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Posse, propriedade e conflitos em terras do Apeú: considerações sobre um litígio de terras entre posseiros no Pará nas primeiras décadas da república (1895-1905)

Possession, ownership and conflicts in the lands of the Apeú: considerations on a dispute of land between squatters in Pará in the first decades of the republic (1895-1905)

Resumo

O presente artigo pretende contribuir para as discussões sobre as formas de ocupação de terras e de direitos de propriedade no Pará de fins do XIX e início do XX. Atentaremos para um estudo de caso de litígio de terras que envolveu pequenos posseiros, suas estratégias de legitimação, concepções e práticas de propriedade tecidas em suas redes de vizinhança. Discutiremos ações que desvelam noções de direito que se defrontam em querelas onde a defesa do acesso à terra vai mobilizar tanto o repertório empírico de práticas costumeiras de apossamento quanto o recurso à formalização jurídica que está sendo (re)construída no período inicial da República. Nossa abordagem se inscreve na vertente da História Social da Propriedade, onde, contrariando uma visão estatista que naturaliza a noção de propriedade a partir de sua formalização institucional e sua consagração como lei, entende que propriedade deve ser pensada no seu fazer-se histórico, como prática, a partir das relações sociais ensejadas pelos sujeitos atuantes. Para tanto, trataremos de um caso de litígio de terras entre duas famílias de posseiros, ocorrido entre 1893 e 1905 na região nordeste do Pará, na localidade do Apeú, área então pertencente à municipalidade de Belém. Nossa abordagem terá como eixo principal a análise de um processo de Ação de Força Velha Espoliativa que atravessa os anos iniciais da República.

Palavras-chave:
propriedade; posseiros; Pará republicano

Abstract

This article intends to contribute to the discussions on the forms of land occupation and property rights in Pará in the late 19th and early 20th centuries. We will look at a case study of land litigation involving small squatters, their legitimation strategies, conceptions and property practices woven into their neighborhood networks. We will discuss actions that unearth notions of law that face the challenges in which the defense of access to the land is mobilizing both the empirical repertoire of customary practices of possession and the recourse to the legal formalization that is being (re)built in the initial period of the Republic. Our approach is part of the social history of property, where, contrary to a statist view that naturalizes the notion of ownership from its institutional formalization and its consecration as law, understands that property should be thought in its history, as a practice, from the social relations that the working subjects have. In order to do that, we will deal with a case of land litigation between two families of squatters that took place between 1893 and 1905 in the northeastern region of Pará, in the locality of Apehú, an area that belongs to the municipality of Belém. Our approach will have as main axis the analysis of a Plundering Old Force Action process that crosses the early years of the Republic.

Keywords:
property; squatters; Republican Pará

O presente artigo busca realizar, por meio de um estudo de caso de litígio de terras ocorrido no Pará nas décadas iniciais da República, um debate acerca dos tensionamentos provocados por práticas de propriedade enquanto direitos pleiteados e realizados na efetividade da posse, tendo na ação de pequenos posseiros em defesa de sua permanência na terra a compreensão de diferentes concepções acerca da propriedade e dos direitos a serem perseguidos. Para tanto, iremos analisar um episódio envolvendo posseiros na localidade do Apeú-PA, em fins do século XIX, área que, à época, fazia parte de uma região marcada pela construção da Estrada de Ferro de Bragança e de projetos de criação de núcleos coloniais, cujos primeiros loteamentos remontavam ao Império. Essas modificações na paisagem da região, intensificadas já nas primeiras décadas republicanas, contribuíram para promover a valorização e a cobiça das terras em seu entorno, aumentando, assim, o interesse de potentados locais, muitos dos quais grandes posseiros, herdeiros de sesmarias e comerciantes, na ampliação de seus domínios, na demarcação de suas posses e propriedades, em acordo com a legislação estadual sobre terras e na garantia da legitimação jurídica do título. Nossa abordagem partirá da análise de uma Ação de Força Velha, datada de 1897, cujo processo se estende até 1905, num conflito que, como veremos, teria se iniciado ainda em 1893.1 1 Centro de Memória da Amazônia/Universidade Federal do Pará. Autos Cíveis de Ação de Força Velha Espoliativa. Belém, Comarca da Capital, 1897, 66 fls.

O caso escolhido se deve ao entendimento de que se trata de um episódio que sintetiza, em vários momentos, aspectos presentes noutros conflitos envolvendo grandes e pequenos posseiros no período. O destaque dado aqui à figura do posseiro visa ainda dar visibilidade à ação histórica desses sujeitos através de suas lutas pelo direito de uso da terra e recursos da floresta, bem como da reprodução cotidiana das suas condições de vida e trabalho. Tais lutas ocorrem num momento em que as práticas de apossamento perpetradas por pequenos lavradores passam cada vez mais a serem vistas como entraves tanto ao modelo de desenvolvimento agrícola que se quer difundir, enquanto aposta republicana de ação modernizadora, quanto para a legislação estadual que, a despeito de reconhecer a legitimidade da posse e consagrar a figura social do posseiro, restringe esse reconhecimento a um determinado tipo de posseiro/proprietário que em muito se distancia das práticas costumeiras de apossamento realizadas pelas populações rurais na Amazônia.

Em nossa perspectiva de análise, interessa menos discutir o resultado da querela - na maioria dos casos inacessível em virtude do caráter inconcluso da documentação - do que seu transcurso revelador das estratégias de ação e defesa de concepções de direitos de propriedade mobilizadas pelos sujeitos em disputa, seus advogados e testemunhas arroladas durante o processo. Dessa forma, busca-se aqui compreender o transcurso das disputas e sua relação com a facticidade da ocupação e uso da terra. Ao evidenciarmos a dimensão do conflito e a atuação de posseiros na defesa de direitos de propriedade, pretendemos reconhecer, como nos alerta a historiadora Márcia Motta (2008bMOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101.), que os posseiros do Oitocentos, longe da figura de sujeitos imóveis e mesmo saindo como derrotados em inúmeros processos judiciais nos quais figuravam, em sua grande maioria, como réus, “ajudaram a construir - na contracorrente da amnésia que se produziu sobre as suas lutas - uma cultura de resistência que assegurava a primazia da posse como fundamento de um direito” (MOTTA, 2008bMOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101., p. 99).

O artigo está dividido em duas partes: na primeira, apresentaremos em linhas gerais a questão da posse da terra no Pará no século XIX, sob a ótica dos conflitos advindos de diferentes leituras acerca dos direitos de propriedade em face de inúmeras tentativas de formalização da propriedade por parte do Estado. Cabe destacar o quanto o costume da posse, aspecto confirmado pela Lei de Terras de 1850, marcaria profundamente a legislação estadual de terras durante os anos iniciais da República no Pará, a ponto de se criar no estado o “título de posse”, instituto jurídico que em muito se assemelhava a diretrizes presentes na legislação imperial (TRECCANI, 2009TRECCANI, Girolamo Domenico. O título de posse e a legitimação de posse como formas de aquisição de propriedade. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Pará, v. 20, p. 121-158, 2009. ).

Nosso intuito, nesta primeira parte, é o de discutir, à luz da história social da propriedade,2 2 Podemos apontar como características gerais do que aqui chamamos de uma “História Social da Propriedade”, dentre outros: a preocupação em desnaturalizar/dessacralizar a ideia de uma propriedade perfeita como resultado de uma evolução histórica inexoravelmente fadada a consagrar a propriedade privada individual e indivisível como corolário do progresso capitalista europeu; a necessidade de se historicizar as diferentes percepções acerca de direitos de propriedade em cada época, o que permite superar as visões monolíticas que partem de um único modelo consagrado no presente para se interpretar formas de propriedade no passado; o entendimento da propriedade como “relação social”, ou seja, verificada na facticidade dos usos da terra e da sua apropriação entre sujeitos, deslocando-a, portanto, de uma visão exclusivamente normativa; trata-se de um transcurso clivado de conflitos onde a proteção jurídica - sobretudo ao longo do século XIX - consagrou determinados direitos em detrimento de outros, ao passo que a resistência e a defesa de outras formas de propriedade demonstram historicamente o caráter plural e móvel da mesma. o quanto conflitos envolvendo posseiros se intensificaram no início da República, o que, em larga medida, nos ajuda a compreender a configuração da legislação de terras proposta pelo estado paraense e as dificuldades em implementá-la. Tendo em vista a significativa presença na região de formas de ocupação da terra a partir do apossamento, tanto por grandes quanto por pequenos posseiros, faz-se necessária uma abordagem que dê visibilidade às práticas advindas da dinâmica da posse e aos inúmeros conflitos resultantes do enfrentamento entre distintas práticas de direitos de propriedade.

Na segunda parte, buscando ampliar nossa discussão a partir de um episódio concreto de disputa envolvendo posseiros, abordaremos o caso de um litígio de terras na localidade do Apeú, pertencente, naquele momento, à freguesia de Inhangapi e à municipalidade da capital Belém. Trata-se de acompanhar os principais momentos do conflito com o intuito de perscrutar as estratégias utilizadas por ambas as defesas com o fito de obterem o reconhecimento do direito à posse da terra como condição para a legitimação da propriedade nos marcos da legislação estadual. Esperamos demonstrar que, para além da legitimação formal da propriedade, materializada no “título” expedido pelo governo, outras concepções de direitos de propriedade estão sendo realizadas na prática cotidiana dos posseiros e serão mobilizadas no decurso das querelas.

Importante assinalar que, muito embora estejamos também preocupados em atentar para os aspectos normativos da propriedade presentes nos decretos e leis estaduais sobre terras no Pará republicano, buscamos afastar uma abordagem “estatista” da propriedade, que consiste em delegar às leis o poder de “dizer” a realidade (CONGOST, 2007CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estúdios sobre “La gran obra de la propriedad.” Barcelona: Crítica, 2007.). Pretendemos, ao contrário, discutir um episódio de litígio de terras ocorrido no período, dando ênfase aos aspectos empíricos que deslindam as ações dos sujeitos envolvidos, debruçando-nos sobre um estudo de caso e atentando para a espacialidade do conflito, dada a inegociável necessidade de se compreender enquanto “relações sociais concretas” as práticas efetivas de propriedade (CONGOST, 2007CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estúdios sobre “La gran obra de la propriedad.” Barcelona: Crítica, 2007.). Conforme aponta a historiadora catalã Rosa Congost: “las práticas [de propriedade] sólo pueden ser examinadas a partir del estúdio empírico de las relaciones sociales em uma región concreta” (CONGOST, 2017CONGOST, Rosa. Historia, el derecho, e la realidade de las constituiciones sociales en la gran obra de la propriedade. História: Debates e Tendencias - v. 17, n. 2, p. 374-384, jul./dez. de 2017. Entrevista concedida a Ironita A. Policarpo Machado. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.2.7500 . Acesso em 15 de janeiro de 2019.
http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.2.750...
, p. 377).

Posse, posseiros e a prática da propriedade no Pará oitocentista: algumas considerações sobre o rural na história e na historiografia da Amazônia

Em uma sequência de três artigos publicados no jornal paraense A República, no mês de novembro de 1890, e intitulados “A propriedade territorial no Estado do Pará”, o Conselheiro Paes de Andrade tecia severas críticas à ocupação das terras devolutas na Amazônia, em particular no Pará, destacando a inércia dos sucessivos governos provinciais ao longo da segunda metade do século XIX ante a prática disseminada de apossamentos de terras que, segundo ele, eram realizados por famílias de posseiros que “continuavam lançando a propriedade territorial em um verdadeiro caos”.3 3 A República. Belém, 5 de novembro de 1890, p. 1. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/704440/2382. Acesso em 15/07/2018. Não deixando de reconhecer a posse como costume, embora se tratasse de um costume que deveria ser combatido pelo governo republicano em nome de uma normatização e disciplinarização do acesso à terra, o Conselheiro apontava a ineficácia da Lei de Terras de 1850, na Província do Grão-Pará, e sua inoperância para acabar com “esse modo semisselvagem de adquirir a propriedade”, posto que, “Na Amazônia, onde a vastidão do território acha-se apenas tocada pela mão do homem, tais cominações [as obrigações prescritas pela Lei de Terras] não têm valor algum.”4 4 A República. Belém, 5 de novembro de 1890, p. 1. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/704440/2382. Acesso em 15/07/2018.

A costumeira prática na qual qualquer indivíduo abria um roçado onde lhe agradasse, bem como a incapacidade dos governantes em fazer cumprir a Lei de Terras, somados ainda ao apelo à vastidão de áreas “intocadas” na Amazônia, constituíam-se aos olhos do Conselheiro como verdadeiros obstáculos ao ordenamento e regulamentação da ocupação de terras no Pará, tida por dispersa e pouco produtiva. Esse era o diagnóstico elaborado nas páginas da imprensa republicana acerca do cenário contra o qual os primeiros governos teriam de se defrontar em suas inúmeras tentativas de regulamentar o acesso à terra no estado mediante um conjunto de decretos e leis que seriam publicados a partir da década de 1890 e que iriam se desdobrar noutras legislações no decurso do século XX (MUNIZ, 1924MUNIZ, João de Palma. Legislação de Terras: dados estatísticos. Pará: Instituto Lauro Sodré, 1924.).5 5 Para o período inicial da República no Pará, trata-se dos Decretos n. 364 de 2 de julho de 1891; do Decreto n. 396 de 25 de agosto de 1891; do Decreto n. 410 de 8 de outubro de 1891; da Lei n. 82 de 15 de setembro de 1892; a Lei n. 713 de 2 de abril de 1900. Tais decretos e leis, em geral, versavam sobre direitos de posses adquiridos até da data de 15 de novembro de 1889, prazos para demarcação e revalidação de posses e de antigas concessões de sesmarias, além de regras para a separação das terras públicas estaduais das áreas privadas. Interessante observar que boa parte da legislação sobre terras do Pará republicano continuava a ser regulada pelas disposições do Decreto Imperial de n. 1318 de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei de terras de 1850. Todos esses decretos e leis encontram-se coligidos em MUNIZ (1924).

Ao longo deste artigo consideraremos como posseiros aqueles lavradores que não detinham nenhum título de terras no momento do conflito ou que o adquiriram no decurso da querela (título de posse). Trata-se daqueles lavradores que haviam se apossado de áreas de terras devolutas ao longo do Império mesmo ante o impedimento legal inaugurado em 1850 com a Lei de Terras. Segundo Márcia Motta (2008aMOTTA, Márica M. Menendes. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Niterói: EdUFF, 2008a.) o termo “posseiro” surge no século XIX para se contrapor ao de “sesmeiro”. Ao se debruçar sobre o fim do sistema de sesmarias em 1822, a historiadora demonstra que a prática efetiva da posse, realizada em larga medida por pequenos cultivadores de roças de subsistência, mas não apenas, acabaria por se sobrepor ao documento de sesmaria após um longo processo em que o direito do sesmeiro fora questionado ao longo do Setecentos. As críticas ao sistema de concessão de sesmarias resultaram na consagração do apossamento, posto que promoviam o “reconhecimento daquele que detém a posse como legítimo ocupante, já que ao ocupá-la o lavrador estaria a exercer o cultivo, princípio legitimador do acesso à terra, desde a instalação do sistema sesmarial em áreas coloniais” (MOTTA, 2008bMOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101., p. 87).

Na documentação por nós pesquisada, tanto nos processos cíveis de esbulho quanto na imprensa do período, aparecem, em geral com a designação de posseiros, aqueles lavradores que haviam se apossado de áreas devolutas e que não dispunham de documento legal da terra. A aprovação pelo governo estadual do Decreto n. 410, de 8 de outubro de 1891, intensificaria a busca pela obtenção do “título de posse”, uma vez que esse e outras decretos e leis subsequentes abririam novos prazos para legitimação de posses havidas até a data de 15 de novembro de 1889. Estariam nessa condição pequenos lavradores de roças de subsistência, ora chamados de posseiros ora considerados “invasores” de terras de outrem e réus em processos abertos por grandes lavradores, muitos dos quais também posseiros, e herdeiros de sesmarias. Estes combinariam ainda nalgumas regiões do estado atividades como comerciantes e donos de seringais. Para se contrapor à acusação de “invasor” ou de praticar o “esbulho” de terra alheia, era comum que a defesa do réu fizesse uso do termo “posseiro de boa-fé”, como é o caso de Manuel Raymundo de Souza, conforme veremos na segunda parte deste artigo.

