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Índios, milicianos e colonos no sul do Brasil: lideranças indígenas e o aldeamento de atalaia na ocupação dos territórios Kaingang nos campos de Guarapuava (1810-1825)

Indians, militians and settlers in southern Brazil: indigenous chiefdoms and the atalaia village in the occupation of the Kaingang people territories in the fields of Guarapuava (1810-1825)

RESUMO

O artigo propõe analisar a história da Real Expedição de Conquista dos Campos de Guarapuava, em conjunção com a presença indígena na região da Fronteira Sul de São Paulo provincial e a história do aldeamento de Atalaia e de suas lideranças indígenas. Através das fontes históricas e da bibliografia pertinente ao tema, buscamos entender as tramas interculturais estabelecidas no projeto joanino de ocupação, exploração e dominação da população nativa dos chamados campos de Guarapuava entre os anos de 1810 e 1825, território de importância para a exploração econômica e de consolidação de fronteiras com o império espanhol. Tratamos, aqui, tal processo de povoamento como uma invasão aos territórios tradicionais ocupados desde a pré-história pelos povos de língua Jê, em especial as diferentes parcelas Kaingang que, em face da nova configuração histórica que se apresentava, procuraram, por estratégias de ações políticas ou de conflito evidenciadas no protagonismo das lideranças indígenas, defender-se dos interesses de milicianos e colonos, e que permitiram um espaço territorial de sobrevivência dessas populações.

Palavras-chave:
história indígena; Brasil Império; Campos de Guarapuava; povos Kaingang

ABSTRACT

The article proposes to analyze the history of the Royal Expedition of Conquest of Campos de Guarapuava, in conjunction with the indigenous presence in the southern border region of the province of São Paulo and the history of the village of Atalaia and its indigenous chiefs. Through historical sources and bibliography pertinent to the theme, we seek to understand the intercultural plots established in the Johannine projects of occupation, exploration and domination of the native population of the so-called fields of Guarapuava between the years 1810 and 1825, a territory of importance for economic exploration and consolidation of borders with the Spanish empire. Here, we treat this process of settlement as an invasion of traditional territories occupied since prehistory by the Jê-speaking peoples, in particular the different Kaingang people parcels that, in view of the new historical configuration that presented themselves, searched for action strategies policies or conflict, evidenced in the protagonism of indigenous chiefs, defending themselves from the interests of non-indigenous militiamen and settlers, and which allowed a territorial space for the survival of these populations.

Keywords:
indigenous history; Brazil Empire; Guarapuava Fields; Kaingang people

Introdução

No final da primeira década dos oitocentos chega ao Brasil em fuga das hostes napoleônicas a família real portuguesa, capitaneada por dom João VI. Entre as múltiplas mudanças que ocorreriam com a fixação temporária do governo português no território brasileiro, uma das principais seria a conquista dos Campos de Guarapuava. O interesse de conquistar a região devia-se principalmente ao fato de que nesses locais se estendia o Caminho do Sul, uma rota de comércio que ligava São Paulo às Missões na província de São Pedro do Rio Grande do Sul. A região das Missões ou missioneiras do Rio Grande do Sul tornou-se território privilegiado para a produção pecuária de gado e de outros animais após o fim das missões jesuítico-guaranis na área, devido aos acordos das coroas espanhola e portuguesa, que culminaram na chamada Guerra Guaranítica (1753-1756).1 1 Para uma síntese da Guerra Guaranítica e o destino da região, ver GOLIN (2008). Uma visão mais ampla se pode ver em QUARLERI (2009) e GARCIA (2009). Como resultado, os animais que eram criados nas reduções foram em parte abandonados e, consequentemente, transmudaram-se em um estado semisselvagem. Um século depois, os campos missioneiros estavam apinhados desses animais, vivendo quase sem predadores, levantando o desejo de exploração pecuária por parte dos administradores brasileiros. Toda essa região fazia parte da Fronteira Sul de São Paulo. Por Fronteira Sul, denomina-se aqui toda a franja do território ao sul da Vila de São Paulo de Piratininga, que foi sendo paulatinamente disputada por espanhóis e portugueses no decorrer dos séculos de colonização. O território que chamado de parte primeira das terras meridionais das províncias no Brasil e, por isso, compunha - até o surgimento da província do Paraná em 1853, a Quinta Comarca de São Paulo -, a fronteira sul da província, criada a partir de 1812, também conhecida como comarca de Curitiba.2 2 A Província de São Paulo, na primeira metade do século XIX, estava dividida em seis comarcas. Sendo a 1ª de Bananal, 2ª de São José, 3ª de Jundiaí, 4ª de Itu, 5ª de Curitiba e 6ª de Cananéia. Sobre isso ver MÜLLER (1978, p. 35-89). Até 1812, a sede da ouvidoria das terras ao sul da capitania de São Paulo estava instalada em Paranaguá. A partir dessa data, o núcleo administrativo foi transferido para Curitiba, determinando a quinta comarca de São Paulo, também conhecida como comarca de Curitiba. Ver Leite (2006 p. 14-15). Esses locais eram habitados pelos povos originários que hoje se autodenominam Kaingang, basicamente a partir da margem ocidental, na direção Oeste, no sentido do interior do caminho de tropas de Missões, que unia os campos de criação de gado dos pampas da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, passando pelos campos de Lages até a vila de Sorocaba, a principal feira de gado da província de São Paulo (SOUZA, 2015SOUZA, Almir Antonio de. Armas, pólvora e chumbo. A expansão luso-brasileira e os índios do Planalto Meridional. Curitiba; Guarapuava, Editora da UFPR; Editora UNICENTRO, 2015. , p. 20-21).

Do ponto de vista da ocupação humana, Zarth (2015ZARTH, Paulo A. Fronteira Sul: História e historiografia. In ZARTH, Paulo A., RADIN, José Carlos; VALENTINI, Delmir José (orgs.). História da Fronteira Sul. Porto Alegre: Letra e Vida, 2015, p. 9-24., p. 15) elege como principal característica da região os componentes socioculturais díspares que coexistem e que, por isso, no mais das vezes, indispõem-se, gerando conflitos simbólicos ou “de fato”.

A história da Fronteira Sul de São Paulo pode ser contada pela análise e compreensão da ocupação e invasão das terras indígenas, junto ao chamado Caminho das Tropas, ou Caminho do Sul, a estrada que conduzia os rebanhos de animais e de produtos, como couro e charque, dos campos de criação do Brasil Meridional até a feira de Sorocaba, onde eram vendidos ou trocados por mercadorias, tais como tecidos, roupas, aguardente, ferramentas, pólvora, chumbo e armas (BACELLAR, 1994BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Família e sociedade numa economia de abastecimento interno (Sorocaba nos séculos XVIII e XIX). 1994. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.).

Em torno desses caminhos e estradas estendiam-se fazendas, estâncias e novos lugares e era imprescindível ao governo imperial expandir seus domínios e fronteiras já que do outro lado os espanhóis faziam o mesmo. Além disso, havia o tal “perigo vermelho”, o perigo indígena que atacava esses novos lugares e tinha que ser combatido onde ofereciam resistência. Constituíam os chamados índios bravos, que diferiam dos ditos mansos ou domesticados, que passavam a incorporar o processo de conquista luso-brasileira (CUNHA, 2002CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 136).

Os Campos de Guarapuava representavam o oeste a ser conquistado a partir desses caminhos, e ao sul deles estavam os Campos de Palmas e a possibilidade de se abrir novos caminhos que diminuíssem a distância e facilitassem o percurso para as regiões missioneiras. A população indígena que habitava esses lugares e exercia o domínio sobre os campos, viu seus territórios invadidos pelas tropas joaninas e restaram a esses povos os aldeamentos como uma opção de sobrevivência do grupo étnico. O aldeamento de Atalaia surge nesse contexto, e é nele que despontam historicamente lideranças indígenas como Antônio José Pahi e Luís Tigre Gacom.

O primeiro ponto do estudo centra-se na análise de como se deu a expedição de conquista dos campos e consequentemente a instalação do fortim e aldeamento de Atalaia. O segundo e terceiro tentam dar conta de uma história da liderança indígena de Antônio José Pahi antes e depois do início do aldeamento, e da fundação da freguesia de Guarapuava, dentro das circunstâncias e relações sociais que se estabeleceram entre os milicianos, colonos e índios. O último ponto analisa a trajetória do último líder dentro do aldeamento, Luís Tigre Gacom, cuja morte culmina em um incêndio que destrói o aldeamento. Ao final, abre-se a uma reflexão sobre as condições concretas da ocupação dos Campos de Guarapuava e sobre as lideranças dos povos Kaingang durante esse período de conflitos, mas também de estratégias políticas e diplomáticas em que se envolveram, durante o período de história do aldeamento e fortim de Atalaia.

A Junta da Real Expedição e Conquista dos Campos de Guarapuava e o aldeamento de Atalaia

A partir da chegada de Dom João VI ao Brasil em 1808, organiza-se na Capitania de São Paulo uma Junta formada pelo Capitão-General da Capitania, mais quatro membros deputados para planejar e executar a conquista dos campos de Guarapuava, entre eles, o Deputado João Vicente da Fonseca, escrivão da mesma Junta, que passaria a chamar-se “Junta da Real Expedição e Conquista dos Campos de Guarapuava”. João Vicente da Fonseca colocou em livro todas as ordens da referida Junta3 3 Tal livro encontrado no Arquivo Nacional, após a leitura paleográfica - no que foi possível, já que deve ter sido molhado em algum momento de sua trajetória nos arquivos e algumas páginas estavam praticamente ilegíveis -, demonstrou-se revelador de um período um pouco ausente de fontes dentro da história do Brasil, o período em que se desenvolveu a Real Expedição de Conquista dos Campos de Guarapuava. . O livro em questão está identificado como “Secretaria do Governo da Província de São Paulo no Fundo destinado às Ordens Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava” e encontra-se no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.4 4 João Vicente da Fonseca. Deputado escrivão da Junta. “Neste livro se achão rubricado por mim aos deputados da Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, com seus nomes servir para nelle se registrar todos os oficcios e ordens da mesma dita junta dirigida ao tenente coronel comandante do almoxarife, tesoureiro, intendentes e mais possíveis empregados na dita real expedição, outrossim neste mesmo livro vão registrados os provimentos passados as pessoas empregadas na dita expedição, e conquista.” Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (AN).

