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Entrevista com Roger Chartier - Representações das práticas, práticas da representação

Interview with Roger Chartier - Representation of practices, practices of representation

No dia 22 de março de 2021, o professor Roger Chartier concedeu entrevista ao MidiaCult UNESP1 1 Esta entrevista foi realizada no dia 22 de março de 2021 e está disponível no canal do youtube do MidiaCult UNESP - Grupo de Estudos de História da Cultura Midiática: https://youtu.be/Y3B_DgEOK1g . . Ele é formado em Educação na Escola Normal de Saint-Cloud e em História na Sorbonne, onde também fez seu mestrado. Na EHESS - École des hautes études en sciences sociales foi mestre de conferência e directeur d'études e desde 2017 está vinculado ao Collège de France na chaire Écrit et cultures dans l’Europe moderne, além de ter sido professor visitante na University of Pennsylvania. Especialista em História do Livro e da Leitura, um dos nomes mais proeminentes da dita Nouvelle Histoire Culturelle, é um dos responsáveis pela reconfiguração do campo da história do livro e da leitura no seio da Escola dos Annales. Suas reflexões no campo epistemológico legaram a gerações de historiadores conceitos e abordagens centrais para se pensar o “mundo como representação”, tema sobre o qual ele discorrerá nesta entrevista, com foco nos impressos periódicos.

Valéria dos Santos Guimarães: É com satisfação que o MidiaCult recebe o professor Roger Chartier. Gostaria de agradecê-lo pela generosidade, é uma honra tê-lo conosco.

Gostaria de observar que sei que o senhor é um historiador dedicado ao estudo da era moderna (da primeira modernidade), que seu objeto de pesquisa é o livro e que não trabalha nem com periódico, menos ainda com história contemporânea, período em que os impressos periódicos ganharam mais relevância devido a múltiplos fatores, como as consequências de uma civilização industrial, e modificaram profundamente o conjunto das atividades sociais. Apesar do recorte espaço-temporal não ser sua especialidade, seu trabalho traz reflexões acerca das formas de análise do impresso em geral a partir do uso, entre outros, do conceito de “Representação”, que pode ser definido, a um só tempo, como resultado da recepção do social dada por um certo grupo (não sem conflitos) e também como gerador de um mundo social. As representações, assim, atuam como expressões e criadoras do real.

Dificilmente hoje em dia usamos, entre historiadores, o termo “representação” ou “representação social” se referindo a Émile Durkheim, Maurice Halbwachs, Marcel Mauss, Lucien Lévi-Bruhl, entre outros. Muitos se referem a seu trabalho, especialmente Le monde comme réprésentation (CHARTIER, 1989CHARTIER, Roger. Le monde comme representation. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 44ᵉ année, n. 6, 1989.) ou o História cultural: entre práticas e representações (CHARTIER, 1988CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.), edição que foi amplamente difundida no Brasil. Sim, Pascal Ory também é bem citado, muito mais na França que aqui (ORY, 1987ORY, Pascal. L'histoire culturelle de la France contemporaine: question et questionnement. Vingtième Siècle, revue d'histoire, Dossier: L'Allemagne, le nazisme et les juifs, n.16, p. 67-82, octobre-décembre 1987.). Porém, no geral, é seu nome que ficou ligado a este conceito que é usado em várias áreas, inclusive na história da imprensa e das mídias em geral. Assim, acho que justifico o convite do grupo MidiaCult UNESP para o senhor falar um pouco para a gente como esses conceitos podem ser operacionais também para os estudiosos do impresso periódico.

Questão 01 - A narrativa do periódico e suas representações

VSG: A questão principal é como o conceito de representação pode contribuir para uma História Cultural e Social das Mídias, sobretudo aquela que tem como objeto o impresso periódico.

Ou seja, discorrer sobre o conceito de representação implica também discutir a polêmica questão da apreensão do passado, reflexão presente em sua obra e central nos debates em torno dos giros epistemológicos, seja o giro linguístico ou aqueles que defendem uma retomada da ontologia ou do real contra o que chamam de “relativismos”.

