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ASSISTÊNCIA NA ANTIGA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO: contribuições para o debate acerca de sua organização (1830-1890)

Assistance in the former province of Rio de Janeiro: contributions to the debate about its organization (1930-1890)

Resumo

Este artigo tem por objetivo discutir como a assistência foi se construindo em quatro municípios da antiga província do Rio de Janeiro ao longo do século XIX: Cabo Frio, Vassouras, Valença e Niterói, capital da província. Quatro experiências distintas que nos permitem problematizar os sentidos da criação de instituições de assistência nestas cidades. A partir da pergunta norteadora - como modelos “universais” de organização da assistência foram aplicados para estabelecer serviços de saúde em cidades brasileiras, levando-se em consideração as particularidades locais? - serão analisadas quatro experiências distintas: Caridade Santa Izabel de Cabo Frio (1830-1837); Santa Casa da Misericórdia de Valença (1838), Santa Casa da Misericórdia de Vassouras (1853) e Asilo Santa Leopoldina em Niterói (1854). O estudo dessas instituições permite compreender a Lei dos Municípios de 1828 como marco político importante para o entendimento da sua criação; além de inseri-las, também, na sociabilidade imperial, onde o apoio para a (e da) nova elite fluminense pode ser percebido na abertura de Casas de Caridade, como forma de agradar ao Imperador ou agradecer a mercê desejada/recebida.

Palavras-chave:
Assistência; Filantropia; Pobreza; Saúde

Abstract

This article aims discuss how the assistance was built in four municipalities of the province of Rio de Janeiro throughout the nineteenth century: Cabo Frio, Vassouras, Valença and Niterói, capital of the province. Four distinct experiences that allow us to question the meanings of the creation of care institutions in these cities. From the guiding question - how were “universal” models of care organization applied to establish health services in Brazilian cities, taking into account local particularities? - four different experiences will be analyzed: Santa Izabel Charity of Cabo Frio (1830-1837); Holy House of Mercy of Valença (1838), Holy House of Mercy of Vassouras (1853) and Santa Leopoldina Asylum in Niterói (1854). The study of these institutions allows us to understand the Municipalities Act of 1828 as an important political framework for understanding its creation; besides inserting them, also, in the imperial sociability, where the support for (and of) the new fluminense elite can be perceived in the opening of Houses of Charity, as a way to please the Emperor or to thank the desired / received mercy.

Key-works:
Assistance; Philanthropy; Poverty; Health

Este artigo tem por objetivo discutir como a assistência foi se construindo em quatro municípios da antiga província do Rio de Janeiro ao longo do século XIX: Cabo Frio, Vassouras, Valença e Niterói, capital da província. Quatro experiências distintas que nos permitem problematizar os sentidos da criação de instituições de assistência nessas cidades.

O trabalho apresenta resultados do projeto “A interiorização da assistência: um estudo sobre a expansão e a diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945)”. Ao propormos o projeto pensamos como marco temporal inicial o período da consolidação do Império, e a investigação foi modelada por duas questões: a) como modelos “universais” de organização da assistência - caridade, filantropia, auxílio mútuo e políticas sociais - foram aplicados para estabelecer serviços de saúde em cidades brasileiras, levando-se em consideração as particularidades locais? b) a criação de serviços locais de assistência à saúde, no interior do país, foi responsável pela criação de novo mercado de trabalho para os profissionais de saúde?

É sobre essa primeira pergunta que pretendemos apresentar algumas considerações a partir da análise de quatro experiências distintas: Cabo Frio (1830-1837), Valença (1838), Vassouras (1853) e Niterói (1854). Das quatro, apenas a criação da Santa Casa da Misericórdia de Vassouras e do Asilo Santa Leopoldina, em Niterói, atendem delimitação temporal proposta inicialmente. O recuo se deu pelo acesso à documentação da Casa de Caridade Santa Izabel de Cabo Frio (1837) e à da Santa Casa da Misericórdia de Valença (1838). Ademais, o estudo dessas instituições permitiu que a problemática inicial do projeto fosse revista, uma vez que a Lei dos Municípios de 1828 passa a ser interpretada como marco político importante para o entendimento da criação destas instituições. O estudo permite inseri-las, também, na sociabilidade imperial, na qual o apoio para a (e da) nova elite fluminense pode ser percebido na abertura de Casas de Caridade, como forma de agradar ao Imperador ou agradecer a mercê desejada/recebida.

