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Do que não floresce em tempos de violação aos direitos das mulheres: uma leitura de Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie

There’s no flowers when women´s rights are disrespected: Purple Hibiscus, by Chimamanda Ngozi Adichie

RESUMO

Numa Nigéria entrecortada por sucessivos golpes de Estado em que se fazem notar as consequências da colonização nos hábitos e, especificamente, nas crenças religiosas, Chimamanda Ngozi Adichie ambienta seu romance Hibisco Roxo, no qual a narração autodiegética de Kambili permite entrar em contato com a violência doméstica em seus episódios mais duros até o desfecho que surpreende e marca a ruptura daquela família com a situação de abuso de poder praticado pelo pai. Hibisco Roxo é uma ficção histórica que permite ao leitor conhecer a situação política vivenciada na Nigéria, a repressão aos meios de comunicação que ousavam fazer denúncia e o cotidiano de duas famílias que vivem situações opostas: a riqueza e a violência que caracterizam o lar de Kambili e que são problematizadas apenas quando ela nota que, no lar de sua prima, Amaka, apesar de, em alguns momentos, faltar o essencial para uma vida digna, sob o ponto de vista material, havia algo precioso: a liberdade de pensamento e de discussão de ideias, elementos que serão explorados com mais vagar ao longo do artigo.

Palavras-chave
Hibisco Roxo; Nigéria; Literatura; História

ABSTRACT

The book’s space is Niger and its many coup d´État in that we notice colonization consequences in habits and, mainly, religion. Chimamanda Ngozi Adichie shows to the reader, through Kambili, the domestic violence from the hard and constant episodes until the end, when the father is murdered by the mother. Purple Hibiscus is a historical fiction that shows the political situation, repression and different families in Niger. Richness and violence in Kambili’s family and free thinking and discussions in Amaka’s family are some of the topics discussed in this paper.

Keywords
Hibisco Roxo; Niger; Literature; History

Que havia pedaços esparramados dentro de mim que me machucavam e que eu jamais poderia colocá-los de volta no lugar, pois todos aqueles lugares haviam desaparecido. Chimamanda Ngozi Adichie

Em Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie, a força poética da imagem desabrocha o clamor por justiça e pelo fim da violência em suas diversas formas. A narradora em primeira pessoa, Kambili, revela, a partir de narrativa intimista e centrada no cotidiano, as complexas relações familiares, marcadas por afeto, dependência, abusos e preconceitos, as relações da família com a religião local e com o cristianismo e, ainda, as relações do veículo de comunicação mantido por seu pai, o Jornal Standard, com o golpe de Estado que marcaria o início da desestruturação daquele núcleo familiar, rumo a novas relações e experiências. Nesta obra, o privado e o público se desdobram na dialética da história nigeriana, apresentando de modo comovente as experiências de uma adolescente africana em suas descobertas, sofrimentos e construção do eu.

Entremeados aos fatos históricos, vêm narrados eventos em que se revelam detalhadas nuances psicológicas dos diferentes membros da família e daqueles com os quais se relacionam. É pelo olhar sensível e melancólico de Kambili que temos acesso aos duros relatos de violência praticados por Eugene contra a mulher, contra os filhos adolescentes e os filhos ainda por nascer; a rica figura de Papa-Nnugwu, o avô tradicionalista e contador de histórias; e, num contraponto, a família de tia Ifeoma, com os debates, a liberdade de pensamento, em oposição a tudo que vivia Kambili em seu lar.

Discorrer sobre temas como religiosidade, liberdade, violência doméstica e repressão em regimes de exceção são objetivos do presente artigo. A discussão será realizada a partir de teóricos como Frantz Fanon, Judith Butler e Walter Benjamin.

Uma estátua loura na igreja: colonização e religião na Nigéria

Por se tratar de uma ficção histórica, ambientada em uma Nigéria republicana, mas marcada por sucessivos golpes militares, e personagens que vivenciam intensos conflitos em relação às religiões tradicionais africanas e o catolicismo imposto pelos colonizadores, considera-se pertinente apresentar algumas ponderações a respeito do processo de colonização imposto à Nigéria.

Destaca-se, primeiramente, que o processo de colonização do gigante africano é um fenômeno complexo e de longa duração, que em muito se assemelha ao que foi imposto às demais regiões de África. Em um primeiro momento, a colonização se deu por meio de traficantes de escravos provenientes dos reinos ibéricos que, na segunda metade do século XV, chegaram às regiões costeiras da África e edificaram entrepostos comerciais para a compra de escravos e venda de produtos europeus, como ferramentas, tecidos e objetos de pouco valor. As rivalidades interétnicas e a dominação de determinadas etnias sobre outras, com a prática de subjugação e escravização, foram decisivas para o êxito dos negócios das metrópoles coloniais. Os principais grupos étnicos do período eram os Igbo, os Yorubá e os Hausa-Fulani, colaboracionistas na escravização de conterrâneos.

O tráfico transatlântico de escravos sustentou por mais de 300 anos o capitalismo mercantilista ao preço intangível do maior deslocamento populacional da Idade Moderna. Só para atender à economia colonial portuguesa no Brasil, mais de três milhões de africanos foram desterritorializados,

[...] fazendo uma viagem sem volta, cujos horrores geraram fortunas fabulosas, ergueram impérios familiares e construíram uma nação. O bojo dos navios da danação e da morte era o ventre da besta mercantilista: uma máquina de moer carne humana, funcionando incessantemente para alimentar as plantações e os engenhos, as minas e as mesas, a casa e a cama dos senhores - e, mais do que tudo, os cofres dos traficantes de homens (BUENO, 2012BUENO, Eduardo. Brasil - uma História. Rio de Janeiro: Leya, 2012., p. 121).

Ao passo em que gerou vantagens para as metrópoles, a diáspora colonial africana resultou em esvaziamento demográfico, evasão de recursos humanos indispensáveis para a resistência à colonização naquele continente e para seu desenvolvimento socioeconômico autônomo e autodeterminado. Com isso, se consolidaram as balizas necessárias à colonização, entendida como conjunto de ações e medidas, de ordem material e simbólica exercidas por um poder externo com vistas a impor formas de cultivo e comportamento capazes de atender aos seus interesses.

Com o colonialismo, a Nigéria ingressou na rota da modernidade, passando a vivenciar as tensões entre o global e o local, o que resultou em arranjos e configurações políticas nem sempre as mais favoráveis para a sua população. Tais arranjos assinalam as formas que a população nigeriana encontrou para resistir aos processos homogeneizantes da globalização, para obter vantagens ou simplesmente para assegurar a sobrevivência. Assim, ao mesmo tempo em que é vítima da espoliação e violência colonial, é também colaboradora com algumas de suas ações.