Há, contudo, inúmeros casos de conflitos de terras no período em que os próprios lavradores se autodenominavam de “posseiros”. Verificamos a ocorrência do uso do termo posseiro em abaixo-assinados, protestos e contraprotestos enviados por pequenos lavradores a intendências municipais e publicados em jornais paraenses ao longo das primeiras décadas dos governos republicanos estaduais, o que nos leva a crer, portanto, que seu uso é recorrente para além da documentação elaborada pelo aparato jurídico estatal e aquelas que embasavam as agências governamentais e se expressavam normativamente em decretos e leis.6 6 É o caso, por exemplo, de famílias de lavradores do município de Salinas que, ao encaminhar à Intendência abaixo-assinado datado de 4 de fevereiro de 1899, afirmavam ser “moradores e posseiros de terras registradas no rio Axindeua, município de Salinas...”, e reiteravam essa condição ao considerarem-se como “posseiros fundados nas indestrutíveis disposições das leis de terras”. O Pará. Belém, 8 de março de 1899, p. 3. Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/306223/1513. Acesso em 28/10/2018. Dessa forma, ao identificarem-se como posseiros, lavradores pobres mobilizavam o argumento da facticidade do apossamento e do cultivo de terras, práticas que remontavam invariavelmente à longa data, ao mesmo tempo em que buscavam apresentar-se como legítimos detentores de direitos conforme a nova legislação republicana.

Uma tentativa de mapear quem são esses sujeitos, pequenos e grandes posseiros, comerciantes e donos de seringais, herdeiros de sesmarias e proprietários de terras, esbarra na imprecisão com que tais categorias são arroladas na documentação pesquisada, tanto na fala dos querelantes quanto na legislação de terras do período, a despeito desta buscar justamente dirimir ambiguidades e sobreposições presentes. Entendemos que tal indefinição ocorre porque estamos tratando de um momento em que se evidenciam disputas pelo reconhecimento de determinadas categorias em detrimento de outras. Ao apontarmos que as décadas iniciais da República no Pará são marcadas pela intensificação de conflitos de terras que evidenciam antagonismos entre diferentes formas de apropriação e uso da terra e recursos da natureza, podemos considerar que tais querelas expõem ainda uma disputa pelo “nome”, aspecto indissociável da pluralidade de práticas proprietárias, mas também em sintonia com as categorias designadas pela legislação de terras como sendo aquelas reconhecidas pelas autoridades estaduais.

Uma outra possibilidade de compreensão das ambiguidades presentes nas (in)definições dos grupos sociais paraenses reside no fato de que muitos desse sujeitos combinavam práticas de agricultura e criação com a extração e cultivo de produtos da floresta. Para as áreas do entorno de Belém, por exemplo, a historiadora Cristina Donza Cancela (2011CANCELA, Cristina Donza. Casamento e família em uma capital amazônica (Belém, 1870-1920). Belém: Editora Açaí, 2011.) comenta que se consideramos os sujeitos que comumente eram considerados seringalistas encontraremos desde o pequeno e o grande proprietários de estradas de seringa, dentre os quais havia aqueles que se dedicavam exclusivamente à extração da borracha e aqueles que dividiam as atividades de cultivo e extração da seringueira com outras culturas. Trata-se, segundo a autora, de “donos de engenhos de açúcar, aguardente, olaria e fazendas de gado, que combinavam essas atividades com a exploração de seringa” (CANCELA, 2011CANCELA, Cristina Donza. Casamento e família em uma capital amazônica (Belém, 1870-1920). Belém: Editora Açaí, 2011., p. 48), e ainda aqueles que acumulavam a propriedade de casas de aviação. Importante observar, que muitas dessas famílias não possuíam títulos de propriedade ou mesmo de posse das terras que exploravam. Quando nos debruçamos sobre os conflitos de terras ocorridos no período encontramos uma quantidade significativa de disputas oriundas da tentativa de seringalistas e comerciantes que, ao pleitear a demarcação e medição de suas terras, invariavelmente aproveitavam-se da imprecisão dos limites entre lotes para expandir o seu domínio. Em ocasiões como essa, famílias de pequenos posseiros, que há décadas ocupavam áreas pretendidas pelos pretensos proprietários, tornavam-se de uma hora para outra invasores, esbulhadores de terras alheias. O que verificamos em vários municípios do Estado do Pará neste período é um aumento significativo de conflitos de terras oriundos de situações como: sobreposição de concessões de títulos de posse para a mesma área a diferentes posseiros, títulos de posse concedidos a grandes fazendeiros/posseiros e herdeiros de sesmaria em cuja área medida residiam inúmeras famílias de posseiros, dentre outras situações que expuseram uma realidade vigorosamente conflituosa liberando tensões e provocando a reação de várias famílias de pequenos posseiros.7 7 São inúmeros os casos de conflitos de terras ocorridos em diversas regiões do Pará nas décadas iniciais da República que podem ser conferidas na documentação disponível. Em levantamento por nós realizado em documentação judicial, abaixo-assinados, protestos e contraprotestos publicados ao longo da década de 1890 em diferentes jornais do período, como O Pará, O Liberal do Pará, Folha do Norte, O Democrata, A República, Correio Paraense, há conflitos de terras em municípios e localidades como Belém (na Freguesia de Inhangapi (Apeú), Vila do Pinheiro [atual Icoaraci], Mosqueiro) e no Acará; na região de Bragança, próxima à área de influência da estrada de ferro; nos municípios de Salinas, São João de Pirabas, e Maracanam, na região do salgado; nas localidades de Gurupá, Breves e Portel, na região do Marajó; nos município de Igarapé-Miri, Cametá, dentre outros. Além do levantamento feito nos periódicos, também cotejamos documentação proveniente de processos cíveis, como ações de força nova e força velha, onde pudemos encontrar uma serie de querelas protagonizadas por pequenos posseiros, réus nas ditas ações. Essa documentação está sob a guarda do Centro de Memória da Amazônia, da Universidade Federal do Pará.

A paisagem fundiária de fins do século XIX no Pará em face das tentativas dos governos estaduais de regulamentar o acesso e ocupação da terra era, portanto, de intensificação dos conflitos. A avaliação geral das lideranças republicanas paraenses, em consonância com os interesses dos grandes proprietários de terras do estado - muitos dos quais compunham o aparato administrativo estatal -, era de que os seguidos governos provinciais durante o Segundo Império não deram conta de solucionar o problema da ocupação da terra no Pará. Ao contrário, sua negligência teria contribuído não só para o desrespeito ao cumprimento da Lei de Terras como também para a proliferação do apossamento de áreas devolutas por famílias de lavradores pobres ao longo da segunda metade do XIX.8 8 As críticas à Lei de Terras de 1850 e sua pouca efetividade no Pará foram objeto de inúmeras manifestações entre várias autoridades durante o Império. Pimenta Bueno(1882) se referia aos gastos dispendiosos na aplicação da lei e aos poucos resultados alcançados, posto que “não havia produzido frutos equivalentes” (p. 60). Para os críticos, a nascente República tinha, portanto, que resolver um problema que o Império não resolvera e, ao contrário, intensificara, na medida em que a falta de fiscalização e adoção de procedimentos eficazes no combate à posse teriam estimulado ainda mais famílias de lavradores a ocuparem áreas em várias regiões da Província sem que isso significasse qualquer preocupação com o cumprimento da legislação vigente.

Não devemos perder de vista que as críticas do Conselheiro Paes de Andrade na imprensa eram desferidas num momento em que a defesa da descentralização promovida pela institucionalização do federalismo republicano contrapunha-se enfaticamente ao modelo centralizador vigente durante o Império. Os grupos dirigentes provinciais, como ocorria no Pará, buscaram, ao longo do período imperial, conciliar os interesses das frações dominantes locais com as normativas advindas da Corte no Rio de Janeiro e das diretrizes centralizadoras que depositavam na política de subordinação econômica das províncias, tanto a manutenção da unidade do Império do Brasil quanto da condição de sua prosperidade e incursão na civilização (MATTOS, 2004MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.). Segundo Francivaldo Nunes (2016NUNES, Francivaldo Alves. Terras de Colonização: agricultura e vida rural ao Norte do Império brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2016.), analisando o caso do Pará, essa convergência de interesses, desejada tanto pelos setores dominantes do Império quanto de parte daqueles que dominavam a política local, deu-se pela via do consenso quanto a importância que o desenvolvimento da agricultura teria para o crescimento do Pará e de sua consequente integração à economia nacional.9 9 O autor argumenta ainda que, para além de uma simples questão de povoamento e mesmo de produção de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento da capital, os projetos e políticas imperiais de criação de núcleos coloniais estavam preocupados em ampliar o domínio do território por meio da fixação do homem ao solo em combinação com sua disciplinarização e controle, para o que o modelo da colônia agrícola era compreendido como espaço ideal de realização. Tais projetos far-se-iam na Província do Pará sob a égide da “modernização” das práticas agrícolas e da conversão do roceiro em trabalhador produtivo. Podemos afirmar que essas preocupações continuam presentes nos governos republicanos paraenses, muito embora ao longo dos primeiros governos estaduais a ênfase seja direcionada menos à questão da criação de colônias e mais à difusão de técnicas agrícolas e da propriedade privada da terra.

A conjuntura em tela é ainda profundamente marcada pelo propalado boom da borracha (WEINSTEIN, 1993WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência. São Paulo: Hucitec , 1993.; DIAS, 1999DIAS, Edinéia Mascarenhas. A ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Editora Valer , 1999.). A década de 1880 e seguintes assistem a um significativo aumento na produção do látex e no volume de exportações do produto da havea brasiliensis para o atendimento da demanda da indústria automobilística estadunidense (SANTOS, 1980SANTOS. Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T.A. Queiroz, 1980. ). Esse cenário, em que todos os esforços laborais eram vistos como convergentes para o trabalho extrativo nos seringais, recrudesceu a crítica entre grandes fazendeiros, intelectuais e autoridades paraenses, presente desde as primeiras décadas do Império (NUNES, 2016NUNES, Francivaldo Alves. Terras de Colonização: agricultura e vida rural ao Norte do Império brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2016.), quanto à necessidade de se resolver o problema da “escassez” de braços para a lavoura. A solução gestada durante o Império, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, e que ainda continuava predominante entre os governantes republicanos, residia na ampliação dos projetos de criação de núcleos coloniais providos de mão de obra imigrante com o objetivo de fixar o lavrador à terra e direcionar seus esforços para o cultivo.10 10 A imigração estrangeira para o Pará se dá no bojo da diminuição do trabalho realizado por negros escravizados e se intensifica no pós-abolição. O fim da sociedade escravista produziu, na então Província do Pará, poucas mudanças na sua estrutura agrária. Muito embora a Amazônia não tenha se caracterizado ao longo de sua colonização pela instauração de uma economia de exploração agrícola baseada no modelo da plantation, a presença de africanos escravizados ao lado de indígenas em fazendas e plantações foi uma constante desde o século XVII, conforme demonstra Bezerra Neto (2012). Para os intentos do presente artigo, importa destacar a possibilidade de que muitos dos libertos e ex-excravizados tenham se tornado posseiros em diferentes regiões do Pará, constituindo, nalguns casos, individualmente ou em grupos, a base do que o historiador Flávio Gomes (2015) denomina de um “campesinato negro”, comunidades negras rurais que existiram antes e que se tornariam “invisíveis” a todos os censos no pós-abolição.

Contudo, a despeito da expectativa criada e dos projetos de colonização levados a termo pelos governos da Província, o tão almejado aumento da produtividade e, sobretudo, do ordenamento da ocupação de terras do estado, não lograram o êxito esperado. A crítica recaía então sobre a ineficácia dos governos provinciais e a política centralizadora do Império em fazer cumprir as determinações. Nesse sentido, a instauração da República e a introdução do federalismo a partir da autonomia dos governos estaduais ensejaria para os setores dominantes rurais paraenses uma nova perspectiva que lançava sobre o governo estadual o protagonismo na formulação e execução de políticas de ordenamento fundiário, enquanto deixava a cargo das intendências municipais a prerrogativa de cuidar do acesso às terras devolutas pertencentes ao âmbito de seus patrimônios municipais.11 11 Trata-se da Lei n. 226 de 6 de julho de 1893 (MUNIZ, 1904). Essa questão é importante, pois a autonomia dada às intendências municipais na concessão e títulos de posse e vendas de terras a partir da República está, como defenderemos adiante, entre as principais causas do recrudescimento dos conflitos fundiários no Pará em fins do século XIX.

Voltemos, por ora, aos argumentos do Conselheiro. Acreditamos que as recentes interpretações acerca da Lei de Terra e sua aplicação, ao contrário do que sugere Paes de Andrade ao destinar suas críticas às autoridades e burocracia do Império em fazer cumprir a dita lei, sobretudo no que dizia respeito à demarcação de seus domínios, leva-nos a sugerir que as dificuldades residiram menos em uma “incapacidade” dos governos provinciais do Pará em sua aplicação do que na utilização por parte dos terratenentes de estratégias que visavam, ao manter os limites de suas terras imprecisos, garantir presente a possibilidade de permanente expansão e incorporação de novas áreas (MOTTA, 2008aMOTTA, Márica M. Menendes. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Niterói: EdUFF, 2008a.).

A historiografia que discute a Lei de Terras de 1850 (MOTTA, 2008aMOTTA, Márica M. Menendes. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Niterói: EdUFF, 2008a.; SILVA, 1996SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: Editora da Unicamp , 1996.; CHRISTILLINO, 2010CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao Sul do Império: a Lei de Terras e a consolidação da política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese (Doutorado em História) Departamento de História da Universidade Federal Fluminense/UFF, 2010.; MACHADO, 2004MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora da Unicamp , 2004. ; CHALHOUB, 2012CHALHOUB, Sidney. População e sociedade. In: CARVALHO, José Murilo de (coord.). A Construção Nacional (1830-1889), História do Brasil Nação: 1808-2010. Vol 2. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. p. 37-81. ) tem procurado cada vez mais distanciar-se das abordagens iniciais que buscavam limitar o entendimento da referida lei à inauguração no Brasil da propriedade privada absoluta da terra (MARTINS, 1979MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.; SMITH, 1990SMITH, Roberto. A propriedade da terra e a transição: estudo da formação da propriedade privada e transição para o capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1990. ). A crítica historiográfica recente também é dirigida à ideia de que o suposto insucesso e ineficácia da Lei fora produto da ação deliberada dos barões de terras, o chamado “veto dos barões”, ou que a mesma não teria passado de “letra morta”, conforme defende o historiador José Murilo de Carvalho (1980). Nesse percurso, destacam-se tanto reflexões que apontam para a necessidade de se observar as estratégias de grandes proprietários, posseiros/fazendeiros e herdeiros de sesmarias na rejeição ao cumprimento da legislação com vistas a ampliar seu domínio pela via da imprecisão dos limites de suas terras, quanto proposições que chamam a atenção para a importância de atentarmos para as especificidades regionais, quiçá locais, na condução e aplicação da lei. A relevância dessa postura é reivindicada pelos autores como condição fundamental se quisermos compreender em profundidade as razões pelas quais o cumprimento da legislação sobre terras no período imperial esteve em sintonia com variados condicionantes em virtude de distintas questões em disputa.

Na Província do Pará, a aplicação da Lei de Terras ainda é tema pouco abordado pela historiografia. Segundo Nunes (2012NUNES, Francivaldo Alves. A Lei de Terras no Pará e a política de colonização (estrangeira). In: SARGES, Maria de Nazaré dos Santos; RICCI, Magda (org.). Os oitocentos na Amazônia. Belém: Editora Açaí , 2012. p. 81-108. ), que intenciona discutir a questão à luz das políticas de colonização perpetradas pelos governos provinciais paraenses da segunda metade do XIX, a simples leitura do texto da Lei de Terras não dá conta da complexidade que as particularidades e dinâmicas regionais e locais impunham ao seu processo de aplicação, cabendo, portanto, aos estudiosos, atentar justamente para o “processo de implantação” da legislação de terras nas distintas províncias.