Outra questão importante reside no fato de que, pela análise aqui proposta, circunscrita ao século XIX, o modelo mais universal de assistência era aquele fornecido pelas Santas Casas da Misericórdia que, a despeito de seu caráter discricionário, eram a únicas instituições que se propunham a atender aos pobres. O estado só agia em casos de epidemias. Não à toa, as instituições aqui estudadas ou são Misericórdias ou nestas são inspiradas.

Muito já tenho dito sobre a diferenciação entre caridade e filantropia, na qual a questão da utilidade social singulariza a obra (Sanglard, 2008SANGLARD, Gisele. “Entre o Hospital Geral e a Casa dos Expostos: assistência à infância e transformação dos espaços da Misericórdia carioca (Rio de Janeiro, 1870-1920)”. In: Revista Portuguesa de História, t. XLVII (2016) - p. 337-358.). No Brasil, a forte presença da Irmandade da Misericórdia sempre reforçou seu caráter caritativo. O século XIX traz inúmeras mudanças com o surgimento das associações do auxílio mútuo e a assistência intraclasse; e o século XX, com as políticas públicas. O que este artigo pretende evidenciar é o caráter filantrópico, logo com uma utilidade social, na criação de instituições voltadas aos órfãos - notadamente às órfãs. Ressalto que a filantropia, como conceituada na França setecentista, não exclui a caridade, diferindo-se desta pela utilidade social.

A segunda pergunta norteadora do projeto será respondida de forma secundária neste artigo, uma vez que nem toda a documentação levantada permite responder totalmente a ela.

Antes de passarmos às questões do presente artigo, é preciso fazer uma advertência: não pretendo afirmar que este possa traduzir a experiência de abertura de instituições de caridade em todas as províncias brasileiras. Considero, sim, que as dinâmicas locais, questões relativas à sociedade e à economia de cada região, são fatores importantes para compreender o surgimento de tais instituições - exemplo disso é a criação da Santa Casa da Misericórdia de Nazaré, no recôncavo baiano, em 1830, analisada recentemente por Renilda Barreto e João Batista de Cerqueira (Barreto e Cerqueira; 2019). A realidade encontrada pelos pesquisadores mostra uma sociedade que, apesar de seu forte caráter racial e longe de fazer parte da boa sociedade, fundou uma Misericórdia e mudou a dinâmica política da região.

Para atender aos objetivos aqui propostos, este artigo será divido em três partes distintas: a primeira procurará analisar o papel da Lei dos Municípios e seu impacto na assistência, além de discutir a questão do enobrecimento das elites locais, a partir do financiamento da assistência; a segunda parte vai apresentar questões relativas à criação das instituições que aqui serão analisadas; e, por fim, a terceira parte procurará juntar as duas anteriores, fechando o artigo.

Entre o dever legal e o desejo de enobrecimento

A assistência no Brasil foi amplamente assente nas ações de caridade da Santa Casa da Misericórdia, instituição leiga, criada em Portugal em fins do século XV, a qual, nos anos de 1530, passou a ser responsável pela manutenção de hospitais no reino e no ultramar. O sucesso e o poder dessa instituição no Portugal moderno tem sido objeto de farta bibliografia (Sá, 1997SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no Império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.; Lopes, 1998LOPES, M. A. “Os pobres e a Assistência Pública”. In: MATTOSO, J. (Org). História de Portugal. vol. 6, Lisboa: Editorial Estampa; 1998, p. 427-437.; Abreu, 2014ABREU, Laurinda. O poder e os pobres - as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014.), e o trabalho mais recente e inovador é o de Laurinda Abreu, que procura demonstrar como a Coroa portuguesa incentivou a criação de Misericórdias em Portugal; bem como ressaltar a potência dos pobres em recorrer a este sistema (Abreu, 2014ABREU, Laurinda. O poder e os pobres - as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014.). O modelo português dividia o papel dos entes na gestão da assistência: às Câmaras, o cuidado com os expostos; às elites, a gestão dos hospitais; e à Igreja, uma forte influência no recolhimento das órfãs.