Ao existir glocalmente (HALL, 2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11a. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), ou seja, nessa encruzilhada composta por forças antagônicas (e por vezes equivalentes em objetivos e princípios), a Nigéria atesta igualdade e diferença em relação aos demais países do Ocidente, evidenciando identidades híbridas e dinâmicas e apropriações culturais diversas, remodeladas e reinterpretadas segundo seus interesses e possibilidades. Além disso, ao passo que experimenta a progressiva “supressão de tempo e espaço” (ROBERTSON, 1992ROBERTSON, Roland. Globalisation: Social theory and global culture. Londres: Sage, 1992; HARVEY, 2006HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15a. ed. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.), típica dos processos globalizantes, desafia esses mesmos processos por meio de suas especificidades locais, forçando o diálogo e a negociação intercultural.

Um dos recursos de maior eficácia utilizado pelos colonizadores da Idade Moderna foi a conversão religiosa dos nativos ao cristianismo, especificamente à religião Católica, embora não sem hibridismos e concessões às tradições locais.

A religião foi um dos mais eficientes dispositivos do poder colonial porque atuou de modo a favorecer a subjugação étnica e racial e reificou papéis tradicionais de gênero, articulando as diferenças raciais e sexuais em um projeto de poder específico. Conforme Bhabha (2014, p. 119BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.),

A construção do sujeito colonial no discurso, e o exercício do poder colonial através do discurso, exige uma articulação das formas da diferença - raciais e sexuais. Essa articulação torna-se crucial se considerarmos que o corpo está sempre simultaneamente (mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder. [...] os epítetos raciais ou sexuais passam a ser vistos como modos de diferenciação, percebidos como determinações múltiplas, entrecruzadas, polimorfas e perversas, sempre exigindo um cálculo específico e estratégico de seus efeitos. Tal é, segundo creio, o momento do discurso colonial. É uma forma de discurso crucial para a ligação de uma série de diferenças e discriminações que embasam as práticas discursivas e políticas da hierarquização racial e cultural.

A religião funcionou, portanto, como aparato do discurso colonial e do poder por ele engendrado. Ainda na esteira de Bhabha (2014, p.123BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.):

É um aparato que se apoia no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante é a criação de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/desprazer. Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de conhecimento do colonizador e do colonizado que são estereotipados, mas avaliados antiteticamente.

Esse aparato, ao passo em que negou a identidade, a cultura, os saberes tradicionais e as possibilidades de autodeterminação dos povos colonizados, abriu espaços (negociados) que acomodaram determinados anseios no âmbito da esfera religiosa. Como exemplo, pode-se citar o fato de que, embora se projetassem sobre as neófitas africanas as expectativas de gênero típicas do cristianismo e do mundo ocidental à época (a mulher como boa mãe e esposa, obediente ao homem e à lei), no espaço das igrejas elas ouviam sermões contrários à violência doméstica e que exaltavam suas virtudes e, frequentemente, conseguiam se destacar nesse espaço. Linda Whoodhead (2002WOODHEAD, Linda. Mulheres e gênero: uma estrutura teórica. Revista Estudos da Religião, n. 1, vol. 2, p.1-11, 2002.) esclarece, quanto à destacada participação feminina nas instituições religiosas, que isso ocorre porque as religiões lhe forneceram um espaço social que de outra forma não poderia ser facilmente acessado por elas. Esse espaço aberto pelas religiões provê às mulheres “um capital social e cultural que habilita a formação de identidade” (WHOODHEAD, 2002, p. 4WOODHEAD, Linda. Mulheres e gênero: uma estrutura teórica. Revista Estudos da Religião, n. 1, vol. 2, p.1-11, 2002.) e pode favorecer, inclusive, formas de resistência à dominação masculina e à própria violência colonial.

Ao olharmos pelo prisma da religião e do gênero, nota-se que encerram um conjunto complexo de relações de dominação historicamente desenvolvidas, tendo em comum o fato de serem ambos “usados para representar, encarnar e distribuir o poder na sociedade” (WOODHEAD, 2013WOODHEAD, Linda. As diferenças de gênero na prática e no significado da religião. Estudos de Sociologia Araraquara, v.18, n.34, p.77-100, 2013., p. 79), expressando-se, desta forma, como sistemas de repartição de poder.

Por meio da religião foi possível desenvolver a docilização do corpo e da alma, configurando-os para aceitar a nova condição como vontade divina - portanto sábia e benéfica, ainda que inscrita sob as linhas tortuosas da violência. Esse mesmo recurso foi utilizado tanto na África quanto nas colônias do Novo Mundo, e estima-se sua eficácia em razão de manipular sentimentos eminentemente humanos, como a esperança e o desejo de redenção, a expectativa de uma vida no paraíso, o terror e a vergonha do pecado... a religião também dispõe de uma linguagem visual, simbólica, altamente pedagógica. As ilustrações, quadros, vitrais e gravuras penetram pela retina, comunicando sentidos capazes de comoção e catarse.

Além da linguagem religiosa, a própria Língua utilizada pelos colonizadores se torna elemento de fetiche. Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.), ao tratar dos complexos e neuroses dos antilhanos, explica:

O negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa. Não ignoramos que esta é uma das atitudes do homem diante do Ser. Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito. Já se vê aonde queremos chegar: existe na posse da linguagem uma extraordinária potência (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 34).

A Língua utilizada pelo colonizador em seus vários atos de comunicação era vista como o equipamento cultural capaz de aproximar o colonizado da posição de seu senhor, permitindo-lhe “negociar” com ele ou obter vantagens pessoais, reduzindo as diferenças entre ambos. Ao falar uma língua, assume-se o universo cultural ao qual ela se reporta, entretanto, não há garantias de que esse capital simbólico resultará em tratamento justo ao colonizado.

No caso da Nigéria, a colonização se estendeu do século XV até a década de 1960, transmudando de atores, formas e nomenclaturas, sem redução da violência e sem operar entendimento entre os diversos grupos étnicos rivais que habitavam e habitam seu território.

No século XIX, por intervenção britânica em âmbito internacional, o tráfico de escravos foi proibido, mas tal gesto não comportou razões humanitárias, e sim novos interesses imperialistas.