Uma questão que vem a reboque desta é a crítica ao uso do conceito de “representação” por supostamente favorecer a separação entre o mundo real e o ideal. Creio que está claro que, bem ao contrário disso, esse conceito tem um consistente fundamento sociológico, seja pela tradição durkheimiana, seja na obra de Pierre Bourdieu, tão importante em seu trabalho. De um lado, aqueles que (ainda) acham que o real é passível de uma “totalidade a restituir” e, de outro, os que defendem que o real é impossível de se apreender por um conceito de base platônica como, nessa visão, seria o conceito de representação.

A reflexão sobre a legitimidade de certos tipos de narrativas na apreensão do passado nunca foi exclusiva do campo da História, mas é em seu seio que a questão da pertinência do uso de certas fontes ganha um lugar preponderante, como o debate em torno do uso de fontes literárias deixa claro. Ora, o texto jornalístico, próprio do impresso periódico (mas não só), também é uma narrativa que traz à tona a questão da apreensão do passado e já houve críticas a seu uso como fonte para historiadores.

As narrativas das mídias e seus gêneros, sejam elas representações textuais ou visuais (editorial, reportagem, entrevista, publicidade, crônica, fait divers, folhetim, crítica, notícia, caricatura, charge, cartum, fotorreportagem, etc.), concorrem pela representação do passado, embora sejam igualmente sujeitas às subjetividades inerentes ao discurso, como se tem observado no crescente espaço ocupado pelas notícias falsas e mesmo pelos negacionismos (no Brasil, nega-se a tortura e a Ditadura Militar, nega-se o vírus que causa a COVID-19, nega-se a eficácia de máscaras ou de vacinas). Portanto, tais narrativas são igualmente problemáticas, sobretudo porque querem se impor como verdadeiras e objetivas aos leitores, muitas vezes produzidas no calor dos acontecimentos de um passado ainda muito recente, do tempo presente, sem chance de grandes reflexões e de uma visão mais ampla do contexto.

Em resumo: na sua opinião, como o conceito de representação pode ser operacional para a análise das narrativas de periódicos, que se colocam como isentas, como “registros objetivos” dos fatos e do real?

Roger Chartier: Para responder sua pergunta é preciso recordar duas características fundamentais da noção de representação. A primeira se vincula com o título mesmo de nosso encontro e remete a duas dimensões, transitiva e reflexiva, de cada representação indicada por Louis Marin: “Um dos dois modelos mais operacionais construídos para explorar o funcionamento da representação moderna - seja ela linguística ou visual - é o que propõe a tomada de consideração da dupla dimensão de seu dispositivo: na dimensão ‘transitiva’ ou transparente do enunciado, toda representação representa algo; na dimensão ‘reflexiva’, ou opacidade enunciativa, toda representação se apresenta representando algo” (MARIN, 1989MARIN, Louis. Opacité de la peinture. Essais sur la représentation au Quattrocento. Paris: Usher, 1989., p. 73). A consequência metodológica dessa afirmação é que a compreensão do significado de qualquer representação, seja textual ou iconográfica, exige a compreensão das formas, intenções e código da representação mesma. Semelhante atenção é tanto mais necessária que o apagamento da dimensão reflexiva da representação parece uma condição necessária para produzir a crença na sua dimensão transitiva, na sua verdade ou evidência.

O título de nosso diálogo indica também um pressuposto teórico: a irredutibilidade das práticas aos discursos ou as imagens que as representam, descrevem, proíbem ou proscrevem. Sempre deve se reconhecer a radical diferença entre a lógica mobilizada pela apropriação ou a produção da escrita e a outra lógica que fundamenta o senso prático. Como escreve Pierre Bourdieu: “Levei muito tempo para compreender que não se pode apreender a lógica da prática, a não ser por meio de construções que a destroem como tal, enquanto não se questionar o que são, ou melhor, o que fazem os instrumentos de objetivação, genealogias, esquemas, quadros sinóticos, plantas, mapas, a isso tudo acrescentei então, graças aos mais recentes trabalhos de Jack Goody, a simples transcrição escrita” (BOURDIEU, 2009BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. de Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009., p. 25).2 2 Bourdieu se refere ao livro de Jack Goody (2012 [1977]).