As ordens da Junta foram direcionadas para várias pessoas, principalmente para o Tenente Coronel Comandante do Almoxarife, o Intendente e mais possíveis empregados na Real Expedição, como seus comandantes e oficiais. Entre os membros da junta, estava o seu Presidente e Governador da Capitania, Antônio José de Franca e Horta, o Inspetor dos Corpos Milicianos da Província, Tenente-General José de Arouche Toledo Randon, o escrivão e Deputado, João Vicente da Fonseca, e os Tenentes Coronéis e Deputados, João da Costa Ferreira e José Vaz de Carvalho.

O conjunto estrutural para invadir e ocupar os campos de Guarapuava requeria uma logística de razoáveis proporções, era preciso montar um Trem Real de Guerra com cerca de trezentas pessoas, entre militares, povoadores e empregados, além de uma das primeiras providências que foi o armazenamento de grãos que pudesse abastecer a expedição durante os primeiros meses, permitindo, passo a passo, ir ocupando e tomando conta dos campos tão desejados para a criação de gado (ARQUIVO NACIONAL, 1809ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 3).

O fato que se sucedeu à ordem real foi a reunião, meses depois, em Curitiba, de tropas que foram deslocadas para a região dos campos de Guarapuava. O ano de 1809 foi o momento da chegada de uma enorme expedição com mais de 300 pessoas entre soldados, suas famílias, alguns operários e escravos. O objetivo da expedição era ocupar esses campos abrindo espaço para as fazendas de criação (MOTA, 1994MOTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos índios Kaingang - A História épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 1994. , p.125). Porém, para que essas tropas pudessem estar reunidas em Curitiba, era necessário providenciarem-se seus salários, o que foi feito pela Junta em determinação ao Tenente Coronel Manoel Gonçalves Guimarães:

[...] desde já agradecer-lhes refferido suprimento; igualmente lhe veja, que sendo de á necessidade o pregar-se a tropa que vão em auxilio da expedição o seo competente soldo, que para Ella entrar, se perciza pelo menos, que V.M haja de remeter e mandar assistir em Curitiba com seis centos mil reis a cada mês até dezembro do corrente anno, tempo em que não só setem calculado certas despezas, que se deverão fazer endiario sustento dos empregados, como tão bem se conheça do verdadeiro rendimento do tributo [...]Do seo conhecido zello, prestimo, espera esta junta huma prompta resposta, relativa ao segundo suprimento, para á vista della fazer partir á expedição, dár as ultimas ordens ao seo exppressivo commandante em chefe. São Paulo 12 de Maio de 1809 (ARQUIVO NACIONAL, 1809ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p.3).

Seiscentos mil réis por mês até dezembro era o que o Tesoureiro e Almoxarife teria à disposição para pagar os soldos da tropa. O missionário e 1º Capelão, que acompanhou a expedição, conforme o plano de Dom João, foi o padre Francisco das Chagas Lima, que sobre a conquista de Guarapuava afirmou: “a expedição mandada no ano de 1809 para Guarapuava entrou nessa conquista onerada com um trem de guerra assaz exorbitante, e tropa de duzentos soldados sem contar o estado maior” (LIMA, 1943LIMA, Francisco das Chagas. Estado Actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821. In: Arthur Martins Franco. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Museu Paranaense , 1943., p. 259).

O Padre Francisco das Chagas Lima era o Capelão militar,5 5 Uma análise sobre os escritos e ações do Padre Chagas Lima pode ser acessada na dissertação de mestrado de Silvana Cassab Jeha (2005), em especial no Capítulo II. comum nessas expedições, como missionário, exercia suas funções na firme ideia de catequizar os índios, trazê-los à civilização e, consequentemente, ao trabalho na expedição e nas estâncias. O religioso possuía, além das atribuições atinentes e próprias do ofício, a tarefa de realizar o registro dos nascimentos, dos batismos, dos casamentos e dos óbitos ocorridos no novo povoamento.

Pela escolha da Junta, do Conde de Linhares e do Príncipe Regente, o comando da Expedição recairia sobre a figura do Sargento Mor, que comandava o Regimento de Cavalaria miliciana de Curitiba - Diogo Pinto de Azevedo Portugal - que recebeu o título de Tenente Coronel.

No ano seguinte, em janeiro de 1810, as tropas mais avançadas chegaram aos Campos de Guarapuava, os primeiros a entrar foram os da força regular, comandados por um Tenente das tropas de 1ª linha, como escreveu o Conde de Linhares em correspondência ao Inspetor dos Corpos de Milícia da Capitania de São Paulo, o Tenente-General José de Arouche Toledo Randon:

Recebi o officio que V.M me dirigio em 5 do corrente, que não deixarei de levar a presença de S.A.R o príncipe Regente Nosso Senhor, e muito agradeço a bella noticia que me da de principio da estrada de campos da Guarapuava, e da belleza dos mesmos, o que espero justifique a grande Idea de S.A.R de reiniciar a tentativa principiada no reinado do seu grande avo e Senhor Rey D. José o 1º de gloriosa memória.

Muito estimo a ação do tenente da legião, comandante da tropa de Linha, que primeiro entrou no campo, o que só senti foi que o general o mandasse retirar, pois S.A.R a manda novamente restituir ao mesmo serviço, onde pode ser-lhe muito útil.

Igualmente desejarei que o seu governador o mande aos mesmos campos, acompanhado de algum engenheiro, e do diretor de agricultura, que foi nomeado para os campos afim que se reconheção os meios mais promptos, e seguros de adiantar a civilisação dos Indios, de promover a povoação, de fazer estabelecer fazendas de creação, de que resulte o conhecer-se logo a utilidade, que se poderá tirar dos mesmos campos em breve tempo. 26 de Fevereiro de 1810-Conde de Linhares. (ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO, 1810ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Livros da Secretaria do Estado com as ordens do Conde de Linhares dos capitães generais e conselheiros das províncias do Brasil. Capitania de São Paulo 1808 - 1813 - N. 1., p. 130).

O Conde de Linhares felicitou o Inspetor dos Corpos de Milícia da Capitania de São Paulo e Deputado membro da Junta da Expedição e Conquista dos Campos de Guarapuava, José de Arouche Toledo Rendon, pelo início da abertura da estrada para os campos de Guarapuava e a chegada ao local do Tenente comandante de uma tropa de 1ª linha, o primeiro que entrou no campo. Dessa forma, como escreveu o Conde de Linhares e Ministro da Guerra ficava reiniciado por Dom João a tentativa principiada no reinado do seu “grande avô”, Rei Dom José o 1º de gloriosa memória, da conquista dos campos de Guarapuava. Mas, dessa vez, não se tratava apenas de um contingente pequeno, tratava-se do ‘Trem Real de Guerra’ e as estratégias eram diferenciadas, a partir de um acampamento que ficava no pouso chamado São Felipe lançou-se outro, onde deveria estacionar o novo quartel, um lugar chamado ‘Campo do Capim’.

Os práticos (mateiros), que já tinham dado a notícia de uma nova picada, ou trilha de gentio, acharam um caminho mais transitável que tinha saída em um lugar de bons pastos, chamado de Campo do Capim. Era necessário, de acordo com a Junta, transferir o acampamento do trem real de guerra para essa nova entrada aos campos de Guarapuava (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 12).

Entre os meses de fevereiro até o início de julho, existiu um silêncio nas comunicações sobre a expedição, de modo que o Conde de Linhares solicitou informações ao Governador de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta:

Havendo já passado alguns mezes, sem que V.S de conta do estado em que se acha a Expedição dos Campos de Guarapuava, que S.M.R o Principe Regente N.S tanto tem mandar recomendar a V.S, e de que V.Sª deveria ter dado conta ao menos todos os mezes; He S.A.R servido que V.Sª informe logo dos motivos deste silencio, e dê conta de tudo o que se tem obrado, e do estado em que se acha a mesma Expedição, não só referindo o que setem avançado no terreno que se vai explorando, mas fazendo conhecer as sementeiras e rossas, que se tem preparado para o sustento dos Exploradores, o que tem rendido os fundos destinados para Expedição, e se os mesmos são sufficientes; e igualmente o que setem encontrado de Indios, e o que contar da sua índole, e estado de Civilisação, espero que V.Sª senão descuide em cumprir esta reaes ordens, que tenho a honra de lhe dirirgir.

Rio de Janeiro em 6 de Julho de 1810 (ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO, 1810ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Livros da Secretaria do Estado com as ordens do Conde de Linhares dos capitães generais e conselheiros das províncias do Brasil. Capitania de São Paulo 1808 - 1813 - N. 1., p. 144)

Esse silêncio nas comunicações, provavelmente, estava vinculado à mudança do acampamento, que, a essa época, chamava-se abarracamento. No mês de junho de 1810, o trem real de guerra já estava abarracado no campo do Capim, tendo sido dado ao novo abarracamento o nome de Linhares, em homenagem ao Ministro da Guerra, Dom Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares. No início de junho, Diogo Pinto de Azevedo Portugal e mais uma comitiva adentraram os campos de Guarapuava; entre eles, estava o missionário Francisco das Chagas Lima, que, assim, escreveu em suas memórias sobre aquele momento:

Reconhecido e aberto o caminho, marchou a Expedição a 10 de junho de 1810, e sem opposição do gentio chegou aos campos no dia 17 do dito mês, ás 10 horas da manhã. Levou oito dias o reconhecimento, e se fez até a distância de 10 leguas, e não se tendo encontrado habitante, passou-se a fundar, da parte d’alem do rio Coutinho, a povoação da Atalaia, nome que proveio de se ter erigido a primeira obra desta qualidade, com a elevação de 40 palmos, sobre quatro esteios, de onde a sentinella podia descobrir grande extensão do campo (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 45).