A importância de se considerar as variantes locais e/ou regionais para um devido cotejamento da Lei de Terras - o que é válido para outras legislações - reside principalmente no fato de que, se havia localidades onde aos posseiros interessava ver legitimadas suas terras, sobretudo quando estavam ameaçados de perdê-las (MOTTA, 2008MOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101.a), outras houve onde permanecer com os limites imprecisos era garantia de reprodução de formas de vida e trabalho cujo manejo e exploração dos recursos da terra e da floresta dependiam da mobilidade e de “áreas abertas” (RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Estradas da Vida: Terra e trabalho nas fronteiras agrícolas do Jequitinhonha e Mucuri, Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.).12 12 Por “mobilidade” refiro-me, dentre outras práticas, à necessária itinerância de parte dos posseiros que se utilizavam das técnicas do encoivaramento, ou “roça de toco”, que implicava no destocamento e queima de áreas de floresta visando preparar a terra para o cultivo. O uso dessa técnica, costumeira na Amazônia e em outras partes do Brasil, terminava impondo a obrigatoriedade de abandonar a área outrora cultivada, deixando-a em descanso [pousio], em busca de novas áreas para o início de novo processo de derrubada e queimada. Essa técnica, muito criticada como primitiva e que levava ao inevitável esgotamento do solo, requeria a existência de terras “livres” para a reprodução da lavoura de pequenos posseiros (Cf. RIBEIRO, 2013). Entrelaçada ao entendimento do direito à terra, portanto, havia a luta pela manutenção da posse e das práticas ampliadas de cultivo, marcadas pela necessidade de mobilidade, tanto pela realização do pousio quanto do acesso aos recursos da floresta, como madeiras, frutos e plantas, e de igarapés e rios, para a pesca e outras atividades extrativas realizadas ao longo do ano em combinação com a lavoura. Essas observações ajudam-nos a distinguir o apossamento tal qual era costumeiramente realizado pelas populações rurais na Amazônia oitocentista e as reivindicações por direitos de propriedade da ideia de uma propriedade privada nos moldes dos circunscritos limites de lotes de terras medidos e demarcados conforme requeriam tanto a legislação imperial quanto aquela que ficaria conhecida como a primeira lei estadual de terras do Pará no alvorecer da República.

Nesse sentido, acreditamos que a intensificação dos conflitos de terras no Pará na primeira década da República se deve, em larga medida, a uma reação de pequenos posseiros provocada pelas várias tentativas estatais em demarcar terras particulares e promover a concessão de títulos de posse, ensejando uma corrida da parte de grandes fazendeiros/posseiros pela obtenção do título para suas terras, o que, via de regra, fez-se em detrimento de pequenos posseiros que há décadas ocupavam as áreas que passam a ser reivindicadas como pertencentes a um único dono. O resultado mais imediato desse processo em que os primeiros governos republicanos paraenses buscam promover a “racionalização” da ocupação da terra por meio de uma legislação própria é a proliferação de conflitos envolvendo posseiros nas décadas iniciais da República, momento em que as tentativas de regulamentação jurídica esbarrarão numa obstinada resistência de famílias de pequenos posseiros em face do avanço sobre suas terras de pretensos proprietários que, em muitos casos, contarão com o beneplácito das autoridades responsáveis pela regularização fundiária perpetrada pelos primeiros governos republicanos.

Os inúmeros conflitos demonstram, portanto, que os pequenos posseiros, roceiros que há décadas ocupavam suas terras, estavam cônscios do entendimento de que possuíam direitos de propriedade sobre as áreas que ocupavam, o que faziam a partir de uma mobilização de práticas e argumentos que combinavam o costume disseminado da posse enquanto ocupação e apropriação efetiva da terra,13 13 O entendimento da posse como um costume e, portanto, resultante de uma atividade legítima, tem uma longa história que conjuga a facticidade do apossamento com seu reconhecimento em alvarás e ordenamentos régios. Segundo a historiadora Márcia Motta (2008a, p.132), “O apossamento, enquanto costume, consolidou-se como legal a partir da Lei da Boa Razão de 1769.” Ainda segundo a autora, ao reconhecer a legalidade do apossamento, a Coroa vislumbrava a possibilidade de limitar o poder dos sesmeiros e impedir que as terras dadas em sesmarias permanecessem incultas em face da obrigatoriedade do cultivo, o que, na prática, era realizado por posseiros. Como resultante de um longo processo em que a posse e o posseiro adquiriam legitimidade perante a Coroa, fim do sistema sesmarial em 1822 consagraria ainda o entendimento da “importância do cultivo para a legitimação de uma ocupação. Em detrimento, portanto, da importância do título” (Idem, p. 136). o apego presente à legislação imperial, sobretudo no que ela reconhecia como direito à posse havida “mansa e pacificamente” e de “boa fé”,14 14 Segundo o artigo 5º da Lei de Terras de 1850: “Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas e com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro.” Embora a lei estivesse considerando as posses havidas até a data de sua promulgação, os apossamentos não findaram naquele momento, continuando, portanto, ao arrepio da legislação. A Lei 82 de 15 de setembro de 1892, primeira legislação de terras no Pará republicano, não só irá reconhecer os apossamentos havidos até o ano de 1889, como abrirá novos prazos para sua legitimação. e aos esforços de cumprimento das leis republicanas, que ao reconhecer os apossamentos até a data da Proclamação da República, dava novo prazo para a legitimação de posses que, pela lei anterior, eram tidas como ilegais.

Temática ainda não abordada pela historiografia, a intensificação de litígios de terras no Pará em fins do século XIX ocorre num momento em que tentativas de regulamentação do acesso a terras, como a demarcação e a criação de uma cadastro geral, o registro de posse, a concessão de títulos de apossamento, a regularização de antigas sesmarias caídas em comisso, a concessão de áreas pertencentes aos patrimônios municipais, o estímulo à venda de terras públicas a particulares, a doação e o aforamento de terras em áreas urbanas e de florestas, bem como a definição legal da propriedade privada em face das terras devolutas, conformam um complexo de ações com vistas a dissipar normativamente as indefinições acerca de quem tinha e quem não tinha direito à terra. Para além da questão da disciplinarização da lavoura e do acesso à terra com fins produtivos, o que significava também um combate ao modelo de extrativismo dos pobres, buscava-se com tal complexo de normas garantir a segurança dos negócios que envolviam a apropriação fundiária (MUNIZ, 1907MUNIZ, João de Palma. Índice Geral do Registro de Terras. Belém: Secretaria de Estado, Obras Públicas, Terras e Viação. Governo Augusto Montenegro, 1907. ), objetivando, por fim, a regulamentação de um mercado de terras no estado.

Papel de destaque nesse novo cenário seria dado às intendências municipais por meio dos Conselhos Municipais. De acordo com o § 1º do Art. 1º da Lei n. 226 de 6 julho de 1893, os municípios foram reconhecidos como “pessoas jurídicas, autônomas e independentes em tudo quanto for de seu peculiar interesse e gestão de seus negócios”, apontando especificamente em seu Art. 7º que aos Conselhos Municipais caberia dirimir questões referentes a “Terras devolutas ou outros próprios do Estado quando sejam necessários ao município” (MUNIZ, 1904MUNIZ, João de Palma. Patrimônio dos Conselhos Municipais do Estado do Pará. Paris: Aillaud & Cia. 1904., p. 9-10). Em lei posterior, de 22 de abril de 1900, foi determinado que as intendências municipais ficavam obrigadas a realizar a medição e demarcação de terras de seu patrimônio como condição prévia para a concessão de lotes de terrenos rurais e urbanos (MUNIZ, 1904MUNIZ, João de Palma. Patrimônio dos Conselhos Municipais do Estado do Pará. Paris: Aillaud & Cia. 1904.). Essas legislações formalizaram uma prática que, ao ser inaugurada pela República, direcionava para chefes políticos locais ocupantes dos Conselhos Municipais o poder de decisão quanto à concessão de lotes rurais e urbanos.

Reconhecer que as ações das intendências municipais na concessão de títulos de posse, medição e demarcação de lotes estiveram vinculadas ao aumento de conflitos por terra nas primeiras décadas da República no Pará não deve significar que partimos do entendimento de que se trata de uma realidade ditada exclusivamente pela elaboração de um corpo de normas legais. O que verificamos, ao contrário, é um verdadeiro cenário de disputas atualizado nas práticas efetivas de ocupação e de direitos de propriedade, práticas que remontavam a códigos costumeiros de usos da terra e dos recursos da floresta que datavam de tempos pretéritos, e que se defrontavam com normas prescritas juridicamente, mas que também eram tensionadas e reelaboradas em face das novas circunstâncias.

Queremos, com isso, adiantar que a força e presença do costume da posse e da figura social do posseiro, o que incluía tanto grandes fazendeiros-posseiros quanto pequenos lavradores-posseiros, é tamanha no Pará oitocentista que acabou por influenciar diretamente a elaboração da política estadual de terras por meio de uma série de artigos que reconheciam direitos aos posseiros e criava o instituto do “título de posse”. Nossa hipótese aqui é a de que, mesmo não estando entre o tipo de posse que se pretendia regularizar, visto que a prática da legislação vislumbrava legitimar terras em posse de um determinado tipo de posseiro “produtivo”, e assentado em práticas tidas como “racionais” - o que tendia a beneficiar grandes fazendeiros-posseiros -, os pequenos lavradores buscaram se beneficiar das leis vigentes introduzindo suas demandas por terra em disputas perante as quais mobilizavam suas acepções de direito e justiça em face das prerrogativas que obstaculizavam sua permanência em áreas litigiosas. A principal delas residia no efetivo cultivo, prática que vinculava o entendimento do direito de propriedade ao uso da terra. Nesse sentido, a facticidade da posse deveria anteceder a obtenção do título.

Nas últimas décadas, tem havido uma convergência entre os estudiosos do rural na Amazônia acerca da necessidade de superação da persistente visão que, ao procurar analisar a história econômica e social da conformação das sociedades amazônidas em diferentes períodos de seu processo de formação, caracterizou a economia e as sociedades na região partindo de pressupostos erigidos a partir do binômio extrativismo-exportação. Esse aspecto acarretou desconsiderar a existência de práticas de agricultura e subestimar as culturas tradicionais de subsistência atribuídas pejorativamente a “roceiros” e “ribeirinhos”, grupos sociais marcados tanto pela propalada precariedade no uso da terra quanto pela sua permanente necessidade de mobilidade em face de uma dinâmica de exploração e conjugação de atividades, que combinava a lavoura, a caça, a pesca e a extração e uso de recursos da floresta (HARRIS, 2017HARRIS, Mark. Rebelião na Amazônia: Cabanagem, raça e cultura popular no Norte do Brasil, 1798-1840. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.), que contrastavam cada vez mais a partir da segunda metade do século XIX com o desejo de disciplinarização que requeria um modelo de agricultor circunscrito ao terreno de sua propriedade.

Num movimento de crítica a essa visão, inúmeros trabalhos têm vindo a lume na esteira de estudos como, p. ex., os de Sampaio (2014SAMPAIO, Patrícia Melo. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais na Amazônia, século XIX. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2014.), Acevedo Marin (2000ACEVEDO MARIN, Rosa E. Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos séculos XVIII e XIX. Papers do NAEA, n. 153, p. 29, out. 2000. Disponível em:Disponível em:http://www.naea.ufpa.br/naea/novosite/index.php?action=Publicacao.arquivo&id=447 . Acesso em: 15 jan. 2019.
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), Chambouleyron (2010CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, Ocupação e Agricultura na Amazônia Colonial (1640-1706). Belém: Ed. Açaí , 2010.), Batista (2014BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará(1850-1870). Belém: Ed. Açaí, 2014.), Macedo (2014MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2014.), Nunes (2016NUNES, Francivaldo Alves. Terras de Colonização: agricultura e vida rural ao Norte do Império brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2016.), dentre outros, apontando não apenas para a presença da pequena lavoura familiar de consumo próprio mas também para práticas de cultivo destinadas ao abastecimento do mercado interno como parte de uma dinâmica complexa e diversificada, bem como aquela voltada para o atendimento de demandas externas. Tais estudos têm procurado pensar o processo de ocupação de diferentes regiões da Amazônia oriental a partir da sua vinculação com o estabelecimento de práticas de agricultura e produção de alimentos, o que teria ocorrido com maior ou menor intensidade desde o século XVII, sem que, para isso, seja necessário desconsiderar as atividades extrativas.

Ainda que reveladores de uma dinâmica complexa que supera as visões simplificadoras acerca dos processos de ocupação e reprodução de formas de vida e trabalho na Amazônia, a temática dos conflitos de terras no Oitocentos, sobretudo envolvendo posseiros, tem merecido pouca atenção dos estudiosos. Recuperar empiricamente esses conflitos é fundamental para compreendermos a diversidade dos sujeitos e das modalidades de ocupação que compunham o território paraense de fins do século XIX e início do século XX. Entendemos que esse período histórico é crucial, pois é no limiar do século XX que assistimos a um conjunto de esforços dos governos republicanos paraenses que visam consagrar uma dada concepção liberal de propriedade da terra que tem no exclusivismo individual e na segurança jurídica do domínio o seu corolário. Longe de se apresentar de forma harmônica e sem resistência, tais ações defrontam-se com uma dinâmica complexa na qual outras maneiras de se conceber os direitos de propriedade da terra fazem parte de práticas de apossamento que continuam a eleger princípios de legitimidade ancorados na efetividade do uso do solo e dos recursos disponíveis, em face da exigência jurídica do título de propriedade.15 15 Em nossas reflexões procuramos afastar quaisquer ideias “evolutivas” de propriedade, sobretudo quando partem do pressuposto de que a propriedade privada individual protegida juridicamente, erigida à perfeição no século XIX como corolário do capitalismo, dado seu vínculo normativo com um aparato legal criado para sua salvaguarda, resultaria de um desenvolvimento linear e inexorável, deixando para traz outras modalidades de acesso à terra cuja característica fundamental reside menos em uma formalização jurídica do que numa estreita relação direta com a terra, resultante de relações sociais concretas que a engendram (CONGOST, 2007).

O desafio que ora propomos consiste em lançar luz sobre as ações de posseiros em suas lutas diárias por direitos de propriedade em parcelas de terras em uma região específica do Pará, a chamada zona bragantina, marcada, na segunda metade do XIX e início do XX, por projetos de criação de núcleos coloniais e de imigração de estrangeiros e nacionais vindos do Nordeste, principalmente cearenses (CRUZ, 1955CRUZ, Ernesto. A Estrada de Ferro de Bragança: visão social, econômica e política. Belém: Conselho Nacional de Pesquisa - Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia. Falângola, 1955. ; PENTEADO, 1967PENTEADO, Antonio Rocha. Problema de colonização e de uso da terra na região Bragantina do Estado do Pará. Coleção Amazônia: Série José Veríssimo. Belém: UFPA, 1967. ; NUNES, 2009NUNES, Francivaldo Alves. Benevides - uma experiência de colonização na Amazônia do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. Corifeu, 2009. ; LACERDA, 2010LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí , 2010.). Por ser identificada como área de colonização recente, a região, compreendida pelo percurso da estrada de ferro, tem sido tratada pela historiografia quase unicamente como espaço de experiências colonizadoras dirigidas pelos Estados imperial e, principalmente, republicano (REBELLO; HOMMA, 2017REBELLO, Fabrício Khoury; HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. História da colonização do nordeste paraense: uma reflexão para o futuro da Amazônia. Belém: EDUFRA, 2017.). Nessas abordagens, a figura do colono imigrante, estrangeiro ou nacional, acabaria por obscurecer a do posseiro, aquele que continuava a fazer parte da paisagem agrária da região, e que nela já residia antes mesmo da criação dos núcleos.16 16 Para a Paróquia de São Vicente de Inhangapi, região da bragantina aqui considerada, o recenseamento de 1872 informava que residiam na área 1852 “almas”, dentre as quais 1545 eram de pessoas livres (871 homens e 674 mulheres) e 307 eram de escravos (174 homens e 183 mulheres). Interessante observar que, quando considerada pela profissão, a maioria da população é declarada como composta de “lavradores” (952). Esse número de pessoas dedicadas a atividades de lavoura decerto era ainda maior, pois, se considerarmos que outro grande grupo, declarado como o dos “sem profissão”(866), muito provavelmente dedicava-se ao trabalho agrícola. Cf. Recenseamento do Brasil, 1872 - Pará, p. 13-15.