Em 1885, em “nome de Deus Todo-poderoso”, reuniram-se em Berlim os representantes políticos da França, Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia, Noruega e Turquia, “para regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger, assim como novas ocupações de territórios sobre a costa ocidental da África” (ATA GERAL, 1885ATA GERAL. Conferência de Berlim. Berlim: 1885.). A Conferência de Berlim marca uma nova fase do colonialismo, o neocolonialismo. Nela se referendou o domínio inglês sobre o território nigeriano, confiando sua administração à Companhia Real do Níger, que explorou a economia nigeriana mediante protetorados ao sul e ao norte daquele território. Nessa nova fase, o principal produto de exploração foi o azeite de dendê, ao lado de outros gêneros agrícolas tropicais, produzidos em monoculturas de larga escala.

A exploração neocolonial persistiu até 1960, quando os nigerianos proclamaram Independência, permanecendo, contudo, como Estado associado à Comunidade Britânica de Nações. A ruptura definitiva só ocorreria três anos depois, com a retirada da Nigéria dessa Comunidade e a instituição da forma republicana de governo. Os avanços jurídicos e políticos demorariam, contudo, a se converter em paz social e coesão nacional.

Após a Independência, a Nigéria sofreu oito golpes de Estado, que podem ser vistos como efeito retardado do colonialismo britânico, uma vez que a Grã-Bretanha, durante seu processo de domínio, utilizou como estratégia de manutenção do poder o estímulo aos conflitos entre Norte e Sul, fomentando rivalidades históricas e contingenciais entre as etnias das duas regiões. A velha estratégia do “dividir para dominar”.

A neocolonização da Nigéria foi conduzida por meio de Governo Indireto, em que os emires da etnia Hausa-Fulani foram promovidos a intermediários da Coroa nos assuntos administrativos. Com isso, os Hausa-Fulani atraíram para si o ódio dos grupos étnicos dominados, promovendo também a discriminação e a violência sobre eles. Da perspectiva espacial, o país apresentava uma clara cisão entre Norte e Sul. O Sul tinha a maioria da população professante da fé cristã e, por colaborar melhor com o governo, recebeu mais investimentos, tornando-se, por conseguinte, mais desenvolvida do ponto de vista econômico e de infraestrutura do que o Norte, que era de maioria muçulmana e postura pouco colaborativa com o regime, conforme explicam Oliveira (2012OLIVEIRA, Guilherme Z. Nigéria: história da política externa e das relações internacionais. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012, 113p.) e Falola e Heaton (2008FALOLA, Toyin; HEATON, Matthew M. A History of Nigeria. London: Cambridge University, 2008.).

A localização geográfica da Nigéria se encontra no Oeste do continente africano, no Golfo da Guiné. O país possui 923.768 km² de extensão e seu litoral, banhado pelo Oceano Atlântico, estende-se por 853 km (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Guilherme Z. A política externa da Nigéria: desafios de um gigante africano (1960-2014). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2014, 159f.). Para este autor,

[...] o país sempre foi considerado detentor de uma posição de destaque e liderança no continente africano e um potencial candidato ao posto de principal potência da África. Apesar de seu histórico promissor, todavia, a Nigéria jamais conseguiu se consolidar como tal. Atualmente, o país possui a maior população do continente (cerca de 177 milhões de habitantes) - sendo o sétimo país mais populoso do mundo - e a maior economia da África (com um PIB de cerca de US$ 510 bilhões, em 2013) - a vigésima sexta do mundo -, além de ser o maior exportador africano - e quinto maior mundial - de petróleo. Ainda assim, apesar da manutenção de uma posição de destaque na África, a Nigéria segue sem se consolidar como a principal potência do continente africano, e mantém-se em uma posição periférica no sistema internacional (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Guilherme Z. A política externa da Nigéria: desafios de um gigante africano (1960-2014). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2014, 159f., p. 17).

Assim como a maioria dos países vítimas de colonização, a Nigéria possui infraestrutura produtiva ainda incipiente, sendo dependente do comércio de commodities, com destaque para o petróleo e gêneros agrícolas. Do ponto de vista político, não são menores os desafios: a Nigéria empenha-se em consolidar a democracia, combater a cultura de corrupção e ilegalidade, conservar a unidade territorial e construir uma identidade nacional em um mosaico de etnias, culturas e interesses diferentes.

A sucessão de golpes e as disputas políticas em questão foram elementos de grande angústia para sua população, que, ao final do século XX, se mostrava descrente de que as constantes tomadas de poder pudessem resultar em benefícios sociais, como expressou o personagem Eugene (Papa) em Hibisco Roxo.

A personagem Eugene, pai de Kambili, chefe da família e por ela chamado de “Papa” ao longo da narrativa, veicula as relações do nigeriano com a religião trazida pelo colonizador. Sendo um homem bem-sucedido economicamente, atuava com lucros significativos na indústria alimentícia. Eugene fazia altas doações à igreja, buscava ter uma relação bastante próxima com os padres, especialmente se eles fossem brancos e britânicos, como o Padre Benedict e, ao se dirigir às autoridades religiosas, o próprio Eugene carregava num sotaque britânico, o que não passou despercebido ao olhar de Kambili. “Papa mudou de sotaque quando respondeu, adotando uma pronúncia britânica, como fazia quando falava com o padre Benedict. Ele se mostrou gracioso e ansioso por agradar, como sempre era com os religiosos, principalmente os religiosos brancos” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 52).

Importante destacar que, para Eugene, a língua inglesa, o idioma do colonizador, era o que tinha valor, ele não gostava de falar em igbo - o dialeto local - embora às vezes o fizesse quando na intimidade e com algumas pessoas da família, mas em público não o fazia e também proibia os filhos. “Precisávamos ser civilizados em público, ele nos dizia; precisávamos falar inglês” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 20).

A obsessão pelo embranquecimento, pelos hábitos dos brancos, a busca por ser aceito naquele meio como alguém que não possuía apenas dinheiro, a fuga das raízes são elementos que marcam a figura de Eugene e vão constituindo os contornos de sua relação com os filhos e outros membros da família. Exemplo disso é o abandono do pai, o qual se mantinha fiel aos costumes africanos e a aproximação com o sogro, por quem tinha adoração, pelo simples fato de apresentar a pele branca. Essa fascinação com o outro, desejo de ser o outro e ocupar o seu lugar foi trabalhado por Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.), que discutiu em perspectiva psicanalítica o problema do negro, evidenciando os complexos resultantes de anomalias nas relações afetivas.

