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“A HINTERLÂNDIA AINDA ERA MAIS PROFUNDA DO QUE NOS TEMPOS ATUAIS” - o ‘Alto sertão’1 1 A delimitação espacial do Alto sertão é, nesse artigo, compreendida como a parte interior da região setentrional brasileira, atualmente classificada como nordeste. Geograficamente, a análise se restringe à região do Cariri, Cearense e Paraibano, e as áreas que faziam fronteira com as províncias de Pernambuco, do lado leste, e Piauí, do lado oeste. No século XIX, essa região foi demarcada como proposta de uma província a ser criada e foi chamada de Cariris Novos. Mais adiante, a proposta e delimitação da região serão discutidas. e a produção do território no Império do Brasil

"The hinterland was still deeper than in present times" - the "alto sertão" and the production of the territory in the Empire of Brazil

Resumo

As disputas de poder em torno do sertão do Cariri - região interior do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Piauí - no período imperial são objeto de discussão deste artigo. Entende-se região como um espaço dinâmico, movimentado pelas diferentes percepções de quem o define e como o produto de experiências, interesses e percepções. Dentre as percepções, se sobrepôs uma historicamente assentada na ideia de que o sertão, apesar de estar mais acessível, não havia alcançado a modernidade e o ritmo de progresso que a capital teria. Visão produzida nos idos do século XIX, mas permanente na escrita da segunda metade do XX. Assim, no momento de centralização administrativa do Império do Brasil são observadas tensões entre o interesse em delimitar o território da nação moderna e a resistência dos que travaram suas experiências num sertão nem sempre compreendido pelo poder imperial. Percebeu-se nas tensões indicadas em ofícios, jornais e historiografia sobre a região, a insinuação de um espaço, o alto sertão, uma rede de relações construída por agentes num determinado tempo e espaço, que nem sempre se coadunou com o interior preconizado pelo Estado Imperial brasileiro, mas que resistiu a ele, como nas revoltas de Pinto Madeira e do quebra-quilos.

Palavras-chave:
História; Região; Sertão; Século XIX

Abstract

The power disputes around the hinterland of Cariri - interior region of Ceará, Pernambuco, Paraíba and Piauí - during the imperial period are the subject of discussion in this article. The region is understood as a dynamic space, moved by the different perceptions of those who define it and as the product of experiences, interests and perceptions. Among the perceptions, one overlapped historically based on the idea that the hinterland, despite being more accessible, had not reached the modernity and the pace of progress that the capital would have. Vision produced in the 19th century, but permanent in the writing of the second half of the twentieth. Thus, at the time of administrative centralization of the Empire of Brazil, tensions are observed between the interest in delimiting the territory of the modern nation and the resistance of those who fought their experiences in a hinterland not always understood by imperial power. It was noticed in the tensions indicated in crafts, newspapers and historiography about the region, the hint of a space, the high backlands, a network of relationships built by agents in a certain time and space, which was not always consistent with the interior recommended by the State Brazilian imperial, but that resisted him, as in the revolts of Pinto Madeira and the quebra-kilos.

Keywords:
History; Region; Sertão; 19th century

No ano de 1808, o britânico John Luffman apresentou uma projeção cartográfica para o território da então América Portuguesa, no qual adicionou o comentário seguinte: “Interior of the country / very imperfectely known”.2 2 Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado por John Luffman, Londres, 1808”. Disponível em: <http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016>. A inscrição chama atenção por ocupar o centro do mapa, mas principalmente porque ele adotava uma atitude diferente de outros cartógrafos em relação a projeção do interior do que mais tarde seria o Brasil: não havia pinturas de animais, de extração de madeira ou vegetação, como era comum em mapas produzidos e reproduzidos no período colonial e imperial - como por exemplo, o mapa do Brasil no celebrado livro de Francisco Adolfo de Varhagen, História Geral do Brasil, de 1855, em que o interior do Brasil estava completamente preenchido por atividades que sugeriam a apropriação do território. Ao contrário de um preenchimento sugestivo da ocupação, havia a constatação: o interior daquele ‘país’ era muito imperfeitamente conhecido.

Contudo, é preciso notar que a afirmação de Luffman, mesmo parecendo contrária a de outros mapas, implicava, na verdade, uma preocupação semelhante sobre a falta de controle ou domínio do interior do território da América Portuguesa e, mais tarde, do Brasil. Tal incômodo já havia sido expresso no processo de interiorização da Metrópole portuguesa3 3 O desconhecimento do interior da colônia, embora sem ser expressamente comentado, como fez o intelectual britânico, já havia sido evidenciado na cartografia “Nova et accurata [precisa] Brasiliae totius [total] tabula” - Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart168860.jpg>, publicada por Joane Blaeu, em 1640, e no mapa “Amerique Meridionale” - Publiee sous les Auspices de Monseigneur le Duc D’Orleans... Map of South America by J.B. D’Anville, Paris, 1748 e detalhe. Disponível em: <http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~203996~3001758#>, publicado por J.B. D’Anville, em Paris, no ano de 1748, o qual apresenta uma apresentação minuciosa das correntes marítimas e Capitanias em contraposição ao ‘vazio’ no centro do mapa. Em comum, a parte central dos mapas evidenciava a existência de regiões ainda não completamente conhecidas, ou mesmo cartografadas. Em outros termos, a percepção de um espaço alheio ao controle do governo português. , mas, foi sobretudo a partir do período de independência, da formação do Império do Brasil e a necessária produção de um Estado territorial (para o cumprimento de suas funções administrativas), que a ocupação e domínio do interior do território se tornou imprescindível. Nesse momento, importava a produção de uma nação moderna cujo território - sobretudo o sertão - seria conhecido, organizado e o mais aparelhado possível.

Por outro lado, a observação de Luffman pode indicar uma compreensão positiva em relação ao território e ao que era pretendido para ele. No mundo moderno, conforme Harley, quanto mais complexo o Estado, mais suas ambições territoriais e sociais eram ampliadas, o que fez a demanda pela produção de mapas tornar-se crescente nos séculos XVIII e XIX. Ainda conforme o autor, nos mapas, o poder político podia ser mais eficazmente reproduzido, comunicado e percebido. Posto que, neles, havia sinais dos imperativos territoriais de um sistema político, ou seja, o desenho cartográfico se concretizava como meio de consolidar o poder do Estado. Assim, é inevitável que os mapas produzidos no século XIX estivessem envolvidos no processo de poder inerente a formação de um Estado moderno (HARLEY, 2009HARLEY, Brian. Mapas, saber e poder. Confins [Online], 5 | 2009, posto online em 24 abril. URL: http:// confins.revues.org/index5724.html, 2009, pp.01-23.
http:// confins.revues.org/index5724.htm...
, p. 03). De maneira que tais desenhos se tornam um importante indício dos projetos políticos para a produção de territórios e nações independentes e soberanas, no decorrer do século XIX. Nos desenhos cartográficos era produzido um território, o mais conveniente possível, para a formação de um Estado Moderno. O ‘interior desconhecido’ poderia indicar, por exemplo, a possibilidade de extensão de fronteiras, aspecto considerado promissor para um britânico, e os europeus em geral, habitantes de territórios bem mais limitados, e sem probabilidade de crescimento, que o brasileiro.

No processo de produção de uma nação moderna, o Brasil não poderia estar restrito ao litoral, mas teria que ter consciência e controle do espaço mais ao interior, no rumo de suas fronteiras a oeste. Os mapas aqui citados indicam a importância dos desenhos para a organização de políticas de ocupação do espaço e invenção de limites para o Brasil e suas províncias, à medida que indicavam grandes e promissoras extensões. Nesse sentido, é válido afirmar que, no Brasil, durante o século XIX, tipificou-se um processo de definir o indefinido, cientificamente. Um processo que delimitava espaço para o Estado, através de cartografias, mas, sobretudo, corroborado pelas correspondências trocadas e documentos produzidos por governantes da nação, bem como na própria escrita da História do Brasil - é novamente Varnhagen, que surge como bom exemplo: com uma História Geral do Brasil, historiograficamente a primeira interpretação do país, que continha nas suas páginas iniciais um mapa do Brasil “preenchido” por desenhos a fim de ressaltar a unidade nacional através da ordem, centralização e definição de limites.

Nessa documentação surge mais nitidamente a preocupação e temores em torno do território que correspondia ao interior do Brasil, enquanto problema para as autoridades responsáveis pela produção da nação. Compreensão possível sobretudo a partir do estudo do que hoje é chamado de interior do Nordeste, região ainda considerada atrasada no Brasil por muitos dos que ocupam cargos públicos e por uma parte significativa da população do país. As disputas suscitadas em relação ao Ceará e suas fronteiras com Pernambuco e Paraíba, no início do período imperial são importantes peças para a compreensão da configuração do território do chamado sertão brasileiro. Assim, o sertão setentrional do Brasil era desconhecido apenas para os poderes públicos, ou ainda, que o desconhecimento insinuado em mapas e documentos oficiais dizia muito mais respeito a falta de controle sobre o território e as transações comerciais estabelecidas por seus moradores, os sertanejos ou camponeses - os cabras. Sugere-se, também, que o sertão do Brasil era delimitado (em vários sertões) pelo povo que o habitava, suas experiências, negociações, trajetos e solidariedades.