Uma segunda característica fundamental da noção de representação é seu duplo estatuto: como categoria histórica utilizada pelos atores e como conceito analítico construído pelas ciências sociais e pela história no século XX. Nas sociedades da Idade Média e da primeira modernidade, a categoria de representação é uma categoria política essencial. Esta acepção da representação está enraizada no sentido antigo e material da “representação” entendida como a efígie colocada no lugar do corpo do rei morto em seu leito funerário. Não se pode separar da teoria política identificada por Ernst Kantorowicz em seu livro Os dois corpos do rei (KANTOROWICZ, 1988KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre a teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.), e cuja figura paroxística se encontra nos funerais dos reis ingleses e franceses entre os séculos XV e XVII. Neste momento-chave se produz uma inversão da presença do rei. Habitualmente, é seu corpo físico que é dado a ver aos seus súditos enquanto seu corpo místico e político está invisível. Durante o funeral, no entanto, o corpo do rei morto é escondido na mortalha e no cadafalso, enquanto o seu corpo político, que nunca morre, se torna visível na imagem de madeira ou cera que o representa: “encerrado no ataúde de chumbo, que por sua vez era encerrado em um esquife de madeira, repousava o cadáver do rei, seu corpo natural mortal e normalmente visível - embora agora invisível -, ao passo que seu corpo político normalmente invisível era, nessa ocasião, exibido visivelmente pela efígie em suas insígnias reais pomposas: uma persona ficta - a efígie - personificando uma persona ficta - a Dignitas” (KANTOROWICZ, 1988KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre a teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 253-254).

Os dispositivos que representam o poder do soberano são os instrumentos de sua dominação política. Segundo Louis Marin, a representação tem esse poder, porque “efetua a substituição da manifestação exterior em que uma força só aparece para aniquilar outra força numa luta de morte, pelos signos da força, que só necessitam ser vistos para que a força seja acreditada” (MARIN, 1981MARIN, Louis. Le portrait du roi. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., p. 11).

Nas sociedades do Antigo Regime, a representação é também uma categoria fundamental para a apresentação da identidade social. Os atributos, as condutas, as palavras são sinais que visam tanto a fazer reconhecer uma condição, como a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar uma posição na sociedade. As formas da dominação simbólica, pela imagem, pela “exibição”, ou pelo aparato (a “montre” é a palavra de Pascal, o “attirail” a palavra de La Bruyère) são o corolário do monopólio sobre o uso legítimo da força que pretende reservar-se o monarca absoluto. A pacificação (ao menos relativa) do espaço social entre a Idade Média e o século XVII transformou, assim, os enfrentamentos sociais abertos e brutais em conflitos de representações cujo objetivo é o ordenamento do mundo social e, portanto, a condição reconhecida (ou negada) a cada estamento, cada corpo, cada indivíduo. Os usos sociais das representações são, assim, a condição e a expressão do processo de civilização identificado por Norbert Elias.

A categoria histórica de representação se tornou conceito analítico com a sociologia francesa com as noções de “representações coletivas” de Émile Durkheim, de “representações sociais” de Serge Moscovici, ou de “lutas de representações” entendidas como “lutas de classificações” e “lutas de classes” por Pierre Bourdieu. Além do seu uso historicamente situado, a noção de representação transformou a definição dos grupos sociais. Como ressalta Pierre Bourdieu, “a representação que os indivíduos e os grupos exibem inevitavelmente por meio de suas práticas e propriedades faz parte integrante de sua realidade social. Uma classe é definida tanto por seu ser-percebido, quanto por seu ser, por seu consumo - que não necessita ser ostentador para ser simbólico - quanto por sua posição nas relações de produção (mesmo que seja verdade que esta posição comanda aquele consumo)” (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.). As lutas de representações são, assim, entendidas como uma construção do mundo social por meio dos processos de adesão ou rechaço que produzem. Liga-se estreitamente à incorporação da estrutura social pelos indivíduos em forma de representações mentais com o exercício da dominação, qualquer que seja ele, graças à violência simbólica.