As estátuas que permeiam a igreja de St. Agnes, à qual o pai doava altas somas em dinheiro, também eram alvo das reflexões de Kambili, a quem inquietavam as imagens louras, os traços europeus, a diferença entre ela e o que era representado naquele templo religioso. “Olhei para ele. Não conseguia fazer uma conexão entre o Cristo louro pendurado na cruz polida que havia em St. Agnes e as pernas cheias de picadas dos meninos” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 190).

Havia uma diferença abissal entre o que se representava na igreja e o que se via nas ruas, assim como Eugene era uma pessoa na igreja, carismático, amigo, gentil com todos e em casa era violento, pressionava e esgotava psicologicamente os filhos, era extremamente violento com todos eles, praticando, inclusive, sessões de tortura em que as vítimas eram os membros da família, sob a justificativa de que tais atos eram para a redenção e o aperfeiçoamento moral do clã.

A maioria das pessoas não se ajoelhava para receber a hóstia no altar de mármore, perto do qual fica a estátua loura em tamanho real da Virgem Maria. Mas Papa, sim. Ele fechava os olhos e os apertava com tanta força que suas feições se contorciam numa careta, e ele esticava a língua o máximo que podia (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 10).

Eugene representa a figura do homem, chefe de família, religioso ao extremo, amigo de todos, mas que, à família, reservava um tratamento desumano e degradante, o que se reflete no comportamento extremamente introvertido de Kambili, na ausência de sorrisos, na ausência de sentido, e se resume na fala de Amaka que, ao se encontrar com os primos, segreda para a mãe: “Tem alguma coisa errada com eles” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 153).

Em oposição à figura de Papa, está a figura de seu pai “Papa-Nnukwu”, o qual, ao contrário do filho, permaneceu fiel às crenças de seu povo e figura, no romance, como mantenedor da oralidade, do “contar histórias” na perspectiva de Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. O Narrador - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, vol. 1, 1987, p. 197-221.), é ele quem abre para Kambili e o irmão um universo de possibilidades, apresentando-lhes o desconhecido: seu próprio povo, sua cultura e tradições.

O avô africano, abandonado e desassistido na velhice por Papa, em razão de professar uma fé diferente da dele, nunca saiu de seu lugar, não viajou pelo mundo, não estudou na Europa, como os filhos, mas mesmo assim é um narrador pleno, capaz de acuradas reflexões, que com igual desenvoltura verte em narrativas orais reveladoras de riquezas e verdades inquietantes. Papa-Nnukwu personifica a figura do narrador, que embora não tenha sido viajante, no tecer dos dias em sua aldeia natal aprendeu a fortalecer a memória por meio do compartilhamento das experiências vividas e herdadas de outras narrativas.

A ruptura entre Eugene e Papa-Nnukwu figura dentro daquilo que Aimée Césaire (2010CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010., p. 18) chamou de “pedantismo cristão”, por meio do qual foram elaboradas, segundo o pensador, “equações desonestas: cristianismo = civilização; paganismo = selvageria, das quais só poderiam resultar consequências colonialistas e racistas abomináveis, cujas vítimas deveriam ser os índios, os amarelos, os negros”.

Vale destacar que a figura de Papa-Nnukwu, seus hábitos diferentes, suas histórias, representam algo desestabilizador para Kambili e o irmão, orientados pelo pai a nunca privar um espaço com um pagão, neste caso o avô. A curta experiência com o avô, em seus dias derradeiros, foi de uma estética profunda e inquietante aos dois netos, filhos de Eugene: “Ele ainda sorria quando me virei silenciosamente e voltei para o quarto. Eu nunca sorria depois de rezar o rosário em casa. Nenhum de nós sorria” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 180). Os primos, filhos de Ifeoma, assim como a própria Ifeoma, eram cristãos, mas, diferentemente, sempre conviveram com o avô, conheciam a cultura local e a viviam de uma maneira híbrida.

Tia Ifeoma ficou em silêncio enquanto usava uma concha para colocar a pasta grossa de taioba dentro da panela de sopa; então me olhou e disse que Papa-Nnukwu não era um pagão, mas um tradicionalista, que às vezes o que era diferente era tão bom quanto o que era familiar, que quando Papa-Nnukwu fazia seu itu-nzu de manhã, sua declaração de inocência, era a mesma coisa do que quando rezávamos o rosário. Ela disse mais algumas outras coisas, mas não escutei, pois ouvi Amaka rindo na sala com Papa-Nnukwu e me perguntei do que eles estariam rindo, e se por acaso iam parar se eu chegasse (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 177).

A casa de Ifeoma representa, então, o conviver com a diferença, as diluições de práticas e crenças que se vão constituindo no contato com outras práticas e crenças. No pensar de Stuart Hall (2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003., p. 36) a “[...] globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. [...] As culturas, é claro, ainda têm seus locais. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam”.

O contato com Tia Ifeoma, em sua casa em Nsukka, por conta da perseguição aos membros do Standard, jornal mantido por seu pai, permite a Kambili uma ampliação de horizontes e a reflexão sobre sua condição, forjada em relações familiares de poder, violência e dominação. É ali que ela se encontra com outros hábitos, novas maneiras de viver e de pensar e consegue se perceber no mundo, se perceber como pessoa, o que não lhe era facultado em seu lar. No lar humilde da tia, onde a água e os alimentos eram racionados, Kambili encontrou acolhimento e riquezas de experiências que eram ausentes no rico palacete onde vivia com os pais. Essa riqueza é acessada por meio da linguagem: por ouvir falar, por observar a relação dialógica entre a tia e os primos, franca e livre de censuras, aos poucos Kambili assume sua voz, sustentada por gestos que lhe permitirão fazer os enfrentamentos necessários.

As flores de plástico não morrem: violência doméstica

Eugene exercia forte pressão sobre a mulher e os dois filhos, controlava os horários, exigia que sempre ocupassem a primeira posição em tudo e, caso não alcançassem êxito nas atividades, sofriam castigos físicos e tortura. Apenas a ameaça de não atenderem às exigências do pai já era suficiente para que se torturassem psicologicamente, intensificando sentimentos de ansiedade, angústia, culpa e, paradoxalmente, o desejo de aprovação. Em Hibisco Roxo, medo e carências afetivas conjugam na esfera doméstica os equívocos e violência gerados na relação colonial. A colonização não é só do território, da economia, mas do corpo e da mente, legando consequências indeléveis. Papa é um complexado, na perspectiva tratada por Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.). Para ele, só há um destino, só há um caminho, e esse destino/caminho são brancos. É preciso, portanto, eliminar tudo o que é negro, mesmo as práticas mais sutis que destoem desse padrão acreditado como o verdadeiro.