O Alto sertão - território e movimento

Se, de um lado, a cartografia e a escrita da história foram utilizadas para o conhecimento (a fim de apontar um desenho desse espaço) e controle do território brasileiro, por outro lado, tanto as definições cartográficas, seja por ressaltar o ‘vazio’ do território, seja com a tentativa de preenchê-lo com desenhos relacionados as atividades econômicas desenvolvidas, ignoravam a definição do território a partir de parâmetros alheios aos oficiais. O território do sertão setentrional do Brasil não era desconhecido. Ao contrário, a ocupação desse espaço foi marcada pela articulação de comunidades de camponeses e pela utilização em larga escala e sem limites do território, o que facilitava as trocas e a subsistência da população. Em 1881, a citação de um comércio vigoroso pelo presidente da Câmara de Barbalha, no interior sul do Ceará, apontou para a considerável independência dessa região, em relação ao governo Imperial.

Esta câmara está convencida de que a única medida que pode ser adoptada pelo governo que pode fazer progredir este município em todas as suas industrias é liga-lo por meio de uma linha de ferro a um porto e principalmente ao dessa capital. Ella vem enriquecer a quase todos os municípios de toda sua extensão e todos os do Cariri, que tanto importa nessa província; não lhes trará tanta riqueza quanto levará para esta capital, que está perdendo o bem grande comercio deste alto certão (sic).4 4 CÂMARA MUNICIPAL DE BARBALHA. Relatório da Câmara Municipal de Barbalha ao Presidente da Província do Ceará, Pedro Leão Velloso, em 03 de agosto de 1881, caixa 21, APEC, folha 23.

Setenta anos depois da publicação do mapa de Luffman, o ofício enviado para o Presidência da Província do Ceará ressaltava preocupação semelhante que a expressa pelo referido britânico. O controle e domínio do que hoje é nomeado de sertão nordestino ainda era uma questão não resolvida para os poderes públicos brasileiros no final do século XIX. Muito embora surgisse com novos tons: ao contrário do ‘vazio’, o que se ressaltou foi o movimento produtivo da região e as potencialidades econômicas para a província e, em última instância, para o Brasil.

A partir do relato da Câmara dos vereadores para o Presidente da Província, duas questões se impõem. A primeira diz respeito a definição do Alto Sertão. Não apenas como uma noção geográfica, mas principalmente política. Para se obter o controle das fronteiras, a fim de confirmar a anexação do Cariri ao Ceará. A segunda, de certa forma atrelada à anterior, a necessidade de conformar a população para servir ao progresso econômico nos moldes da agro exportação, imperativo econômico no Brasil do século XIX, que se pretendia moderno (ALBUQUERQUE JR, p. 1988ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino - de problema à solução (1877-1922). Campinas, SP. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1988.). Não era possível perder o ‘bem grande comércio’ que era praticado entre os habitantes do Ceará com os moradores das províncias que lhes eram limítrofes.

A referência ao grande comércio no alto sertão, na realidade, já vem sendo sugerida na historiografia brasileira que discutiu o fato de que o interior das Províncias do norte do país não era economicamente útil para as transações comerciais, sobretudo para a exportação. Entre os intelectuais que atuaram nessa discussão, está João Luís Fragoso que, em O império escravista e a república dos plantadores (1990FRAGOSO, João Luís. O império escravista e a república dos plantadores. In: LINHARES, Maria Yedda. (org.) História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, pp. 12-16.), descortinou a capacidade produtiva de riqueza mercantil no e para o mercado interno, e apontou que esse mercado era mais eficiente que o setor agroexportador. Ana Lúcia Lanna (1986LANNA, Ana Lúcia Duarte. O café e o trabalho ‘livre’ em Minas Gerais - 1870/1920. Revista Brasileira de História. 6 (12): 1986, pp. 73-88.) também percebeu a mesma lógica de produção para a província de Minas Gerais, ressaltando a diversidade econômica e as atividades mercantis que não estavam relacionadas à produção para a exportação internacional. No que diz respeito ao atual nordeste brasileiro, Manuel Correia de Andrade (1997ANDRADE, Manuel C. Geografia Econômica do Nordeste - o espaço e a economia nordestina. 3 ed. São Paulo: Editora Atlas, 1977., p. 27), em Geografia Econômica do Nordeste, definiu o alto sertão como “uma área de economia bastante fechada”, voltada, e sem mudanças ao longo do tempo, “quase que apenas para a agricultura de subsistência e para a pecuária ultra-extensiva em campo aberto” (sic). Nesse sentido, pode-se compreender que a economia gestada nos sertões brasileiros, ainda que se constituísse apenas para o consumo interno, sem vínculos com o comércio internacional, demonstrava uma capacidade de produção mercantil significativa que supria as províncias geograficamente distantes do litoral.

Contatar este comércio e mundo de negociações implica perceber o alto sertão como espaço definido necessariamente pela diversificação de experiências dos sujeitos que o habitavam ou visitavam, umas superpostas às outras, como num palimpsesto. Assim, o espaço localizado ao norte do território brasileiro, e desde início dos novecentos entendido como sertão - ou interior - nordestino, foi, no século XIX, um espaço lido e representado de diversas formas. Foi o espaço de embates acerca da construção geopolítica de uma província, ou pelo menos de sua tentativa; também foi lido, sobretudo por quem ali vivia, como região sem limites para trocas comerciais, para fugas do poder governamental, de idas e vindas da população pobre em busca de melhores condições de moradia e vida; também o espaço da reivindicação pelos direitos costumeiros adquiridos ao longo do tempo; abrigando, ainda, conflitos políticos pelo trono brasileiro e o governo da nação que se formava; foi, em última instância, o espaço que deu sentido a produção de uma História do Cariri.

Em cada conflito tinha-se uma dimensão diferente sobre essa região, posto que suas elaborações se davam sob variados aspectos, conforme o lugar social de quem a produzia. Para a população que ali vivia, uma população pobre, sobretudo, era o alto sertão, sem limites fronteiriços, sem definições de alcances de comarca, sem um poder necessariamente constituído para regrar a transposições das linhas imaginárias que separavam geograficamente um território e faziam delas novas regiões. Um sertão talhado nas vivências e necessidades cotidianas. Nesse ínterim, é válido atentar para o olhar de um viajante que conheceu o alto sertão das Províncias do Norte, em fins da década de 1850:

estando aqui reunidos vários matutos, dos quais alguns vinham receitar, entre conversas diziam: ‘Então os senhores vieram correr o Brasil?’. Queriam dizer todo o Ceará, porque para [f. 176] esta gente o Brasil é o Ceará; tudo o mais é estrangeiro. (...) Estando eu o Manoel colhendo algumas plantas, passavam dois sujeitos (pardos ou cabras) e chegando-se para nós perguntaram para que fazíamos aquilo, e dizendo-lhes nós, por graça, que estávamos descobrindo as riquezas do seu país, replicaram dizendo: Nós cá somos empedrados, não sabemos nada.

Francisco Freire Alemão (2006ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem de Francisco Freire Alemão. Fortaleza - Crato, 1859. Fortaleza: Museu do Ceará. Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006., p. 228) era botânico, participante da Comissão Científica de Exploração que viajou à Província do Ceará, em 1859, a fim de estudar seu meio físico,5 5 A viagem ocorreu em 1859 e o espaço cearense foi avaliado por um grupo de estudiosos cientistas divididos em cinco seções, sendo elas botânica, geológica & mineralógica, zoológica, astronômica & geográfica e etnográfica & narrativa; tendo em suas coordenações, respectivamente, Francisco Freire Alemão, Guilherme de Capanema, Manoel Ferreira Lagos, Giacomo Raja Gabaglia e Antonio Gonçalves Dias. Este grupo viajou por todo o Ceará, de Fortaleza ao Cariri, chegando até a vila de Exu em Pernambuco observando peculiaridades e estudando as condições físicas do território. para entender, em primeira instância, as razões das frequentes intempéries climáticas que assolavam esse território. No entanto, o trabalho do naturalista não se resguardou à análise das espécies de plantas que encontrava no decorrer da viagem. Freire Alemão escreveu um diário com as impressões dos lugares e das gentes que encontrava pelo caminho. Ao chegar ao sul cearense topou com vários ‘matutos’, em sua percepção, que, em conversas, apontaram para um desenho diferente sobre o território em que viviam.

O trocadilho feito pelo naturalista aponta para uma percepção diferenciada sobre as fronteiras do Ceará em relação ao que era compreendido pelos sertanejos daquela região, uma vez que as fronteiras dessa província e o entendimento dela como parte do Brasil, tão evidente para Freire Alemão, pareciam confusas nas falas dos sertanejos. Tanto que Alemão sentiu a necessidade de explicar ou justificar como certa ignorância daqueles homens, afirmando que eles tinham conhecimento apenas do Ceará, sendo tudo o mais desconhecido. E ainda ratificou seu pensamento destacando que o homem com quem conversava, e que teria afirmado “nós cá somos empedrados, não sabemos nada”, era pardo ou cabra - referência feita para ressaltar a diferença da cor entre ele os chamados matutos - numa nítida associação entre mestiçagem e atraso dos costumes como marcas do sertão.