A ênfase quase exclusiva dada pela historiografia aos núcleos coloniais e aos imigrantes estrangeiros e nordestinos que afluíram para o Pará a partir do último quartel do século XIX acaba por reverberar o relevo dado pelas autoridades imperiais e republicanas defensoras da ocupação da região pela colonização, contribuindo, assim, para a produção de uma invisibilidade acerca de sujeitos - pequenos posseiros, muitos dos quais indígenas e libertos - que ocupavam a região cultivando terras e utilizando-se dos recursos de rios e florestas, dispersos ou adensando-se no decurso dos anos em pequenos povoados e vilas. A leitura de uma documentação, ainda não cotejada devidamente pelos pesquisadores, tem demonstrado que não só é possível afirmar que a ocupação por pequenos lavradores, posseiros e pequenos proprietários, mas também grandes fazendeiros/posseiros e herdeiros de sesmaria, encontra-se numa presença constante na região desde antes da criação dos núcleos coloniais, como manteve-se concomitante à chegada dos contingentes de imigrantes de diferentes nacionalidades nas décadas finais do Império e no início da República.17 17 Trata-se de documentação judicial, especialmente processos de embargo e de esbulho, como as ações de “força velha” e “força nova”, autos de medição e demarcação de terras, títulos de legitimação de posse, processos de manutenção de posse etc., bem como de inúmeras notícias e documentos reproduzidos em jornais paraenses num período que compreende as décadas finais do Império e as primeiras décadas da República. As ações de embargo costumam trazer grande parte desses documentos anexados às folhas do processo, como é o caso do que analisamos aqui. A documentação referida foi pesquisada no Centro de Memória da Amazônia pertencente à Universidade Federal do Pará.

Não se pretende com tal argumento diminuir a importância e variada contribuição, em inúmeros sentidos, das centenas de famílias de estrangeiros e nacionais que migraram com destino aos núcleos coloniais do Pará em fins do século XIX e início do XX (BENCHIMOL, 2009BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: formação social e cultural. Manaus: Editora Valer, 2009.; LACERDA, 2010LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí , 2010.; EMMI, 2013EMMI, Marília Ferreira. Um século de imigrações internacionais na Amazônia brasileira (1850-1950). Belém: Editora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA), 2013.). Trata-se, no entanto, de redimensionar esse processo de ocupação lançando luz sobre apropriações e relações precedentes, ao mesmo tempo em que permite compreender a dinâmica da posse e dos conflitos de terras protagonizados por pequenos e grandes posseiros, fazendeiros e herdeiros de sesmarias, na dita região nas décadas iniciais da República, aspectos que permanecem encobertos se considerarmos tão somente os espaços compreendidos pelas colônias agrícolas, ou, o que é mais grave, estender a experiência dos núcleos coloniais para toda a região como única forma de ocupação.

Para além da historiografia, cumpre lembrar que a invisibilidade dos conflitos por terra no Pará, no século XIX e início do XX, advém, dentre outras razões, de uma imagem cristalizada para a qual contribuíram inúmeros discursos que atribuem à região uma abundância de terras férteis e disponíveis, o que consagrou esse espaço como permanente reserva de terras prontas a serem ocupadas ao sabor das políticas estatais do momento, seja pelo “vazio demográfico”, seja pela incapacidade de sua rarefeita população em explorar e gerir os recursos disponíveis (PEREIRA, 2016PEREIRA, Edir Augusto Dias. Ensaios de Amazônia: representações espaciais da região no ensaísmo brasileiro. Niterói: Eduff , 2016.). Os discursos dos governantes, sobretudo as mensagens dos presidentes de província e dos governadores ao longo do período, bem como dos agentes comprometidos com a normatização e legislação agrária, operavam um verdadeiro silenciamento acerca dos conflitos de terra no Pará, das inúmeras ações de esbulho e despejo que revelavam ao mesmo tempo o poder e influência de grandes posseiros e terratenentes e a teimosa resistência de pequenos posseiros, ao passo que expunham a frágil condição das posses adquiridas por meio da ação destes últimos. Mas esse cenário, longe de ser unidirecional, revelava também a força do costume da posse e da percepção de justiça dos pequenos lavradores em suas lutas para serem reconhecidos como posseiros e não como “invasores” (MOTTA, 2008MOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101.b).

A requisição de títulos de posse ganhou no Pará extrema relevância nos anos iniciais da República, sobretudo a partir de 1891, quando, ao longo desse ano e do seguinte, o primeiro governo constitucional republicano paraense de Lauro Sodré (1891-1897) aprovaria uma série de decretos por meio dos quais iria embasar sua primeira legislação de terras aprovada em 1892 e regulamentada em 1900.18 18 A criação da Lei n. 713 de 2 de abril de 1900 mandou regulamentar a Lei n. 82 de 15 de setembro de 1892. Essas leis surgiram da reunião de inúmeros decretos lançados ao longo do ano de 1891 e 92. Para uma síntese do histórico dessas leis e decretos, ver PALMA MUNIZ (1924). Largamente inspirado na legislação sobre terras do Império, o Decreto nº 410, de 8 de outubro de 1891, estabelecia regras para a “legitimação de posses mansas e pacíficas”, além de conceder novo prazo para a revalidação de sesmarias e o reconhecimento de outras concessões de terras do governo.19 19 Ao que parece, esse foi um traço comum às diferentes legislações estaduais sobre terras na Primeira República. Segundo o historiador Marcio Both (2011), “No que tange a formulação de suas legislações agrárias, os estados tomaram como ponto de partida a lei de terras de 1850 e o seu regulamento de 1850. Embora, a análise comparativa entre as leis de terras estaduais demonstre a existência de diferenças entre elas, alguns pontos são recorrentes e eles demonstram o seu caráter instrumental, uma vez que tinham como fundamento não alterar profundamente o processo de apropriação já em andamento” (BOTH, 2011, p. 42).

A expectativa era de que os “títulos de posse”, concedidos pelos governos republicanos em favor dos posseiros viessem a resultar em subsequentes processos de legitimação de suas posses, o que conferiria tanto o caráter de propriedade privada individual da terra quanto a conformação no Pará de lavradores disciplinados, posto que em tudo deveriam contrapor-se ao tradicional “roceiro”, o caboclo da Amazônia, cujo traço marcante era sua frequente mobilidade e capacidade de conciliar diferentes atividades combinadas de pesca, caça e coleta de produtos silvestres, bem como extração de madeiras e aproveitamento dos recursos da floresta. Era o lavrador “de beira de rio”, nas palavras do engenheiro paraense João de Palma Muniz (1924MUNIZ, João de Palma. Legislação de Terras: dados estatísticos. Pará: Instituto Lauro Sodré, 1924.), o roceiro pobre tantas vezes apontado por intelectuais e pelas autoridades imperiais e republicanas paraenses como a causa do atraso da agricultura na região.

Tratava-se, sobretudo, de uma crítica a modos de usos da terra que contrariavam a perspectiva da propriedade privada circunscrita aos limites da fixação do homem ao solo por meio de marcos precisos e legalmente definidos. Acreditamos que a crítica perpetrada pelas autoridades republicanas deslocava-se cada vez mais nesse momento da figura individual do “roceiro”, tido por indolente e primitivo e apontado com o principal responsável pelo atraso da agricultura no estado, para o obstáculo que representava suas formas plurais de acesso e ocupação da terra, que divergiam em larga medida do modelo de propriedade privada necessário para que um mercado de terras estável e lucrativo pudesse ser difundido em todo o estado. Muito embora queixas quanto ao uso inadequado da terra em decorrência de práticas extrativistas e da persistente mobilidade das populações pobres fosse uma constante entre vários presidentes de província ao longo do Império (NUNES, 2016NUNES, Francivaldo Alves. Terras de Colonização: agricultura e vida rural ao Norte do Império brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2016.), entendemos que foi durante os primeiros governos republicanos no Pará que a questão assumiu de forma mais contundente a relação direta entre propriedade, identificada aqui como domínio legitimado pelo Estado sobre área medida e demarcada, e prosperidade agrícola decorrente da estabilidade e clareza em relação aos limites dos lotes de terras.

De acordo com o § 1º do Artigo 5º da Lei n.º 82 de 15 de novembro de 1892, seriam legitimadas, “As posses mansas e pacíficas com cultura efetiva e morada habitual, havidas por ocupação primária e registradas segundo o regulamento que baixou com o Decreto n° 1318, de 30 de janeiro de 1854”, desde que estas estivessem em poder do primeiro ocupante ou de herdeiros dos mesmos. A obtenção do título de posse equivalia, nesse sentido, a um novo registro das posses junto à Repartição de Terras Públicas do Estado, tornando-se, a partir daí, sujeitas à legitimação conforme a legislação estadual. Interessante apontar que a Lei 82 de 1892 previa como legitimáveis todas as posses que, “tenham sido estabelecidas sem protesto ou oposição antes de 15 de novembro de 1889, mantidas sem interrupção depois dessa data”, desde que nelas fossem comprovadas morada habitual e cultura efetiva (PARÁ, 1908PARÁ, Governo do Estado do. Álbum do Pará: oito anos de Governo (Augusto Montenegro). Paris: Chaponet, 1908. ).20 20 A referia Lei reconheceu aos posseiros o direito de posse aos terrenos que tinham beneficiamento, até 4.356 ha, em campos de criação; 1.089 ha, em terrenos de lavoura, e 545 ha, em áreas dedicadas à indústria extrativa.

O que na prática o governo republicano fazia era desconsiderar o que previa a Lei de Terras de 1850, inaugurando, portanto, uma nova fase para o registro de posses e revalidação de sesmarias, algo que, em vista da dita legislação imperial, já deveria ter ocorrido, seja para o reconhecimento das posses havidas até a data de promulgação da referida lei, seja para que, a partir daquela data, nenhuma terra devoluta fosse adquirida mediante apossamento. O que a análise dos litígios de terras protagonizados por pequenos e grandes posseiros no Pará da segunda metade do século XIX nos desvela é justamente a continuidade da posse ao arrepio da Lei de Terras, o que a legislação estadual dos primeiros governos republicanos buscava corrigir, ao mesmo tempo em que reconheciam a força da posse e da figura do posseiro.21 21 Márcio Both (2011) aponta que, nos anos iniciais da República no Rio Grande do Sul, a legislação estadual também fixou prazo para reconhecimento de posses e revalidação de sesmarias, o que se configurava, na prática, em uma anulação da Lei de Terras de 1850, como é o caso verificado para o Pará. Nesse cenário conflituoso, tornou-se frequente o uso de tais documentos de posse adquiridos no governo republicano como garantidor de domínio em face de querelas que opunham pequenos e grandes posseiros entre si e contra herdeiros de sesmaria caídas em comisso. O uso da carta de sesmaria, nesse sentido, quando mobilizada em função de uma disputa por terras, exercia verdadeiro poder de legitimidade na resolução dos conflitos, ainda que se tratasse de documento que raramente poderia ser reivindicado pela precisão de suas informações. Era justamente na possibilidade de dilatar a área reivindicada como domínio, somada ao fascínio que a antiguidade da carta exercia sobre advogados e juízes, que residia o poder de seu detentor.

Em 1900, já no governo de José Paes de Carvalho (1897-1901), o tema da posse da terra vinha à tona por meio de Mensagem anual enviada à Assembleia Legislativa, onde, em meio a várias propostas para o desenvolvimento agrícola do Pará, dentre as quais a necessidade de pôr fim às colonizações subsidiadas pelo Estado, o governador afirmava que, em face da continuidade da prática do apossamento de terras públicas, era urgente “quanto antes tratar de garantir de modo inconcusso a propriedade e evitar a ocupação ilegal das terras devolutas” (PARÁ, 1900PARÁ. Mensagem Dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho governador do Estado em 1 de fevereiro de 1900. Belém: Typografia do Diário Oficial, 1900.). No ano seguinte, último de seu mandato, Paes de Carvalho seria ainda mais enfático em ralação ao tema:

Quanto à venda de terras devolutas (...) evita por simples ocupação de alguns posseiros dissidiosos e atrasados, vá a produção se esterilizando, com prejuízo do Estado, em excelentes terras já muito valorizadas, não só nas margens da estrada de ferro, como em outras zonas do interior (PARÁ, 1901PARÁ. Mensagem Dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho governador do Estado em 1 de fevereiro de 1900. Belém: Typografia do Diário Oficial , 1901., p. 86).

Na primeira década do século XX, durante o governo de Augusto Montenegro (1901-1907), por meio da Secretaria de Obras Públicas, Terras e Viação, seria posta em prática uma intensa política de terras que buscava regularizar as diferentes situações jurídicas que obstaculizavam o ordenamento da ocupação nas variadas regiões do estado. Segundo informa o engenheiro e então chefe da 3ª Seção da Secretaria de Obras Públicas, Terras e Viação, Palma Muniz (1907MUNIZ, João de Palma. Índice Geral do Registro de Terras. Belém: Secretaria de Estado, Obras Públicas, Terras e Viação. Governo Augusto Montenegro, 1907. ), entre os anos de 1901 e 1906, foram expedidos 2.649 títulos de terras, dentre os quais: 468 títulos de legitimação de posse; cerca de 200 títulos definitivos mediante venda de terras a particulares (195 definitivos e 55 por título provisório de compra). Muito embora indiquem um aumento no número de registros de possessões, o que era inegavelmente parte das ações estatais de disciplinarização da ocupação das terras do estado, os números divulgados e propagandeados pelo governo não revelam, entretanto, as dezenas de conflitos envolvendo posseiros ocorridos no processo de regularização fundiária do Estado nas primeiras décadas republicanas.

O caso de litígio de terras que iremos abordar adiante, para o qual utilizaremos documentação ainda não trabalhada por outros pesquisadores, a saber, uma Ação de Força Velha Espoliativa datada de 1897, sintetiza em grande medida inúmeros aspectos presentes noutros tantos conflitos ocorridos no período, tanto na zona bragantina, onde se deu, quanto alhures. Trata-se de uma disputa entre posseiros por terras localizadas na margem do rio Apeú, próximas à vila de mesmo nome.

Posseiros x posseiros: o caso das posses dos sítios Paraízo e São José nas terras do Apeú

Em 21 de outubro de 1905, o lavrador Manoel Raymundo de Souza por meio de seu advogado e procurador, solicitava ao Juiz de Direito da Primeira Vara da Capital Belém que se juntasse aos autos de uma Ação de Força Velha, na qual era réu juntamente com sua esposa Maria de Nazareth de Souza desde a abertura do processo, no ano de 1897, 22 22 A Ação de Força Velha consistia numa ação de esbulho aberta pelo autor (suposto possuidor/proprietário) que denunciava a presença de atos e tomada arbitrária de uma posse por parte de um ou mais sujeitos que se tornariam réus (supostos “invasores”) no processo. A “força velha” era aberta quando o ato de esbulhar já passava de um ano e um dia. Para os casos de esbulhos que duravam menos que o prazo de um ano e um dia abria-se uma ação de força nova (CHRISTILLINO, 2011). o título de posse concedido pela então Secretaria de Obras Públicas, Terras e Colonização do governo Lauro Sodré (1891-1897) ao seu pai, Fernando José de Souza, na ocasião, já falecido.23 23 Centro de Memória da Amazônia/UFPA. Translado de Título de Posse requerido por Fernando José de Souza (1905). O referido documento, assim como os demais doravante citados, encontra-se anexados ao processo de Ação de Força Velha que estamos analisando neste artigo. O referido documento transladado a pedido de Manoel Raymundo de Souza em 1905, datava de 1894, ano no qual seu pai obteve para as terras que ocupava “mansa e pacificamente” e, de acordo com a defesa, há mais de trinta anos, o título de uma posse que media cerca de trezentas braças de frente e mil e duzentas de fundo, onde teria fundado o Sítio Paraízo, localizado nas margens do rio Apeú, próximo à vila de mesmo nome, e agora de posse de Manoel Raymundo de Souza, que se apresentava perante a justiça como posseiro naquelas terras.

