uma matilha de molossos, o inimigo, com bravura feroz, sustenta, firme, a sua posição. Os tiros estrepitam, silvam as balas, relampejam as baionetas, rios de sangue correm. Cai morto o velho Sehn; logo em seguida, Martinho, Jacó e Carlos - pai e três filhos jazem prostrados em terra; só restava ainda Rodolfo. Também dentre os bravos soldados de Dantas, alguns vacilam, cambaleiam, e, deixando cair das mãos a arma, rolam no chão. Os outros, contudo, passando por cima dos camaradas, avançam sempre e vão deitando por terra, uns após outros, aos sectários. O número dos Muckers cada vez se torna mais reduzido, e cada vez mais desesperada é a sua posição. Nisso, Jacobina, toda escabelada, o olhar desvairado, precipita-se para fora da choupana. De um salto, acha-se a seu lado Rodolfo, pronto a sacrificar a vida por ela. Com olhar de louco, bramindo como um tigre, parecia querer defendê-la de todos os lados, a um tempo. Jacobina é varada por uma bala. Ela vacila, e, com as mãos tateando, procura um objeto a que se possa apoiar. Rodolfo corre a ampará-la, e, cingindo-a com um braço, interpõe-se entre ela e os agressores, tentando desviar o último golpe. Os dois conservam-se abraçados um ao outro freneticamente. Um soldado cala a baioneta e ambos, varados, rolam no chão. A tragédia chegara a seu termo. Soaram as cornetas, e aqueles sons vibrantes, alegres, ecoaram por vales e quebradas, festejando a vitória e anunciando que a paz, banida havia tanto tempo, não tardaria a felicitar de novo aquelas paragens. E assim era com efeito. Dos Muckers, nenhum sequer havia escapado à hecatombe: todos, em número de dezessete, haviam caído mortos, fazendo os cadáveres em derredor das choupanas. Entre estes contavam-se o de Jacobina e de uma criada desta e os de duas outras mulheres, que, até ao último momento, tinham ficado ao lado da profetisa. Os vencedores abriram duas valas não longe do local onde estavam as choupanas, e, arrastando para ali os cadáveres, enterraram-nos (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p. 309-310).

Um dia, avizinhou-se ele da ourela do mato, onde, poucos dias antes, tinham sido vistos alguns urubus a negrejar sobre as franças do arvoredo. Acercando-se daquele sítio, ficou tomado de pavor: diante de si, viu dois cadáveres humanos, já meio putrefatos e que o encaravam, sinistros, com as suas órbitas despovoadas. Horrorizado, corre à casa do inspetor do quarteirão, e este ao subdelegado, para pô-lo ao fato da descoberta. O subdelegado meteu-se logo a caminho do local, acompanhado do escrivão, do inspetor, do professor Weiss e de Filipe Klei - todos nossos conhecidos. Quando lá chegaram, já os dois cadáveres estavam no chão; ao pé deles havia pistolas, cartucheiras, facões e, a alguns metros dali, encostadas a uma árvore, duas espingardas de dois canos. Ainda suspensas dos ramos da árvore, viam-se duas laçadas, feitas de cipó; a gravata de seda, que, com uma vértebra cervical, ficara presa a uma delas, parecia ser a de João Jorge, e a barba branca, na outra laçada, estava a indicar o irmão de João Jorge, de nome Carlos. Havia, pois, fundamentos plausíveis para presunções. Informações pessoais, prestadas pelo subdelegado, pelo alfaiate Schardong e outros. ∗ Relativamente ao que segue, corriam diversas versões, quando escrevíamos esta narrativa. Em virtude de informações que nos enviou, por escrito, o subdelegado Sr. Spindler, fizemos, na presente edição, a alterações oportunas. Para corroborá-las, levou o subdelegado um pedaço da fazenda do casaco com que estava vestido um dos cadáveres, fazenda que se via ter sido de boa qualidade, mas, naturalmente, já quase toda puída. Sabia que Schardong tinha sido o alfaiate de João Jorge, e dele esperava colher algum esclarecimento satisfatório. O alfaiate examinou a fazenda, e, comparando-a com os retalhos que ainda pôde encontrar, chegou à conclusão de que o casaco era o mesmo que tempos antes, havia feito para João Jorge. Presumindo-se reconhecida a identidade da pessoa do enforcado, suscitou-se outra questão: - Como veio João Jorge a parar aqui? As circunstâncias, quais se apresentavam, induziam a crer num suicídio; este, porém, mal se conciliava com o temperamento e caráter de João Jorge, que tinha demasiado amor à vida. Dali conjeturaram que Jacobina, que não lhe podia perdoar a poltroneria, o mandara matar e, para salvar as aparências, o fizera enforcar depois. Quanto às pistolas, espingardas e facões, esses tinham sido ali deixados, para mais facilmente se acreditar num suicídio. [...] Quanto aos outros Muckers, aos quais se pôde deitar a mão, esses continuavam presos. Alguns deles, porém, foram postos em liberdade, porque o processo contra os mesmos não havia sido instaurado no prazo marcado pela lei, isto é, antes do quinto dia depois de efetuada a prisão. O processo foi moroso. Afinal, a 17 de fevereiro de 1876, seguiam 23 Muckers, escoltados, para S. Leopoldo, a fim de ali comparecer perante o júri (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.315).