No entanto, se havia uma percepção, para Freyre Alemão, do incivilizado, havia dos moradores locais, uma percepção das diferenças, não necessariamente subserviente, mas de que estavam em lugares sociais diferentes. Os limites geopolíticos da província pareciam certos para o viajante, contudo, para os homens do sertão não parecia haver necessidade para uma preocupação como essa. Tensão que descortinava o embate de projetos ou percepções diferentes: a do homem que morava no sertão, para quem o sertão tinha um espaço definido por suas tradições e experiências - o Alto Sertão - e a do Império do Brasil, representada ali por Freire Alemão, com linhas geopolíticas que obedeciam aos interesses da centralização administrativa do Segundo Reinado.

Ao encarar esse espaço, muitas leituras sucederam e foram filhas das considerações de cada olhar, evidenciando que a construção desse alto sertão - ganhando outros nomes dependendo do lugar social de quem definia - era fruto dos usos diferenciados que se fazia do espaço e do tempo, como o sertão ‘profundo’, distante em tempo, muito mais que em espaço, da capital. Se percebe, portanto, a disputa pelo sertão (ou contra espaços impenetráveis ao poder governamental), no momento em que se projetava uma nação moderna, demarcada em províncias, das quais se buscava ter o máximo de controle possível, o que explica os investimentos nos anos posteriores na expansão da ferrovia e do telégrafo.

Uma história para o território cearense e o alto sertão

Estudando o Diário de Freire Alemão, Régis Lopes Ramos (2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: O Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012.), apontou o que passou despercebido aos olhos do viajante - ou seja, as distintas leituras que apontavam para o sertão como conceito dinâmico e não espaço estático. Como estudioso mais preocupado com a formação do Ceará e de sua própria história, inserida na História do Brasil, reconheceu um padrão entre o fato e a fábula na invenção da História do Ceará, elaborada ao longo do século XIX. Na historiografia cearense sobre a demarcação do território, fatos do passado foram disputados e interpretados conforme os interesses da história que se queria contar. Sem dúvidas, uma história gloriosa, que fizesse sentido ser lembrada, mas que ao mesmo tempo legitimasse um espaço e os empreendimentos feitos naquele momento, em nome do progresso.

Ganharam espaço os “fundadores e os fundamentos”: Tristão de Alencar Araripe e José de Alencar, o primeiro, romancista e o outro, escritor, procuraram apontar com o fato (a história) e com a fábula (a literatura), respectivamente, as origens geográficas e sociais da Província Cearense, a fim de demarcar espaço, tempo e, ainda que a contragosto, as raízes étnicas, sobretudo com a presença indígena considerada abaixo em relação a importância do branco conquistador, do povo cearense. Assim, a História do Ceará foi contada e recontada tomando como base as interpretações de dois intelectuais membros de uma das famílias mais influentes, em termos políticos, principalmente, do sertão sul cearense, desde inícios dos oitocentos: a família Alencar.

Sem a intenção de aprofundar tal questão, importa destacar a proeminência dessa família na região desde antes da independência. Oriundos de Pernambuco, os alencares vieram assentar-se nas terras cearenses em busca de proteção, mas também para difundir, os ideais da revolução de 1817, deflagrada naquela província. Narra Raimundo Girão (1962GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. 2 ed. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1962., p. 129) que “no Ceará, poder-se-há aceitar que a revolta fosse consecutária tão-só da ação de família de projetada extensão, como era a Alencar, visto que não estava ainda endurecida, nem sequer apenas devidamente começada, a ideia republicana naquela gente do sul da Colônia”. Logo que chegado em Crato - tida como a principal vila do Cariri, por ter sido elevada a sede de Comarca em 1816 - José Martiniano de Alencar, padre e pai do escritor do romance Iracema, rezou missa em sua paróquia matriz, tendo lido a declaração da revolução após o término desse ofício sacerdotal. Anos depois ele, sua mãe e irmãos participaram do evento conhecido como Confederação do Equador - iniciado em Pernambuco, mas depois alcançando várias das Províncias do Norte, como Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e, possivelmente, Piauí e Pará (LEITE, p. 1989LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1824: a Confederação do Equador. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, (Série República, vol. 2), 1989.) -, um movimento separatista sobre essas Províncias do Norte do restante do Brasil e instituir uma república a partir delas.

Tendo sua ascendência como parte de uma revolução em busca da libertação do jugo político e administrativo de Portugal e, depois, do sul do Brasil, os escritores, de raiz Alencar, deram uma conotação diferente para a História do Ceará que contavam. O que coube nessa História do Ceará foi a formação de um território coeso em suas marcas e forte em seu pertencimento a todo Brasil. O Ceará era demarcado como parte da História do Brasil, mas suas especificidades marcavam a memória dessa Província e a faziam única. Assim acreditaram seus escritores (RAMOS, p. 2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: O Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012.).

Por outro lado, se houve uma decisão acerca da História a ser contada e ensinada, também se definiu, em contrapartida, que havia uma outra parte que não precisava ser lembrada. E, muito menos, ensinada. Tratava-se do grande sertão que anulava as fronteiras político-administrativas das províncias e dos sertanejos que o tinham por sua nação. Marcus Carvalho (2002CARVALHO, Marcus J. M. de. “Aí Vem o Capitão-Mor”. As eleições de 1828-30 e a questão do poder local no Brasil Imperial. Tempo [en línea].7(13): 2002, pp. 157-187., p. 162), por exemplo, apontou que, naquele momento, apesar da divisão das Províncias, o que havia era um sertão comum a todo o Nordeste. Compreensão que era apontada com frequência nas correspondências oficiais. Em 29 de novembro de 1834, o então Presidente do Ceará, José Martiniano de Alencar enviou um ofício ao juiz de direito da Vila do Jardim advertindo que era constante a passagem entre os termos das Províncias do Ceará com Pernambuco, em direção ao rio São Francisco, e também à Paraíba. Incomodava, de acordo com o documento expedido pelo presidente, a passagem de pessoas que classificou como criminosas entre as fronteiras e, mais ainda, a facilidade com que iam e vinham em todo momento, desconsiderando os limites entre as Províncias. Respaldado pelo temor causado pela Revolta de Pinto Madeira (IRFFI, p. 2015IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. O cabra do Cariri cearense: a invenção de um conceito oitocentista. Fortaleza, CE. Tese de Doutoramento. Universidade Federal do Ceará, 2015.), ocorrida nos anos de 1831 e 1832, Martiniano de Alencar enfatizava, nesse documento, a necessidade de serem observados os limites entre o Ceará e as demais províncias.

Em termos políticos e administrativos, e ainda mesmo cartográficos, o Ceará tinha seus limites bem definidos. Em realidade, o espaço territorial que compreendia as províncias, entendidas como formadoras da nação brasileira, foi temática recorrente das cartografias produzidas, sobretudo na segunda metade do século XIX, por engenheiros e geógrafos. A questão mais difícil se mostrou em pensar o interior do território provincial, posto que correspondesse ao interior do território nacional, que se pretendia moderno nos moldes europeu ocidental. Nesse sentido, intelectuais e políticos envolvidos na administração provincial tinham de denotar no Ceará tudo aquilo que se esperava de um Estado moderno, com paisagens exuberantes e facilmente disciplináveis.

No entanto, essa percepção do sertão como uma região constituinte de uma nação moderna e seguindo as vias do progresso se perdia na própria lógica da colonização portuguesa. No início do século XIX, não se percebiam os limites políticos ou administrativos, mas as fronteiras entendidas como naturais, as margens dos rios e as estradas de terras. Conforme Ana Isabel Cortez (2013CORTEZ, Ana Isabel R. P. Os caminhos sertão à dentro: Vias abertas por nativos e estradas de ribeiras no Ceará no século XVIII. Revista Latino-Americana de História. 2(8): 2013, p. 141 - 160.: 141 - 142),

a constituição das bases espaciais do Ceará no século XVIII, a partir dos jogos de poder estabelecidos entre nativos e colonizadores, engendrou uma geografia diferente para o território. A entrada de colonizadores e expulsão dos grupos nativos de suas terras, através dos aldeamentos e catequese ou do extermínio pelas guerras, empreendeu um redimensionamento do território: o Ceará foi reocupado, suas divisões foram recalculadas na formação de novas estradas e na edificação de fazendas, vilas e cidades. Outro espaço foi construído naquele território, que passou a ter referências diferentes para os habitantes: uma reorganização das antigas paragens e das relações sociais que, como num palimpsesto, eram inscritas e reinscritas sobre tudo o que havia sido construído e reconstruído anteriormente pelos nativos, e ‘apagado’.