No romance em resenha, toda a família vive emocionalmente abalada e sob pressão, cada passo de Papa era lido como uma ameaça dos piores castigos. Na percepção de Kambili:

Eu me perguntei quando Papa faria um horário para o bebê, meu novo irmão, se ele faria assim que o bebê nascesse ou esperaria até ele ter uns dois ou três anos. Papa gostava de ordem, isso ficava patente nos próprios horários, na forma meticulosa como ele desenhava as linhas, em tinta negra, cortada horizontalmente a cada dia, separando a hora de estudar da hora da sesta, a hora da sesta da hora de ficar com a família, a de ficar com a família da hora das refeições, a das refeições da hora de rezar, a de rezar da hora de dormir. Papa revisava nossos horários com frequência. Na época das aulas, tínhamos mais tempo para estudar e menos para a sesta, mesmo nos fins de semana. Quando estávamos de férias, tínhamos um pouco mais de tempo para ficar com a família, um pouco mais de tempo para ler jornais, jogar xadrez ou Banco Imobiliário, e ouvir rádio (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 30).

No esquema rígido de tarefas, Kambili e Jaja, seu irmão, não tinham espaço para ser, para construir suas identidades e experiências próprias. Suas vidas se resumiam a perseguir até adoecer os objetivos traçados pelo pai, cujo apelido carinhoso (Papa) nos remete a outras textualidades: o Papa, líder da Igreja, o Papa Doc, ditador sanguinário do Haiti. De fato, a personagem congrega o zelo paternal, a liderança religiosa e o cultivo do terror, infringindo sofrimento físico e emocional aos seus familiares - sofrimento este, que, diga-se de passagem, reproduz o seu próprio, uma vez que foi levado ainda menino por religiosos que lhe educaram na fé e na cultura britânica, reprimindo todas as marcas de sua cultura nativa.

Tudo era controlado e em nada havia leveza, muito menos prazer. As vidas de todos naquela casa eram “vidas precárias” (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros da Guerra - quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), vidas governadas por um amor sádico e intolerante, postas a serviço de um homem, do pai de família, “exemplo na sociedade”, “homem bom e caridoso”, que se transformava em um torturador dentro das paredes de sua própria casa.

A complexidade do personagem Eugene (Papa), algoz e vítima, revela um equívoco do pensamento humano, a saber, o de acreditar que determinadas pessoas ou instituições são impermeáveis à violência. Para Butler (2015BUTLER, Judith. Quadros da Guerra - quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 225) é preciso lutar

contra essas noções de sujeito político que supõem que a permeabilidade e a condição de violável podem ser monopolizadas em um local e completamente rechaçadas em outro. Nenhum sujeito tem o monopólio sobre “ser perseguido” ou “ser perseguidor”, nem mesmo quando histórias fortemente sedimentadas (formas de reiteração densamente combinadas) produziram esse efeito ontológico.

A esse respeito, Papa é uma personagem paradigmática, pois é morto por sua própria esposa, dentro de sua própria casa, lugar onde acredita dominar e ser respeitado de forma absoluta.

Retomando a digressão sobre a violência praticada por Papa sobre a família, seus filhos, além da pressão por desempenho e de uma rotina tomadas pelas normas, vivenciavam todos os dias a violência física perpetrada contra a mãe deles. Beatrice sofrera vários abortos em virtude das agressões do marido e ainda se culpava por isso, pois outras mulheres poderiam dar mais filhos a Eugene, no entanto, ele escolhera permanecer apenas com ela e não contrair novo matrimônio. “Eu não me perguntei, nem tentei me perguntar, o que Mama fizera para precisar ser perdoada” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 42).

A personagem materna revela uma vivência cotidiana de opressão à mulher que ocorre naquele lar, mas representa o que acontece em tantos outros, e expressa uma culpa que é historicamente atribuída à mulher, sofrida por ela, marcada em sua trajetória.

‒ Sim ‒ concordou Mama, soltando minha saia com certa relutância. ‒ Deus é fiel. Depois que você nasceu e eu sofri aqueles abortos, o povo da vila começou a falar. Os membros da nossa umunna até mandaram pessoas para falar com seu pai e insistir que ele tivesse filhos com outra mulher. Tantos tinham filhas disponíveis, muitas das quais formadas em universidades e tudo. Elas poderiam ter parido muitos filhos, tomado conta da nossa casa e nos expulsado, como a segunda esposa do senhor Ezendu fez. Mas seu pai ficou comigo, ficou conosco (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 26).

Beatrice é uma dupla vítima, das agressões do marido e de uma culpa a ela imposta pela sociedade. Beatrice sofre por muitas pessoas, por si mesma ao receber os golpes em sua carne e ao tentar esconder as marcas e os sons dos filhos, sofre por todos os filhos perdidos nos múltiplos abortos provocados pelas mãos de Eugene com severas agressões físicas e sofre pelos dois filhos que também enfrentavam diariamente a violência aplicada pelo pai. Seu sofrimento é silencioso. “Seu rosto marrom, que seria perfeito se não fosse pela cicatriz recente em sua testa, não demonstrou emoção” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 22).

A Beatrice não cabe se rebelar, mas aceitar as provações e reconhecer a “bondade” de seu esposo, uma vez que não dispõe de recursos individuais e públicos capazes de auxiliar no enfrentamento da violência doméstica e cotidiana. Beatrice não tem independência financeira, não cursou ensino superior e reproduz a ideologia de que o feminismo é pernicioso, uma vez que a cultura hegemônica produziu representações de gênero em que a mulher é dependente do homem e incapaz de viver sem sua “benevolência”. Ela está alienada de qualquer rede de apoio, contando apenas com suas próprias forças, difíceis de serem movidas em razão da formatação de gênero sofrida, e com a solidariedade da cunhada, que dispõe tão somente do poder das palavras (palavras de alerta e aconselhamento).

A última gravidez e o consequente aborto de Beatrice são acompanhados de outra maneira por Kambili e Jaja, agora adolescentes e mais conscientes do que vinha acontecendo em sua casa. É nesse contexto que ocorre o seguinte diálogo:

Jaja fechou os olhos por um instante e abriu-os novamente.

‒ Nós vamos cuidar do menino. Vamos protegê-lo.

Eu sabia que Jaja estava falando em proteger o bebê de Papa, mas não fiz nenhum comentário (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 29).