Os estudos das representações, tanto exibidas como incorporadas, constitui uma ferramenta poderosa contra o ceticismo relativista porque desvela os mecanismos que pretendem impor como se fossem naturais às percepções da realidade, às relações entre grupos sociais ou entre sexos. A reflexão sobre a definição das identidades de gêneros sexuais constitui uma ilustração exemplar da exigência que habita hoje em toda a prática histórica: compreender, ao mesmo tempo, como as representações constroem as relações de dominação e como estas relações são elas mesmas dependentes de recursos desiguais e de conflitos de interesses entre aqueles cujo poder legitimam e aqueles cuja submissão asseguram - ou deveriam assegurar.

Então, a noção de representação tal como a entendo e tal como foi utilizada pela sociologia francesa ou pelo New Historicism da revista Representations, não nos afasta da realidade, nem do social. Ela ajuda os historiadores a desfazer-se de sua “muito pobre ideia do real”, como escreveu Foucault, enfatizando a força das representações, sejam estas interiorizadas ou objetivadas. Elas possuem uma energia própria que deve convencer o mundo, a sociedade, de que o passado é mesmo o que elas dizem que é. A tarefa da análise crítica é mostrar sua aceitação ou rechaço e entender o mecanismo da violência simbólica, assim como foi definida por Bourdieu: “A violência simbólica é essa coerção que se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (portanto, à dominação), quando dispõe apenas, para pensá-lo e para pensar a si mesmo, ou melhor, para pensar sua relação com ele, de instrumentos de conhecimento partilhados entre si e que fazem surgir essa relação como natural, pelo fato de serem, na verdade, a forma incorporada da estrutura da relação de dominação” (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas, Trad. Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., p. 206-207). A dominação simbólica supõe a incorporação e a “naturalização” das representações e classificações socialmente construídas.

Questão 02 - O suporte periódico e as implicações para as representações que ele porta

VSG: Falando em forma, a questão do suporte também é central em suas reflexões, uma vez que o conceito de representação é um daqueles conceitos operacionais que coloca em perspectiva o texto e tudo o que implica sua materialidade e os grupos que agem por trás dos interesses naquela informação: o que apoiam, para quem querem que seja voltado e como querem que aquela informação circule.

A adoção do códice como suporte privilegiado para o livro, a ponto de ambos se tornarem sinônimos (com a consequente negligência de uma história do livro no formato “rolo”), sempre foi tema importante no seu trabalho. No caso do impresso periódico, o estudo do conteúdo também sempre foi privilegiado em detrimento do suporte, situação essa que tem mudado consideravelmente há algum tempo. Afinal, o próprio termo “imprensa” acaba sendo identificado automaticamente a periódicos - sobretudo jornais - muito mais que a livros. Não só a periodicidade distingue livro, revista e jornal, mas o formato é absolutamente relevante nesse caso.

O senhor crê que a comunicação tem especificidades em cada tipo de suporte? A revolução morfológica que o senhor defende ter ocorrido com o advento da imprensa de Gutenberg, para além da revolução técnica, também pode ser tido eco no impresso periódico? Isso se dá ainda no século XVI ou só podemos pensar em imprenso periódico, no sentido que o consideramos hoje, a partir do século XIX? A produção de sentido também é, nesse caso específico, definida pela materialidade do tipo de suporte?