Studart Filho (1937STUDART FILHO, Carlos. Vias de Communicação do Ceará Colonial. Revista do Instituto do Ceará. 51 (1): 1937, pp. 15- 47., p. 29), ao escrever para a Revista do Instituto do Ceará, um artigo intitulado Vias de Communicação do Ceará Colonial, chamou atenção para o fato de que foi seguindo as marcações de rios e riachos, formando as chamadas estradas de ribeiras, que se deu o povoamento do interior nordestino (ver mapa abaixo - Mapa 1). Esse tipo de delimitação, para o autor, tomava como inviável o estabelecimento de divisões entre as províncias. Para ele, “por esses caminhos andavam os cavalarianos que percorriam os sertões comprando eqüídeos para os engenhos de Pernambuco e as boiadas que procuravam as grandes estradas que conduziam aos centros consumidores do litoral.”

Essa dinâmica de organização do espaço estava mais claramente inscrita na região chamada de Cariri, do que mesmo a delimitação geopolítica imposta à província do Ceará quando de sua definição como parte da nação brasileira. O reconhecimento do Cariri Cearense era outro. Na prática, estava ligado por, pelo menos, três estradas não apenas à própria Província, como também às que lhe faziam fronteira, como Paraíba, Pernambuco e Piauí. Eram elas: a estrada do rio Salgado, a Crato - Oeiras e a estrada do Rio São Francisco, feita passando por Exu, no Pernambuco.

Figura 1 -
Mapa 1: caminho das boiadas (JUCÁ NETO, 2007JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará setecentista. As vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador, BA. Tese de Doutoramento. Universidade Federal da Bahia, 2007.)6 6 O mapa foi produzido por Clovis Jucá (2007) a partir da descrição do texto Vias de Communicação do Ceará Colonial, de Carlos Studart Filho. Esse mapa é muito válido a este estudo para indicar com maior eficácia a que ponto se estendiam negociações, comércio, experiências e solidariedades no alto sertão e de como elas ultrapassavam os marcos geoadministrativos no mapa indicado pelos limites políticos das províncias cujos territórios eram alcançados. Importante destacar que, tamanha era a força das relações (venda de gado, de charque e produtos agrícolas) que mantinham dinâmicas essas estradas, que todo o século XIX foi perpassado por projetos (como as estradas em linha reta e a estrada de ferro) para redimensionar a produção do interior em direção ao porto de Fortaleza, afim de fortalecer a ‘discutida’ capital da província cearense (REIS, p. 2015).

A estrada do rio Salgado ligava o sul ao principal porto da Província até 1850, tendo as vilas de Icó, Fortaleza e Aracati em seu caminho, através de sua ligação pela Estrada Geral do Jaguaribe, via de passagem do comércio no Ceará. A oeste havia a estrada Crato - Oeiras, que ligava o Cariri ao Piauí passando por Brejo Grande, onde ficava o sítio Cariú. Tal sítio fazia fronteira ao norte com as vilas de Saboeiro, São Mateus e Telha (atual Iguatu), a oeste com a Província do Piauí e ao sul com Pernambuco, através da serra do Araripe. Do lado leste da Província do Ceará havia uma comunicação também com vilas pernambucanas, até alcançar o rio São Francisco, região que, segundo Martiniano de Alencar, era conhecida e bastante visitada pelos homens sul cearenses.

E, por fim, ficava a chamada Barra de Jardim, ao sul, a qual tinha livre comunicação com Pernambuco e Paraíba e, principalmente, estava bastante próxima a estrada da ribeira do Salgado, também conhecida como estrada do Icó. Este, conforme o redator do jornal O Araripe7 7 Periódico de vinculação liberal, veiculado entre os anos de 1854 a 1865 nas cidades e vilas do Cariri Cearense. , João Brígido, era o caminho frequentemente utilizado até aquele momento pelos viajantes. Ao vir por ela ia-se de “Icó as Lavras, dahi a Venda, dahi a Missão Velha e dahi finalmente ao Crato. De Missão Velha sobre os milhares terrenos possíveis, se teria uma curta linha para a Barbalha, e do Riacho dos porcos uma outra para Milagres”;8 8 CEDOCC, O ARARIPE, 14 de fevereiro de 1857, p. 02. o que proporcionava uma mobilidade ainda maior para os homens que viviam nas suas margens.

O outro Cariri, ligado à Província da Paraíba, forma “uma saliência voltada para o Sudoeste do Planalto da Borborema na Paraíba. Seus limites passam ao Sul do eixo rodoviário da BR-230 e suas vias de acesso se situam entre Queimadas e Boqueirão, a Leste, Soledade ao Norte, e o vale do rio Farinha a Noroeste”. Ao Sul, a Oeste e Sudeste, é cercado por serras elevadas formando um arco montanhoso, fronteiriço ao estado de Pernambuco: “de Oeste para o Sul (Serra dos Cariris Velhos, do Mulungu, das Porteiras, da Jararaca, etc.) e daí para Sudeste (Serra da Quebrada, Serra da Cachoeira)”.

Essa delimitação, contudo, definia o território geográfico e político dos dois Cariris, mas ainda confundia a percepção da região do alto sertão - ou sertão profundo, como aqui é nomeado o interior nordestino, no século XIX. O entendimento desse espaço deve perpassar outras trilhas, deve ser entendido como construído historicamente. Assim, para entender a região do sertão nordestino como uma construção histórica, a partir de variados interesses e experiências, é preciso “tentar fazer com que esse solo estremeça, rache, mostrando a mobilidade desse solo” (ALBUQUERQUE JR, 2011ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 36). Região, nesse sentido, pode ser apreendida pelo espaço de vivência e de experiência dos sertanejos, percebendo e destacando o movimento desse povo como aspecto que demarca o espaço, e não os riscos imaginários dos mapas. Mas, ainda é preciso salientar que a experiência de sua construção tinha lugares sociais diferenciados.

O sertão verde e a peleja pela produção de uma província

O Cariri, sobretudo o Cearense, em virtude do clima e solo bastante diferenciados do paraibano, foi interpretado na historiografia como uma zona de natureza aprazível. Um ‘sertão’ diferente. Em Engenhos de rapadura do Cariri, José de Figueiredo Filho (2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010., p. 21) destacou que o caririense não fica satisfeito quando alguém o chama de sertanejo e nem quando denominam o seu Cariri de sertão. Sertão, conforme o autor, não é entendido em seu sentido mais amplo, como zona do interior, em contraposição à faixa litorânea, porque, para ele, “o Cariri, do Ceará, é uma espécie de zona da mata pernambucana, ou dos brejos na Paraíba. É o verdadeiro oásis cearense como muitos o denominam. É uma ilha verdejante cercada da zona sertaneja criadora”. Juntamente com Irineu Pinheiro (FIGUEIREDO FILHO & PINHEIRO, 2010PINHEIRO, Irineu. O Cariri - seu descobrimento, povoamento, costumes. Coedição Secult/ Edições URCA. - Fortaleza: Edições UFC , 2010., p. 63), também escritor de narrativas sobre o Cariri, Figueiredo Filho ainda apontou

a sensível diferença entre os sertões ressequidos do percurso e a exuberância e verdura destes rincões privilegiados (...) A natureza em nada se parece com as caatingas requeimadas da região sertaneja, nos períodos de grandes estiagens. Ao longe: a faixa horizontal do Araripe mais parecendo a visão do mar à distância (...) Terras exuberantes. Canaviais e engenhos de quando em quando.

Para os autores, esse espaço tinha que ser definido pela perfeita harmonia da natureza concentrada sobre o Cariri que, na opinião de Pinheiro (2010PINHEIRO, Irineu. O Cariri - seu descobrimento, povoamento, costumes. Coedição Secult/ Edições URCA. - Fortaleza: Edições UFC , 2010., p. 3): é “um lugar lindo e bonito que não pode ser sertão”. Essa construção corroborava a percepção criada no século XIX a fim de definir este como um espaço à parte ao sertão nordestino. Conforme Darlan Reis (2014REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Fortaleza, CE. Tese de Doutoramento. Universidade Federal do Ceará, 2014., p. 26),

a representação de um território como espaço privilegiado no interior do Ceará, devido ao solo fértil e à presença de fontes de água em contraposição à aridez do entorno, foi um importante instrumento político, utilizado pelas classes senhoriais, na consolidação de seu domínio sobre o território. O Cariri, assim denominado, passou a ter uma existência histórica, de região vivida e representada.

Tal discurso, já em inícios do século XIX, produziu a idealização de pôr limites à região que se queria apresentar como diferenciada das demais. O Cariri era, portanto, nas leituras sobre a região, um lugar que se destacava dos demais sertões que o rodeava, por essa razão, precisava, na opinião de governantes e autoridades locais, de limites cartográficos e políticos.