A história tradicional e oficialista dos vencedores e suas façanhas heróicas procura mostrar o excerto anterior como um momento mítico de origem de Guarapuava, e Diogo Pinto de Azevedo Portugal como o protagonista, além de Francisco das Chagas Lima como primeiro coadjuvante, de tal forma que assim se iniciava uma era. É evidente que para Francisco das Chagas Lima em suas memórias este era o seu momento de descoberta dos campos, mas essa entrada nos campos era apenas mais uma de muitas que já tinham acontecido. Em relação à fundação do povoado em Atalaia, tal não vai acontecer de imediato, e nem depois, já que Atalaia após 1820 com a instalação da freguesia de Guarapuava a uma légua e meia, seria apenas fortim e aldeamento e, ao que tudo indica, antes de 17 de junho de 1810 havia no local (dado a entrada das tropas de 1ª linha, já em janeiro de 1810) algum tipo de abarracamento.6 6 Embora fuja do escopo deste artigo, vale mencionar a existência, nas imediações do Atalaia, de um lugar chamado Sepultura, que também foi objeto de disputas entre índios e colonizadores tido, inclusive, pelos primeiros como “terra ancestral”. A historicização deste local, pouco citado na bibliografia, está presente no trabalho de Cristiano Durat (2011).

O Missionário Chagas também indica que passaram a denominar o monte, onde se ergueria o fortim e o posto de sentinela, com a palavra ‘Atalaia’, que significa ponto elevado de onde se vigia. Em relação a Azevedo Portugal, durante os próximos anos, o velho comandante realizaria talvez sua maior guerra, o desejo de instalar a povoação em Linhares (um dos abarracamentos da expedição onde provavelmente estavam as terras e a família de Diogo Pinto), vontade que só cessaria em 1820, quando morreu aos 70 anos de idade, ainda lutando para juntar gente e montar o povoado de Linhares, enquanto que a freguesia de Nossa Senhora de Belém nos Campos de Guarapuava havia sido fundada (não em prática de instalação do povoado que só aconteceu a partir de janeiro de 1820, mas na lavratura de um termo escrito de fundação) em nove de dezembro de 1819 pelo Padre Francisco das Chagas Lima e o Tenente comandante de Atalaia, Antônio da Rocha Loures. Uma história tradicionalista instituiu o mito fundador de Guarapuava no dia 17 de junho de 1810, erigindo-se, em praça pública, uma estátua de Diogo Pinto de Azevedo Portugal montado sobre um cavalo, como símbolo maior daquele momento. Mesmo que se leve em consideração a importância do personagem Diogo Pinto e ainda que seja significativo o seu ato de entrada nos campos de Guarapuava e de início do povoamento português nos campos, os alicerces da atual cidade de Guarapuava foram colocados pela iniciativa do Padre Francisco das Chagas Lima e do então Tenente Antônio da Rocha Loures, contrariando, inclusive, a vontade de Diogo Pinto de Azevedo Portugal e seu desejo de instalar a povoação em outro lugar - Linhares.

Em junho de 1810, a primeira tropa de milicianos que abarracou no lugar chamado Atalaia, trata-se da tropa do Tenente Antônio da Rocha Loures. Iniciaram-se duas histórias, a da família Loures e a do fortim Atalaia, é nele também que estaria o primeiro aldeamento indígena dos campos de Guarapuava. As terras desse aldeamento em 1818 seriam doadas como sesmarias para os indígenas por Dom João.7 7 D. Mateus de Abreu Pereira. Carta de Sesmaria pela qual V. Exa. S. A. R. Concede os Terrenos Compreendidos entre os Rios Coutinho e Lageado Grande nos Campos de Guarapuava. (cópia). Guarapuava: ACMG, coleção SC, 1818. (LIMA, 1842, p. 49). Esta Carta de Sesmaria se encontra no Arquivo Municipal de Guarapuava - UNICENTRO no site http://orbita.starmedia.com/marcos_ae/guarapuava/documentos.html A manutenção dessas terras doadas por sesmaria se torna motivo de luta e de resistência dos povos originários e dependia, a exemplo de outras regiões do Império, das autoridades locais, de seus distintos arranjos e também das circunstâncias e das relações de poder locais, pelas quais "os índios podiam ter mais ou menos poder de influência, ou contar ou não com aliados" (MOREIRA; ALMEIDA, 2012MOREIRA, Vânia Maria Losada; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Moradores e Câmaras Municipais: Etnicidade e conflitos agrários no Rio de Janeiro e no Espírito Santo (séculos XVIII e XIX). Mundo Agrário, v. 13, n. 25, p. 10-38, 2012., p. 33).

No dia 25 de agosto de 1810, o fortim foi visitado pelos indígenas; chegaram de forma amigável, permanecendo três dias junto ao destacamento comandado por Antônio da Rocha Loures. No dia 29 de agosto de 1810, os índios retornariam, mas, dessa vez, como inimigos atacando o fortim, conforme declarou em parte à Junta da Expedição o Tenente Loures:

[...] da parte de haver concluído o novo caminho e chegado aos campos de Guarapuava, mostrando o mappa de diversas exploraçoes que se tenha feito abarracando-se na paragem chamada Atalaya bem como da primeira amigavel vizita que fizeram os Bugres ao Destacamento abarracado por espaço de tres dias mostrando todas as demostraçoens de pas e amizade como os camaradas aly destacados, e aonde tornaram em dia vinte e nove mas já como inimigos atacando o mesmo destacamento, e lançando fogo dos Ranchos e frechando dous homens, como se ve da parte que deu o tenente commandante Antonio da Rocha Loures [...] exige outra povoaçao, para diante havendo fortificar-se de tal sorte que os bugres não possão chegar com a facilidade com que deram o primeiro assalto, tendo prontas as pessas da artilharia em todos os estabelecimentos, e acçoens para o que conservará o numero de duzentos soldados prontos, entre milicianos e pedrestes da ordenança da villas de Curitiba, e as mais a quem nesta decazião se espedem as competentes ordens (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 25).

Como se vê no excerto, o ataque foi repelido pelas forças do destacamento, resultando apenas duas baixas, dois soldados feridos por flecha, embora alguns barracões que serviam de alojamento e armazém fossem incendiados. De acordo com a Junta, o êxito na defesa só havia sido alcançado pelas medidas de segurança que já tomara o Tenente Antônio da Rocha Loures, como a construção de paliçadas e fossos (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 25). No mês de setembro, a Junta da Expedição, diante dos fatos, não hesitou em determinar ao comandante Diogo Pinto de Azevedo Portugal a imediata mudança de todo o Trem Real com os 200 soldados e mais peças de artilharia para o lugar chamado Atalaia, onde deveriam abarracar e levantar o povoado, e se caso os índios voltassem em paz bastaria “agradalos debaixo de toda cautela, e vigilancia sendo a povoação estabelecida bem fortificada e arranjada se não animarão a atacalla como fizerão ao pequeno abarracamento da Atalaya” (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 25). Dom João determinou ao Inspetor dos Corpos de Milícia e Deputado da Junta, o Tenente General José de Arouche Toledo Rendon, que fosse ele mesmo até os campos de Guarapuava e tomasse providências para que se adiantasse o povoado e a civilização dos indígenas (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 25). Em novembro de 1810, Diogo Pinto de Azevedo Portugal e o trem de guerra já estavam instalados em Atalaia. Ficava configurada uma linha de destacamentos que começava na Serra da Esperança, no antigo pouso de São Felipe, depois em Linhares e, por fim, no fortim Atalaia, de tal modo que impossibilitava uma maior resposta em termos de ataque por parte dos povos originários. O comandante comunicava à Junta sobre a segurança em que se achavam os abarracamentos de Guarapuava, Esperança e Linhares, destarte a morte de dois soldados, entre eles o irmão do Tenente Antonio da Rocha Loures do fortim Atalaia, o soldado José da Rocha Loures, morto pelos indígenas ao transportar gado e mantimentos de Linhares para Atalaia, como se vê na comunicação da junta com o comandante Diogo Pinto:

[...] 11,15, e 17 de Novembro do corrente anno, sobre o seu conteudo tem a responder-lhe, que fica sertã da segurança em que se acha os abarracamentos do campo de Guarapuava, da Esperança e Linhares, e da pronta resposta que fica a dar aos officios ultimamente recebidos desta Junta do infelis acontecimento da morte do cabo miliciano Justo de Souza Bueno julgando se sem culpa alguma o soldado miliciano Daniel da Silva que concorreu para Ella, primo, e intimo amigo do falecido pela escrupulosas indagaçoes a que procedendo mesmo tenente coronel commandante, e vos publica de tao involuntario susseço da morte do soldado Jose da Rocha Loures que foi assassinado por tres bugres, que em selada esperarão a condução do gado e mantimentos que se levava para o abarracamento, avisto pela pouca cautela do mesmo camarada, se adiantar dos mais expondo-se como de facto se expos a hum semelhante acontecimento. São Paulo, 20 de dezembro 1810 (ARQUIVO NACIONAL, 1810ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 33).

De acordo com a Junta, a morte de José da Rocha Loures foi causada por sua imprudência ao afastar-se da comitiva e percorrer sozinho o caminho. Isso indica, de fato, o risco de vida que se corria na expedição. A formação do povoado era principalmente composta pelos milicianos e suas famílias, como o Tenente Antônio da Rocha Loures, que ali estava com mulher e muitos filhos.

Em agosto de 1811, a povoação ainda estava apenas riscada no lugar onde deveria ser implantada, com apenas a madeira cortada para as edificações e alguns moedores de grãos e roça de mantimentos.

Em março de 1812, os trabalhos de cooptação de indígenas continuavam, a ‘Real Expedição’ comprou três índios para servirem de intérpretes ao preço de 12.800 réis cada um:

O Coronel Antonio Francisco de Aguiar Administrador e recebedor do tributo emposto para as despezas da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, entregue do dinheiro do dito tributo a Florentino de Moraes Ribeiro a quantia de trinta e oito mil e quatrocentos reis importancia de tres índios que o mesmo vendeo para a Real Expedição. (ARQUIVO NACIONAL, 1812ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 58).

A compra dos índios indicava um comércio que existia desse tipo de mão de obra. A aquisição desses índios para servir como intérpretes tornou desnecessária a presença na expedição dos chamados línguas, aqueles que falavam alguns dialetos indígenas.8 8 Os línguas, quando aparecem na documentação colonial, denotam duas “classes” de indígenas: eram todos aqueles índios que viviam sob o jugo português, morando em aldeamentos e prestando diversos serviços na malha do trabalho colonial. Porém, também eram chamados assim aqueles indígenas que agiam como intérpretes entre o seu idioma nativo e o português, tornando-se peça-chave nas negociações entre índios e brancos junto a expedições com fins diversos, como, por exemplo, naquelas com objetivo de fundar aldeamentos pelo interior do Brasil (DIAS, 2013). É este segundo conceito que aparece na documentação que se apresenta neste artigo. O ano de 1812 foi caracterizado como de intensificação na preocupação com a sobrevivência do núcleo de Guarapuava.