A abertura de uma Misericórdia no Brasil colonial, como no reino, dependia de alvará régio, e o cuidado com os expostos estava a cargo das câmaras municipais1 1 A criação de expostos pelas câmaras municipais estava presente nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, que foram aplicadas na então colônia (Marcílio, 1998; Venancio, 1999; Franco; 2011). . Diferentemente do que ocorreu na Metrópole, onde a coroa incentivou a criação de Misericórdias - o que fez com que até os pequenos concelhos mantivessem sua Misericórdia e seu pequeno hospital, ainda que com apenas dois leitos - no Brasil, foram poucas as autorizações dadas pela Coroa portuguesa. Dentre as obras de caridade mantidas pelas congêneres lusitanas, na colônia era o hospital a principal obra mantida no Brasil e, a partir do século XVIII, vemos o surgimento das Rodas dos Expostos e dos Recolhimentos - principalmente no Rio de Janeiro e em Salvador. Mesmo os enterramentos nem sempre eram monopólio dessas confrarias no Brasil.

Como Renato Franco chamou atenção, as Misericórdias coloniais eram extremamente frágeis do ponto de vista financeiro - à exceção daquelas do Rio de Janeiro e de Salvador, as capitais da colônia (Franco, 2011FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga - As Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2011.) - o que explica o acanhamento de suas ações. O certo é que o Brasil chega à Independência, em 1822, com pouquíssimas e frágeis instituições de assistência, localizadas sobretudo na faixa litorânea, onde o atendimento aos marítimos garantiria uma fonte de renda importante a essas instituições.

Se a colonização legou parcas instituições de assistência, concentradas em poucas cidades, com papel preponderante para o Rio de Janeiro, o processo de independência pode ser caracterizado por uma grande expansão de casas de caridade, muitas das quais adotaram o nome de Misericórdia. Contudo, cabia ainda ao imperador autorizar a abertura de uma Misericórdia, que devia prestar contas de suas ações ao Ministério do Império; e às Câmaras, do cuidado com os expostos.

A outorga da Constituição Imperial em 1824 obrigou os parlamentares da Assembleia Geral, reaberta em 1826, a repensarem o papel e o poder das Câmaras Municipais, o que significava, em outras palavras, a sujeição destas à Constituição do Império do Brasil. Coube ao Senado a preparação da Lei dos Municípios, que começou a ser discutida em 1827. Essa lei tinha como objetivo dar nova forma às Câmaras Municipais; delimitar suas atribuições; determinar o processo eleitoral para sua composição; e redefinir o papel dos Juízes de Paz.

Gladys S. Ribeiro e Vantuil Pereira chamam atenção para o fato de que, até a promulgação da Lei dos Municípios em 1828, as câmaras municipais tiveram papel político importante, tendo sido também fiadoras do processo de Independência. Com a nova lei, esses órgãos deixaram de ter papel político e ficaram restritos às questões administrativas locais (Ribeiro e Pereira, 2009RIBEIRO, Gladys Sabina et PEREIRA, Vantuil. “O primeiro reinado em revisão”. In: GRINBERG, Keila et SALLES, Ricardo (Orgs). O Brasil Imperial, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2009, p. 137-174.).

No que interessa aos objetivos deste capítulo, a Lei dos Municípios, em seu artigo 69, determina que caberão às câmaras municipais a criação e a manutenção de casas de caridade, com o objetivo claro de, na ordem: criar os expostos, curar os necessitados, vacinar os meninos e todos os que não o tivessem sido. E para tal deveriam ter um médico ou cirurgião de partido. O artigo 76, relativo às rendas das câmaras, determina que não “podendo prover a todos os objetos de suas atribuições, preferirão aqueles, que forem mais urgentes” e entre os mais urgentes, os senadores indicam a criação e educação dos expostos, dos órfãos mais pobres e dos desamparados. Contudo, ainda determina que apenas nas “cidades, ou vilas, aonde não houverem casas de misericórdia”2 2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-1-10-1828.htm, Acesso em: 06/03/2019. .