Com a morte de Jacobina e o desfecho do conflito, a população da Colônia Alemã voltou à sua rotina, que, na perspectiva apresentada por Schupp, resumia-se da seguinte forma: “Em uma palavra: a colônia semelhava uma criança, em cujo rosto, pouco antes orvalhado pelas lágrimas, assoma a alegria, e se espraia, afinal, o sorriso” (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.319).

Voltemos ainda uma vez à colônia. Logo após o combate ao pé das choupanas, no qual haviam sido exterminados Jacobina e os seus asseclas, a colônia reanimou-se, tomando outro aspecto. Os prófugos voltaram para seus lares, entregando-se, de novo, com afinco, aos seus labores. O colono saía a cuidar da sua roça, enquanto as crianças, à sombra do laranjal, ao pé da casa, se entregavam, ruidosas e alegres, aos brincos próprios de sua idade; pela estrada fora, cavaleiros e viandantes, de todas as idades e sexos, encontrando-se, uns com os outros, saudavam-se, prazenteiros, com um sincero “Bom-dia”, vindo do coração (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.319).

Em suas palavras finais, o jesuíta alemão é enfático ao proferir praticamente um “veredicto” sobre o conflito e, de forma mais pontual, sobre a mulher que liderou o grupo do Ferrabraz. A retórica - que impõe necessariamente uma relação de prova e força (GINZBURG, 2002GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.) - utilizada por Schupp permite compreender como o autor se coloca como parte do grupo étnico, que ele próprio chama de “bravos colonos alemães” e que foram, na sua opinião, seduzidos pelo poder de uma mulher.

O trecho abaixo, do qual extraímos a epígrafe que constituí parte do título do artigo, expressa o pensamento do religioso, que, de maneira explícita, coloca Jacobina na “condição” de mulher que desperta o desejo no sexo oposto. É categórico em afirmar que, além de sedutora e acusada de causar problemas entre os casais do Ferrabraz, a mulher que liderou os Mucker usou a religião como artifício para mascarar seus interesses criminosos. Jacobina é acusada pelo jesuíta de se valer da religião e do sentimento de piedade entre os homens e mulheres para impor suas próprias vontades e desejos:

Mas de que não é capaz uma mulher, quando sabe desenfrear as paixões dos homens, e até imprimir ao crime o selo da religião e da piedade? Foi o que Jacobina conseguira, e conseguira-o, estribando-se na palavra da Sagrada Escritura. Sim, o livro com que a Providência brindou a humanidade, para lhe servir de fonte de ensinamentos práticos na sua vida terrestre, de manancial de celestiais consolações e conforto no meio das adversidades, e de guia seguro na sua peregrinação para a pátria imortal; esse livro divino converteu-se, nas mãos dessa mulher, numa arma de dois gumes, que devia trazer, em primeiro lugar, a ruína daqueles que se haviam deixado alucinar por ela, e, em segundo lugar, a ruína dela própria. Felizmente, porém, tudo está acabado; as tristes ocorrências são coisas passadas; e oxalá nunca mais desventura igual venha abalar a paz dos nossos bravos colonos alemães! (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.320).