Em virtude dessa compreensão, foi projetada a separação dessa região do restante do Ceará e a criação de uma nova Província, como foi apontado na documentação estudada: “Em 10 de julho de 1828, a Câmara Municipal de Crato, de tantas e luminosas tradições, encaminhou representação ao governo, pugnando pela Província dos Cariris Novos, abrangendo, não só esta região sul cearense, como parte de Paraíba e Pernambuco”. Em 1839, a Câmara de São Mateus, vila nas proximidades do Crato, enviou uma Representação ao legislativo brasileiro em prol da criação da nova província que “trouxesse segurança e sossego, fazendo desaparecer a falta de civilização e dureza de costumes que tantas cenas sanguinolentas têm motivado neste centro” (FIGUEIREDO FILHO, 2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010.: 11). Nesse mesmo ano, de acordo com Figueiredo Filho, o Senador Alencar, encampou a defesa da criação de uma província nessa região, apresentando, inclusive, uma proposta de projeto de lei para a sua consolidação.

‘Província dos Cariris Novos’ (ver mapa 9 9 Mapa produzido por Darlan Reis a partir da documentação apresentada na proposta de formação da referida província. O desenho demonstra mais nitidamente que o espaço requerido para a província, que teria sua capital em Crato, corresponde de certa forma ao espaço indicado nas fontes para o que seria o alto sertão aqui estudado. Fato que implica perceber a ampla e densa dimensão das relações que constituíam esse espaço no século XIX. (REIS, 2014). abaixo). Esse era o título dado ao que deveria ser o novo espaço político brasileiro. O projeto foi apresentado por José Martiniano de Alencar em 1839 e teria a vila de Crato como capital da nova Província. Em sua extensão, seria formada pelos municípios do Riacho do Sangue, Icó, Inhamuns, São Mateus, Lavras, Jardim e Crato, da Província do Ceará. Da Província da Paraíba seriam tomados os Municípios do Rio do Peixe e Piancó. Da Província de Pernambuco, o Município de Pajeú das Flores compreendidos no antigo Julgado de Cabrobó. E, finalmente, da Província do Piauí, o Município de Piranhas (FIGUEIREDO FILHO, 2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010., p. 81).

Figura 2 -
Mapa 2: Província dos Cariris Novos (REIS, 2014REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Fortaleza, CE. Tese de Doutoramento. Universidade Federal do Ceará, 2014.) - Map 2: Province of the Cariris Novos

Os argumentos para a criação da província foram apresentados pela Câmara do Crato, favorável à proposta. Em suas atas, havia a justificativa de que “huma pequena parte da população imprega-se na Agricultura, e que o paiz acha-se innundado de Vadios e ladrons, parte dos quais vindos de fora, cossados pela secca, fizerão aqui causa Comum com os que ávião, e fazem huma total inversão dos costume”, assim julgava “que o meio mais facil de remediar todos esses males he a realização da pretendida nova Provincia dos Cariris Novos, com o que teremos hum Governo”.10 10 CÂMARA MUNICIPAL DO CRATO. Relatório da Câmara Municipal do Crato ao Presidente da Província do Ceará, Ignacio Corrêa de Vasconcelos, em 11 de maio de 1846, caixa 34, APEC, folhas 1-2.

Não se trata aqui de discutir os interesses econômicos que envolviam a produção desse projeto. Mas importa destacar que esse era o mesmo Martiniano de Alencar que enviou ofícios, nos anos de 1834 e 35, requisitando que fossem observadas as fronteiras para que criminosos de outras províncias - as que estavam contempladas no projeto - não viessem encher os sertões caririenses ou, em sentido contrário, que nenhum criminoso encontrasse abrigo ao transpor as fronteiras administrativas das províncias. Certamente, porque novos/outros interesses estavam em jogo.

O projeto não logrou êxito, apesar do empenho sistemático do Senador Alencar. Mas a ideia não se perdeu no tempo. Mais tarde, em 1855, João Brígido retomou a ideia em sua afirmação: a região do Cariri “em breve atingiria a uma disponibilidade, que a habilitasse, a faser apparecer a arte, onde uma naturesa, que se ostenta prodiga, emprasa os homens a secunda-la”. Além disso, os “milhoes de animaes, que crião suas vastas campinas”; também das innumeras e variadas produções de uma região sobremodo fertil, que compartilha todos os climas, e vê brotar o fruto de todas as zonas; somado o “commercio todo de exportação em favor do paiz, e susceptível de um desenvolvimento e animação sem lemites”, que a nova província conseguiria sustentar-se e chegar a ser uma “das mais adiantadas do império”.11 11 CEDOCC, O ARARIPE, 14 de julho de 1855, p. 01.

A criação da Província foi um projeto desenvolvido e divulgado nas páginas do semanário O Araripe, desde sua edição inicial, para tornar o Cariri emancipado do Ceará, de forma que, segundo matérias publicadas nesse periódico, a região tivesse autonomia em suas decisões, bem como ser melhor atendida em suas reivindicações financeiras. De acordo com a matéria exposta na primeira edição do semanário,

a sede de cada administração provincial deveria também ocupar o centro do perímetro, ou ao menos aquele mais equidistante, que tivesse proporções. (...) Não aventuramos ideias, nem emitimos principios novos. Uma autoridade valiosa comprova a nossa opinião; é a do distinto Senador Alencar, homem pratico, inteligente, que tudo calculou, que visitou quase todos esses lugares, e que dando ouvidos as suas vivas e reclamações, apresentou no Senado o projecto da creação da Província do CARIRI, tendo por capital o Crato.12 12 CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 02.

A referência ao Senador José de Alencar, nos argumentos apresentados por João Brígido, buscava justificar sua luta pela emancipação do que chamava de país Cariri.13 13 José Martiniano de Alencar ou senador Alencar, como ficou conhecido, teve um histórico de militância em prol da Província do Ceará e também das causas liberais. Filho de José Gonçalves dos Santos e Bárbara Pereira de Alencar, foi sacerdote e jornalista; na vida política, foi Deputado, Presidente de Província e Senador do Ceará entre os anos de 1820 a 1860. Na década de 1850, a reativação do projeto feita através desse jornal trazia o mesmo anseio em torno da alteração de uma paisagem social e política, através da civilização, como se a instituição de fronteiras provinciais naquelas paragens modificasse a realidade experimentada desde, pelo menos, o início do período imperial. De acordo com a matéria, intencionava-se trazer o adiantamento já presente nas capitais das províncias brasileiras. Por essa razão, questionou que

as capitaes são escholas das províncias, e sobre aquelles, que dellas estão mais perto, reflete sua ilustração. Aquelle trato dellicado que nos vem do habitante do velho continente, é ali que vai ser bebido. Com a civilização virá a extincção do crime, o retoque de nossos custumes; e a terminação dessa chronica negra, que escreve nossa imprensa aguarda resultado. A acção do governo é frouxa, morosa sobre os longiquos pontos nas províncias: Das distancias se socorrem os malfasejos, e é da distancia que se socorre a authoridade iníqua, para postergar a lei, perseguir o inimigo innocente, e deixar empune o assassino poderoso... O Governo está longe, tudo ignora, nada vê por seos olhos, a authoridade descarreia, o povo corrompe-se, e o pais se barbariza. As influenscias locaes são uns órgãos do paiz para o Governo, que dorme o somno da illusão, e torna-se innutil, quando pelos recursos de que dispõe, pode fazer a felicidade de seos súditos.14 14 CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 03.

É a construção da região Cariri como espaço próprio a uma Província o que importa perceber nessa defesa de Brígido. É evidente a deliberada negação desse espaço como sertão. Se era aceita uma delimitação geográfica que unia partes de quatro províncias - posto que o projeto permanecia o mesmo do apresentado em 1839 - não era acolhida a região que ali existia e a sustentava: sertão. Por essa razão, preferiu a expressão longínquos pontos da província a esse vocábulo. Reconhecia-se o Cariri como um espaço de interior, em contrapartida ao litoral, porém, não se assumia o aspecto do sertão: em primeiro lugar, pelo fato da natureza prodigiosa; em segundo, porque o aparato político provincial, em sua percepção, corrigiria os males acarretados pela falta de fronteiras numa região, como a falta de delimitação do espaço de poder.

Nessa compreensão, o processo de civilização desse longínquo ponto da Província deveria ser o ponto final das benesses dessas mudanças defendidas por Brígido, e, antes, por Alencar e as autoridades administrativas caririenses. Na visão de todos os intelectuais e governantes referidos, a criação de uma Província estimularia muitos sábios e letrados a frequentarem sua capital, que, no caso, era o Crato:

de onde vem o retardamento da civilização dos municípios centrais do Império, quando florescem os do litoral? Por certo que da falta de administração. Bem sabemos, como a afluência dos negócios, a multiplicidade de termos distraem o governo de muitas medidas, que a instrução lhe sugere; e si tratarmos da educação, que praticamente obtem o homem communicando outros mais adiantados, veremos, que à longitude as capitaes influe muito; pois que elas são os focos de civilização das províncias, por isto que para aí aflue a parte mais intelligente e bem educada da população de cada uma, que a miude communicada, transmite suas luses, seos costumes e seos modos urbanos ao habitante inculto, que vae do interior.15 15 CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 03.