Entretanto, ao definir que caberiam às câmaras a criação e a manutenção de Casas de Caridade, e as câmaras só cuidariam dos expostos no caso de cidades onde não houvesse casas de misericórdia, o legislador transferia às instituições de caridade a obrigação na criação dos expostos, órfãos pobres e desamparados; bem como a assistência em geral. Aí reside uma das chaves para entendermos a abertura das Casas de Caridade ou de Misericórdia no período imperial.

Um dado deve ser evidenciado: a lei, promulgada a 1º de outubro de 1828 é assinada por José Clemente Pereira - que virá a ser um dos maiores e mais longevos provedores da Irmandade da Misericórdia do Rio de Janeiro no período oitocentista (Pimenta e Delamarque, 2016PIMENTA, Tania Salgado et DELAMARQUE, Elisabete Vianna. “O estado da Misericórdia: assistência à saúde no Rio de Janeiro, século XIX”. In: FERREIRA, Luiz Otavio et al. Filantropos da Nação - sociedade, saúde e assistência no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Ed. FGV; 2015, p. 39-54.).

Renilda Barreto e Rogério Oliveira ressaltam, em artigo recente, que a criação da Casa de Caridade de Juiz de Fora (1854-1856) estava vinculada às necessidades de atender à Lei dos Municípios, uma vez que a vila de Paraibuna acabara de se tornar município (Oliveira e Barreto, 2019OLIVEIRA, Rogério Siqueira e BARRETO, Maria Renilda. Limites da assistência oitocentista: o caso urbano de Juiz de Fora (Minas Gerais). História, Ciências e Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, 2019.) - tal vinculação já fora apontada na dissertação de Rogério Oliveira (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Rogério Siqueira de. Assistência à saúde dos escravos em Juiz de Fora (1850-1888). Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. 2016.). Como veremos neste artigo, o caso da cidade mineira estudado por ambos é apenas mais um caso que ajuda a fundamentar o argumento aqui proposto.

O segundo ponto considerado importante para entendermos a abertura das Casas de Caridade no período Imperial é a busca por título nobiliárquicos pela elite das vilas e municípios.

Mariana Muaze (2008MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa - família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar/Faperj; 2008.), ao trabalhar o acervo da baronesa de Ubá, chama atenção para as estratégias levadas a cabo por Joaquim Ribeiro de Avellar, rico fazendeiro do distrito de Paty do Alferes, em Vassouras, para casar seu filho bastardo com uma moça, filha de um comerciante de grosso trato, próximo ao Paço Imperial. Dentre as démarches sugeridas por Domingos Alves da Silva Porto, o intermediário de Ribeiro de Avelllar na Corte, estava o apoio à construção do Hospício de Alienados. Segundo a correspondência de 06 de agosto de 1843, Domingos Porto informa que o fazendeiro ficaria “bem” se assinasse a lista de subscrição. As tratativas chegaram ao fim a 11 de outubro de 1848. Cinco anos e alguns milhares de contos de reis custaram a Ribeiro de Avellar o título de barão de Capivary, com honras. A 16 de agosto de 1847, Domingos Porto escreve a Ribeiro de Avellar e deixa explícito, em sua carta, o papel da caridade e da filantropia para a ascensão social do fazendeiro:

Não se arrependa da esmola com que subscreveu para o hospício de alienados. Foi uma obra muito meritória e dá valor à fortuna que muito lhe tem custado a ganhar. Devemos trabalhar não só para gozarmos dos cômodos da vida como também para merecer, nós e nossa família, de alguma consideração da sociedade... (Carta de DALP ao BC, 16/08/847 apudMuaze, 2008MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa - família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar/Faperj; 2008.: 43).