O Apeú à época pertencia à municipalidade de Belém e fazia parte de extensa faixa de terras que compunha a chamada zona de influência da Estrada de Ferro de Bragança, cujas obras foram iniciadas em 1883 e seriam concluídas em 1908. A localidade situava-se a caminho de um conjunto de colônias agrícolas criadas desde o Império e que seguiam o curso dessa estrada (SANTOS, 2016SANTOS, Francisnaldo Souza dos. Ações colonizadoras em descompasso: legislação, propaganda e atuação de colonos estrangeiros nos últimos anos do Império e início da República. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) - Faculdade de História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2016.).24 24 A Colônia Agrícola do Apeú foi criada no ano de 1883, pelo então Presidente de Província Enéas Galvão (1882-1884), o Visconde de Maracaju. O núcleo colonial do Apeú foi uma das cinco colônias agrícolas criadas ainda no Império. As demais foram: Benevides (1875), Santa Izabel (1883), Araripe (1886) e Castanhal (1889). O núcleo de Araripe, atual município de Americano, foi criado a partir do desmembramento do núcleo do Apeú. Excetuando o antigo núcleo do Apeú, todos esses outros núcleos coloniais são hoje municípios da região bragantina do Pará. A Estrada de Ferro de Bragança chega à colônia do Apeú no ano de 1888, completando naquele ano um trecho total de 61 km que tinha início na estação de São Braz. A localidade do Apeú, que tem esse nome devido ao rio homônimo25 25 O rio Apeú, que tem uma extensão de cerca de 30 km, é o mais importante afluente do rio Inhangapi, principal rio da região de Castanhal e que deságua no Rio Guamá. , constituiria, a partir de fins do século XIX, em área estratégica para a produção de gêneros de lavoura e farinha de mandioca, visando o abastecimento da Capital. Com a criação da Colônia Agrícola do Apeú, em 1883, e a chegada dos trilhos, entre 1885 e 1888, o local passaria a integrar uma faixa de núcleos coloniais criada às margens da estrada de ferro que se estenderia de Belém até Bragança. As pesquisas realizadas demonstram que o processo de ocupação dessa região em fins do século XIX, mais especificamente o trecho de cerca de 200 km ao longo da ferrovia que ligava a cidade de Bragança à capital Belém, seria historicamente marcado como região de colonização com forte presença de imigrantes de diferentes nacionalidades. A presença de migrantes nordestinos, sobretudo cearenses (LACERDA, 2010LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí , 2010.), foi um fator que, sem sombra de dúvidas, imprimiria traços indeléveis nos grupos sociais e na cultura regional que ali se construiu e que perduram até hoje (CONCEIÇÃO, 2002CONCEIÇÃO, Maria de Fátima Carneiro da. Reprodução social da agricultura familiar: um novo desafio para a sociedade agrária do nordeste paraense. In: HÉBETTE, Jean; MAGALHÃES, Sônia Barbosa; MANESCHY, Maria Cristina (orgs.). No mar, nos rios e na fronteira: faces do campesinato no Pará. Belém: Edufpa, 2002, p. 133-171. ). Esse é o caso da localidade do Apeú, hoje distrito do município de Castanhal, a mais populosa e uma das principais cidades do nordeste paraense, que tem como traço marcante exatamente a presença de descendentes de cearenses que migraram para o núcleo colonial que margeava a estrada de ferro em fins do século XIX.

De acordo com a historiadora Franciane Lacerda (2018LACERDA, Franciane Gama. Uma “artéria necessária” para o progresso: a Estrada de Ferro de Bragança (Pará, 1883-1908). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, vol 10, n. 19, p. 226-248, janeiro de 2018. ), a construção da Estrada de Ferro de Bragança era defendida pelos sucessivos governantes paraenses como uma realização grandiosa que conferiria ao Pará o status de desenvolvimento chancelado pela divisa do progresso. Tratado como um serviço público que visava atender diferentes demandas da população paraense ao mesmo tempo em que emergia como projeto que intencionava “civilizar” as populações do interior, a construção da Estrada de Ferro de Bragança faria parte de um conjunto de medidas adotadas pelos governos republicanos que buscava materializar na Amazônia um projeto de modernidade que conjugava a abertura de vias férreas para o transporte de passageiros e de produtos de lavoura e extração, sobretudo o extrativismo de madeiras, a criação de áreas de produção de gêneros alimentícios por meio da inauguração de núcleos coloniais, a disciplinarização da mão de obra de imigrantes estrangeiros e migrantes nacionais em áreas diretamente controladas pelo Estado.

A implantação de trilhos para abertura de estradas de ferro em áreas de floresta, como fora o caso da Estrada de Ferro de Bragança, se deu sob a égide da ausência de ocupação nas áreas em que passaria a via. Essa visão é corroborada, nesse caso, pela memória que associa a ocupação da zona bragantina a partir dos núcleos coloniais que foram sendo criados no entorno da estrada e pela própria historiografia que tende a tomar a construção da estrada de ferro como uma espécie de marco inaugural da ocupação da região. Contudo, assim como noutras experiências similares, como a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e mesmo a Estrada de Ferro do Tocantins, essas regiões eram ocupadas, ainda que de forma dispersa, por populações nativas e famílias de lavradores, muitas das quais seriam drasticamente afetadas pelas ferrovias (HARDMAN, 1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade da selva. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.).

Se, por um lado, o conflito ocorrido na localidade do Apeú entre os posseiros Manuel Raymundo de Souza e Claro Gomes Lameira resulta de um processo de ocupação que remonta a período anterior à construção da Estrada de Ferro de Bragança, fator que atesta a presença de moradia e cultura da terra em áreas consideradas “vazias”, portanto, da existência de práticas efetivas de ocupação anteriores à abertura dos trilhos e à criação dos núcleos coloniais, por outro lado, ao verificarmos o acirramento da querela entre os posseiros num momento em que a via férrea já alcançara a localidade, o que ocorrera em 1888, podemos aventar a hipótese de que o interesse e a busca pela obtenção do título de posse das terras em disputa resulta, em parte, da percepção de valorização das ditas terras, ao que se somaria a dinamização da região pela criação das colônias agrícolas.

Nas terras do Sítio Paraízo, pertencentes ao posseiro Manoel Raymundo havia, conforme consta tanto da descrição da transcrição do título de posse quanto nos vários testemunhos no decurso do processo, bem como em vistoria oficial realizada na dita posse no ano de 1897, uma casa de telhas de barro e dois retiros cobertos de telhas de cavaco, além de vasta lavoura formada por roças de mandioca e cacau, e do cultivo de centenas de árvores frutíferas das mais variadas espécies, constituindo-se, portanto, num conjunto de práticas de atos possessórios que combinavam o cultivo e a exploração de atividades silvestres, comprovando não somente a ocupação e fixação como a exploração produtiva da terra.26 26 Centro de Memória da Amazônia/UFPA. Auto de Vistoria do “Sítio Paraízo” requerido por Manoel Raymundo de Souza. Nota-se que as edificações, casa e retiros, bem como as plantações, são mobilizadas como argumento de comprovação de domínio e, principalmente, como prova de que não se trata de esbulho, mas de um ato contínuo de permanência, estabilidade e uso da terra.27 27 A repetição ao longo de todo o processo de que a casa de Manoel Raymundo possuía telhas de barro (material que distinguia a morada do posseiro de outras cobertas com palha) demonstra o quanto a defesa se apoiava na estratégia de afirmar que a ocupação não só era de longa data como a qualidade do material (telhas de barro) eram prova, dentre outras, de que havia fixação e estabilidade. Consta ainda que a posse confrontava pelo lado direito com terras de Francisco Gomes de Oliveira, pelo lado esquerdo com posse de Claro Gomes Lameira, e, pelos fundos, com “terras nacionais”. Buscando legitimar sua posse por meio de respaldo legal atendendo à legislação vigente, a solicitação do título da posse do Sítio Paraízo fazia ainda referência ao cumprimento das premissas contidas no artigo 125 da Lei de Terras de 1850 quanto ao direito advindo de uma posse cultivada há várias décadas e na qual residiam moradores “mansa e pacificamente”, portanto sem contestação de qualquer natureza.

A querela tem início, pelo que nos permite entrever a documentação consultada, antes mesmo da Ação de Força Velha, que data de 1897. Ela principia quando, em setembro de 1895, o posseiro Manoel Raymundo de Souza e seu irmão Raymundo Damasceno de Souza, morador e agregado nas mesmas terras, contestam juridicamente, por meio de pedido de nulidade, a medição e demarcação realizada por Claro Gomes Lameira em terras por este denominada de Sítio São José.28 28 Centro de Memória da Amazônia. Autos Cíveis de Justificação de Posse e Nulidade de Demarcação requerido por Manoel Raymundo de Souza e seu irmão Raymundo Damasceno de Souza. Belém, 3 de agosto de 1885, fl. 14. O motivo da querela é que a demarcação realizada em julho desse mesmo ano incluía a posse de Manoel Raymundo como parte da área reivindicada como sua por Claro Lameira, o que, por meio da documentação produzida pelos agrimensores e advogados, transformava as duas posses existentes em apenas uma, e, como consequência, convertia pari passu o posseiro Manoel Raymundo em “invasor”.

Muito embora não conste da documentação da ação de esbulho no decorrer do processo, o pedido de nulidade e as reclamações de Manoel Raymundo não foram atendidas, visto que, conforme pudemos verificar em despacho do Governo, datado de 6 de novembro de 1896, e publicado no jornal Folha do Norte no dia seguinte, negava-se o recurso do posseiro e mantinha-se a sentença dada anteriormente pelo diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização em favor da demarcação realizada a pedido de Claro Lameira. O mesmo jornal anunciava, em edição do dia 27 de novembro, que Claro Gomes Lameira, “Da Repartição de Obras Públicas foi ao governo para assinar o título de legitimação de posse São José, Apehú.”29 29 Folha do Norte, 27 de novembro de 1896. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/101575/1288. Acesso em 10 de agosto de 2018, p. 2.

O passo seguinte da ação se deu por parte de Claro Gomes Lameira através da já referida Ação de Força Velha Espoliativa. Tendo obtido sucesso na demarcação de 1895, quando incluiu o Sítio Paraízo dentro dos limites declarados, e obtido o título de legitimação da posse, que incluía tanto o Sítio São José quanto as terras do Sítio Paraízo, Claro Lameira move, em fevereiro de 1897, uma ação de esbulho contra Manoel Raymundo com o intuito de retirá-lo das terras que alega ser “senhor e possuidor”, além de exigir indenização pelos “danos e perdas” provocados pelo réu. Claro Lameira alega ser dono de toda área que abrange o sítio São José e o sítio Paraízo, uma área total que media cerca de 495 ha, segundo consta de título de posse expedido pelo governo estadual em seu nome. De acordo com uma testemunha ouvida no processo, o lavrador, e também posseiro, Joaquim Antônio da Silva, de 60 anos, Claro Lameira desde muito pretendia as terras do Sítio Paraízo, tendo em vista dessa pretensão incluído a posse de Manoel Raymundo na demarcação realizada em 1895, e agora alegando serem pertencentes à área reivindicada como sua no processo de esbulho no qual era o Autor.

Interessante observar que uma das estratégias presentes na defesa de Manoel Raymundo durante todo o processo consistia, opondo-se aos argumentos de defesa de Claro Gomes Lameira, em afirmar que o posseiro herdara de seu pai o dito Sítio Paraízo e que nele residia e cultivava as terras há mais de trinta anos. A menção por parte de Manoel Raymundo ao tempo de “trinta anos” como idade da posse neste e noutros documentos ao longo do processo não era por acaso. Nem mesmo acreditamos que o fosse apenas baseado em cálculo unicamente cronológico num esforço de remontar com exatidão ao ano da ocupação. Residia aqui uma clara estratégia de conciliar o tempo de existência da posse, tanto aos requisitos legais que exigiam antecedência para sua legitimação, quanto ao prazo de prescrição de quaisquer ações de esbulho que porventura pudessem por em risco a continuidade de sua posse, uma vez que era esse o prazo legal para que uma posse não mais pudesse ser contestada em processos movidos por ação de esbulho. Segundo a defesa do Réu, se durante o prazo de trinta anos a posse não fosse contestada, mesmo que reconhecidamente as terras pertencessem ao domínio de outrem que não o posseiro que nelas residia, as mesmas não poderiam mais ser objeto de contestação, visto que prescreviam quaisquer atos que configurassem ação com intenção de esbulho por parte do suposto réu.30 30 A defesa de Manoel Raymundo de Souza citava as reflexões do jurista Francisco de Paula Batista como referência para essa afirmação. Trata-se provavelmente de sua obra Compêndio de Theoria e prática do Processo Civil comparado com o Commercial e de hermenêutica jurídica para uso das faculdades de direito do Império, 1898.

O tempo de existência da posse, sempre impreciso e variando a cada testemunha inquirida, seja pelo lado de Manoel Raymundo, seja pelo de Claro Lameira, tornou-se uma verdadeira arena de disputas, visto que a possibilidade de definição dos rumos e resultado do conflito passava pelo poder de dizer a sua duração. Mas não só. Acreditamos que não se tratava apenas do cumprimento de prazos estabelecidos em lei para o reconhecimento da legitimidade da posse ou para a prescrição dos efeitos de esbulho. Inferimos que as lutas pelo tempo da posse permitiam aos litigantes, nesta como noutras querelas, o domínio sobre a memória da ocupação do lugar, o que decerto punha em relevo relações de influência sobre outros posseiros moradores da localidade e posses cujos limites confrontavam com as terras dos querelantes. Tratava-se, portanto, de uma disputa que transcendia o mero domínio sobre a posse, posto que envolvia também aqui o domínio sobre a memória da ocupação das terras do Apeú. Vistas sob esse ângulo, as querelas sobre os direitos de propriedade são também disputas sobre as memórias de um lugar.

Pelo que dissemos até aqui, temos uma disputa iniciada entre posseiros a partir de um confronto que mobilizou títulos de posse obtidos junto ao governo do estado em que as áreas concedidas a ambos se sobrepõem, fator que acirraria ainda mais os conflitos. A política de concessão de títulos de posse pelo governo estadual, como também pelas intendências municipais no período inicial da República no Pará, esbarrava num complexo de fatores, nalguns casos heranças que remontavam ao período imperial, que atuava em conjunto com a nova legislação sobre terras e as tentativas de ordenamento do processo de ocupação de áreas devolutas. O desconhecimento real das áreas tituladas, a imprecisão dos limites declarados, as pretensões de expansão das áreas de posse manifestas na própria imprecisão das declarações, isso tanto para áreas tidas como “nacionais” e aquelas pertencentes aos patrimônios municipais, como para áreas que abrangiam outras posses, nas redes e relações de parentesco, vizinhança e políticas em jogo, e em distintas concepções de direitos por parte de posseiros, dentre outros fatores, competiam para dificultar ou mesmo impedir que os primeiros governos republicanos no Pará alcançassem o objetivo de realizar o desejado mapeamento da situação agrária no estado com vistas a “racionalizar” o acesso à terra. Tais obstáculos convergiam como verdadeiras forças de “contramovimento” (POLANYI, 1980POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980.) que se interpunham ao processo em curso de conversão da terra em mercadoria e na mobilização em favor de uma concepção única de propriedade privada que impedisse o acesso livre por parte de pequenos posseiros.

Vistas sob essa ótica, as concessões de títulos de posse seriam um primeiro passo no intento de atender aos objetivos de impedir definitivamente o livre acesso às terras por lavradores pobres, ao mesmo tempo em que difundia a lógica da propriedade privada fetichizada no documento. O que transforma a obtenção do “título de posse” numa outra arena de luta na medida em que pequenos posseiros irão se apropriar do documento e utilizá-lo como consagração de direitos já afirmados na efetividade da posse, ainda que tal documento tendesse cada vez mais a significar, como sugerimos acima, a própria limitação da mobilidade necessária aos pequenos posseiros para a reprodução de seu modo de vida e trabalho.

Importante esclarecer, no entanto, que, de acordo com a legislação estadual, o título de posse não garantia ao posseiro a “propriedade” da terra. Segundo critérios legais, a propriedade só seria garantida quando da “legitimação da posse”, fase posterior ao “título de posse”, que embora exigisse este uma série de critérios para ser expedido (NUNES, 2012NUNES, Francivaldo Alves. A Lei de Terras no Pará e a política de colonização (estrangeira). In: SARGES, Maria de Nazaré dos Santos; RICCI, Magda (org.). Os oitocentos na Amazônia. Belém: Editora Açaí , 2012. p. 81-108. ), o que nem sempre ocorria, como o episódio do conflito nas terras do Apeú bem demonstra, detinha ainda um caráter de registro, portanto, uma função meramente cadastral, ainda que para o posseiro - e aqui reside nosso interesse - implicasse já em um reconhecimento de sua posse e prova de primeira ocupação, o que fez com que o título fosse utilizado em inúmeros conflitos como prova de posse legítima. No caso da querela das terras do Apeú que temos acompanhado, esse aspecto ganha ainda maior relevo, visto que é a partir da garantia do título concedido ao seu pai que Manoel Raymundo de Souza reivindica o direito à posse enquanto seu legítimo herdeiro. Tanto é assim que, em sua defesa, o advogado do posseiro irá mencionar o Decreto estadual n. 410 de 1891, transformado em lei no ano seguinte, como prova de que o direito de posse era garantido pelo Estado a Manoel Raymundo.