RC: Sua pergunta levanta a questão das relações entre gêneros de discurso, as modalidades de sua comunicação e as formas de sua inscrição material. Duas afirmações de D.F. McKenzie podem nos ajudar a compreendê-las. A primeira é a “suposição básica de que formas afetam o sentido” (MCKENZIE, 2018MCKENZIE, D.F. Bibliografia e sociologia dos textos. Trad. Fernanda Veríssimo. São Paulo: Edusp, 2018., p. 32). Para ele, as “formas” são todos os elementos não-verbais da notação tipográfica: o formato, os caracteres tipográficos, a disposição do texto sobre a página. Todos têm uma “função expressiva” que participa da transmissão e da produção do sentido. A segunda afirmação é “o fato de que novos leitores evidentemente fazem novos textos. E que seus novos significados são uma função de suas novas formas” (MCKENZIE, 2018MCKENZIE, D.F. Bibliografia e sociologia dos textos. Trad. Fernanda Veríssimo. São Paulo: Edusp, 2018., p. 35). Assim, designa-se com acuidade a relação que existe entre a variação das formas nas quais os textos são lidos, a definição do seu público, e o sentido que os leitores atribuem aos textos dos quais se apropriam.

Ao juntar as duas dimensões da representação moderna, transitiva e reflexiva, Louis Marin também deslocava a atenção para o estudo dos dispositivos e dos mecanismos graças aos quais toda representação se apresenta como representando algo. Esse deslocamento conduziu de uma semiótica estrutural, fundada em uma estrita análise da produção linguística do sentido, à insistência sobre a exploração privilegiada dos modos e modalidades, meios e procedimentos da apresentação da representação. Daí vem a atenção que devemos prestar a estes procedimentos que asseguram o funcionamento reflexivo da representação: nos quadros são o lugar da exposição, a moldura, o ornamento; para os textos é o conjunto dos dispositivos materiais que constitui o dispositivo da enunciação.

Podemos aplicar as propostas metodológicas de McKenzie na relação entre os periódicos e os livros. Na perspectiva histórica, deve-se enfatizar a emancipação do periódico em relação à forma do livro no século XIX. Antes, ambos frequentemente tinham o mesmo formato e muitos periódicos, inclusive, têm uma paginação contínua para todo o ano, como se sua publicação fosse pensada com vistas à sua encadernação final. Na perspectiva cognitiva, deve-se entender a lógica própria da leitura do jornal moderno em relação a seu grande formato. A página convida a uma lógica da viagem entre os vários textos que reúne. Implica uma construção intertextual do sentido de cada texto em relação com os outros que compartilham o mesmo espaço tipográfico. Organiza o encontro com o inesperado, assim como ocorre nos espaços de uma livraria ou entre as estantes de uma biblioteca. Permite a percepção da intenção editorial do jornal tornada visível graças à coexistência dos vários artigos que compõem uma página ou um número da publicação.

Questão 03 - Fontes de impressos periódicos e sua relevância para o estudo da história

VSG: Uma história do livro e da leitura marcada pelo estudo dos âmbitos da produção, difusão e recepção, que desloca o eixo de análise do autor/obra para todo o circuito que envolve a produção (do suporte ao texto), sua circulação e leitura, pode ser inspiradora para uma história dos impressos periódicos também, não? Não se trata de uma análise restrita ao âmbito da comunicação, em que as questões inerentes à especificidade da narrativa jornalística, em seus vários gêneros e expressões, já foram bem exploradas, mas de se perguntar a pertinência dessas fontes para a História. Muito se fala que os periódicos eram fontes relegadas pela historiografia, porém hoje eles são amplamente usados, e creio que seja preciso refletir sobre a natureza dessas fontes para a história dentro de novas perspectivas.

A importância de se ater também à especificidade dessa poética do jornal foi alvo de trabalhos fundamentais - uma poética que é histórica e que não deve ser analisada de maneira isolada do contexto e também do suporte. Tais autores, afinal, também se inspiraram em Lucien Febvre e seu conceito de “civilisation du livre” para cunhar o termo que norteia o projeto coletivo e que deu origem ao livro La civilisation du jornal (KALIFA; REGNIER; THERENTY; VAILLANT, 2011KALIFA, Dominique; REGNIER, Philippe; THERENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain [coord.]. La civilisation du journal. Histoire culturelle et littéraire de la presse française au xix e siècle. Paris: Nouveau Monde éditions, 2011.). Como o senhor vê, então, o largo uso do conceito de representação por esses autores e a pertinência do uso dos periódicos como fontes para a história?