No ano de 1812, nos meses de junho e julho, se apresentariam voluntariamente (em ato de rendição) no destacamento em Atalaia mais de 300 índios, tendo início o aldeamento e a história de Antônio José Pahi.

Antônio José Pahi, um líder indígena no Aldeamento

Pahi chegou ao forte Atalaia com 25 anos de idade (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 36), acompanhado de mulher, dois filhos e dois sobrinhos. Alguns dias depois, chegou o irmão de Pahi, o índio Gruton, com mais alguns índios (FRANCO, 1943FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Museu Paranaense, 1943., p. 218). No ano de 1812, conforme tabela do numero de Indios que se renderam a expedição, seu progresso e alterações, confeccionada pelo missionário Chagas em dezembro de 1827, dava conta que nesse ano renderam-se à expedição 326 índios (FRANCO, 1943FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Museu Paranaense, 1943., p.62). Essas rendições em massa, chamadas de descimentos no período colonial, estão inseridas dentro de um contexto dos usos e costumes da terra, no caso, costumes estabelecidos na arte da guerra, mas particularmente na guerra mediada pelo militar ocidental com as populações indígenas (PERRONE-MOISÉS, 2006PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios Livres e Índios Escravos. Os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 115-132., p. 118).

Nestes casos, os líderes indígenas que convenciam os seus a viver no aldeamento próximo às povoações eram nomeados pelo comandante da expedição de ocupação com cargos militares, como os de Capitão, Tenente e Alferes que, longe de serem fictícios, obedeciam a regras e, na maioria das vezes, recebiam fardamentos e salários, mesmo que, normalmente, os vencimentos dos militares nos destacamentos, principalmente os de fronteira, fossem pagos com meses de atraso, isso quando eram pagos.9 9 Na documentação pesquisada, os comandantes das povoações em muitas vezes queixavam-se à Junta da Fazenda, pedindo recursos para o sustento da povoação e principalmente reclamando do atraso dos salários que, às vezes e quando eram pagos, chegavam a quase dois anos. Mas, no caso de Pahi, não era um descimento, tratava-se, na verdade, de apresentação voluntária que parecia um ato de rendição.

O nome Pahi foi como a expedição entendeu o nome do líder indígena, mas a verdade é que Pahi é a forma que os índios Kaingang chamavam qualquer liderança grupal, conforme já afirmaram alguns pesquisadores (ver, por exemplo: AMOROSO, 1998AMOROSO, Marta Rosa. Catequese e Evasão: Etnografia do aldeamento Indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutorado, São Paulo: USP, 1998. ; FERNANDES, 2003FERNANDES, Ricardo Cid. Política e Parentesco entre os Kaingang: uma análise etnológica. Tese de Doutorado, São Paulo: USP , 2003. ). O uso do termo também parece denotar trocas linguísticas entre os diferentes povos indígenas dos campos de Guarapuava, já que o vocábulo em questão também era utilizado pelos Kaiowá para designar os chefes (AMOROSO, op. cit.; TAKATUZI, 2005TAKATUZI, Tatiana. Águas batismais e santos óleos: uma trajetória histórica do Aldeamento do Atalaia. (Tese de doutorado). Campinas: Unicamp, 2005.).

Contudo, o fato é que havia um grande número de índios em Atalaia e a Junta da Expedição emitiu novas ordens ao comandante Diogo Pinto de Azevedo Portugal:

Tendo prezentemente a Junta da Real Expedição de Guarapuava os diversos officios que o tenente coronel commandante Diogo Pinto de Azevedo Portugal lhe dirigio nas dattas de 2, 14, e 30 de Julho, 9 e 25 de Agosto proximo passado em os quaes participa o estado em que se acha a mesma Real Expedição, e pede algumas providencias para o seo prosseguimento principalmente sobre o destino e arranjo que deve aos 337 Bugres que pela sua ultima participação ficarão alojados na povoação de Atalaia alem dos mais que vierem vindo com os seos, ou demostraçoens de amizade, e cada ganhara hu dos objectos desta Real Expedição […] A povoação sem que esta se arrisque com as forças dos seus empregados por alguma inopinada traição, ou mal entendida amizade e todos os mais, que igualmente por seo gosto quizerem sahir guiados por pessoas capazes, e bem tratados em pequenos lotes, ou como melhor convier forão conduzidos para os campos geraes de Curitiba para ali serem aldeados, e estabelecidos de baixo da inspecção, e vistas do doutor Ouvidor daquella comarca João de Medeiros Gomes [...] O Comandante observara que o bom tratamento que deve dar a estes selvagens não deverá jamais embaraçar o desejo de alguns destas famílias que voluntariamente queira tornar para as suas habitaçoens ainda mesmo depois de vestidos, e de alguma forma familiarizados. Assim como poderá conseder a algumas pessoas capazes aquelles índios que quizerem de sua livre vontade acompanhalos para os vestir e sivilizar, e da mesma forma tendo occazião oportuna fará conduzir para esta cidade ao índio Pahy e mais alguns de sua família se elle quizer para ser bem tratado, e vestido athe regressar se assim o exigir. (ARQUIVO NACIONAL, 1812ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 61).

Esse excerto é revelador, deixando clara, entre outras coisas, a distribuição dos índios para famílias de Curitiba e Campos Gerais. Em relação ao número de índios apresentados, já há uma divergência no que se refere ao número que foi relatado pelo padre Chagas, 326 para 337, mas o que importa é o destino desses indígenas, as providências que vão ser tomadas no caminho da tal missão de “catequese e civilização”. No caso citado, muitos foram deixados sob os cuidados de João de Medeiros Gomes, Ouvidor da Comarca de Curitiba, em pequenos lotes para serem entregues para “pessoas capazes”. O Ouvidor da Comarca de Curitiba recebeu determinação da Junta “afim de arranjar aquelles bugres, que forem enviados pelo comandante da Expedição, e fazer a remeça dos homens da ordenança que faltão para o estado completo da povoação de Atalaia.” (ARQUIVO NACIONAL, 1812ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 63). Com relação ao índio Pahi, ele e sua família foram conduzidos para a cidade de São Paulo, para ali serem vestidos e educados para o mundo dito civilizado luso-brasileiro.

Tendo chegado a esta Cidade o dito Indio Pahy, e seos semelhantes conduzidos pelo Tenente Coronel Manoel Antonio Rangel, e tenente Manoel Soares do Valle, forao vistos por esta junta, e por ordem da mesma novamente vestidos, brindados, e tratados com a melhor hospitalidade possível, para serem outra vez reconduzidos a povoação de Atalaia onde fação ver aos mais, que ali se acharem, e vierem vendo dos alojamentos o bom agazalho que tiverão, e a certeza da nossa amizade; para o que fez esta Junta entregar ao tenente Manoel Soares do Valle as ordens para este retorno [...] quizerem sahir para fora com alguem que voluntariamente queira acompanhar alguma pessoa capaz; hua vez persuadidos pelo Pahy, e os outros do bom agazalho, que lhe demos, e do bem com que os tratamos, serão remettidos ao Doutor ouvidor da Commarca de Curitiba para este os distribuir pelas cazas boas do Districto daquella Villa, e da de Castro, afim de que por este modo mais facilmente se acostumem aos nossos usos, e se sivilizem, sem despeza da real expedição, esperando-se, que estes não queirão voltar aos seos lares por Esso que estão mais distantes; para o que o commandante em Chefe se entendera com o referido Ministro, visto que nesta occazião reprezenta ser este hum meio de se poderem aproveitar em attenção as pequenas forças da Povoação e seu estado actual. (ARQUIVO NACIONAL, 1813ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 66).

O Tenente e prático da expedição Manoel Soares do Valle, juntamente com o almoxarife, Tenente Coronel Manoel Antonio Rangel, conduziu, em uma comitiva, Pahi e sua família até a cidade de São Paulo. O objetivo dessa missão era estratégico, mostrar ao líder dos índios de Guarapuava e seus familiares o bom agasalho que tiveram e a amizade dos civilizados, assim todos foram bem tratados. Ficaram tempo suficiente para aprender o português, principalmente Pahi, pelo menos o necessário para servir de intérprete com outros índios, bem como na tentativa de atrair outros grupos indígenas para renderem-se e deixarem-se aldear (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 55). No retorno, o Tenente Manoel Soares do Valle deveria levar as novas ordens ao comando da Expedição e ao Ouvidor da comarca de Curitiba, para que, através da intervenção de Pahi, os índios fossem persuadidos a acompanhar alguma pessoa capaz e convencidos de serem bem tratados, de modo que seriam remetidos a Curitiba para que fossem distribuídos aos moradores de Castro e Campos Gerais. Desse modo, a dita catequese e civilização dos índios aconteceria “sem despeza da real expedição”. A partir do aldeamento e distribuição do povo originário comandado por Pahi, já em 1813, o ‘Trem Real de Guerra’ passou a ser desmontado ou pelo menos o número de homens para a empreitada já podia ser diminuído (ARQUIVO NACIONAL, 1813ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 66).

Se de um lado, estrategicamente, tratava-se de dividir o inimigo, mandando os índios para longe de seus lares, inclusive pelas pequenas forças que ora se encontravam na povoação de Atalaia, de outro lado, estava um líder Kaingang e sua estratégia diante de muitas dificuldades, que se configura como diplomática e política: conhecer o modus vivendis do invasor, aprender seu idioma e manter-se como líder é uma saída, e talvez a única para aquele momento, que permitia a sobrevivência futura de seu grupo étnico e a possibilidade de manter alguma terra mesmo que em um aldeamento. Nos dizeres de Maria Regina Celestino de Almeida em relação às tomadas de decisões das lideranças indígenas: “Se suas ações são orientadas pela dinâmica de suas organizações socioculturais, elas se realizam em situações históricas específicas que os levam a agir de uma ou de outra forma, conforme as possibilidades que se lhes apresentam” (2013ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história: avanços e desafios das abordagens interdisciplinares - a contribuição de John Monteiro. História Social, n.25, p.19-42, 2º sem. 2013., p.31).