Abordando essa temática, o estudioso Girolamo Treccani (2009TRECCANI, Girolamo Domenico. O título de posse e a legitimação de posse como formas de aquisição de propriedade. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Pará, v. 20, p. 121-158, 2009. ) chama a atenção para não confundirmos “título de posse” com “título de legitimação de posse”. O primeiro teria se constituído num ineditismo da legislação paraense (TRECCANI, 2009TRECCANI, Girolamo Domenico. O título de posse e a legitimação de posse como formas de aquisição de propriedade. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Pará, v. 20, p. 121-158, 2009. ; LAMARÃO, 1980LAMARÃO, Paulo. Comentários à Legislação de Terras do Estado e outros ensaios. Belém: Grafisa, 1980.). Segundo Treccani, para que um título de posse se transformasse em propriedade era necessário que fosse legitimado, “seu detentor precisava provar que tinha dado uma destinação produtiva ao imóvel e medido e demarcado (...)”, (TRECCANI, p. 7).31 31 O autor faz referência ao art. 7° do Decreto nº 410, de 1891. O autor ainda observa vários pontos em comum entre a legislação estadual de 1891 e o registro paroquial de terras do Império, constante do Decreto nº 1.318 de 1850. A principal delas residia no fato de que ambas se originavam de uma declaração feita pelo próprio ocupante das terras. Contudo, a despeito das muitas semelhanças, aspecto para o qual também apontamos, para Treccani a concessão de títulos de terras pelos primeiros governos republicanos no Pará implicava num transcurso de maior complexidade em função de todo um processo que se iniciava com a expedição de edital, seguido de fase em que o requerente deveria comprovar que mantinha cultivo e residia nas terras sem quaisquer contestações. O processo permitia que, em havendo impugnação, se abrisse um litígio administrativo entre as partes, e aqui residia em muitos casos a gênese de variados conflitos. Importante, então, reiterar que os títulos de posse detinham um caráter unicamente provisório, visto que tornavam o posseiro em vias de legitimar suas terras.

Ocorre que, ao analisar os conflitos de terras ocorridos na região do Apeú, observamos que a leitura feita pelos posseiros era a de que, ao obterem o “título de posse”, obtinham também a confirmação de direitos de propriedade, o que na prática significava que o título não inaugurava um direito, mas legitimava um direito pretérito já confirmado na facticidade da ocupação. Esse aspecto surge de maneira clara nas inúmeras manifestações de ambos os lados no decorrer do processo de litígio. Nesse sentido, trata-se menos de apontar os limites e o caráter incompleto do “título de posse” frente aos requisitos necessários para a legitimação de uma dada concepção de propriedade, do que compreender como os posseiros entendiam que a obtenção de tal documento representava o reconhecimento de direitos de propriedade confirmados na prática efetiva da posse, dos usos da terra e dos recursos da natureza. Nesse sentido, o “título de posse” era mobilizado pelos posseiros como importante prova de domínio, ainda que não a única, nas disputas por terra.

O passo seguinte da defesa do posseiro Manoel Raymundo seria o de mover, em maio de 1897, contra Claro Lameira e sua mulher, uma Ação de Força Nova, que pode ser lida não apenas como tentativa de demonstrar que eram legítimas suas pretensões de permanecer no Sítio Paraízo, como também a estratégia era a de desacreditar os alegados direitos de Claro Lameira às ditas terras.32 32 Centro de Memória da Amazônia. Ação de Força Nova de Manoel Raymundo de Souza e sua mulher contra Claro Gomes Lameira e sua mulher. Belém, 8 de maio de 1897, fl. 11. Na referida ação, era Claro Lameira quem esbulhava as terras de Manoel Raymundo. Importante notar que, se pelo lado de Claro Lameira, a estratégia era provar que só havia uma posse legítima, a do Sítio São José, e em cujas terras Fernando José de Souza havia erguido casa de telhas e constituído plantações à revelia de Lameira, pelo lado de Manoel Raymundo, não havia a negação da posse do Sítio São José, havendo, portanto, duas posses legítimas. Em nenhum documento do processo, seja por parte do próprio Manoel Raymundo, seja por seus advogados ou testemunhas, há o desconhecimento da existência da posse de Claro Gomes Lameira, desde que considerada dentro de limites que não incluíssem o Sítio Paraízo.

Na Ação de Força Nova, que também era utilizada no litígio como defesa contra a outra ação, a de força velha na qual era réu, o posseiro Manoel Raymundo, por meio de seu procurador, prometia provar que a posse dos terrenos por ele ocupados “de boa fé” datava “de mais de quarenta anos”. Segundo declaração presente no documento, Manoel Raymundo e seu pai nunca foram incomodados e viviam todos esses anos sem nenhum tipo de contestação de quem quer que fosse, incluindo o próprio Claro Lameira. Invertendo a narrativa da “invasão” das terras de Lameira, a presente versão afirmava que o Sítio Paraízo era anterior ao Sítio São José, e a prova dessa assertiva poderia ser verificada pela idade da casa erguida por Fernando José de Souza e pelas árvores frutíferas cultivadas na posse, bem como na existência de capoeiras que indicavam a presença, há décadas, de uso da terra como finalidade de cultivo.

Mais adiante no processo, fazia-se referência à existência de algumas “capoeiras” resultantes ainda do tempo de cultivos antigos praticados por Fernando José como prova do tempo e da antiguidade da posse. Aqui aparece novamente, como destacamos acima, a impossibilidade de se precisar com exatidão o tempo da posse. Na tentativa dos advogados em dar legitimidade à posse de Manoel Raymundo, o método utilizado parte do referencial empírico visível na própria posse: árvores frutíferas que, pela sua idade, uma vez que foram plantadas pelo posseiro, poderiam ser apontadas como prova da antiguidade da posse; da mesma forma, a presença de capoeiras nas terras de Manoel Raymundo apontaria para a prática do cultivo realizada há anos. Muito embora continuasse sendo difícil comprovar com exatidão o tempo da posse, tanto pela idade das árvores frutíferas, quanto pela das capoeiras, é inegável aqui, na ausência de uma documentação formal, a prática comum de se buscar “documentar” a antiguidade de determinada ocupação a partir de elementos resultantes da efetividade do uso da terra e da modificação do meio como consequência do emprego do trabalho humano.

Declarava-se ainda que as terras de Manoel Raymundo possuíam vastas plantações de “mandioca, cana, tabaco, milho, feijão, etc. etc. com o que empreenderam a lavoura e comércio desse Estado”, ao passo que, nas terras de Claro Gomes Lameira, o Sítio São José encontrava-se abandonado e sem cultura de nenhuma espécie, visto que Lameira não só não se dedicava à lavoura como vivia do comércio no Apeú.33 33 Interessante notar o apelo realizado pelo advogado quanto à contribuição que os cultivos de Manoel Raymundo estariam dando à “lavoura e comércio desse Estado”, no que podemos aproximar o discurso presente na argumentação da defesa com aqueles das agências estatais e do próprio governador Lauro Sodré quanto à necessidade de se desenvolver no Pará uma lavoura disciplinada e dirigida por laboriosos lavradores. A defesa do posseiro buscava sintonizar a produção realizada na posse do Sítio Paraízo com o modelo de lavoura produtiva desejada pelas autoridades paraenses. Aqui presenciamos a tentativa do advogado do réu em desqualificar Claro Lameira como lavrador, enfatizando sua atuação como comerciante, portanto alguém que se dedicava a outra atividade que não o cultivo. Dizer que Lameira era comerciante e que não cultivava sua terra visava retirar-lhe, na razão inversa àquela representada pelo trabalho realizado por Manoel Raymundo, a legitimidade da posse pretendida, cujo caráter legal residia justamente no par morada habitual e cultura efetiva como corolários não só de reconhecimento da legalidade vigente, mas sobretudo de uma mentalidade que associava posse à efetividade sobre a mesma. A defesa buscava articular esse argumento com as normas jurídicas em vigor, tanto que cita textualmente o Decreto n.º 410 de 1891 como marco garantidor da inquestionável legalidade da posse de Manoel Raymundo. Além deste, recupera a Lei de Terras de 18 de setembro de 1850, em grande medida mantida na Lei Estadual de 8 de outubro de 1891, e na lei n. 82 de 15 de setembro de 1892, como fontes incontestes de que por viverem em sua posse, que seria então “de boa fé”, já num período “superior a 40 anos”, o posseiro Manoel Raymundo tinha incontestável direito àquelas terras.

Sobre a acusação feita a Claro Gomes Lameira de não cultivar sua posse e de, ao contrário, dedicar-se a outras atividades que não a lavoura, é difícil sua confirmação pelo que consta nos autos do processo. Contudo, há fortes indícios noutras fontes que apontam para essa possibilidade, o que torna a defesa de Manoel Raymundo próxima da real condição de Lameira e sua relação com a posse do sítio São José. Em edição de 8 de novembro de 1893, o jornal paraense A República noticiava a demissão de Claro Lameira do cargo de subprefeito do Apehú sem fazer referência aos motivos que levaram à demissão.34 34 A República, 8 de novembro de 1893, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/704440/1367. Acesso em 10 de agosto de 2018. Contudo, encontramos no jornal O Democrata, em edição de 28 de outubro do mesmo ano, um episódio que pode ter sido determinante, ao mesmo tempo que revelador de práticas realizadas pelo então subprefeito: Claro Lameira fora acusado de apoderar-se, “por meio da força”, de documentos de posse de terras pertencentes a um tal Veridiano Antônio Monteiro, que, segundo o jornal, teria denunciado ao chefe de segurança do Estado os atos ilegais do subprefeito. 35 35 O Democrata, 28 de junho de 1893, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/186171/4228. Jornal. Em www.bndigital.gov.br. Acesso em 10 de agosto de 2018. Ao que parece, Claro Gomes Lameira exercia certa influência na localidade do Apeú. Além de subprefeito, cargo que, sem sombra de dúvidas, conferia-lhe poder político local, Lameira também fora nomeado, em abril de 1899, Major-fiscal no 1º Batalhão da Reserva da Guarda Nacional da Comarca da Capital do Pará. Logo em seguida, e no decurso dos anos seguintes, faria parte da comissão de alistamento eleitoral do município de Belém, atuando em Castanhal. Sua casa, no Apeú, era uma das seções de votação nas eleições. Sobre sua nomeação ao Batalhão de Reserva da Guarda Municipal, jornal O Pará, 8 de abril de 1899, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/306223/1604. Acesso em 10 de agosto de 2018; para sua atuação como na comissão eleitoral, jornal O Pará, 28 de abril de 1899, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/306223/1673. Acesso em 10 de agosto de 2018.

Os processos oriundos de ações de esbulho são peças valiosas para se tecer as tramas e conflitos de uma dada localidade, posto que é nos confrontos de discursos e testemunhos discordantes e contraditórios que podemos perceber a complexidade de relações sociais erigidas (CHRISTILINO, 2010). Da mesma forma, em consonância com nosso intuito de discutir as distintas concepções de propriedade em disputa, tal documentação nos permite deslindar as estratégias mobilizadas por posseiros do Oitocentos no percurso de defesa e justificação de suas posses. Permite-nos ainda, tal como apontado na primeira parte deste artigo, dar visibilidade a sujeitos sociais cujas ações e lutas cotidianas pela reprodução de modos de vida e trabalho, permanecem obscurecidas. Nesse caso, ajuda-nos a abrir outras perspectivas para compreender que a região bragantina, tida tradicionalmente como tendo sido formada por um processo de ocupação oriundo das colônias agrícolas, formou-se ao longo do tempo com a presença de outros sujeitos, posseiros que residiam naquelas terras décadas antes da implantação das colônias.

Já as testemunhas convocadas pela defesa de Claro Lameira, em sua maioria posseiros próximos da área em litígio, reconhecem o autor da ação e sua mulher, Dionísia Neves Lameira, como “senhores e possuidores” da posse do Sítio São José há mais de trinta anos. Na versão favorável a Lameira, este teria recebido essas terras de sua mãe, Maria Raymunda Lobato, por meio de doação inter vivos. Nessas terras, que, segundo depoimento de Claro Lameira, foram registradas por sua mãe em 1859 como devolutas, foram erguidos casa e roçados por parte do autor, único herdeiro, e, posteriormente, por parte de Fernando José de Souza e seu filho Manoel Raymundo. Nessa versão, a presença dos réus remontava não mais do que há cerca de vinte e cinco anos. Portanto, do que se depreende dessa narrativa, o Sítio Paraízo teria sido constituído “dentro” da posse de Claro Lameira, primeiro ocupante e verdadeiro dono daquelas terras.

Todavia, pelo que já pudemos acompanhar desse litígio até aqui, o caso era muito mais complexo do que uma leitura inicial poderia apreender. Ao avançar na leitura da documentação, nos deparamos com declarações que apontavam para o envolvimento dos litigantes em relações que não se davam tão somente no âmbito da vizinhança, mas que se constituíam em relações de parentesco, posto que, como foi dito pelo autor e por testemunhas, Fernando José de Souza e seu filho Manoel Raymundo eram parentes da esposa de Claro Lameira. Decorria disso que não só a posse de Manoel Raymundo estava no interior da posse do autor como tinha sido deliberadamente consentida pelo mesmo. Claro Lameira teria mandado buscar Fernando José de Souza e sua família na localidade do Guamá, à margem do rio Bujaru, onde residiam. Por essa versão, a chegada de Fernando José de Souza às terras do Apeú deveu-se à intervenção do próprio Lameira, com quem os réus teriam morado por cerca de seis meses a um ano (os testemunhos variam) antes de edificarem uma casa, primeiramente de palha, e iniciarem a exploração das terras e a criação do Sítio Paraízo.

Ainda de acordo com essas mesmas testemunhas, na ocasião em que levantara casa com intenção de morada, Fernando José se comprometera em indenizar Lameira ou mesmo comprar a casa, o que jamais teria se efetivado. Claro Lameira nunca havia recebido qualquer pagamento indenizatório nem de Manoel Raymundo nem de seu falecido pai. Por outro lado, afirmava-se que Lameira não interrompera a posse do Sítio Paraízo em nenhum momento até a ação de força velha em questão. Em versão final, presente na “Razão dos Autores”, afirmava-se que Claro Lameira permitira de “boa fé” que os réus permanecessem na posse, mas que estes não haviam realizado nenhum pagamento e agora se recusavam a reconhecê-lo como único dono das terras que constituíam apenas uma posse, a posse São José. Pelo lado de Manoel Raymundo, tratava-se de uma “doação” realizada por Lameira, e a prova residia justamente na ausência em todos esses anos de qualquer cobrança que implicasse o reconhecimento de que as terras eram de outrem que não dos réus.

Em síntese, a defesa construída pelo autor condensava os seguintes pontos: 1) que Manoel Raymundo acha-se dentro das terras de Claro Lameira, portanto, só existiria uma posse legítima que era a do autor, posse existente há mais de trinta anos e tidas por doação de sua mãe; 2) que foi Claro Lameira quem trouxe o pai dos réus do Guamá para morar consigo no Sítio São José, há mais ou menos vinte e cinco anos, pois eram parentes de sua mulher e pretendia dar-lhes auxílio; 3) que os réus coabitaram com Lameira por quase um ano e só depois construíram casa em suas terras; 4) que o Sítio Paraízo foi construído com o consentimento de Claro Lameira, e que, embora tenha tido a promessa de receber indenização ou compra da casa, nunca recebeu qualquer valor da parte do pai do réu nem de Manoel Raymundo; e, finalmente, 5) que Claro Lameira nunca embargou a casa do réu, e depois de décadas vivendo sem contestação, o litígio se inicia quando Lameira decide demarcar suas terras e se depara com a oposição de Manoel Raymundo por este se recusar a reconhecer que estaria dentro da posse do Autor. A posse de Manoel Raymundo seria, portanto, ilegítima e se constituiria em esbulho das terras de Lameira.