Mais uma vez, a insistência de criação de uma capital no Cariri foi evocada como resolução para o contraste percebido entre interior, que, de novo, não é chamado de sertão, e o litoral, a capital, centro de irradiação de uma cultura letrada. Além da relação feita entre civilização e administração, foi acrescentada a percepção do urbano como espaço do progresso, em contraposição com o homem inculto do interior, do espaço rural, tão disseminada no Brasil do século XIX. De outro lado, é interessante perceber que o periódico O Araripe se voltava ao ideal fisiocrático, ao fazer a defesa da agricultura como uma marca do progresso econômico da região do Cariri, em especial o Cearense.

No entanto, o que parecia incomodar João Brígido e demais envolvidos nesse projeto, de fato, não era o espaço geográfico, aceito como propício à Província dos Cariris Novos, mas a população que fazia dessa região diferente, como um sertão, atrasado, e não como um espaço apenas longínquo à capital, mas conservando todas as suas especificidades. Recordando a viagem de Francisco Freire Alemão, é possível perceber, como nos discursos de Alencar, em 1839, e Brígido, em 1855, outro entendimento acerca da região, também atuante naquele espaço. Pouco depois de comentar acerca dos matutos que encontrou no caminho, assinalando a diferença entre ele e os habitantes do sertão e seu ‘país’, Freire Alemão (2006: 230) comentou as trocas econômicas com outras províncias, como a de Pernambuco. Conforme o botânico, comia-se gado na semana, mas, nas sextas e sábados, o alimento era “peixe, dos poços ou salgado, vindo do rio São Francisco”, comércio feito “pelo sertão com a vila de Juazeiro”, distante 84 léguas. “Do Ceará vai rapadura, aguardente etc., e do São Francisco vem peixe Salgado, matalotagem etc”.

Ao que indicam todas as discussões, havia uma movimentação intensa nos sertões das províncias que faziam fronteira com o Ceará. E sugeriam também para uma dinâmica onde geografia e história estavam entrelaçadas concedendo para os moradores uma conotação diferente da que tinha sido insinuada nos documentos oficiais, anos antes, nas duas ocasiões em que foi apresentado o projeto de uma nova Província para o Brasil. Certamente, a percepção de pertencimento daquele espaço para os habitantes que ali viviam acionava outros aspectos da memória, como o processo histórico de vida e luta, não apenas deles, mas de seus antepassados para se estabelecerem e ali criar suas raízes.

Pinto Madeira, os cabras e a luta pelo Alto sertão

Na revolta de Pinto Madeira, ocorrida entre 1831 e 1832, entre as cidades de Crato e Jardim, no Cariri, que teve caráter político restauracionista, pode ser percebida uma luta em prol da região. Mais especificamente, no ano de 1831, a vila de Crato, sede de Comarca do Cariri Cearense, foi invadida por homens que, segundo relatos, carregavam ‘cacetes e facas’ e infundiam terror à população da vila. Sobre o comando desses homens estavam Joaquim Pinto Madeira e o Padre Manoel Antônio de Sousa. Ainda conforme as notícias, eram os ‘homens de Jardim’, inconformados com a abdicação de D. Pedro I, pois acreditavam que o monarca teria sido obrigado a deixar o cargo e voltar para Portugal.

No entanto, longe de se restringir ao desgosto pela abdicação de Pedro I e instalação de um poder regente, esse conflito apontou para os embates em torno da região, naquele momento de consolidação de uma nova política imperial de implantação do governo nacional. De acordo com Figueiredo Filho (2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010., p. 14), “tudo o que a guerra fria preparou, durante o interregno entre 1824 e 1831, desencadeou-se terrível, no Cariri, após a abdicação de D. Pedro I, a 7 de Abril”. O período a que se refere o autor foi marcado pela fome, em virtude da seca de 1825, epidemia de varíola e recrutamento para a Guerra da Cisplatina. O resultado desse processo foi o despovoamento da Província e, principalmente, o receio por parte das populações acerca dos rumos que seriam tomados pelo governo. Embora seca e peste, naquele momento, pudessem ser confundidos como fenômenos naturais, a fome e o recrutamento deixaram para as massas populares a desconfiança em relação às autoridades e sua capacidade de gerir um governo que pensasse no bem-estar da população. Em contrapartida, essa participação popular foi continuamente lida a partir da óptica dos senhores e autoridades governamentais, que, em termos sociais, de um lado, incutiam a diferença, pela distinção que enfatizavam em relação à violência e rusticidade das classes despossuídas, e, de outro, ressaltavam o medo de que essas classes se insurgissem contra os proprietários de terras.

Essa luta, nesse sentido, não seria necessariamente geográfica, mas se constituiria na defesa de costumes e tradições experimentados ao longo do tempo pelos seus habitantes - notadamente os camponeses - naquela região, que se viu ameaçada pelo alcance do governo sobre suas experiências de vida e produção. O próprio José Martiniano de Alencar, sem ser necessariamente sua intenção, evidenciou os usos do sertão pelos habitantes das várias províncias fronteiriças e seu entendimento de que a região deveria ter outras percepções que não as de caráter administrativos. Em Representação ao Ministro dos Negócios do Império, enviada ao regente Diogo Antonio Feijó, contra o movimento liderado por Pinto Madeira, e os homens que o acompanhavam, chamados cabras, Alencar declarou:

Ilmo e Exmo. Sr.: cheio de dor pela destruição do país natal, de meus amigos e parentes, de minha casa e família, tudo entregue à brutal ferocidade de Joaquim Pinto Madeira, Padre Antonio Manuel de Sousa e seus satélites, tomo a liberdade de oferecer à consideração de V. Excia. algumas ideias que me ocorrem à vista do conhecimento que daqueles desgraçados lugares e das pessoas que figuram nos atrozes acontecimentos que ali vão aparecendo. Joaquim Pinto Madeira e outros facinorosos daqueles sertões, tendo-se apelidado restauradores nas comoções de 1824, cometeram todas as atrocidades que sua imaginação lhes pode sugerir; entusiasmados pelas derrotas que fizeram nos liberais conservaram-se como independente na vila do Jardim, da nova comarca de Crato, que pela distância que se acha arredada da capital do Ceará 113 léguas, lhes ofereceu um ponto oportuno para nele firmarem sua prepotência. De certo, desde aquela época esses malvados quase nunca mais obedeceram ao Governo da Província. (...)A Regência do Império deve lançar vistas de compaixão para a desgraçada situação em que se acham aqueles remontados lugares, que aliás tem mais importância do que aqui se representa. Se Joaquim Pinto Madeira tentar tomar a grande vila do Icó e conseguir, assim, dominar toda a nova Comarca do Crato e as vilas do rio do Peixe e Pombal, da Província da Paraíba, bem como o grande julgado de Cabrobó, da Província de Pernambuco, lugares estes que todos tocam com aquela comarca, poderá levar o ferro, o fogo, o luto e a consternação a mais de mil habitantes, se um indivíduo merece o interesse e desvelos do governo, quanto não devem merecer todas as famílias desgraçadas e entregue a ferocidade de semelhante monstro. (...) Rio de Janeiro, 1º de março de 1832.16 16 Representação do senador José Martiniano de Alencar ao Ministro dos Negócios do Império, o regente Diogo Antonio Feijó. Transcrita por FIGUEIREDO FILHO, 2010: 52-55.

Em outra documentação, Alencar ainda ressaltou que “o país Cariry” era “cercado por desfiladeiros e gargantas de serras de pouca passagem a tropas e oferece fácil defesa aos que estão dentro” (FIGUEIREDO FILHO, 2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010., p. 54). Mostrando que era uma região de difícil acesso, o que garantia vantagens, num eventual confronto, para as pessoas que ali viviam. Ficando claro que, assustava ao político a percepção que os seus moradores do sertão, sobretudo a população mais pobre, em especial os camponeses que habitavam os espaços rurais, tinham o controle e domínio do referido território e como se contrapunham tão veementemente aos interesses governamentais, ao mesmo tempo em que tinham uma visão mais larga acerca de suas fronteiras.

A historiografia caririense, mais de cem anos depois, leu esses episódios, mais especificamente, acerca da organização da região sob a óptica dos políticos e senhores de terras locais. Figueiredo Filho, ao escrever sua obra sobre a História do Cariri, em 4 volumes, reservou os capítulos 10, 11 e 12 para tratar dos acontecimentos políticos no Império. O primeiro se voltou à discussão acerca da Revolta de Pinto Madeira e o seguinte à administração de José Martiniano de Alencar como presidente do Ceará e autor do projeto para criar a Província dos Cariris Novos. Sua intenção era apresentar o Cariri e sua história como uma parte no todo Ceará e, consequentemente, no Brasil. No entanto, o esmero de Figueiredo Filho ia mais longe: assim como no oitocentos, esse escritor pretendia ‘resgatar’ o entendimento desse espaço como uma região diferenciada, não apenas pela natureza pródiga, mas sobretudo como um sertão ‘consertado’, notadamente por José Martiniano de Alencar.