Cabe lembrar que a narrativa construída e amplamente difundida por Schupp, que aponta “uma mulher” que despertou “as paixões dos homens” como autora de todos os crimes praticados na Colônia, encontra respaldo nas 19 assinaturas que ele próprio coletou entre os moradores da Colônia, em 1904. As assinaturas (cujo documento original é reproduzido na obra), reconhecidas pelo escrivão distrital, serviram como elemento de legitimidade à sua tese, na medida em que os depoentes afirmaram, de forma expressa:

Nós, abaixo assinados, moradores no Sapiranga, acompanhamos o desenvolvimento da seita dos Muckers do Ferrabrás, desde o seu começo até ao fim, e confirmamos que tudo quanto o reverendo padre Ambrósio Schupp narra em seu livro sob o título - Os Muckers - é conforme a verdade em todos os pormenores (SCHUPP, 2004SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers: episódio histórico extraído da vida contemporânea nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul [tradução brasileira autorizada pelo autor por Alfredo Cl. Pinto]. Brasília: Senado Federal, 2004(Edições do Senado Federal, volume 32). Disponível em: Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=19230 . Acesso em: 08 de jan. 2019.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
, p.327).

Existem diferenças sensíveis entre as narrativas que se referem à Jacobina e aos Mucker e aquelas que fazem referência à população da Colônia e as autoridades envolvidas no conflito. A linguagem empregada nos dois casos permite perceber o propósito inquisitório do jesuíta, que condenou Jacobina e seus adeptos. O perfil psicológico de Jacobina e as ações dos Mucker foram potencializados na narrativa de Schupp, uma vez que os termos e os recursos de linguagem presentes na obra são enfáticos em suas afirmações.

O uso do superlativo, associado ao de metáforas e de expressões que procuraram qualificar ou desqualificar personagens e ações desempenhadas pelos dois lados do conflito, tiveram como ponto convergente Jacobina, que aparece na narrativa de Schupp não apenas como a protagonista do conflito. Jacobina é representada na obra como eixo narrativo, através do qual seu nome é invocado de forma direta - pelo próprio nome - e de forma indireta - como “mulher, mulherzinha, profetisa, embusteira religiosa, fanática” - e outros adjetivos, que a desqualificaram perante os leitores, bem como incriminam sua imagem e a condenam publicamente.

O número de vezes em que o autor se referiu à Jacobina como “mulher” e “mulherzinha” torna evidente sua intenção de retratar a líder dos Mucker a partir da sua condição de mulher, impondo a ela uma posição inferior na escala social e reproduzindo o pensamento de sua época, que compreendia as mulheres apenas nos espaços privados, da casa e da família, sem jamais ocupar qualquer lugar de destaque, ainda mais de liderança, como foi o caso de Jacobina.

Essa versão dos fatos foi, ao que tudo indica, aceita e amplamente difundida entre os leitores de Schupp, sendo reproduzida nos diferentes lugares de memória, como a ereção de monumentos, a denominação de escolas, ruas, praças e outros espaços púbicos que materializaram a memória dos combatentes dos Mucker, que celebraram “a morte dos Mucker” e silenciaram a voz de Jacobina, sentenciada ao esquecimento.

Considerações Finais

A obra de Schupp desempenhou um papel de destaque até as primeiras décadas do século XX no cenário da Colônia Alemã de São Leopoldo. Com a expansão das publicações impressas, em especial por parte da Editora Rotermund, de São Leopoldo, que teve papel fundamental na publicação de inúmeras obras sobre a imigração alemã. A obra acabou se difundindo entre um público leitor cada vez mais amplo, ultrapassando as fronteiras do Rio Grande do Sul.