RC: Devo precisar em primeiro lugar que não sou um especialista da história da imprensa. Escrevi apenas textos sobre as gazetas do Antigo Regime: uma síntese sobre a publicação dos primeiros periódicos franceses e um ensaio sobre uma comédia de Ben Jonson, The Staple of News (CHARTIER, 1989bCHARTIER, Roger. Pamphlets et gazettes. In: CHARTIER, Roger; MARTIN, Henri-Jean (orgs.), Histoire de l’édition française, vol. 1, Le livre conquérant. Du Moyen Age au milieu du XVII e siècle. Paris: Fayard/ Promodis, 1989b. p. 501-526. ; CHARTIER, 2006CHARTIER, Roger. Notícias escritas a mão, gazetas impressas. Cymbal e Butter. In: CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar. Cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). Trad. Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p.129-162.). Os periódicos me parecem, em primeiro lugar, fontes para entender as várias modalidades da circulação das obras. No século XIX muitos romances foram publicados como folhetins nos jornais ou revistas. Foi o caso das obras de Machado de Assis. Foi, do mesmo modo, o caso dos Maigret de Simenon no século XX. Mas a publicação das obras nos periódicos não se limitou aos romances. No México, na Argentina e no Brasil muitas obras históricas ou filosóficas foram publicadas assim. Essa forma de edição na imprensa implicava a imposição de uma temporalidade própria da leitura governada pelo ritmo periódico da publicação. Permitia também as transformações do texto quando fosse publicado como livro. Os exemplos de Balzac, Sue ou Machado mostram as possibilidades dadas aos autores pelas várias formas de recomposição ou reescrita de seus romances tornados livros. Paradoxalmente, talvez, os periódicos são, assim, uma fonte importante para a história dos livros.

São também uma fonte essencial para se compreender as mutações da relação entre texto e imagem no século XIX. Por razões técnicas, com a introdução da fotografia nos jornais, e por razões teóricas, com a tensão que opõe a concepção que considerava discurso e imagem como equivalentes e a perspectiva que mobiliza as imagens como suplemento do discurso. A história das caricaturas nos jornais do século XIX mostra claramente esse duplo uso das imagens: como ilustrando o que diz o texto por meio de sua legenda ou título, bem como sugerindo um sentido propriamente iconográfico que suplementa, interpreta, possivelmente contradiz o texto que “ilustra”. A “leitura” das imagens publicadas nos periódicos supõe um horizonte de expectativas capaz de decifrar as alusões, referências ou citações, ou seja, um patrimônio iconográfico suficientemente compartilhado.

De acordo com Louis Marin e enfatizando a dimensão reflexiva da representação, pode-se dizer que os periódicos são fundamentalmente uma fonte de si mesmos. A associação de múltiplos conteúdos textuais ou iconográficos no mesmo jornal ou na mesma revista exprime um projeto editorial, uma intenção intelectual ou cultural, uma posição ideológica ou política. Sua publicação pode ser considerada como uma “ação” ou como um “speech act” que deve produzir efeitos no mundo social, no espaço político ou no campo literário e estético. A consequência é a necessidade do estudo relacional da imprensa porque o sentido de cada periódico depende de suas relações com seus competidores: oposição, emulação, imitação, crítica, ironia, etc. Parece-me relevante a noção de “campo jornalístico” para desenhar, em um momento e um tempo particular, este espaço de coexistência e concorrência.

Questão 4 - Estereótipo versus representação

VSG: Um dos conceitos que usamos com recorrência na história das mídias é o de “estereótipo”. Como o senhor o relaciona com o conceito de representação?