Nos anos entre 1812 e 1814, segundo o Padre Chagas, os principais grupos que rondavam o povoado da Expedição no fortim Atalaia eram formados majoritariamente pelos grupos que ele denominou de Camés e Votorons. Pahi era Camé, o principal líder, e atuava como intérprete, já que aprendera o português nos meses de convivência na capital, em São Paulo. Do lado Votoron existia sob a liderança de Hyppolito Condoi, homem já ancião, batizado a 13 de agosto de 1812, após sobreviver a uma enfermidade e que, nos anos seguintes, retirar-se-ia com todo o seu grupo para uma campina depois do rio Iguaçu, a 32 léguas do fortim Atalaia, agregando grupos vizinhos, formando um corpo de 200 pessoas (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p.48). Hippolito Condoi, ao contrário de Pahi, não colaborava com o missionário na composição de número maior de indígenas ao processo de vivência na reclusão do aldeamento. Condoi mantinha certa resistência à catequização e à mudança de seu modo de vida, ao mesmo tempo em que se deixava ficar.

A vida continuava no pequeno povoado de Atalaia e, em abril de 1819, o ‘Capitão dos índios’ Antonio José Pahi, em umas de suas incursões nas matas, em busca de capturar principalmente crianças e mulheres indígenas para vender aos povoadores, acaba encontrando a morte com mais quatro de seus guerreiros. Assim narrou o Padre Chagas sobre esse acontecimento:

O Capitão Antonio José Pahi, levado deste exemplo, junto com dez índios Camés tão bem marchou para o Oriente, na intenção de dar caça á outros Índios bárbaros, e vender os menores, que colher pudesse da boa fé, com que histo fez, não resta a menor dúvida; porem foi mal sucedido; porque chegando a hum alojamento de Índios, que se chamão Tactaias, sito nas margens do rio Ytatu, 26 léguas em distância da Atalaya, tanto não fes preza algua, quanto movendo-se por esta cauza, entre huns e outros, grande contenda, morrerão nella quatro índios Camés, que acompanhavão o capitão Antonio José Pahi, o qual no mesmo conflito recebendo hum golpe mortal, quando já vinha de retirada para a Atalaya, depos de dous dias de marcha falesceo em caminho. 10 10 Cf. Relatório do padre Chagas: Estado actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821. In: FRANCO, (1943, p. 246).

O Missionário Chagas deixa claro que Pahi caçava entre indígenas rivais e o principal objetivo dessas caçadas era trazer para o povoado crianças e mulheres indígenas para vendê-las como cativas. Ainda sobre a morte de Pahi, temos o registro no livro de óbitos de pessoas livres da Diocese de Guarapuava:

Aos vinte e hum dias do mês de abril de mil e oito centos e dezenove, nesta aldeia de Atalaia, onde eu me achava, chegaram seis índios adultos com bagagem não pequena, de mulheres e meninos e disseram uniformemente, que por efeito de um golpe mortal recebido em combate, que tiveram no interior do sertão com certos índios bravos denominados Tactaiás, tinha falecido, haveriam oito dias, o Capitão Antonio José Pahy, índio nacional deste continente de Guarapuava, na idade de trinta anos, pouco mais ou menos, e Neófito assistente nesta aldeia, onde era casado com Rita de Oliveira Facxó e Pá. De cuja notícia não podendo eu duvidar, passei a rezar pela alma do dito falecido Antonio José Pahy os sufrágios de costume; quanto ao corpo, dizem, que o sepultaram no mesmo sertão onde morreu, por não permitir a muita distância que fosse conduzido a esta igreja. Do que, para constar, faço este assento. O vigário Francisco das Chagas Lima (ARQUIVO DA DIOCESE DE NOSSA SENHORA DE BELÉM DE GUARAPUAVA, 1819ARQUIVO DA DIOCESE NOSSA SENHORA DE BELÉM DE GUARAPUAVA. Francisco das Chagas Lima, Livro de Assentos de Óbitos de Pessoas Livres, Freguesia de Nossa Senhora de Belém nos Campos de Guarapuava em 25 de Agosto de 1825. I, p. 13., p. 16) (os grifos são nossos).

O Capelão da expedição, reverendo Chagas, evidencia o retorno de um grupo de guerreiros com bagagem não pequena, de mulheres e meninos. Os documentos, os cronistas e alguns estudos históricos indicam, de fato, que existia um comércio com a venda e a compra de cativos indígenas e, como tal, nos campos e matas do povoado de Atalaia. Mesmo que Pahi e alguns de seus guerreiros recebessem alguma quantia em soldo pelos serviços militares prestados, quase sempre não era paga, ou era realizada com meses ou anos de atraso.11 11 Sobre os Índios e sua utilização como militares, ver MOREIRA (2010). Dessa forma, uma garantia de possuir alguma quantia monetária para as incertezas do futuro era o comércio de cativos, mesmo que para isso tivessem de realizar perigosas e arriscadas operações de incursão e caça aos índios rivais.

Os Povos Originários e a fundação de Guarapuava

Ao final do ano de 1819, a Junta da Real Expedição, muito provavelmente de acordo com as pretensões de Diogo Pinto de Azevedo Portugal, determinou o fim do comando interino exercido pelo Tenente Antônio da Rocha Loures, em Atalaia, e a remoção do trem real de guerra para Linhares, reintegrando de forma plena o comando ao Tenente Coronel Diogo, que poderia continuar residindo em Linhares, primeiro ponto da real expedição, mantendo os destacamentos de Atalaia e da Esperança e seus empregados. Além disso, o aspecto mais importante é que o Tenente Antônio da Rocha Loures passaria a ser o Almoxarife e Tesoureiro da Expedição, um empregado direto sob as ordens de Diogo Pinto. O salário de Antônio da Rocha Loures continuaria o mesmo para assumir as funções de Almoxarife na nova povoação em Linhares, 200 mil réis por ano (ARQUIVO NACIONAL, 1819ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19. , p. 93).

O Tenente comandante do fortim, que também funcionava como presídio, sabia que desistir da povoação de Atalaia e assumir uma função de subalterno em um novo povoado era um risco enorme de, mais tarde, ser demitido; todo um futuro estaria em jogo, além do que sua mulher e sete filhos já moravam e tinham suas vidas em Atalaia. Diante dessa situação, no mesmo mês de dezembro de 1819, no dia nove, o Reverendo Francisco das Chagas Lima e o Tenente Antônio da Rocha Loures decidiram dar execução ao Decreto régio de 19 de agosto de 1818 (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 48),12 12 Talvez aqui, nas memórias do padre, exista uma confusão com datas, já que o decreto do Rei que permitia a criação da vila é de 19 de agosto de 1818 e, nas memórias, vai aparecer 2 de novembro de 1818. Ver Decreto de 19 de agosto de 1818. “Erige no logar de Atalaya de Guarapuava uma Igreja Parochial com a invocação de Nossa senhora de Belém.” Cartas de lei, alvarás, decretos e cartas régias de 1818. Coleção das leis do império. Rio de janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 80. que autorizava a criação da Freguesia, para isso lavram um termo: o Auto de Fundação da Freguesia Nossa Senhora de Belém de Guarapuava. (INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO, 1819INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO, Auto de Fundação da Freguesia Nossa Senhora de Belém de Guarapuava (cópia). Rio de Janeiro: IHGB, lata 05, doc. 07. Na Freguesia Nossa senhora de Belém em 09 de dezembro de 1819., p. 7). Porém, somente a partir de 1820, efetivamente foi realizada a transferência do povoado (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p.49), que se estabeleceu distante uma légua e meia do aldeamento, do lugar conhecido como Atalaia (FRANCO, 1943FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Museu Paranaense, 1943., p. 193).13 13 O auto de fundação encontra-se publicado em Taunay (1888, p. 251).

A separação entre aldeamento e povoado foi acordada entre o comandante militar e o chefe espiritual. O capelão da expedição foi o principal defensor dessa transferência da freguesia para outro local, longe do aldeamento, segundo sua interpretação de que o contato entre soldados, povoadores e os indígenas contaminava o processo de catequese e civilização (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 57). Essa afirmação foi reforçada por uma epidemia que grassou os indígenas do lugar por volta de 1811, provavelmente por conta dos contatos com os brancos. Durat (2011DURAT, Cristiano Augusto. Terra de aldeamentos: Trajetória de Atalaia e Sepultura nos campos de Guarapuava. Revista Semina, vol. 9, n. 1, 2011, p. 1-30., p. 5), inclusive, coloca a enfermidade dos índios como motivo desencadeador fundamental para a tal separação de indígenas (aldeamento) e brancos colonizadores (povoado).

Por outro lado, a decisão foi tomada também pelo comandante da expedição Antônio da Rocha Loures e é possível que este visse como o aldeamento poderia ainda continuar como um fortim, ou pelo menos uma ponta de segurança entre os ataques indígenas e a freguesia, pois é certo que os degredados14 14 Nomeavam-se degredados todos aqueles que cometiam crimes perante a Justiça e que cumpriam a pena migrando para aldeamentos e povoações distantes de seus lugares de origem, sendo que as penas de degredo variavam entre poucos anos à punição perpétua. Segundo Pontarolo (2005), os degredados estavam presentes desde as tentativas iniciais de colonização dos campos de Guarapuava ainda no século XVIII, estendendo-se após a independência do Brasil. Pontarolo ainda destaca um dos objetivos do degredo: contribuir para o povoamento de regiões de fronteira pouco povoadas, como no caso exposto dos campos de Guarapuava. Ferreira Junior (2011), por seu turno, foca no degredo para Guarapuava como um elemento no interior de uma “cultura jurídica” portuguesa, que remonta séculos antes dos oitocentos. , segundo a Carta Régia, que deveriam ser mandados para os campos de Guarapuava, acabavam cumprindo o degredo junto ao aldeamento e, como recebiam armamento e munição (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1824ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Seção Manuscritos. Ofícios Diversos de Guarapuava (1824-1853). Caixa 230. Pasta 1. Ordem 1025. APESP, p. 1), juntamente com os guerreiros índios, poderiam suportar a ofensiva de outros grupos indígenas (LEITE, 2006LEITE, Rosângela Ferreira. Nos limites da colonização: ocupação territorial, organização econômica e populações livres pobres (Guarapuava, 1808-1878). 2006. 387f. Tese de Doutorado em História Econômica, São Paulo: USP , 2006., p. 39).