O irmão já se preocupava com a vida do bebê que viria, com o que poderia fazer o pai deles com uma criança tão pequena e frágil e acreditava que ele e Kambili, juntos, poderiam proteger a criança. A criança nunca nasceu porque, em mais uma gravidez, Beatrice sofreu todo tipo de agressão física até abortar. “‒ Isso não pode continuar nwunye m ‒ disse tia Ifeoma. ‒ Quando uma casa está pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 226).

Ifeoma sabia do que acontecia na casa e buscava maneiras de proteger a cunhada e os sobrinhos; o irmão não falava com ela e ela se dispunha a abrigá-los em seu pequeno apartamento, no intuito de garantir a segurança deles.

Kambili era vítima constante das agressões do pai. Na escola, não tinha amigas, pois seus horários eram rigidamente controlados, de modo que nunca havia tempo para conversar com as outras meninas. “Uma vez, Kevin dissera a Papa que eu havia demorado alguns minutos a mais para sair, e Papa batera nas minhas duas bochechas ao mesmo tempo. As palmas imensas das mãos dele deixaram marcas paralelas em meu rosto e um zumbido no ouvido durante dias” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 58).

Uma forte agressão a Kambili é a responsável por uma mudança na vida da narradora-personagem: por não ter atingido o primeiro lugar da turma e ter guardado consigo uma aquarela com a figura do avô falecido, a menina é espancada e precisa passar muitos dias no hospital. Quando sai do hospital, vai para a casa de tia Ifeoma. Ela e o irmão já haviam estado lá nas primeiras ameaças ao Standard e agora ela vai para se recuperar, passar mais tempo, se descobrir, ser ela mesma após um movimento tão traumático em sua vida.

Foi como no dia em que Papa derramara água quente em meus pés, só que agora era meu corpo todo que queimava. Mesmo pensar em qualquer movimento era doloroso demais.

[...]

‒ Meu corpo está pegando fogo ‒ disse eu.

[...]

Costela quebrada. Recuperação corria bem. Hemorragia interna.

[...]

‒ Minha filha preciosa. Nada vai acontecer com você. Minha filha preciosa (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 224).

Desta vez havia sido muito grave, as lesões foram seriíssimas e Kambili quase perdera a vida. A partir desse episódio, uma mudança se opera também em Beatrice: “‒ Comecei a colocar o veneno no chá dele antes de ir para Nsukka. Sisi arrumou-o para mim; o tio dela é um curandeiro poderoso” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 305).

Beatrice envenena o marido, que morre intoxicado pela ingestão lenta e repetida do veneno colocado em seu chá. O fato de ser no chá deixa Kambili bastante impactada, o chá que Papa tomava à noite era partilhado com os dois filhos e pelo pai chamado de “gole de amor”. A polícia detecta o envenenamento e Jaja assume a autoria em lugar de sua mãe, ficando detido por anos.

Apesar de ser impedida de ser e de se desenvolver, pois sua vida limitava-se a cumprir com louvor um programa construído minuciosamente por seu pai com a imposição de que ela fosse a primeira em toda e qualquer atividade, Kambili revela uma sensibilidade notável. Era introspectiva, não se manifestava, sua boca se fechava quando ela queria falar alguma coisa, ela sequer respondia o que lhe perguntavam, mas sentia tudo intensamente e o percurso do leitor pelos caminhos psicológicos da personagem são bastante ricos.

Ouvir o pai agredindo a mãe, sofrer toda a pressão para ser a número um, ver o irmão tentar sair daquele ciclo e buscar se impor contra o pai em alguns momentos. As agressões físicas sofridas por todos eles, a pressão psicológica, o não-ser marcam em definitivo a vida da personagem e impõem a ela, além de tudo mais, o silêncio.

Se imaginasse aquilo sem parar, talvez virasse verdade. Eu me sentei, fechei os olhos e comecei a contar. Contar fazia o tempo passar um pouco mais rápido, fazia com que não fosse tão ruim. Às vezes, acabava antes de eu chegar ao número vinte. Eu já estava no dezenove quando o som parou. Ouvi a porta se abrindo. Os passos de Papa na escada pareceram mais pesados, mais desajeitados do que o normal (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 39).

Após o seu maior sofrimento, decorrente da lesão corporal grave a ela imposta pelo pai, Kambili tem a oportunidade de passar mais tempo com sua tia Ifeoma, se aproximar da prima Amaka e se descobrir como ser humano, como pessoa, como mulher.

Ao viver com a família da tia, uma professora, uma militante, a menina pode perceber que existem outras maneiras de ser e de viver em família, de viver a escola, de viver a religião, e este é um momento revelador e significativo na trajetória da personagem.

Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 238).

O contato mais próximo com a tia viúva e seus filhos é um divisor na vida de Kambili. O convívio com a prima, Amaka, no início, é bastante difícil. A prima tem dificuldade em conviver com eles que são tão presos, com planos rígidos, que não se soltam em nenhum momento. É na casa de Ifeoma e especificamente no convívio com o padre Amadi que Kambili descobre o riso: “Eu ri. O som foi esquisito, como se eu tivesse ouvido a risada de um estranho numa gravação. Acho que nunca tinha me ouvido rir antes” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 191).

É o padre Amadi quem faz com que Kambili descubra seu riso, sua voz, que pode se divertir, que pode se manifestar. Existe uma ternura entre os dois, um sentimento, mas o serviço dele como padre os afasta e ficam as marcas de um tempo bom passado juntos, de muitas novidades na vida daquela menina que até então só estudara para alcançar os escores determinados pelo pai. “Eu sorrira, correra, rira. Meu peito estava repleto de uma coisa parecida com espuma de banho. Leve. A leveza era tão doce que eu podia sentir seu gosto na língua, tinha a doçura de um caju maduro, amarelo-vivo” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 192).

A mudança não ocorre apenas com Kambili, Jaja também sente a leveza de estar distante da casa paterna:

Eu ri. Rir parecia muito fácil agora. Muitas coisas pareciam fáceis agora. Jaja também estava rindo, assim como Amaka, e todos nós estávamos sentados na grama, esperando Obiora chegar. Ele caminhava devagar, segurando alguma coisa que depois eu vi ser um gafanhoto (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 299).

Junto à família da tia, os adolescentes se sentiam felizes, pois estavam distantes do ambiente de violência doméstica. A estada com os parentes, contudo, seria curta, pois o pai os via como elementos capazes de ameaçar a ordem por ele estabelecida, interferir nos modelos que deveriam ser seguidos. Na casa da tia usavam muitos termos igbo, compreendiam a religião e as práticas do avô apenas como algo diferente e bonito na diferença, eram instigados a pensar, desenvolver ideias e tudo isso ameaçaria a autoridade de Eugene.