A tese da defesa de Claro Lameira afirmava que a posse de Manoel Raymundo, adquirida por consentimento do autor, configuraria na prática o exercício da “posse precária”.36 36 Para sustentar sua argumentação acerca da posse precária, a defesa de Lameira, por meio do advogado Antônio de Souza Lemos, apoiava-se nos escritos do jurisconsulto Conselheiro Ribas, mais especificamente em sua obra Da posse e das ações possessórias segundo o direito pátrio, comparado com o direito romano e canônico, publicada em 1883. Sobre a posse precária, Antônio Ribas busca sua definição no Direito Romano, segundo o qual tal vício resulta de abuso de confiança, podendo ocorrer em duas circunstâncias: “a) Quando, tendo o rogatus transferido somente a detenção e não a posse, o rogans se atribui também esta, recusando-se a entregar a cousa que lhe foi confiada;” e “b) Quando, tendo o rogatus transferido a posse desde o princípio, se recusa o rogans a restituir a cousa que lhe é exigida, e desde então por esse abuso de confiança, transforma-se a sua posse de justa, que era, em injusta.” Esta, dada sua natureza advinda de concessão voluntária, era interpretada, nos debates sobre direitos de posse e propriedade realizados por jurisconsultos da época, como revogável a qualquer tempo de acordo com a vontade do seu dono (DELVITO NETO, 2016DELVITO NETO. Usucapião e posse precária. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51148/usucapiao-e-posse-precaria . Acesso em 15 de janeiro de 2019.
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). Por essa versão, Fernando José de Souza e posteriormente seu filho, teriam recebido permissão de Claro Lameira para residir e trabalhar naquelas terras com o compromisso de restituir-lhe o favor mediante pagamento, o que, como vimos, nunca foi realizado. Diante de tal fato, Lameira exigia a devolução das terras concedidas conforme instituto da “posse precária”. Em sua razão final, o advogado do autor, Antônio de Souza Lemos, alegava que as terras onde os réus edificaram o Sítio Paraízo resultava de apropriação indevida de terras ocupadas primariamente pelos pais de Claro Lameira, de quem as recebera em doação como único herdeiro, e que, portanto, era único “senhor e possuidor”.37 37 Centro de Memória da Amazônia. Razão do Autores. 12 de novembro de 1898, fl. 58. O Sítio Paraízo não passaria então, no dizer do advogado de Claro Lamiera, de uma “simples detenção do terreno, que lhe haviam sido dados em posse precária”. A sustentar essa tese, o argumento de que Manoel Raymundo jamais conseguira provar de que modo havia adquirido aquelas terras, assim como sua coabitação em casa do Autor, eram provas incontestes de que as teria recebido de Lameira, configurando-se, portanto, numa aquisição que, ora reivindicada pelo “real possuidor”, convertia-se automaticamente em esbulho ante a negação de Manoel Raymundo em restituí-las.

Falando em nome dos réus, a tese final exposta pelo advogado de Manoel Raymundo, Thermistocles A. de Figueiredo, insistia na legitimidade da posse do réu em função do preenchimento dos requisitos legais para o reconhecimento e legitimação das terras. Contestava a versão de Claro Lameira quanto a existência de apenas uma posse. O que motivava Lameira era uma verdadeira “ganância da fartura facilmente adquirida e inveja da esplêndida produção da lavoura largamente desenvolvida pelos Réus Manoel Raymundo de Souza e sua mulher”. Alegava ainda que a Ação de Força Velha Espoliativa não estava amparada pela lei, posto que prescrevera ante a idade da posse de mais de trinta anos, conforme haviam confirmado inúmeras testemunhas ao longo do processo. Sendo assim, Manoel Raymundo de Souza e sua mulher seriam posseiros de “boa fé” e não estavam esbulhando terreno algum do Autor.

A Ação de Força Velha movida por Claro Gomes Lameira contra Manoel Raymundo de Souza cumpre uma dupla função ao longo do conflito pelas terras do Apeú: ao mesmo tempo em que pretende inaugurar uma denúncia de “invasão”, desqualificando a posse do réu enquanto esbulho e convertendo o posseiro em “invasor” de terras alheias, busca produzir prova de domínio do autor na medida em que erige nas instâncias jurídicas documentação comprobatória de propriedade frente àqueles que pretendessem se apossar das terras. Essa estratégia, num cenário em que tanto Lameira quanto Manoel Raymundo possuíam o mesmo documento, o “título de posse” concedido pelo governo do Estado, a ação de esbulho era operada como possibilidade real de exclusão do direito de posse do réu, visto tratar-se de posse ilegítima, posto que havida de “má fé”, segundo pressupostos defendidos no processo. Por seu turno, o posseiro Manoel Raymundo de Souza agia na esteira do costume da posse, reivindicando seu direito a partir do desbravamento de terras “nacionais” e da prática do cultivo, reconhecidos tanto pelo costume quanto pelas leis do Império e sua continuidade na República. Nesse sentido, a luta de Manoel Raymundo se dava tanto no terreno da legitimação de um direito à terra, consagrado na prática efetiva da posse, quanto na tentativa de ser reconhecido como posseiro e proprietário do Sítio Paraízo, e não como “invasor”.

Acreditamos que uma das motivações da pretensão de Lameira em avançar para as terras cultivadas de Manoel Raymundo passa não apenas pela apropriação dessa área cultivada e das benfeitorias edificadas, conforme assevera o advogado do réu, mas guarda o objetivo de remover, incorporando ao seu domínio, o “obstáculo” da posse do Sítio Paraízo, que restringia a expansão das terras de Claro Lameira em direção a áreas providas de recursos a serem explorados. Lembremos que, na declaração do posseiro Manoel Raymundo, sua posse limitava-se ao fundo com terras “nacionais”, portanto áreas de floresta ainda “não ocupadas”, e que significava na prática que deter o domínio sobre tal área implicava em controlar uma vasta reserva de madeiras e outros recursos. Trata-se aqui de um episódio que ilustra muito bem o que a historiadora Marcia Motta (2008bMOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101.) apontou como casos rotineiros no XIX, onde as ações de “pequenos lavradores limitavam a expansão dos fazendeiros e estabeleciam fronteiras, restringindo a ocupação ad infinitum dos grandes proprietários de terras” (MOTTA, 2008bMOTTA, Márica M. Menendes. Posseiros no oitocentos e a construção do mito invasor no Brasil (1822-1850). In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história (concepções de justiça e resistência nos Brasis). São Paulo, UNESP; Brasília, NEAD, 2008b, v. I. p. 85-101., p. 96).

Considerações finais

Tratamos aqui de um litígio de terras que mobilizou duas famílias de posseiros na localidade do Apeú, entre fins do século XIX e início do século XX. Desse, pudemos observar uma série de estratégias utilizadas por ambos os lados com o intuito de reivindicar para si o direito legítimo às terras em disputa, o que resultou numa tessitura de conflitos materializada em ações e argumentos que, se em muitos momentos se repeliam como antagônicos, noutros estavam entrelaçados por narrativas que punham os lados numa trajetória comum enquanto famílias de posseiros que teceram uma história de ocupação na região. Ressaltamos, desde o início, que o entendimento acerca de quais concepções e práticas de propriedade estão sendo mobilizadas devem ser buscadas na efetividade da posse, nas relações concretas entre os sujeitos litigantes, e entre os sujeitos e a terra objeto da querela. Num quadro geral, tratou-se de indagar acerca de conflitos oriundos de relações de propriedade que opunham detentores de direitos de domínio direto (Lameira) e de direitos de domínio útil (Manoel Raymundo). Nesse cenário, uma melhor compreensão para as causas do conflito deveria considerar tanto as incertezas presentes na concessão de títulos de posse por parte da intendência municipal de Belém para a região do Apeú, o que teria produzido uma sobreposição de direitos materializados nos “títulos”, mas gestados antes nas práticas de realização da propriedade por parte dos querelantes, quanto as relações estabelecidas ao longo dos anos entre os próprios posseiros: relações que se iniciam por meio do parentesco, adensam-se no estabelecimento da vizinhança e culminam numa disputa pelo direito de ser reconhecido como legítimo possuidor e proprietário.

Não foi nosso intuito aqui definirmos quem detinha o verdadeiro domínio sobre as terras em disputa, mas de perscrutarmos como os querelantes concebiam seus direitos de propriedade e quais estratégias e recursos foram acionados na tentativa de, ao garantir o “meu” direito, subtrair o de “outrem”, ou, como na perspectiva de Manoel Raymundo, ensejar outro direito de propriedade que, mesmo admitindo o apossamento de área outrora reivindicada por Claro Lameira, inaugura, no decurso da querela, um “novo” direito de propriedade baseado na correlação entre uso produtivo da terra, tempo de morada e estabilidade da reprodução das condições de vida e trabalho.

Não foi possível verificar na documentação que compõe todo o processo de litígio aqui analisado qual a sentença final dada, se em favor do Autor Claro Gomes Lameira, ou do Réu Manoel Raymundo de Souza. Sabemos, no entanto, que ambas as posses constam no Índice Geral do Registro de Terras do Estado do Pará, publicado pela Secretaria de Obras Públicas, Terras e Viação, em 1907, durante o Governo Augusto Montenegro (1901-1909). No Livro de Registro de Posse, realizado pelo então secretário João de Palma Muniz, aparecem os nomes de Claro Gomes Lameira, como tendo registrado a posse do sítio São José, em 11 de dezembro de 1893, e o de Fernando José de Souza, pai de Manoel Raymundo, com registro datado de 20 de julho de 1895, mas sem fazer referência, diferentemente do registro de Lameira, ao nome do sítio. No dito livro de registros não constam mais informações sobre as posses, como tamanho, limites etc. Se tomarmos essas informações como indícios para inferirmos o resultado da querela dos anos anteriores, é possível supor que o posseiro Manoel Raymundo de Souza tenha continuado na posse do sítio Paraízo, tendo senão obtido vitória no litígio do Apeú, ao menos conseguido postergar sua saída. Uma outra possibilidade residiria em aventar a hipótese de que uma solução para a querela tenha sido dada pelo estabelecimento de foro a ser pago por Manoel Raymundo a Claro Lameira... Essa hipótese, contudo, carece de investigação, o que escapa nesse momento às intenções do presente artigo.

Uma questão importante a se considerar é que, ao analisar os desdobramentos do processo acima descrito, podemos perceber que o direito de propriedade para o posseiro Manoel Raymundo consistia no fato de que, mesmo admitindo que seu pai se apossara de área localizada em terras supostamente pertencentes a Claro Lameira, ainda que insistisse se tratar de terras “nacionais”, o uso produtivo e a ocupação da posse converteria aquelas terras num direito a ser pleiteado como legítimo. Ao final de nossa análise das posições adotadas pelas defesas dos querelantes, sem a pretensão de esgotá-las aqui, podemos observar pelo menos duas concepções em disputa acerca dos direitos de propriedade: uma, que reivindica o caráter exclusivo da propriedade, denuncia a “invasão” de seu domínio e defende a existência de uma única posse pertencente a Claro Gomes Lameira; enquanto outra admite sua “imperfeição” ao reconhecer o caráter compartilhado da área, busca legitimidade na cultura efetiva da posse e defende a existência dos dois sítios, portanto dois domínios legítimos. Esta última baseia sua legitimidade no uso efetivo da terra, a partir do qual exercia o domínio de fato sobre a posse, buscando nos costumes e nos interstícios das distintas legislações sobre terras garantir a permanência na posse; enquanto a primeira denunciava o caráter “precário” da posse do réu, resultante, portanto, de um consentimento agora subtraído pela intenção de esbulho, acusando-o de convertê-la em pleno domínio e reivindicando ser o único “senhor e possuidor”.

O caso das terras do Apeú, visto sob uma perspectiva mais ampla, ajuda-nos a vislumbrar que, em determinadas regiões do Pará em fins do século XIX, posseiros se defrontavam com a desestruturação de práticas costumeiras de cultivo e usos de recursos, nos quais a mobilidade e o acesso eram fatores fundamentais. Para essa desestruturação concorreram, por um lado, as iniciativas oriundas dos governos republicanos em promover a fixação do proprietário circunscrito aos limites de seu lote, no que dependia o cumprimento da legislação estadual quanto a medição e demarcação como condição para a expedição do título de posse; e, por outro lado, no avanço dos limites das áreas privadas promovido pelos fazendeiros/posseiros e grandes proprietários sobre áreas ocupadas por posseiros, terras amansadas e capoeiras, assim como áreas de floresta. Nesse cenário tempestuoso que ensejaria inúmeros litígios, restaria ao pequeno posseiro lutar para também demarcar seu lote, o que torna o documento do título de posse o resultado ambíguo, em muitos casos, de uma conquista em querelas contra grandes fazendeiros, ao mesmo tempo que é a consagração de uma modalidade de ocupação da terra que cada vez mais representaria o “fechamento” às áreas outrora abertas.