Diogo Pinto de Azevedo Portugal continuava com as ordens que recebera do governo da Província para instalar a expedição em Linhares e estabelecer o povoado. Em seu retorno da cidade de São Paulo, com sua tropa, foram encontrados no verão de 1820, pelo naturalista Auguste de Saint-Hilaire que estava viajando pelos Campos Gerais, ao chegar à vila de Castro, no verão de 1820, encontrou-a quase abandonada, em razão da fuga dos habitantes ao correr o boato de que o Coronel Diogo Pinto estava realizando mais um recrutamento, dessa vez para povoar Linhares (SAINT-HILAIRE, 1978SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e província de Santa Catarina. São Paulo: Editora da USP, 1978., p.50), mas, aos 70 anos, o velho militar não alcançaria um novo inverno, viria a falecer em três de maio do mesmo ano. Com a morte de Diogo Pinto de Azevedo Portugal, o Trem Real de Guerra, que já havia sido desmontado bem antes, deixou de existir totalmente, passando a ser uma lembrança e entrando para a história da expansão luso-brasileira no planalto meridional, que dava seus primeiros passos e que perduraria durante todo o século XIX. A partir desse ano, de 1820 em diante, na freguesia de Nossa Senhora de Belém nos Campos de Guarapuava, com o Tenente Antônio da Rocha Loures e o Padre Francisco das Chagas Lima, assentados no lugar definitivo da futura cidade de Guarapuava, ao sul de Atalaia, à distância de uma légua e meia, já acrescida de muitos braços para o trabalho nos campos, nas matas e nas lavouras, com pobres recrutados, tropas de 1ª linha e ordenanças, jornaleiros, escravos, e muitos índios aldeados, as estâncias foram estabelecidas, e o povoado, instalado.

No ano de 1821, no primeiro dia de setembro, em sessão do Conselho Geral da Província determinou-se “novamente ao ouvidor de Itú e o Commandante de Guarapuava que os Indios Caiapóz, e os Bugres, não apanhados com as armas na mão em guerra contra nós não são escravos.” (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1913ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO , DIHCSP. V. 1, 3ª edição, 23 de maio de 1822. São Paulo: Cardozo e Filho, 1913, APESP., p. 46). Essa preocupação em evitar os abusos do cativeiro indígena voltou a fazer parte de nova reunião do Conselho Geral da Província, em novas ordens ao Comandante de Guarapuava:

Em ampliação, e explicação da Sessão antecedente se ordene ao Commandante de Guarapuava não faça novas bandeiras para dentro do recinto de sua jurisdicção, sem ordem expressa deste governo, limitando-se somente a repelir a força com a força em Guerra Justa, e se lhe ordene muito, e muito, que não se dem castigos de surras, e outros infamantes aos indios antes sejão tratados com toda a justiça, e caridade Cristam; não sendo considerados os indios apanhados em guerra justa se não como prisioneiros de guerra, e sómente obrigados por oito annos aos serviços da lavoura, e economia, como se fossem agregados, ou alugados, sem comtudo se lhes pagar salários, e sómente comida, e vestuário, como hé de justiça. (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1913ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO , DIHCSP. V. 1, 3ª edição, 23 de maio de 1822. São Paulo: Cardozo e Filho, 1913, APESP., p. 49).

O governo de São Paulo criou novo direito estabelecendo o cativeiro limitado dos índios por oito anos, contrariando as determinações da carta régia de Dom João de 1º Abril de 1809, que assinalava que os índios aprisionados em guerra justa poderiam ser escravizados por 15 anos. Era uma tentativa de coibir um comércio de cativos indígenas que tinha se instalado ao longo dos séculos, enraizado em uma política de usos e costumes antigos, em que os luso-brasileiros não entendiam outra situação para os indígenas que não fosse a conversão pela sua utilização como mão de obra. O Conselho também alertava para que se evitassem as surras e castigos infames. Mas o que se escondia diante dessa preocupação dos Conselheiros da Província de São Paulo? Abrigado por uma guerra, dita justa pelo governo, estava o cativeiro dos índios em sua fronteira Sul, principalmente em torno dos caminhos para os campos de criação de gado das Missões. Leite (2008LEITE, Rosângela Ferreira. A política Joanina para a ocupação dos sertões (Guarapuava, 1808-1821). Revista de História, n. 159, São Paulo, 2008, p. 167-187.) evidencia que as populações indígenas eram utilizadas como mão de obra de acordo com as mudanças nas lógicas produtivas coloniais, havendo, inclusive, o uso do trabalho indígena na criação de gado.

Luís Tigre Gacom e o fim do aldeamento de Atalaia

Após a morte de Antônio José Pahi, seu substituto não demorou muito para ser gestado. De acordo com as observações do Padre Chagas, a expedição passa a necessitar de um novo Capitão dos índios. Para a tarefa foi eleito Luís Tigre Gacom a “quem se deu o titulo de Capitão, com auctoridade sobre os outros, porém condescendia em vícios bárbaros, e em os quais consumia parte do dia em bailar e embriagar-se” (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 56). O padre já tinha nos informado que os indígenas jamais quiseram abster-se de frequentar com excesso os bailes e festividades, entre bebidas embriagantes, chamadas de koafé, se feitas de milho, e de koaqui, se feitas de pinhão, e essas festas, por vezes, resultavam em lutas corporais. Após as festividades, “metiam-se nos matos, nas malocas, tanto os homens como as mulheres, em que gastavam dias e semanas nas maiores obscenidades” (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 55).

É preciso compreender a visão de um Padre missionário no início do século XIX sobre as festividades dos indígenas, mas por outro lado, seus relatos indicam que apesar de aldeados, caçados e pressionados cada vez mais pelo avanço do influxo colonial, as populações de Camés e Votorons atuam de forma a resistir à imposição de outra religiosidade e mudança do seu modo de vida.

Depois de 1820, a liderança dos aldeados era exercida por Luís Tigre Gacom. O Padre afirmava: “é verdade que os fazia trabalhar na lavoura; porem ia capitanear na guerra com as hordas visinhas, o que tudo transtornava” (SAINT-HILAIRE, 1978SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e província de Santa Catarina. São Paulo: Editora da USP, 1978., p.57). Ainda diria o missionário sobre o novo ‘Capitão dos Índios’:

Este índio chefe, com effeito era um tigre, sacrificando seus súbditos aos estragos da guerra, fazendo-se cabeça, para continuação das hostilidades, que os mesmos aldeados suscitam contra os Dorins. Elle, ocultando os seus intentos, sahia freqüentes vezes com escoltas armadas e com pretexto de caçada, e ia dar assaltos mortíferos aquelles que provocavam o ódio. (SAINT-HILAIRE, 1978SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e província de Santa Catarina. São Paulo: Editora da USP, 1978., p.50)

As guerras e caçadas entre grupos rivais eram uma constante entre as populações indígenas. Os índios capturados na guerra eram - extraído daí o contato com os povoadores - adicionados na vida do grupo vencedor como cativos. A venda deles para os povoadores, seja pelo pagamento em dinheiro ou através de mantimentos como roupas e cobertores para o frio, comida, ferramentas e, por vezes, armas, fez parte da fronteirização desses lugares e eram próprios das atividades e relações sociais que se estabeleceram nas fronteiras (MAYO, 1999MAYO, Carlos. La Frontera: Cotidianidad, vida privada y identidad. In: DEVOTO, Fernando y MADERO, Marta (Orgs.). Historia de la vida privada em la Argentina. País antiguo. De la colônia a 1870. Buenos Aires: Taurus, 1999. , p.96).

Alguns indígenas também recebem salários, os que vão receber soldo são normalmente as lideranças de guerra destes povos. Um desses líderes, chamado de Capitão dos Índios, foi Luís Tigre Gacom. Durante o ano de 1824, Luís Tigre Gacom assumiu uma posição de liderança sobre os demais, mantinha a disciplina, dava as punições, inclusive as prisões, e saía muitas vezes com seu grupo para realizar entradas no mato, em busca dos arranchamentos dos não aldeados, para trazer para as vilas as mulheres e crianças como cativos. Luís Tigre Gacom é indicado como Capitão dos Índios para receber um vencimento (como se vê no pedido do Comandante da Expedição) de 80 réis por dia, o que chega a 2400 réis por mês, o mesmo que um soldado de milícias. As possibilidades de sobrevivência para os aldeados eram também precárias. As lideranças indígenas como a de Pahy e Gacom transitavam dentro de múltiplas condições: aliança, neutralidade, negociação, dissimulação e conflito. Mobilidade de deslocamento territorial, mobilidade para compor novas alianças e organizar conflitos e, longe de estarem apenas colaborando com as tropas de ocupação, operavam a seu modo, suas estratégias e táticas de combate e sobrevivência (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010., p. 45-69). Possibilidades que surgiam diante das próprias fragilidades da organização social desse mundo fronteiriço, e determinavam a necessidade do estabelecimento de alianças e negociações dos colonizadores com as populações indígenas (GARCIA, 2009GARCIA, Elisa Frühauf. As Diversas Formas de Ser Índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.).