Naquelas priscas eras, a separação entre as cidades litorâneas e a interlândia ainda era mais profunda do que nos tempos atuais. Não me refiro exclusivamente ao fator transporte. O sertão praticamente era inteiramente abandonado. Não recebia a menor assistência Por parte dos poderes públicos das capitais. No máximo, uma escolinha de latim, ou um juiz mal pago, atrelado, de unhas e dentes, aos politiqueiros locais, ou das sedes provinciais. Pela distância, a atuação dos governantes não alcançava o interior. O próprio policiamento ficava circunscrito às metrópoles, onde residiam os três poderes. O potentado de cada município casava e batizava ao bel prazer. Repetia-se, no Cariri, ou em toda a interlândia, o fenômeno tão comum, após a fixação dos bandeirantes nas zonas rurais do sul. O poder atrofiara-se para dar lugar exclusivamente ao latifundiário que, às vêzes, podia mobilizar mais homens em armas do que mesmo o governador de capitania. No Cariri sucedia assim. Qualquer coronel, senhor de engenho, dispunha de maior quantidade de cabras, em armas, do que mesmo a tropa de linha de Fortaleza. Cada calamidade de ordem climática, ou social, trazia a região em polvorosa. O banditismo passava a campear impune e só um único presidente, filho do interior, e habituado às lutas do Cariri, pôde, momentaneamente, sanar a situação, - José Martiniano de Alencar. A província do Cariri Novo conforme a argumentaram seus defensores, se impunha pelo motivo premente de garantia de ordem, além de outras vantagens de cunho regional.

Essa foi a resposta de Figueiredo Filho à pergunta elaborada por ele mesmo: “estaríamos preparados para tal situação?”. A situação, no caso, era a separação do Cariri Cearense e de parte da Paraíba, Piauí e Pernambuco para formar a nova província. Diferentemente da leitura de João Brígido, redator do Araripe nos idos de 1850, o escritor de História do Cariri acreditava que a civilização não viria instantaneamente com a divisão geopolítica. Entretanto, Figueiredo Filho não deixava de coadunar sua opinião com o jornalista do oitocentos. Para aquele, o sertão estava profundamente separado do interior; não se tratava de espaço, mas de tempo. Foi construída uma leitura sobre o sertão no qual lhe era associado um atraso em relação ao litoral e ficava nítida a percepção de que tal atraso seria sanado pela ação de Martiniano de Alencar. Só assim o Cariri poderia progredir, embora que, para o autor novecentista, não mais separado, mas atrelado ao Ceará.

Ainda para Figueiredo Filho, com a atuação de José Martiniano de Alencar, a província teve a possibilidade de se definir num espaço coeso e bem administrado. Esta região não seria mais uma parte unida a outras, mas o Cariri Cearense seria, quiçá, a parte mais importante do Ceará, depois da capital Fortaleza. Nesse sentido, as fronteiras com os outros interiores deveriam ser lembradas e realçadas, e, em contrapartida, o alto sertão, ou o chamado sertão profundo, sem limites territoriais, o espaço ‘demarcado’ por aqueles que lutaram contra a imposição de barreiras e limites administrativos e políticos, que os impediam de ir e vir, nas primeiras décadas da independência, estaria morto. De fato, morto nos escritos de José de Figueiredo Filho para a História do Cariri. Contudo, o sertão, ou a hinterlândia, ganhava uma nova definição dependendo do olhar e do ângulo observado.

Verônica Secreto, em sua obra (Des)medidos - A revolta dos quebra-quilos (1874-1876), publicada em 2011, apontou para a continuidade de um processo presente nos sertões nordestinos no período imperial: a percepção dos homens pobres-livres das regiões rurais - sertanejos, criadores de gado, agricultores de subsistência - das Província do Norte em relação ao que era visto como ameaça ao seu cotidiano, de caráter nacional, em subjuga-los à lógica econômica sulista ou, mais próximo, sujeitar o campo à cidade. Resistentes à adoção de um sistema métrico de origem francesa, ou mesmo com as normas ‘ilegais’ de recrutamento, sertanejos livres pobres passaram a se movimentar em defesa se suas tradições e costumes. É possível dizer que, assim como na revolta de Pinto Madeira, quarenta anos antes, o cotidiano da população livre e pobre estava sendo transformado e normatizado, de forma que as experiências dos sertanejos estavam sendo abafadas por um padrão de vida e trabalho que se queria implantar de cima para baixo. No entanto, ressalte-se que, nos dois eventos, a população se mobilizou no que se chama aqui de alto sertão nordestino contra o braço do Estado, que mais uma vez tentava alcançá-los.

No Cariri Cearense, a cidade de Crato foi um dos espaços de movimentação e questionamento das novas medidas métricas. Secreto aponta que, em 1874, a Câmara de Crato recebeu o ofício comunicando a necessidade da adoção do novo sistema de pesos e medidas para o comércio dos gêneros. Em resposta, acusaram o não recebimento dos “termos de pesos e medidas” para assim adotar a nova regra. Mais de um ano depois ainda esperavam o recebimento destes. Contudo, dois anos depois, em 1877, a própria Câmara Municipal de Crato, já estando de posse do sistema métrico francês, determinou que os preços dos alimentos deveriam seguir uma tabela orientada pelo referido sistema e também proibiu a exportação ou o armazenamento de alimentos no mercado público. As posturas das cidades e vilas do Cariri determinavam que os instrumentos de medição estivessem devidamente aferidos, sob pena de multa ou prisão. Contudo, havia uma economia moral a ser respeitada, e isso os próprios governantes da cidade aceitavam que as negociações comerciais tivessem preferência para o mercado interno e nas condições deste (SECRETO, 2011SECRETO, María Verónica. (Des)medidos - A revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011., p. 30 - 33).

Essa prática fazia parte do “modelo paternalista de mercado de alimentos”, em contraposição a uma economia política que estava transformando em discurso único, tipificado no sistema de métricas. De acordo com Secreto, em Milagres, vila caririense, no ano de 1848, já havia um sistema de métricas e medidas. “Gêneros de primeira necessidade deviam ser vendidos no mercado público por espaço de 4 horas após as quais poderiam atacar com quem quiser sem sob pena de 3 mil reis de multa ou três dias de prisão tanto para o vendedor quanto para o comprador” (SECRETO, 2011SECRETO, María Verónica. (Des)medidos - A revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011., p. 31). Em tempos de dificuldades na produção, um fiscal deveria controlar o mercado público, sendo oferecidos os gêneros de primeira necessidade para que fossem vendidos em proporção de família. Quem vendesse gênero baseado em pesos e medidas falsificadas sofreria multa ou prisão.17 17 Leis provinciais. Resolução nº 472, 19 de setembro de 1848, aprovadas as posturas da Câmara do Município de Milagres. Biblioteca Pública Menezes Pimentel - BPMP, O cearense, 5 de Março de 1849.

Medidas que seguiam as especificações de cada centro produtor, como em Milagres, onde eram estas aceitas e havia uma métrica que organizava a economia de cada local. O que se questionou no movimento do quebra-quilos, de acordo com Secreto, é a implantação de um novo sistema de medidas voltado para o mercado externo. E, principalmente, sem considerar o contexto interno, como secas, perdas de produção, fome, peste, entre outras dificuldades. Por outro lado, mesmo nos anos sem maiores externalidades, a produção do Cariri Cearense já não era satisfatória. Em 1875, ano de chuvas regulares, por exemplo, a Câmara de Crato enviou ofício à Presidência da Província apontando as dificuldades pelas quais passavam:

abandonada e esquecida como é a agricultura no Alto Sertão desta província, ella recente-se de tudo. Seo sistema de industria não passa do que por si pode conceber um lavrador rude e material. Seo processo limita-se ao que naturalmente produs a campina em cujo seio se deposita o grão de qualquer semente. As ferramentas compõe-se da enxada, maxado, facão, foice - em sua maior parte fabricadas por artistas dessa cidade.18 18 CÂMARA MUNICIPAL DO CRATO. Ofício da Câmara Municipal do Crato ao vice-Presidente da Província do Ceará, Esmerino Gomes Parente, em 26 de junho de 1875, caixa 34, APEC, folha 4.

Mesmo Crato, considerada a cidade mais rica do sul Cearense, não conseguia sustentar uma produção que alimentasse o mercado externo. Interessante perceber como foi a própria Câmara do Crato que apontou para tais dificuldades. Tanto que utilizou o sentido de alto sertão e de campina para ressaltar a simplicidade nas relações estabelecidas naquele espaço e ausentar-se, ou pelo menos tentar, da obrigação acerca do novo sistema métrico. Para essa questão, parecia mais útil a percepção da região a partir da população pobre que nele vivia.