RC: Os estereótipos são modalidades fundamentais da dominação simbólica. Tratam de fazer perceber como naturais e trans-históricas identidades construídas e impostas de fora. Operam a redução da diversidade a uma essência considerada como imóvel, eterna. E são instrumentos poderosos de dominação social porque não somente impõem uma evidência recebida como tal pelos dominantes, mas também obrigam os dominados a incorporar a representação imposta por eles mesmos. E é essa imposição que constitui para Bourdieu o mecanismo fundamental da violência simbólica, “quando os esquemas empregados [pelos dominados] no intuito de se perceber e de se apreciar, ou para perceber e apreciar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro, etc.), constituem o produto da incorporação das classificações assim naturalizadas” (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas, Trad. Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., p. 207). O processo de “naturalização” desempenha um papel fundamental na construção dos estereótipos raciais, sociais ou nacionais. Obrigam a pensar as diferenças sócio-históricas como diferenças antropológicas. A oposição entre “highbrow” e “lowbrow”, que opõe a cultura das elites e a cultura “popular” nos Estados Unidos do século XIX, é uma ilustração e expressão desse mecanismo (LEVINE, 1988LEVINE, Lawrence. Highbrow / Lowbrow: The Emergence of Cultural Hierarchy in America. Harvard University Press: Cambridge, 1988. ).

Encontramos aqui os conflitos ideológicos e políticos de nosso presente os quais se caracterizam pela recusa por parte das vítimas das identidades impostas pelas imagens impressas, pelos monumentos localizados no espaço público, pelos anúncios da publicidade. As aspirações que os conservadores denunciam como “cancel culture” são, de fato, expressões do rechaço aos estereótipos herdados da colonização, dos preconceitos raciais ou da dominação masculina. Em algumas situações foi e é a apropriação do estereótipo que pode se tornar como reinvindicação de uma identidade. O léxico da estigmatização se inverte. Aconteceu com “négritude” ou “queer”, por exemplo.

Questão 5 - Periódico, verdade, opinião e história

VSG: Puxando um pouco a reflexão para o contexto atual: hoje, no reino das opiniões, quando distinguir uma notícia verdadeira de uma falsa se torna difícil à medida que a figura do mediador intelectual/especialista se torna mais rara (caso das mídias sociais, ambiente ainda mais polifônico do que o periódico), como a história das representações pode nos ajudar a refletir sobre a natureza da comunicação midiática?

RC: A relação entre representação e verdade se encontra transformada pela comunicação midiática do mundo digital. A separação entre os suportes (as telas) e os textos que transmitem apaga os critérios que construíam a ordem dos discursos a partir da sua identidade editorial e material e que indicavam que tipo de conhecimento se podia esperar de tal ou tal publicação. No mundo digital é o mesmo suporte que recebe e comunica todos os discursos apropriados nas mesmas formas. Esbate-se, assim, a diferença imediatamente visível entre um livro acadêmico e uma revista de banca de jornal.

Uma segunda transformação remete às mutações das práticas de leitura. A leitura digital é uma leitura acelerada, impaciente, fragmentada e que fragmenta. Semelhante leitura é plasmada pela comunicação dos textos breves das redes sociais e se afasta da leitura lenta, paciente, consciente da totalidade das obras lidas que era (e todavia é) a leitura dos livros. Todas as pesquisas dedicadas às práticas de leitura não devem esquecer essa diferença fundamental escondida detrás da mesma palavra: ler.

Um efeito dessa transformação é o deslocamento do critério que atribui veracidade aos discursos. No mundo impresso, esse critério opera controlando os enunciados, informações ou afirmações, graças a comparações, verificações, avaliações. No mundo digital das redes sociais, a verdade do enunciado está assegurada pela sua presença no veículo da enunciação. A confiança na palavra de todos os que compartilham a mesma rede de comunicação apaga o questionamento crítico do que está sendo lido. Assim se estabelece a possibilidade da proliferação das teorias mais absurdas, das falsificações da história, das manipulações dos afetos, dos preconceitos, das frustrações e dos medos. Foi o caso de uma campanha presidencial em 2018 que vinculou o uso massivo de WhatsApp com a compra dos dados pessoais vendidos pelas grande empresas do “digital business” e o envio de milhões de notícias falsas e difamatórias. Sabemos o resultado.