Gacom viveu e sobreviveu à guerra e viu outros comandantes de povos originários, como Pahi, também produzirem o sustento e a defesa, pela via do soldo e da venda de cativos.15 15 Em 1819, o comandante Antônio da Rocha Loures em pedido ao Presidente da Província, lhe foi permitido pagar soldos de soldados de milícia aos índios que para ele trabalhavam. Ofício do Capitão Mor Antonio da Rocha Loures, comandante da expedição em Guarapuava, 10 de março de 1832. Seção Manuscritos. Ofícios Diversos de Guarapuava (1824-1853). Caixa 230, pasta 1, documento 15, ordem 1025. APESP. De certa forma, eram também estratégias para a sobrevivência de seu grupo étnico. Por outro lado, os índios caçados também tinham suas estratégias e uma delas era caçar seus caçadores, como fizeram com Luiz Tigre Gacom em 26 de abril de 1825 (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 49-50). O que sucedeu foi inusitado. Não só mataram, em abril de 1825, Luiz Tigre Gacom, mas a vingança agora tinha de ser exemplar: destruíram o aldeamento de Atalaia, queimando os ranchos e vitimando praticamente um terço dos aldeados. Assim nos fala o Padre Chagas em suas memórias: “Os índios Dorins16 16 Os Dorins foram assim chamados porque viviam às margens do rio Dorim, em verdade eram Kaingang da metade Kairu e viviam numa região chamada “Larangeiras”. Estas são denominações genéricas empregadas pelo pároco para diferentes grupos Kaingang. Rosangela Ferreira Leite, ao estudar as memórias do Padre Chagas, revela uma ciranda de índios que compõem o aldeamento que, segundo o Padre, ora eram Cames, ora Votorons, e mais no fim Dorins. Sobre isso, ver LEITE (2006, p. 41). provocados pelos repetidos insultos, crueldades e mortes, que na sua corporação praticavão os aldeados, vierão em Abril de 1825, e hostilmente avançarão a povoação, matando 28 índios e queimarão suas casas” (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 50). Foi durante esse ataque que mataram então Luiz Tigre Gacom. Nas memórias do Padre Chagas, encontramos a narrativa desse massacre onde os ataques teriam sido produzidos por cerca de 60 a 70 Dorins, que de madrugada atearam fogo às casas de palha e mataram a flechadas os que intentaram a fuga ou a resistência. Do ataque resultou a destruição da aldeia e a morte de muitas pessoas, “a saber: 14 homens, 8 mulheres, e 6 crianças: e logo se retirarão para dahi a 26 leguas, para as bandas do rio Piquiry” (LIMA, 1842, p. 50). A destruição e o incêndio podem ainda ser visitados historicamente no assento de óbito dos indígenas mortos no ataque ao Atalaia em 1825:

Aos vinte e seis dias do mês de abril do ano de mil oitocentos e vinte e cinco, em uma invasão dos selvagens deste continente de Guarapuava sobre a aldeia de Atalaia foram mortos os seguintes [...] Todas essas vinte e sete pessoas falecidas foram recomendadas por mim e seus corpos sepultados no cemitério da Aldeia de Atalaia, a exceção da última acima que foi sepultada no cemitério desta Freguesia de Belém [...] foi também morto um índio de nome Conguem o qual por não ser ainda batizado foi sepultado no campo da mesma Aldeia de Atalaia. (ARQUIVO DA DIOCESE NOSSA SENHORA DE BELÉM DE GUARAPUAVA, 1825ARQUIVO DA DIOCESE NOSSA SENHORA DE BELÉM DE GUARAPUAVA. Francisco das Chagas Lima, Livro de Assentos de Óbitos de Pessoas Livres, Freguesia de Nossa Senhora de Belém nos Campos de Guarapuava em 25 de Agosto de 1825. I, p. 13., p. 13).

O aldeamento chamado de Atalaia, que um dia tinha sido Fortim, agora estava em cinzas e a sesmaria que um dia foi concedida por El-Rey para que os índios “fossem conservados trabalhando nas terras que lhes haviam dado de quatro légoas quadradas, pouco mais ou menos, entre os rios Coutinho e Lageado Grande” (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p.49) ficaria ainda como o lugar do aldeamento, embora, não mais na condição anterior, mas apenas como lugar das roças, posto de sentinelas e com alguns ranchos para abrigo. A terra das aldeias era para os índios um bem de valor considerável, cujas funções iam além da subsistência; por ela, houve disputas, conflitos e negociações (ALMEIDA, 2011ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Tierras y Recursos económicos de las aldeas indígenas de Rio de Janeiro: conflictos y negociaciones (siglos XVII-XIX). Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, 2011. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60531
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). Somente depois de 1828, com o afastamento do Padre Chagas, enfermo e cansado de tantas guerras, a população indígena vai permanecendo mais em barracões no povoado (até porque dormir fora do povoado e longe do destacamento significava estar em uma situação perigosa) que no antigo aldeamento, permitindo assim, que as terras ficassem ao alcance da cobiça dos abastados locais. Mesmo diante de um número maior de adversidades próprias de mundos fronteiriços, entretanto, os povos indígenas utilizavam-se do aldeamento e dos povoados como estratégia de manutenção do grupo étnico. Essa estratégia fez parte das muitas lutas e fronteiras em que se empenharam essas populações (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010.).

Considerações finais

Entre os anos de 1810 e 1825 desenrola-se a história da ocupação dos Campos de Guarapuava e de sua expedição de conquista. Funda-se um povoado: Guarapuava. A Real Expedição de Conquista dos Campos de Guarapuava invadiu esse território ancestral do povo originário que atualmente se denomina Kaingang, escravizou o corpo dos conquistados, fundamentando essa escravidão pela doutrina das guerras justas. As terras e corpos foram distribuídos entre moradores das vilas e povoados, principalmente por aqueles que contribuíram com ajuda financeira, material ou mesmo com gente para compor as tropas de ocupação. Um dos resultados dessa ocupação e que permitiu a sobrevivência dos Kaingang foram os aldeamentos e suas políticas. Em que pese a precariedade em que muitos aldeamentos se constituíram, eram neles que alguns grupos indígenas como é o caso dos Kaingang, conseguiram sobreviver e manter suas terras, apesar de todas as ações, atividades e inúmeras expedições e campanhas contra essas populações e de todas as intenções de caça, aprisionamento e cativeiro. A análise sobre as lideranças indígenas aqui abordadas revela a luta pelo reconhecimento de algum espaço territorial de sobrevivência e demarca, em alguns casos, uma atuação política e diplomática das populações indígenas do Planalto Meridional e revela, portanto, seu protagonismo na História do Brasil. É necessário analisar as muitas fontes que circundam a temática e respeitar as dinâmicas locais, o sistema sociopolítico e as estruturas do mundo fronteiriço, com suas muitas formas de disputa. Parte da estratégia era a não desistência, a recusa em abandonar a autonomia e seu modus vivendi. O que se percebe é que em muitos momentos as lideranças impõem suas condições sobre projetos que lhe são desvantajosos (GARCIA, 2009GARCIA, Elisa Frühauf. As Diversas Formas de Ser Índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.), até porque as fragilidades fronteiriças determinavam conflitos e negociações (BOCCARA, 2005BOCCARA, Guillaume. Mundos Nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo. Nuevo Mundo - Mundos Nuevos, Debates, 8 fev. 2005. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/426
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).

Esses acontecimentos é que circundam a trajetória do trem real de guerra da conquista dos Campos de Guarapuava, a fundação do povoado de Guarapuava e o processo de estabelecimento do aldeamento. Em alguns dos muitos momentos de luta de seu povo, fica claro o protagonismo evidente de lideranças como a de Antônio Jose Pahi e Luís Tigre Gacom, que inseridos em novas circunstâncias, mudam seu status de índios ditos bravos, ou de semibravos e independentes, para configurar uma identidade que ia além da inserção na dita civilização, numa complexidade de relações sociais que se estabeleciam em lugares fronteiriços e que constituíam a sociedade desse período (MOREIRA, 2010MOREIRA, Vânia Maria Losada. De Índio a Guarda Nacional: Cidadania e Direitos Indígenas no Império (Vila de Itaguaí, 1822-1836). Topoi, v. 11, n. 21, p. 127-142, jul.-dez. 2010., p.137). Formam parte das histórias de um Brasil também indígena, a revelar outras faces da primeira metade do século XIX na Fronteira Sul da América Portuguesa.

Referências

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  • PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios Livres e Índios Escravos. Os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 115-132.
  • MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio D’Um Quadro Estatístico da Província de São Paulo (1836-37) 3ª Ed. São Paulo: Governo do Estado, 1978.
  • PONTAROLO, Fábio. “Povoar e punir”: o degredo no povoamento dos campos de Guarapuava no século XIX. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005, p. 1-8.
  • QUARLERI, Lia. Rebelión y guerra en las fronteras del Plata Guaranies, jesuitas e imperios coloniales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.
  • SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e província de Santa Catarina São Paulo: Editora da USP, 1978.
  • SOUZA, Almir Antonio de. Armas, pólvora e chumbo A expansão luso-brasileira e os índios do Planalto Meridional. Curitiba; Guarapuava, Editora da UFPR; Editora UNICENTRO, 2015.
  • TAKATUZI, Tatiana. Águas batismais e santos óleos: uma trajetória histórica do Aldeamento do Atalaia. (Tese de doutorado). Campinas: Unicamp, 2005.
  • TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Os Índios Caingangs (Coroados de Guarapuava), monografia acompanhada de um vocabulário do Dialecto de que usam.” Revista do IHGB Suplemento ao Tomo LI da Revista Trimensal. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro & Cia, 1888.
  • ZARTH, Paulo A. Fronteira Sul: História e historiografia. In ZARTH, Paulo A., RADIN, José Carlos; VALENTINI, Delmir José (orgs.). História da Fronteira Sul Porto Alegre: Letra e Vida, 2015, p. 9-24.

Fontes primárias

  • ARQUIVO DA DIOCESE NOSSA SENHORA DE BELÉM DE GUARAPUAVA. Francisco das Chagas Lima, Livro de Assentos de Óbitos de Pessoas Livres, Freguesia de Nossa Senhora de Belém nos Campos de Guarapuava em 25 de Agosto de 1825. I, p. 13.
  • ARQUIVO MUNICIPAL DE GUARAPUAVA-UNICENTRO. D. Mateus de Abreu Pereira. Carta de Sesmaria pela qual V. Exa. S. A. R. Concede os Terrenos Compreendidos entre os Rios Coutinho e Lageado Grande nos Campos de Guarapuava (cópia). Guarapuava: AMG, coleção SC, 1818.
  • ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370 . São Paulo, 1809-19.
  • ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Livros da Secretaria do Estado com as ordens do Conde de Linhares dos capitães generais e conselheiros das províncias do Brasil Capitania de São Paulo 1808 - 1813 - N. 1.
  • ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Seção Manuscritos. Ofícios Diversos de Guarapuava (1824-1853) Caixa 230. Pasta 1. Ordem 1025. APESP
  • ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO , DIHCSP V. 1, 3ª edição, 23 de maio de 1822. São Paulo: Cardozo e Filho, 1913, APESP.
  • COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO Rio de janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
  • INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO, Auto de Fundação da Freguesia Nossa Senhora de Belém de Guarapuava (cópia) Rio de Janeiro: IHGB, lata 05, doc. 07. Na Freguesia Nossa senhora de Belém em 09 de dezembro de 1819.