A obra foi reeditada diversas vezes, visto que seus exemplares se esgotavam no mercado, o que sugere que a imagem reproduzida pela obra sobre Jacobina difundiu-se amplamente no imaginário social da coletividade, não apenas entre os moradores da Antiga Colônia, mas entre um público cada vez mais amplo e diverso, o que contribuiu para a imagem negativa que se construiu sobre Jacobina até pouco tempo. Se, por um lado, os Mucker foram absolvidos pela justiça, a condenação moral ficou como marca na memória coletiva dos descendentes de imigrantes alemães da ex-Colônia alemã de São Leopoldo através dos escritos de Ambrósio Schupp. A imagem de mulher adúltera, louca e criminosa permeia ainda hoje o imaginário sobre a personagem. Um exemplo é o romance de Luiz Antônio de Assis Brasil, de 1991, que mantém essa sentença.

Acredita-se que a imagem de Jacobina se sobrepôs ao próprio conflito. Afinal, o relevo dado ao seu protagonismo e a ênfase dada pelo autor permitem afirmar que a Jacobina - ainda que considerada como “mulher”, “fanática” e, portanto, “uma criminosa”, responsável pela tragédia da Colônia - acabou sendo visibilizada de tal forma que ganhou mais expressividade que os demais personagens ou o próprio enredo, protagonizado por ela.

O fato de ter sido associada ao “sexo frágil” ou ao “gênero inferior” acabou produzindo um efeito contrário daquele defendido e projetado pelo autor, na medida em que seus esforços narrativos para desqualificar Jacobina, permitiram colocar a líder dos Mucker em destaque, ainda que na condição de criminosa e sentenciada a culpa pelos seus atos, uma vez que despertou a imaginação dos leitores.

Na memória dos moradores da região, permanece até hoje a imagem de Jacobina, que aparecia nas histórias contadas pelos mais velhos. Nessas histórias, reproduzia-se, e ainda se reproduz, uma imagem negativa, que a identifica como uma “mulher do mal, bruxa, feiticeira, prostituta e assassina”. Essa primeira imagem é bem diferente daquela que se tinha do homem que lutou contra ela. O coronel do exército era um homem corajoso, herói e valente, que morreu em combate e deu sua vida pela paz dos moradores da Antiga Colônia.

A construção do monumento em sua homenagem, ao pé do morro Ferrabraz, em 1931, faz parte desse processo, que transformou Genuíno em herói e colocou Jacobina em primeiro lugar na lista dos culpados pelos crimes ocorridos no passado da Colônia. O monumento em homenagem a ela foi erguido somente em 2005, em um contexto no qual Jacobina se transformou em protagonista do filme “A Paixão de Jacobina” (2002), e sua imagem foi utilizada para promover o turismo e o desenvolvimento econômico, a partir da criação do roteiro conhecido como “Caminhos de Jacobina”.

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  • 1
    Seita provém do grego hairesis, e significa partido. O termo esteve bastante associado aos protestantes, demonstrando a visão católica do império brasileiro. Na historiografia brasileira, o termo seita é comumente empregado para identificar os movimentos de caráter messiânicos, enfatizando seu caráter religioso. No caso dos Mucker, o termo seita foi empregado por diversos autores, para enfatizar o caráter de fanatismo religioso, que seria atribuído à Jacobina, que seria responsável pela realização de cenas teatrais, com o propósito de enganar os adeptos e estimular o fervor religioso.
  • 2
    Na obra de Schupp, bem como na obra dos principais autores sobre o tema, os detratores do movimento são descritos como “colonos”. No entanto, além de moradores locais esse grupo era composto por pessoas de, vários segmentos sociais, como, por exemplo, comerciantes, líderes políticos e religiosos.
  • 3
    Sobre as origens pietistas das práticas religiosas de Jacobina, ver DREHER, 2017DREHER, Martin N. A religião de Jacobina. São Leopoldo: Oikos, 2017..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2019
  • Aceito
    30 Set 2019
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