Nesse cenário, cumpre destacar que a repressão vivenciada dentro dos muros da casa também era a repressão experimentada de maneira geral na Nigéria, marcada por sucessivos golpes de Estado.

Quem pode falar? Repressão nos regimes de exceção ‒ o caso da Nigéria

A Nigéria, que é um dos países mais ricos da África e de maior peso em sua geopolítica, enfrentou após a independência uma série golpes de Estado, guerras civis e movimentos separatistas que dificultaram a consolidação da democracia e da via republicana de governo, inviabilizando seu pleno desenvolvimento. Só no século XX, foram oito golpes de Estado, incluindo um movimento separatista igbo que dividiu o país, proclamando a República de Biafra. Não é pretensão deste artigo analisar cada um desses golpes, mas tão somente tecer considerações gerais a seu respeito. Assim, os consideramos como disputas de poder especialmente complexas porque marcadas por componentes de ordem étnica e religiosa, bem como de lutas de classe.

Yarisse (1986YARISSE, Zoctizoum. Outro golpe de Estado en Nigeria. Estudios de Asia y África Actuales, v. XXI, n. 2, 1986.) estudou os golpes ocorridos na Nigéria até 1985, ou seja, o golpe de 1963, liderado pelos militares do Sul que encerraram a Primeira República, sob a liderença de Aguiyi Ironsi, o contragolpe do mesmo ano, comandado pelos militares do Norte, que instalou na presidência o Tenente Coronel Yakubru Goweon; a guerra separatista de Biafra, em 1967, o golpe de 1975, contra Goweon, que colocou no poder Mirtala Mohhamed, morto no golpe de 1976. Neste assumiu a presidência Shehu Shagari, que, ao ser acusado de fraudes em processos eleitorais, foi derrubado do poder em 1983 por um novo golpe, dado pelo general Muhamade Buhari, por sua vez deposto dois anos depois pelo general Ibrahin Babagida.

Essa sucessão de golpes, que atravessaria todo o século XX, foi explicada por Yarisse (1986YARISSE, Zoctizoum. Outro golpe de Estado en Nigeria. Estudios de Asia y África Actuales, v. XXI, n. 2, 1986.) como produto de fatores inextricáveis de ordem histórica, moderna e exterior. Do ponto de vista histórico, pode-se citar a própria convivência forçada entre grupos étnicos de tradição e religião diferentes, forçados a viver juntos em função do exercício colonialista. A história conjugaria, portanto, diferenças internas e ressentimentos ocasionados pela colonização. Quanto à modernidade, destacam-se os conflitos próprios entre tradição e modernidade, conflitos pelo controle de insumos e tecnologias de produção. Aqui as lutas se configuram como luta de classes em que modos de produção antagônicos são defendidos por um e outro grupo, remetendo-nos à polaridade ideológica típica dos anos da Guerra Fria. Também incidem sobre a ocorrência de golpes a intervenção direta ou indireta das grandes e médias potências externas à Nigéria, como os Estados Unidos da América. A existência de petróleo é, provavelmente, o principal fator que desperta o interesse das nações estrangeiras sobre a política nigeriana, uma vez que controlar o governo desse país pode significar vantagens nos negócios do petróleo.

Nos vários golpes, a violência esteve presente, milhares de pessoas foram assassinadas e a repressão aos meios de comunicação e às frentes políticas de oposição foram radicais, chegando ao extremo do assassinato de jornalistas, políticos e intelectuais de oposição, como registrado ficcionalmente em Hibisco Roxo, quando aborda a perseguição e assassinato do editor do jornal Standard e as ameaças, tentativas de suborno e visitas estranhas a Eugene.

No quadro da precariedade da democracia, a vida também se precariza, e aqueles que pensam diferente, que constituem oposição ao regime, por mínima que seja, tornam-se vidas sem valor, sequer passíveis de luto (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros da Guerra - quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Em uma ditadura, a única fala autorizada é a de quem está no poder, portanto, aos demais é imposto o silêncio. A literatura talvez até melhor que a História dê conta de dimensionar as incertezas e angústias humanas decorrentes de causas políticas, como atesta a narrativa de Hibisco Roxo. Isso porque

Embora nem a imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão, nem interromper um bombardeio, nem, de maneira nenhuma, reverter o curso da guerra, podem, contudo, oferecer as condições necessárias para libertar-se da aceitação cotidiana da guerra e para provocar um horror e uma indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem o clamor por justiça e pelo fim da violência (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros da Guerra - quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 27).

Kambili, a narradora autodiegética do romance, vivencia, em sua adolescência, os eventos e desdobramentos de um golpe de Estado. Sua família acompanha de perto os acontecimentos e os sofre em virtude de ser a proprietária do Jornal Standard. Padece especialmente com as ofensas e tortura sofridas por seu editor-chefe, Ade Coker, por realizar sucessivas denúncias no jornal.

Foi durante a hora da família do dia seguinte, um sábado, que o golpe aconteceu. Papa acabara de dar um xeque-mate em Jaja, quando ouvimos uma música marcial no rádio, com tons solenes que nos fizeram parar e escutar. Um general com um forte sotaque hausa começou a falar, anunciando que ocorrera um golpe e que havia um novo governo. Em pouco tempo, saberíamos quem era o novo chefe de Estado. Papa empurrou o tabuleiro de xadrez para um lado, pediu licença e foi falar no telefone em seu escritório. Jaja, Mama e eu esperamos por ele em silêncio. Eu sabia que Papa estava ligando para seu editor, Ade Coker, talvez para lhe dizer alguma coisa sobre a cobertura do golpe. Quando ele voltou, nós bebemos o suco de manga, que Sisi serviu em copos longos, enquanto Papa falava do golpe. Ele estava triste; seus lábios retangulares se arquearam. Golpes levavam a mais golpes, disse Papa, contando-nos sobre os golpes sangrentos dos anos 1960, que acabaram se transformando em uma guerra civil logo depois que ele deixou a Nigéria para ir estudar na Inglaterra. Um golpe sempre iniciava um ciclo vicioso. Militares sempre derrubariam uns aos outros simplesmente porque tinham como fazer isso e porque todos ficavam embriagados pelo poder (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 30-31).