O baronato não dependeu apenas das doações para a construção do Hospício Nacional de Pedro II, vinculado à Misericórdia do Rio de Janeiro a qual tinha como provedor à época, José Clemente Pereira. Este só recebeu o título depois de uma visita do imperador à província do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1848. E para a recepção ao imperador, a elite de Vassouras - dentre seu quadro, Joaquim Ribeiro de Avellar - foi convidada a formar os fundos necessários. Conforme Mariana Muaze define, ser senhor de terras e escravos afirmava o poder local do fazendeiro, “todavia, não gerava o reconhecimento social por parte da elite imperial como um todo” (Muaze, 2008MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa - família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar/Faperj; 2008.: 44). Esse reconhecimento foi conseguido com a nobiliarquia.

Da mesma forma que a Lei dos Municípios de 1828 ajuda a entender o surgimento de Casas de Caridade no Brasil Império, a doação para instituições de caridade e as visitas do Imperador são outros ingredientes para o crescimento destas instituições de caridade ao longo do século XIX.

Casas de Caridade na província do Rio de Janeiro: estudos de caso

A antiga província do Rio de Janeiro se singulariza, no oitocentos, por abrigar duas áreas de extrema importância econômica do país, porém se encontra em franca decadência no início do século XX: ao norte do estado, a região de Campos, que vivera seu auge no período colonial, com a produção do açúcar; e no sul fluminense, no Vale do Paraíba, onde a economia cafeeira fora sustentáculo do Império brasileiro. Essas duas regiões criaram Irmandades da Misericórdia para gerir a assistência local. Já Niterói, por sua proximidade com a Capital, não viu surgir uma Misericórdia, porque a baía de Guanabara era facilmente cruzada, com barcos enviando os doentes pobres para serem tratados na Misericórdia da Corte, como evidenciam os relatórios desta instituição.

Tabela 1.
Casas de Caridade da Província do Rio de Janeiro

Na província existiam, em 1881, 13 “Casas de Caridade” - Angra dos Reis; Barra Mansa; Cantagalo; Itaguaí; Parati; Resende; S. João da Barra; Valença; Vassouras; Cabo Frio; Campos; Macaé; e Magé - e contava com dois hospitais públicos: o Hospital Santa Tereza, em Petrópolis, e o Hospital S. João Batista, em Niterói (Annais da Assembleia...; 1881), conforme pode ser visto na tabela.

A criação dessas instituições na província do Rio de Janeiro respondeu ao desenvolvimento econômico e social das localidades em que foram inseridas. Como característica geral, tais instituições apresentavam grande fragilidade econômica. A exceção da Misericórdia de Campos, que tinha patrimônio próprio, nas outras casas de Caridade seu patrimônio restringia-se ao prédio do hospital. Eram assim, extremamente dependentes das verbas repassadas pelo governo provincial - basicamente porcentagem das loterias destinadas ao custeio dessas instituições.

Da província do Rio de Janeiro, a cidade bem mais estruturada, no que tange à assistência, era Campos, no norte Fluminense. Ali havia, desde o final do período colonial, a Irmandade da Misericórdia, que mantinha um hospital; e, desde 1860, a Roda dos Expostos e o Asilo de N. Sra. da Lapa, destinado às órfãs enjeitadas (Attalah e Salvador, 2019). Em 1852, foi criado o Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência. E, em 1880, a Ordem Terceira de São Francisco estava em via de conclusão da obra de um hospital, anexo à igreja. Os dois hospitais campistas recebiam verbas provinciais que ajudavam em seu funcionamento (Almanck de Campos; 1881ALMANACK Industrial e Administrativo da cidade e município de Campos (Rio de Janeiro). Campos: Typographia do Monitor Campista; 1881.).

No que tange à assistência à saúde na capital da província, esta só começou a ser organizada a partir da década de 1870, por ocasião da abertura do Hospital São João Batista, com verba governamental, o qual manteria, em anexo, um Asilo de Alienados. Fora essas duas instituições, havia o Asilo Santa Leopoldina (1854), voltado às órfãs da província. Ressalte-se que o território do município abrangia não só a cidade de Niterói, como também São Gonçalo.3 3 O Ministério do Império mantinha, na ponta de Jurujuba, o Hospital Marítimo de Santa Isabel, voltado para atender a saúde dos portos: passageiros e marinheiros que chegassem à Corte com suspeita de doenças infectocontagiosas e necessitassem de quarentena. Por não atender à população em geral, essa instituição não faz parte daquelas aqui analisadas.