Devemos afrontar esse perigo que ameaça tanto o conhecimento quanto a democracia. A tarefa supõe a defesa da noção de representação, às vezes estigmatizada como relativista e idealista. Acho que não existe história possível se não se articulam as representações das práticas e as práticas da representação. Ou seja, qualquer fonte documental que for mobilizada para qualquer tipo de história nunca terá uma relação imediata e transparente com as práticas que designa. Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para entender as situações ou práticas que são objeto da representação.

Esta posição metodológica não significa de modo algum a redução, e menos ainda a anulação das práticas nos discursos e nas representações que as descrevem, as prescrevem, as proíbem ou as organizam. Tampouco implica uma renúncia à inscrição social dos esquemas de percepção e juízo que são as matrizes das maneiras de dizer e fazer.

Além dessas necessidades metodológicas, encontramos os dois desafios mais essenciais de nosso presente: por um lado, a preservação do mundo da imprensa nas suas formas herdadas porque são as matrizes da leitura crítica dos discursos; por outro lado, o ensino de uma relação distanciada, incrédula frente as mensagens transmitidas pelos aparatos da comunicação digital e acreditadas por uma certeza cega de sua verdade.

VSG: Agradeço mais uma vez sua disponibilidade em conceder esta entrevista, muito obrigada pela sua gentileza e generosidade em partilhar com a gente seus conhecimentos!

RC: Todo o prazer foi meu, muito obrigado pelo convite!

REFERÊNCIAS

  • BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas, Trad. Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
  • BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.
  • BOURDIEU, Pierre. O senso prático Trad. de Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
  • CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações Trad. de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.
  • CHARTIER, Roger. Le monde comme representation. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations 44ᵉ année, n. 6, 1989.
  • CHARTIER, Roger. Pamphlets et gazettes. In: CHARTIER, Roger; MARTIN, Henri-Jean (orgs.), Histoire de l’édition française, vol. 1, Le livre conquérant. Du Moyen Age au milieu du XVII e siècle Paris: Fayard/ Promodis, 1989b. p. 501-526.
  • CHARTIER, Roger. Notícias escritas a mão, gazetas impressas. Cymbal e Butter. In: CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar. Cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII) Trad. Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p.129-162.
  • GOODY, Jack. A domesticação da mente selvagem Trad. de Vera Joscelyne. Petrópolis: Editora Vozes, 2012 [1977].
  • KALIFA, Dominique; REGNIER, Philippe; THERENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain [coord.]. La civilisation du journal. Histoire culturelle et littéraire de la presse française au xix e siècle Paris: Nouveau Monde éditions, 2011.
  • KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre a teologia política medieval São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • LEVINE, Lawrence. Highbrow / Lowbrow: The Emergence of Cultural Hierarchy in America Harvard University Press: Cambridge, 1988.
  • MARIN, Louis. Le portrait du roi Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.
  • MARIN, Louis. Opacité de la peinture. Essais sur la représentation au Quattrocento Paris: Usher, 1989.
  • MCKENZIE, D.F. Bibliografia e sociologia dos textos Trad. Fernanda Veríssimo. São Paulo: Edusp, 2018.
  • ORY, Pascal. L'histoire culturelle de la France contemporaine: question et questionnement. Vingtième Siècle, revue d'histoire, Dossier: L'Allemagne, le nazisme et les juifs, n.16, p. 67-82, octobre-décembre 1987.

NOTAS

  • 1
    Esta entrevista foi realizada no dia 22 de março de 2021 e está disponível no canal do youtube do MidiaCult UNESP - Grupo de Estudos de História da Cultura Midiática: https://youtu.be/Y3B_DgEOK1g .
  • 2
    Bourdieu se refere ao livro de Jack Goody (2012 [1977]GOODY, Jack. A domesticação da mente selvagem. Trad. de Vera Joscelyne. Petrópolis: Editora Vozes, 2012 [1977].).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2019
  • Aceito
    22 Jun 2020
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