O medo se instala: as ligações telefônicas prolongadas em horas incomuns, a sensação de perigo constante, a ameaça explícita, os planos para se proteger face ao desconhecido, a lembrança das experiências passadas com todas as suas dificuldades, as negociatas, a covardia, o desejo de autopreservação. “Que manchete. Estão todos com medo. Escrevendo sobre como o governo civil era corrupto, como se achassem que o militar não vá ser. Esse país está entrando pelo buraco” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 32).

Kambili vê, do carro, as manifestações das pessoas nas ruas e passa a se imaginar entre elas: “[...] eu me perguntava como seria me juntar a eles pedindo ‘Liberdade’ e barrando o caminho dos carros” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 33).

Mas, num curto período de tempo, tais manifestações são caladas à base de tortura, o que também não passa indiferente à percepção da narradora: “Nas semanas seguintes, quando Kevin passava pela estrada Ogui, víamos soldados em barreiras montadas próximas ao mercado, andando de um lado para o outro e acariciando suas longas armas. Certa vez, vi um homem ajoelhado na estrada ao lado de seu Peugeot 504, com as mãos erguidas no ar” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 33).

E a escalada da violência segue seu caminho:

Eu sabia que ele fora preso pela primeira página do último Standard, que trazia uma matéria sobre como o chefe de Estado e sua esposa haviam pego pessoas para levar heroína para outros países. A matéria questionava a recente execução de três homens e perguntava quem seriam os verdadeiros barões da droga (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 44).

A tortura vai se tornando algo comum naquele ambiente de incertezas: “‒ Eles apagaram cigarros nas costas dele ‒ disse Papa, balançando a cabeça. ‒ Apagaram muitos cigarros nas costas dele” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 48). Nesta fala, Papa se refere ao editor Ade Coker que, posteriormente, foi morto na frente de toda sua família, por um explosivo inserido em uma carta.

E, ao lado disso, os planos de fuga daquela realidade conturbada. Por mais que amassem a Nigéria e suas vidas naquele país, os membros da família de tia Ifeoma começam a planejar uma mudança para os Estados Unidos, que muito assusta as primas Kambili e Amaka; Amaka porque amava a Nigéria e sua vida do jeito que era, e Kambili porque estava encantada com esta nova vida ao lado desta parte da família que até então havia estado oculta para ela. A ida para os Estados Unidos, caso ocorresse, os afastaria sem planos de um reencontro. “‒ Como assim, ir embora? Por que precisamos fugir do nosso próprio país? Por que não podemos consertá-lo? ‒ perguntou Amaka” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 244).

Obiora, o filho mais velho de Ifeoma, é o único a apoiar irrestritamente a mudança. Ressente-se das más condições de trabalho e remuneração na Nigéria e acredita que novas possibilidades se abrirão para eles na América.

‒ E o trabalho dela vai ser reconhecido nos Estados Unidos, sem essa politicagem boba ‒ disse Obiora, assentindo, já concordando consigo mesmo caso ninguém mais o fizesse.

‒ A mamãe disse para você que estava pensando em se mudar, gbo? ‒ perguntou Amaka, fazendo movimentos rápidos e enfiando a mão com força na cadeira.

‒ Você sabe há quanto tempo eles não a promovem? ‒ retrucou Obiora. ‒ Ela já devia ter virado professora sênior há muitos anos (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 236).

Junto aos planos de mudança para os Estados Unidos, vem toda uma preocupação com as questões migratórias, com a maneira pela qual os Estados Unidos tratam o estrangeiro, sobre a fragmentação e recomposição da identidade no exílio (SAYAD, 1998SAYAD, Abdemalek. A Imigração. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.), problemas ilustrados no diálogo abaixo:

‒ E como está a vida de cidadã de segunda classe nos Estados Unidos?

‒ Chiaku, o sarcasmo não lhe cai bem.

‒ Mas é verdade. Passei anos em Cambridge e mesmo assim era tratada como uma macaca que desenvolvera a habilidade de pensar.

‒ Não é mais tão ruim hoje em dia.

‒ Isso é que eles dizem. Todos os dias nossos médicos vão para lá e acabam lavando os pratos dos oyinbo, pois os oyinbo pensam que a gente não sabe ensinar medicina direito. Nossos advogados vão para lá e acabam dirigindo táxis, porque os oyinbo não confiam na forma como eles estudaram as leis (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 258).

O nigeriano nos Estados Unidos não é apenas um imigrante e, já por isso, um cidadão menor, ele é também negro, vítima de racismo, não consegue praticar ali as atividades referentes à sua formação. A xenofobia é algo que o imigrante terá de enfrentar na nova morada. No entanto, dadas as condições na Nigéria, para algumas famílias a única saída é a mudança para outros países.

Antes de vivenciar a violência da xenofobia, aquele que busca sair atravessará a violência dos papéis, do teste. Será ou não aceito no novo país? Quais suas intenções? É ele uma ameaça ao local? Essas nuances da busca pela regularização na nova morada ficam evidentes no romance: “‒ Não sei. Quando estão de bom humor, dão o visto e, quando não estão, não dão. É o que acontece quando você não vale nada aos olhos de alguém. A gente é como uma bola de futebol que eles chutam na direção que quiserem” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 292-3).

A família de Ifeoma passa por todos os trâmites e consegue se mudar. Nos Estados Unidos, uma nova vida se inicia, com maior comodidade, no entanto, sem alegria: “É claro que sempre há eletricidade e que a água quente sai da torneira, mas a gente não ri mais, escreve Amaka, porque não temos tempo para rir, porque nem nos vemos mais” (ADICHIE, 2011ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. , p. 315).

A vida comunitária, compartilhada, os espaços divididos, a união que caracterizava aquele modo de vida, cede espaço a novas maneiras de viver e de se organizar. São os choques provocados pelo processo migratório e os ajustes a que ficam submetidos aqueles que se dispõem a mudar ou são forçados a isso.

A mudança na vida de Kambili é de outra natureza: o pai assassinado pela mãe, o irmão que assume a culpa do homicídio e paga a pena, o suborno para que possam visitá-lo e levar a ele alimentos e produtos de higiene e, apesar de tudo isso, a sensação de estar livre da presença de Papa em suas vidas, a esperança de um novo tempo para a narradora e para seu país.

Referências

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  • ROBERTSON, Roland. Globalisation: Social theory and global culture. Londres: Sage, 1992
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  • YARISSE, Zoctizoum. Outro golpe de Estado en Nigeria. Estudios de Asia y África Actuales, v. XXI, n. 2, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    03 Jul 2019
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