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NOTAS

  • 1
    Centro de Memória da Amazônia/Universidade Federal do Pará. Autos Cíveis de Ação de Força Velha Espoliativa. Belém, Comarca da Capital, 1897, 66 fls.
  • 2
    Podemos apontar como características gerais do que aqui chamamos de uma “História Social da Propriedade”, dentre outros: a preocupação em desnaturalizar/dessacralizar a ideia de uma propriedade perfeita como resultado de uma evolução histórica inexoravelmente fadada a consagrar a propriedade privada individual e indivisível como corolário do progresso capitalista europeu; a necessidade de se historicizar as diferentes percepções acerca de direitos de propriedade em cada época, o que permite superar as visões monolíticas que partem de um único modelo consagrado no presente para se interpretar formas de propriedade no passado; o entendimento da propriedade como “relação social”, ou seja, verificada na facticidade dos usos da terra e da sua apropriação entre sujeitos, deslocando-a, portanto, de uma visão exclusivamente normativa; trata-se de um transcurso clivado de conflitos onde a proteção jurídica - sobretudo ao longo do século XIX - consagrou determinados direitos em detrimento de outros, ao passo que a resistência e a defesa de outras formas de propriedade demonstram historicamente o caráter plural e móvel da mesma.
  • 3
    A República. Belém, 5 de novembro de 1890, p. 1. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/704440/2382. Acesso em 15/07/2018.
  • 4
    A República. Belém, 5 de novembro de 1890, p. 1. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/704440/2382. Acesso em 15/07/2018.
  • 5
    Para o período inicial da República no Pará, trata-se dos Decretos n. 364 de 2 de julho de 1891; do Decreto n. 396 de 25 de agosto de 1891; do Decreto n. 410 de 8 de outubro de 1891; da Lei n. 82 de 15 de setembro de 1892; a Lei n. 713 de 2 de abril de 1900. Tais decretos e leis, em geral, versavam sobre direitos de posses adquiridos até da data de 15 de novembro de 1889, prazos para demarcação e revalidação de posses e de antigas concessões de sesmarias, além de regras para a separação das terras públicas estaduais das áreas privadas. Interessante observar que boa parte da legislação sobre terras do Pará republicano continuava a ser regulada pelas disposições do Decreto Imperial de n. 1318 de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei de terras de 1850. Todos esses decretos e leis encontram-se coligidos em MUNIZ (1924MUNIZ, João de Palma. Legislação de Terras: dados estatísticos. Pará: Instituto Lauro Sodré, 1924.).
  • 6
    É o caso, por exemplo, de famílias de lavradores do município de Salinas que, ao encaminhar à Intendência abaixo-assinado datado de 4 de fevereiro de 1899, afirmavam ser “moradores e posseiros de terras registradas no rio Axindeua, município de Salinas...”, e reiteravam essa condição ao considerarem-se como “posseiros fundados nas indestrutíveis disposições das leis de terras”. O Pará. Belém, 8 de março de 1899, p. 3. Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/306223/1513. Acesso em 28/10/2018.
  • 7
    São inúmeros os casos de conflitos de terras ocorridos em diversas regiões do Pará nas décadas iniciais da República que podem ser conferidas na documentação disponível. Em levantamento por nós realizado em documentação judicial, abaixo-assinados, protestos e contraprotestos publicados ao longo da década de 1890 em diferentes jornais do período, como O Pará, O Liberal do Pará, Folha do Norte, O Democrata, A República, Correio Paraense, há conflitos de terras em municípios e localidades como Belém (na Freguesia de Inhangapi (Apeú), Vila do Pinheiro [atual Icoaraci], Mosqueiro) e no Acará; na região de Bragança, próxima à área de influência da estrada de ferro; nos municípios de Salinas, São João de Pirabas, e Maracanam, na região do salgado; nas localidades de Gurupá, Breves e Portel, na região do Marajó; nos município de Igarapé-Miri, Cametá, dentre outros. Além do levantamento feito nos periódicos, também cotejamos documentação proveniente de processos cíveis, como ações de força nova e força velha, onde pudemos encontrar uma serie de querelas protagonizadas por pequenos posseiros, réus nas ditas ações. Essa documentação está sob a guarda do Centro de Memória da Amazônia, da Universidade Federal do Pará.
  • 8
    As críticas à Lei de Terras de 1850 e sua pouca efetividade no Pará foram objeto de inúmeras manifestações entre várias autoridades durante o Império. Pimenta Bueno(1882BUENO, Manoel Antônio Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M.A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Junior, 1882. ) se referia aos gastos dispendiosos na aplicação da lei e aos poucos resultados alcançados, posto que “não havia produzido frutos equivalentes” (p. 60).
  • 9
    O autor argumenta ainda que, para além de uma simples questão de povoamento e mesmo de produção de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento da capital, os projetos e políticas imperiais de criação de núcleos coloniais estavam preocupados em ampliar o domínio do território por meio da fixação do homem ao solo em combinação com sua disciplinarização e controle, para o que o modelo da colônia agrícola era compreendido como espaço ideal de realização. Tais projetos far-se-iam na Província do Pará sob a égide da “modernização” das práticas agrícolas e da conversão do roceiro em trabalhador produtivo. Podemos afirmar que essas preocupações continuam presentes nos governos republicanos paraenses, muito embora ao longo dos primeiros governos estaduais a ênfase seja direcionada menos à questão da criação de colônias e mais à difusão de técnicas agrícolas e da propriedade privada da terra.
  • 10
    A imigração estrangeira para o Pará se dá no bojo da diminuição do trabalho realizado por negros escravizados e se intensifica no pós-abolição. O fim da sociedade escravista produziu, na então Província do Pará, poucas mudanças na sua estrutura agrária. Muito embora a Amazônia não tenha se caracterizado ao longo de sua colonização pela instauração de uma economia de exploração agrícola baseada no modelo da plantation, a presença de africanos escravizados ao lado de indígenas em fazendas e plantações foi uma constante desde o século XVII, conforme demonstra Bezerra Neto (2012BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2012.). Para os intentos do presente artigo, importa destacar a possibilidade de que muitos dos libertos e ex-excravizados tenham se tornado posseiros em diferentes regiões do Pará, constituindo, nalguns casos, individualmente ou em grupos, a base do que o historiador Flávio Gomes (2015GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015. ) denomina de um “campesinato negro”, comunidades negras rurais que existiram antes e que se tornariam “invisíveis” a todos os censos no pós-abolição.
  • 11
    Trata-se da Lei n. 226 de 6 de julho de 1893 (MUNIZ, 1904MUNIZ, João de Palma. Patrimônio dos Conselhos Municipais do Estado do Pará. Paris: Aillaud & Cia. 1904.).
  • 12
    Por “mobilidade” refiro-me, dentre outras práticas, à necessária itinerância de parte dos posseiros que se utilizavam das técnicas do encoivaramento, ou “roça de toco”, que implicava no destocamento e queima de áreas de floresta visando preparar a terra para o cultivo. O uso dessa técnica, costumeira na Amazônia e em outras partes do Brasil, terminava impondo a obrigatoriedade de abandonar a área outrora cultivada, deixando-a em descanso [pousio], em busca de novas áreas para o início de novo processo de derrubada e queimada. Essa técnica, muito criticada como primitiva e que levava ao inevitável esgotamento do solo, requeria a existência de terras “livres” para a reprodução da lavoura de pequenos posseiros (Cf. RIBEIRO, 2013SAMPAIO, Patrícia Melo. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais na Amazônia, século XIX. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2014.).
  • 13
    O entendimento da posse como um costume e, portanto, resultante de uma atividade legítima, tem uma longa história que conjuga a facticidade do apossamento com seu reconhecimento em alvarás e ordenamentos régios. Segundo a historiadora Márcia Motta (2008a, p.132), “O apossamento, enquanto costume, consolidou-se como legal a partir da Lei da Boa Razão de 1769.” Ainda segundo a autora, ao reconhecer a legalidade do apossamento, a Coroa vislumbrava a possibilidade de limitar o poder dos sesmeiros e impedir que as terras dadas em sesmarias permanecessem incultas em face da obrigatoriedade do cultivo, o que, na prática, era realizado por posseiros. Como resultante de um longo processo em que a posse e o posseiro adquiriam legitimidade perante a Coroa, fim do sistema sesmarial em 1822 consagraria ainda o entendimento da “importância do cultivo para a legitimação de uma ocupação. Em detrimento, portanto, da importância do título” (Idem, p. 136).
  • 14
    Segundo o artigo 5º da Lei de Terras de 1850: “Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas e com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro.” Embora a lei estivesse considerando as posses havidas até a data de sua promulgação, os apossamentos não findaram naquele momento, continuando, portanto, ao arrepio da legislação. A Lei 82 de 15 de setembro de 1892, primeira legislação de terras no Pará republicano, não só irá reconhecer os apossamentos havidos até o ano de 1889, como abrirá novos prazos para sua legitimação.
  • 15
    Em nossas reflexões procuramos afastar quaisquer ideias “evolutivas” de propriedade, sobretudo quando partem do pressuposto de que a propriedade privada individual protegida juridicamente, erigida à perfeição no século XIX como corolário do capitalismo, dado seu vínculo normativo com um aparato legal criado para sua salvaguarda, resultaria de um desenvolvimento linear e inexorável, deixando para traz outras modalidades de acesso à terra cuja característica fundamental reside menos em uma formalização jurídica do que numa estreita relação direta com a terra, resultante de relações sociais concretas que a engendram (CONGOST, 2007CONGOST, Rosa. Historia, el derecho, e la realidade de las constituiciones sociales en la gran obra de la propriedade. História: Debates e Tendencias - v. 17, n. 2, p. 374-384, jul./dez. de 2017. Entrevista concedida a Ironita A. Policarpo Machado. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.2.7500 . Acesso em 15 de janeiro de 2019.
    http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.2.750...
    ).
  • 16
    Para a Paróquia de São Vicente de Inhangapi, região da bragantina aqui considerada, o recenseamento de 1872 informava que residiam na área 1852 “almas”, dentre as quais 1545 eram de pessoas livres (871 homens e 674 mulheres) e 307 eram de escravos (174 homens e 183 mulheres). Interessante observar que, quando considerada pela profissão, a maioria da população é declarada como composta de “lavradores” (952). Esse número de pessoas dedicadas a atividades de lavoura decerto era ainda maior, pois, se considerarmos que outro grande grupo, declarado como o dos “sem profissão”(866), muito provavelmente dedicava-se ao trabalho agrícola. Cf. Recenseamento do Brasil, 1872 - Pará, p. 13-15.
  • 17
    Trata-se de documentação judicial, especialmente processos de embargo e de esbulho, como as ações de “força velha” e “força nova”, autos de medição e demarcação de terras, títulos de legitimação de posse, processos de manutenção de posse etc., bem como de inúmeras notícias e documentos reproduzidos em jornais paraenses num período que compreende as décadas finais do Império e as primeiras décadas da República. As ações de embargo costumam trazer grande parte desses documentos anexados às folhas do processo, como é o caso do que analisamos aqui. A documentação referida foi pesquisada no Centro de Memória da Amazônia pertencente à Universidade Federal do Pará.
  • 18
    A criação da Lei n. 713 de 2 de abril de 1900 mandou regulamentar a Lei n. 82 de 15 de setembro de 1892. Essas leis surgiram da reunião de inúmeros decretos lançados ao longo do ano de 1891 e 92. Para uma síntese do histórico dessas leis e decretos, ver PALMA MUNIZ (1924MUNIZ, João de Palma. Legislação de Terras: dados estatísticos. Pará: Instituto Lauro Sodré, 1924.).
  • 19
    Ao que parece, esse foi um traço comum às diferentes legislações estaduais sobre terras na Primeira República. Segundo o historiador Marcio Both (2011BOTH, Márcio Antônio da Silva. Babel do Novo Mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925). Guarapuava: Editora Unicentro, 2011.), “No que tange a formulação de suas legislações agrárias, os estados tomaram como ponto de partida a lei de terras de 1850 e o seu regulamento de 1850. Embora, a análise comparativa entre as leis de terras estaduais demonstre a existência de diferenças entre elas, alguns pontos são recorrentes e eles demonstram o seu caráter instrumental, uma vez que tinham como fundamento não alterar profundamente o processo de apropriação já em andamento” (BOTH, 2011BOTH, Márcio Antônio da Silva. Babel do Novo Mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925). Guarapuava: Editora Unicentro, 2011., p. 42).
  • 20
    A referia Lei reconheceu aos posseiros o direito de posse aos terrenos que tinham beneficiamento, até 4.356 ha, em campos de criação; 1.089 ha, em terrenos de lavoura, e 545 ha, em áreas dedicadas à indústria extrativa.
  • 21
    Márcio Both (2011BOTH, Márcio Antônio da Silva. Babel do Novo Mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925). Guarapuava: Editora Unicentro, 2011.) aponta que, nos anos iniciais da República no Rio Grande do Sul, a legislação estadual também fixou prazo para reconhecimento de posses e revalidação de sesmarias, o que se configurava, na prática, em uma anulação da Lei de Terras de 1850, como é o caso verificado para o Pará.
  • 22
    A Ação de Força Velha consistia numa ação de esbulho aberta pelo autor (suposto possuidor/proprietário) que denunciava a presença de atos e tomada arbitrária de uma posse por parte de um ou mais sujeitos que se tornariam réus (supostos “invasores”) no processo. A “força velha” era aberta quando o ato de esbulhar já passava de um ano e um dia. Para os casos de esbulhos que duravam menos que o prazo de um ano e um dia abria-se uma ação de força nova (CHRISTILLINO, 2011CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Ação de Esbulho. In: MOTTA, Márcia; GUIMARÃES, Elione. (orgs.). Propriedades e Disputas: fontes para a história do oitocentos. Guarapuava: Unicentro; Niterói: Eduff, 2011. p. 87-89.).
  • 23
    Centro de Memória da Amazônia/UFPA. Translado de Título de Posse requerido por Fernando José de Souza (1905). O referido documento, assim como os demais doravante citados, encontra-se anexados ao processo de Ação de Força Velha que estamos analisando neste artigo.
  • 24
    A Colônia Agrícola do Apeú foi criada no ano de 1883, pelo então Presidente de Província Enéas Galvão (1882-1884), o Visconde de Maracaju. O núcleo colonial do Apeú foi uma das cinco colônias agrícolas criadas ainda no Império. As demais foram: Benevides (1875), Santa Izabel (1883), Araripe (1886) e Castanhal (1889). O núcleo de Araripe, atual município de Americano, foi criado a partir do desmembramento do núcleo do Apeú. Excetuando o antigo núcleo do Apeú, todos esses outros núcleos coloniais são hoje municípios da região bragantina do Pará. A Estrada de Ferro de Bragança chega à colônia do Apeú no ano de 1888, completando naquele ano um trecho total de 61 km que tinha início na estação de São Braz.
  • 25
    O rio Apeú, que tem uma extensão de cerca de 30 km, é o mais importante afluente do rio Inhangapi, principal rio da região de Castanhal e que deságua no Rio Guamá.
  • 26
    Centro de Memória da Amazônia/UFPA. Auto de Vistoria do “Sítio Paraízo” requerido por Manoel Raymundo de Souza.
  • 27
    A repetição ao longo de todo o processo de que a casa de Manoel Raymundo possuía telhas de barro (material que distinguia a morada do posseiro de outras cobertas com palha) demonstra o quanto a defesa se apoiava na estratégia de afirmar que a ocupação não só era de longa data como a qualidade do material (telhas de barro) eram prova, dentre outras, de que havia fixação e estabilidade.
  • 28
    Centro de Memória da Amazônia. Autos Cíveis de Justificação de Posse e Nulidade de Demarcação requerido por Manoel Raymundo de Souza e seu irmão Raymundo Damasceno de Souza. Belém, 3 de agosto de 1885, fl. 14.
  • 29
    Folha do Norte, 27 de novembro de 1896. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/101575/1288. Acesso em 10 de agosto de 2018, p. 2.
  • 30
    A defesa de Manoel Raymundo de Souza citava as reflexões do jurista Francisco de Paula BatistaPAULA BATISTA Francisco de. Compêndio de Theoria e prática do Processo Civil comparado com o Commercial e de hermenêutica jurídica para uso das faculdades de direito do Império. Imprenta: São Paulo, 1935. como referência para essa afirmação. Trata-se provavelmente de sua obra Compêndio de Theoria e prática do Processo Civil comparado com o Commercial e de hermenêutica jurídica para uso das faculdades de direito do Império, 1898.
  • 31
    O autor faz referência ao art. 7° do Decreto nº 410, de 1891.
  • 32
    Centro de Memória da Amazônia. Ação de Força Nova de Manoel Raymundo de Souza e sua mulher contra Claro Gomes Lameira e sua mulher. Belém, 8 de maio de 1897, fl. 11.
  • 33
    Interessante notar o apelo realizado pelo advogado quanto à contribuição que os cultivos de Manoel Raymundo estariam dando à “lavoura e comércio desse Estado”, no que podemos aproximar o discurso presente na argumentação da defesa com aqueles das agências estatais e do próprio governador Lauro Sodré quanto à necessidade de se desenvolver no Pará uma lavoura disciplinada e dirigida por laboriosos lavradores. A defesa do posseiro buscava sintonizar a produção realizada na posse do Sítio Paraízo com o modelo de lavoura produtiva desejada pelas autoridades paraenses.
  • 34
    A República, 8 de novembro de 1893, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/704440/1367. Acesso em 10 de agosto de 2018.
  • 35
    O Democrata, 28 de junho de 1893, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/186171/4228. Jornal. Em www.bndigital.gov.br. Acesso em 10 de agosto de 2018. Ao que parece, Claro Gomes Lameira exercia certa influência na localidade do Apeú. Além de subprefeito, cargo que, sem sombra de dúvidas, conferia-lhe poder político local, Lameira também fora nomeado, em abril de 1899, Major-fiscal no 1º Batalhão da Reserva da Guarda Nacional da Comarca da Capital do Pará. Logo em seguida, e no decurso dos anos seguintes, faria parte da comissão de alistamento eleitoral do município de Belém, atuando em Castanhal. Sua casa, no Apeú, era uma das seções de votação nas eleições. Sobre sua nomeação ao Batalhão de Reserva da Guarda Municipal, jornal O Pará, 8 de abril de 1899, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/306223/1604. Acesso em 10 de agosto de 2018; para sua atuação como na comissão eleitoral, jornal O Pará, 28 de abril de 1899, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/306223/1673. Acesso em 10 de agosto de 2018.
  • 36
    Para sustentar sua argumentação acerca da posse precária, a defesa de Lameira, por meio do advogado Antônio de Souza Lemos, apoiava-se nos escritos do jurisconsulto Conselheiro Ribas, mais especificamente em sua obra Da posse e das ações possessórias segundo o direito pátrio, comparado com o direito romano e canônico, publicada em 1883. Sobre a posse precária, Antônio RibasRIBAS, Antônio Joaquim. Da posse e das Ações Possessórias, segundo o Direito Pátrio comparado com o Direito Romano e Canônico. Rio de Janeiro: H. Laemmert & C., Livreiros Editores, 1883. busca sua definição no Direito Romano, segundo o qual tal vício resulta de abuso de confiança, podendo ocorrer em duas circunstâncias: “a) Quando, tendo o rogatus transferido somente a detenção e não a posse, o rogans se atribui também esta, recusando-se a entregar a cousa que lhe foi confiada;” e “b) Quando, tendo o rogatus transferido a posse desde o princípio, se recusa o rogans a restituir a cousa que lhe é exigida, e desde então por esse abuso de confiança, transforma-se a sua posse de justa, que era, em injusta.”
  • 37
    Centro de Memória da Amazônia. Razão do Autores. 12 de novembro de 1898, fl. 58.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2019
  • Aceito
    05 Jan 2020
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