Notas

  • 1
    Para uma síntese da Guerra Guaranítica e o destino da região, ver GOLIN (2008GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica (1753-1756) - A coligação colonial ibérica contra os índios missioneiros. In AXT, Gunter. As Guerras dos Gaúchos. Porto Alegre: Nova Prova, 2008, p. 44-55.). Uma visão mais ampla se pode ver em QUARLERI (2009QUARLERI, Lia. Rebelión y guerra en las fronteras del Plata. Guaranies, jesuitas e imperios coloniales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.) e GARCIA (2009GARCIA, Elisa Frühauf. As Diversas Formas de Ser Índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.).
  • 2
    A Província de São Paulo, na primeira metade do século XIX, estava dividida em seis comarcas. Sendo a 1ª de Bananal, 2ª de São José, 3ª de Jundiaí, 4ª de Itu, 5ª de Curitiba e 6ª de Cananéia. Sobre isso ver MÜLLER (1978MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio D’Um Quadro Estatístico da Província de São Paulo (1836-37). 3ª Ed. São Paulo: Governo do Estado, 1978. , p. 35-89). Até 1812, a sede da ouvidoria das terras ao sul da capitania de São Paulo estava instalada em Paranaguá. A partir dessa data, o núcleo administrativo foi transferido para Curitiba, determinando a quinta comarca de São Paulo, também conhecida como comarca de Curitiba. Ver Leite (2006 LEITE, Rosângela Ferreira. Nos limites da colonização: ocupação territorial, organização econômica e populações livres pobres (Guarapuava, 1808-1878). 2006. 387f. Tese de Doutorado em História Econômica, São Paulo: USP , 2006.p. 14-15).
  • 3
    Tal livro encontrado no Arquivo Nacional, após a leitura paleográfica - no que foi possível, já que deve ter sido molhado em algum momento de sua trajetória nos arquivos e algumas páginas estavam praticamente ilegíveis -, demonstrou-se revelador de um período um pouco ausente de fontes dentro da história do Brasil, o período em que se desenvolveu a Real Expedição de Conquista dos Campos de Guarapuava.
  • 4
    João Vicente da Fonseca. Deputado escrivão da Junta. “Neste livro se achão rubricado por mim aos deputados da Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, com seus nomes servir para nelle se registrar todos os oficcios e ordens da mesma dita junta dirigida ao tenente coronel comandante do almoxarife, tesoureiro, intendentes e mais possíveis empregados na dita real expedição, outrossim neste mesmo livro vão registrados os provimentos passados as pessoas empregadas na dita expedição, e conquista.” Secretaria do Governo da Província de São Paulo - Fundo Registro de Ordem Régias e Avisos Ministeriais relativos à Real Expedição e Conquista de Guarapuava contra os Indios. - Códice 458- vol. 1 e vol. 2. 8E 02370. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (AN).
  • 5
    Uma análise sobre os escritos e ações do Padre Chagas Lima pode ser acessada na dissertação de mestrado de Silvana Cassab Jeha (2005JEHA, Silvana Cassab. O padre, o militar e os índios - Chagas Lima e Guido Marliére: civilizadores de botocudos e kaingangs nos sertões de Minas Gerais e São Paulo, século XIX. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 2005.), em especial no Capítulo II.
  • 6
    Embora fuja do escopo deste artigo, vale mencionar a existência, nas imediações do Atalaia, de um lugar chamado Sepultura, que também foi objeto de disputas entre índios e colonizadores tido, inclusive, pelos primeiros como “terra ancestral”. A historicização deste local, pouco citado na bibliografia, está presente no trabalho de Cristiano Durat (2011DURAT, Cristiano Augusto. Terra de aldeamentos: Trajetória de Atalaia e Sepultura nos campos de Guarapuava. Revista Semina, vol. 9, n. 1, 2011, p. 1-30.).
  • 7
    D. Mateus de Abreu Pereira. Carta de Sesmaria pela qual V. Exa. S. A. R. Concede os Terrenos Compreendidos entre os Rios Coutinho e Lageado Grande nos Campos de Guarapuava. (cópia). Guarapuava: ACMG, coleção SC, 1818ARQUIVO MUNICIPAL DE GUARAPUAVA-UNICENTRO. D. Mateus de Abreu Pereira. Carta de Sesmaria pela qual V. Exa. S. A. R. Concede os Terrenos Compreendidos entre os Rios Coutinho e Lageado Grande nos Campos de Guarapuava. (cópia). Guarapuava: AMG, coleção SC, 1818.. (LIMA, 1842LIMA, Francisco das Chagas. Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava. Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n. 13. Rio de Janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1842. , p. 49). Esta Carta de Sesmaria se encontra no Arquivo Municipal de Guarapuava - UNICENTRO no site http://orbita.starmedia.com/marcos_ae/guarapuava/documentos.html
  • 8
    Os línguas, quando aparecem na documentação colonial, denotam duas “classes” de indígenas: eram todos aqueles índios que viviam sob o jugo português, morando em aldeamentos e prestando diversos serviços na malha do trabalho colonial. Porém, também eram chamados assim aqueles indígenas que agiam como intérpretes entre o seu idioma nativo e o português, tornando-se peça-chave nas negociações entre índios e brancos junto a expedições com fins diversos, como, por exemplo, naquelas com objetivo de fundar aldeamentos pelo interior do Brasil (DIAS, 2013DIAS, Thiago Cancelier. Contatos e desacatos: Os línguas na fronteira entre sociedade colonizadora e indígenas (1740 a 1889) - Goiás. Espaço Ameríndio, v. 7, n. 2, Porto Alegre, 2013, p. 205-226.). É este segundo conceito que aparece na documentação que se apresenta neste artigo.
  • 9
    Na documentação pesquisada, os comandantes das povoações em muitas vezes queixavam-se à Junta da Fazenda, pedindo recursos para o sustento da povoação e principalmente reclamando do atraso dos salários que, às vezes e quando eram pagos, chegavam a quase dois anos.
  • 10
    Cf. Relatório do padre Chagas: Estado actual da Conquista de Guarapuava no fim do anno de 1821. In: FRANCO, (1943FRANCO, Arthur Martins. Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba: Museu Paranaense, 1943., p. 246).
  • 11
    Sobre os Índios e sua utilização como militares, ver MOREIRA (2010MOREIRA, Vânia Maria Losada. De Índio a Guarda Nacional: Cidadania e Direitos Indígenas no Império (Vila de Itaguaí, 1822-1836). Topoi, v. 11, n. 21, p. 127-142, jul.-dez. 2010.).
  • 12
    Talvez aqui, nas memórias do padre, exista uma confusão com datas, já que o decreto do Rei que permitia a criação da vila é de 19 de agosto de 1818 e, nas memórias, vai aparecer 2 de novembro de 1818. Ver Decreto de 19 de agosto de 1818. “Erige no logar de Atalaya de Guarapuava uma Igreja Parochial com a invocação de Nossa senhora de Belém.” Cartas de lei, alvarás, decretos e cartas régias de 1818. Coleção das leis do império. Rio de janeiro: Imprensa Nacional, 1889COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Rio de janeiro: Imprensa Nacional, 1889., p. 80.
  • 13
    O auto de fundação encontra-se publicado em Taunay (1888TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Os Índios Caingangs (Coroados de Guarapuava), monografia acompanhada de um vocabulário do Dialecto de que usam.” Revista do IHGB. Suplemento ao Tomo LI da Revista Trimensal. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro & Cia, 1888., p. 251).
  • 14
    Nomeavam-se degredados todos aqueles que cometiam crimes perante a Justiça e que cumpriam a pena migrando para aldeamentos e povoações distantes de seus lugares de origem, sendo que as penas de degredo variavam entre poucos anos à punição perpétua. Segundo Pontarolo (2005PONTAROLO, Fábio. “Povoar e punir”: o degredo no povoamento dos campos de Guarapuava no século XIX. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005, p. 1-8. ), os degredados estavam presentes desde as tentativas iniciais de colonização dos campos de Guarapuava ainda no século XVIII, estendendo-se após a independência do Brasil. Pontarolo ainda destaca um dos objetivos do degredo: contribuir para o povoamento de regiões de fronteira pouco povoadas, como no caso exposto dos campos de Guarapuava. Ferreira Junior (2011FERREIRA JUNIOR, Francisco. O Degredo interno no Brasil do século XIX e sua utilização na ocupação dos campos de Guarapuava. Passagens - Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 3, n. 1, Rio de Janeiro, 2011, p. 62-76. ), por seu turno, foca no degredo para Guarapuava como um elemento no interior de uma “cultura jurídica” portuguesa, que remonta séculos antes dos oitocentos.
  • 15
    Em 1819, o comandante Antônio da Rocha Loures em pedido ao Presidente da Província, lhe foi permitido pagar soldos de soldados de milícia aos índios que para ele trabalhavam. Ofício do Capitão Mor Antonio da Rocha Loures, comandante da expedição em Guarapuava, 10 de março de 1832. Seção Manuscritos. Ofícios Diversos de Guarapuava (1824-1853). Caixa 230, pasta 1, documento 15, ordem 1025. APESP.
  • 16
    Os Dorins foram assim chamados porque viviam às margens do rio Dorim, em verdade eram Kaingang da metade Kairu e viviam numa região chamada “Larangeiras”. Estas são denominações genéricas empregadas pelo pároco para diferentes grupos Kaingang. Rosangela Ferreira Leite, ao estudar as memórias do Padre Chagas, revela uma ciranda de índios que compõem o aldeamento que, segundo o Padre, ora eram Cames, ora Votorons, e mais no fim Dorins. Sobre isso, ver LEITE (2006LEITE, Rosângela Ferreira. Nos limites da colonização: ocupação territorial, organização econômica e populações livres pobres (Guarapuava, 1808-1878). 2006. 387f. Tese de Doutorado em História Econômica, São Paulo: USP , 2006., p. 41).
  • Organizadoras:

    Juciene Ricarte Apolinário e Maria Adelina Amorim

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2020
  • Aceito
    05 Ago 2021
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