Mesmo assim, tal sistema francês foi implantado nesse alto sertão, apontado como de rude produção.19 19 Para indicar seu alcance, pode-se considerar, inclusive, a alusão feita por Rodolfo Teófilo (1972, p. 41) em seu romance Os Brilhantes: “era proibido comprar ou vender pelos pesos e medidas antigos sobre pena de multa e prisão. Havia mais de três meses que se tinha aferido os metros, os quilogramas e os litros, e os vendedores não compreendiam ainda seu valor. Raro era o matuto que pronunciava o nome das novas medidas, a maioria apresenta a carne gorda a 12 vinténs o tilo, farinha da melhor e vintém o nitro, fumo de corda e duas patacas o neto”. Por tal razão, e de acordo com Verônica Secreto (2011SECRETO, María Verónica. (Des)medidos - A revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011., p. 30), as alterações tradicionais motivaram epicentros da Revolta dos quebra-quilos. As ações dos revoltosos foram diversas: queimaram coletores, rasgaram listas de recrutamento, leis e regulamentos, destruíram os novos padrões de pesos e medidas ou atacaram as autoridades. Essas foram algumas das atitudes tomadas pela população pobre e livre a fim de impedir as transformações que ameaçavam extinguir seu mundo. Era, enfim, um golpe contra a experiência construída no espaço, mas também no tempo do Alto Sertão. Dando, conforme Régis Lopes Ramos (2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: O Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012.), espaço ao tempo e tempo ao espaço.

Assim, tanto a revolta do quebra-quilos, como a de Pinto Madeira no início do século, são sintomáticas de construções diferentes sobre o sertão nordestino. Cada grupo tinha leituras próprias do espaço em que vivia. E, notadamente, lutavam em favor da manutenção de seus costumes e tradições, que significavam aquele espaço de experiência: o alto sertão nordestino, diverso das marcas geopolíticas e das obrigações de sistemas métricos, entre outros aspectos. O estabelecimento de limites geográficos e políticos, ou pelo menos a tentativa, foi parte de um conflito que, em última instância, desnudava o jogo de poder em torno do ‘alto sertão’ nordestino. Apontando, nesse sentido, que para cada definição de região havia um espaço e um tempo distintos; que diferentes mecanismos eram acionados para a construção dos vários sentidos elaborados para esse sertão, a ponto de apontar uma ‘profundidade’ para mapear o sertão que queriam apontar como ‘legítimo’, como se sua delimitação fosse natural.

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  • TEÓFILO, Rodolfo. Os Brilhantes 3 ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro/MEC, 1972.

Notas

  • 1
    A delimitação espacial do Alto sertão é, nesse artigo, compreendida como a parte interior da região setentrional brasileira, atualmente classificada como nordeste. Geograficamente, a análise se restringe à região do Cariri, Cearense e Paraibano, e as áreas que faziam fronteira com as províncias de Pernambuco, do lado leste, e Piauí, do lado oeste. No século XIX, essa região foi demarcada como proposta de uma província a ser criada e foi chamada de Cariris Novos. Mais adiante, a proposta e delimitação da região serão discutidas.
  • 2
    Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado por John Luffman, Londres, 1808”. Disponível em: <http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016>.
  • 3
    O desconhecimento do interior da colônia, embora sem ser expressamente comentado, como fez o intelectual britânico, já havia sido evidenciado na cartografia “Nova et accurata [precisa] Brasiliae totius [total] tabula” - Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart168860.jpg>, publicada por Joane Blaeu, em 1640, e no mapa “Amerique Meridionale” - Publiee sous les Auspices de Monseigneur le Duc D’Orleans... Map of South America by J.B. D’Anville, Paris, 1748 e detalhe. Disponível em: <http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~203996~3001758#>, publicado por J.B. D’Anville, em Paris, no ano de 1748, o qual apresenta uma apresentação minuciosa das correntes marítimas e Capitanias em contraposição ao ‘vazio’ no centro do mapa. Em comum, a parte central dos mapas evidenciava a existência de regiões ainda não completamente conhecidas, ou mesmo cartografadas. Em outros termos, a percepção de um espaço alheio ao controle do governo português.
  • 4
    CÂMARA MUNICIPAL DE BARBALHA. Relatório da Câmara Municipal de Barbalha ao Presidente da Província do Ceará, Pedro Leão Velloso, em 03 de agosto de 1881, caixa 21, APEC, folha 23.
  • 5
    A viagem ocorreu em 1859 e o espaço cearense foi avaliado por um grupo de estudiosos cientistas divididos em cinco seções, sendo elas botânica, geológica & mineralógica, zoológica, astronômica & geográfica e etnográfica & narrativa; tendo em suas coordenações, respectivamente, Francisco Freire Alemão, Guilherme de Capanema, Manoel Ferreira Lagos, Giacomo Raja Gabaglia e Antonio Gonçalves Dias. Este grupo viajou por todo o Ceará, de Fortaleza ao Cariri, chegando até a vila de Exu em Pernambuco observando peculiaridades e estudando as condições físicas do território.
  • 6
    O mapa foi produzido por Clovis Jucá (2007JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará setecentista. As vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador, BA. Tese de Doutoramento. Universidade Federal da Bahia, 2007.) a partir da descrição do texto Vias de Communicação do Ceará Colonial, de Carlos Studart Filho. Esse mapa é muito válido a este estudo para indicar com maior eficácia a que ponto se estendiam negociações, comércio, experiências e solidariedades no alto sertão e de como elas ultrapassavam os marcos geoadministrativos no mapa indicado pelos limites políticos das províncias cujos territórios eram alcançados. Importante destacar que, tamanha era a força das relações (venda de gado, de charque e produtos agrícolas) que mantinham dinâmicas essas estradas, que todo o século XIX foi perpassado por projetos (como as estradas em linha reta e a estrada de ferro) para redimensionar a produção do interior em direção ao porto de Fortaleza, afim de fortalecer a ‘discutida’ capital da província cearense (REIS, p. 2015REIS, Ana Isabel R. P. Cortez. O espaço a serviço do tempo: a estrada de ferro de Baturité e a invenção do Ceará. Fortaleza, CE. Tese de Doutoramento. Universidade Federal do Ceará, 2015.).
  • 7
    Periódico de vinculação liberal, veiculado entre os anos de 1854 a 1865 nas cidades e vilas do Cariri Cearense.
  • 8
    CEDOCC, O ARARIPE, 14 de fevereiro de 1857, p. 02.
  • 9
    Mapa produzido por Darlan Reis a partir da documentação apresentada na proposta de formação da referida província. O desenho demonstra mais nitidamente que o espaço requerido para a província, que teria sua capital em Crato, corresponde de certa forma ao espaço indicado nas fontes para o que seria o alto sertão aqui estudado. Fato que implica perceber a ampla e densa dimensão das relações que constituíam esse espaço no século XIX. (REIS, 2014REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Fortaleza, CE. Tese de Doutoramento. Universidade Federal do Ceará, 2014.).
  • 10
    CÂMARA MUNICIPAL DO CRATO. Relatório da Câmara Municipal do Crato ao Presidente da Província do Ceará, Ignacio Corrêa de Vasconcelos, em 11 de maio de 1846, caixa 34, APEC, folhas 1-2.
  • 11
    CEDOCC, O ARARIPE, 14 de julho de 1855, p. 01.
  • 12
    CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 02.
  • 13
    José Martiniano de Alencar ou senador Alencar, como ficou conhecido, teve um histórico de militância em prol da Província do Ceará e também das causas liberais. Filho de José Gonçalves dos Santos e Bárbara Pereira de Alencar, foi sacerdote e jornalista; na vida política, foi Deputado, Presidente de Província e Senador do Ceará entre os anos de 1820 a 1860.
  • 14
    CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 03.
  • 15
    CEDOCC, O ARARIPE, 07 de julho de 1855, p. 03.
  • 16
    Representação do senador José Martiniano de Alencar ao Ministro dos Negócios do Império, o regente Diogo Antonio Feijó. Transcrita por FIGUEIREDO FILHO, 2010FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010.: 52-55.
  • 17
    Leis provinciais. Resolução nº 472, 19 de setembro de 1848, aprovadas as posturas da Câmara do Município de Milagres. Biblioteca Pública Menezes Pimentel - BPMP, O cearense, 5 de Março de 1849.
  • 18
    CÂMARA MUNICIPAL DO CRATO. Ofício da Câmara Municipal do Crato ao vice-Presidente da Província do Ceará, Esmerino Gomes Parente, em 26 de junho de 1875, caixa 34, APEC, folha 4.
  • 19
    Para indicar seu alcance, pode-se considerar, inclusive, a alusão feita por Rodolfo Teófilo (1972TEÓFILO, Rodolfo. Os Brilhantes. 3 ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro/MEC, 1972., p. 41) em seu romance Os Brilhantes: “era proibido comprar ou vender pelos pesos e medidas antigos sobre pena de multa e prisão. Havia mais de três meses que se tinha aferido os metros, os quilogramas e os litros, e os vendedores não compreendiam ainda seu valor. Raro era o matuto que pronunciava o nome das novas medidas, a maioria apresenta a carne gorda a 12 vinténs o tilo, farinha da melhor e vintém o nitro, fumo de corda e duas patacas o neto”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2019
  • Aceito
    05 Out 2019
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