Casa de Caridade de Santa Izabel de Cabo Frio4 4 Sobre a documentação da Casa de Caridade de Cabo Frio, agradeço a Nicole Macedo, aluna do mestrado em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural da Saúde/Fiocruz.

A abertura da Casa de Caridade de Cabo Frio insere-se no quadro descrito anteriormente: era fortemente dependente das verbas da província. Sua criação vincula-se, em primeiro lugar, ao próprio crescimento da cidade e ao enriquecimento decorrente da exploração das salinas locais e do comércio do peixe seco da população local. Foi justamente a situação econômica da cidade que possibilitou que a elite propusesse a criação de um hospital para o atendimento aos pobres da região. O surgimento dessa Casa de Caridade deve ser entendido como uma resposta das elites locais para a Lei dos Municípios. Para geri-la, foi criada a Irmandade de Santa Isabel, em 1837.

As discussões acerca da construção da Casa de Caridade de Cabo Frio datam, contudo, ao menos do início de 1830, conforme demonstram as atas da Câmara do município, e estavam, naquele momento, muito vinculadas à necessidade do atendimento aos enjeitados da cidade. Foi a manutenção de uma Roda dos Expostos que ensejou a criação da Casa de Caridade. Datam daquele ano as primeiras doações para a construção da Casa: a doação do trabalho de um pedreiro e de dois carpinteiros.

Até a criação da Irmandade de Santa Isabel, fundada em 1837 com o intuito de gerir a Casa de Caridade, os enjeitados da cidade estavam a cargo da Comissão dos Expostos da Câmara - o que por si só já pode ser percebido como uma adequação do município à Lei de 1828. No período disponível nas fontes, foram responsáveis pelos Expostos o Pe. Joaquim de Souza Cattarina Loyola, e os cidadãos Alexandre Manoel de Araújo Pontes e Henrique Luis de Niemeyer Bellegarde. A partir de 1835, Bellegarde e Antonio de Souza Porto Rocha passam a responder pela Comissão.

Cabia a essa Comissão entregar o enjeitado à família que os iria criar, garantir o pagamento das criadeiras ou matronas, bem como vacinar todos os expostos contra a varíola - outra obrigação imposta pela lei.

Enfim, desde 1830 a elite de Cabo Frio procura os meios necessários para a criação de sua Casa de Caridade. Percebe-se grande envolvimento da comunidade em prol dessa obra: a doação de madeira por moradores da freguesia de Capivary; a oferta do serviço de um pedreiro, de dois carpinteiros: a abertura de uma lista de subscrição pública para conclusão da construção. Todos, mecanismos típicos da ação caritativa do período.

A leitura das atas da Comissão dos Expostos, mantida pela Câmara Municipal, de 1830 a 1840, permite conhecer um pouco do processo de criação das instituições que compuseram a Casa de Caridade: a Roda dos Expostos, o Hospital, o Recolhimento das Órfãs, e o Cemitério. Percebe-se a nítida inspiração nas obras tradicionais das Misericórdias, e a devoção à Santa Isabel, orago da Irmandade, reforça ainda mais a simbologia das ações de assistência, uma vez que o ano compromissal das Misericórdias inicia-se a 02 de julho, dia de Santa Isabel.

Em 1837, foram iniciadas as obras do cemitério em terreno doado à Câmara pela Venerável Ordem de São Francisco. E, em julho de 1837, foi adquirida, de Manoel Joaquim Moreira, a casa onde funcionava a Roda dos Expostos.

Assim, a Casa de Caridade de Santa Isabel começou a funcionar em uma casa adaptada.

A vida econômica da Irmandade não era fácil! A 30 de julho de 1843, a instituição cobrou as joias não pagas pelos Irmãos. A quantia, que deveria ter sido entregue no momento do ingresso, se fazia necessária para a ampliação da Casa de Caridade. Apesar de contar, desde a década de 1840, com a receita das loterias enviadas pelo governo provincial - a qual, para o caso da Casa de Caridade de Cabo Frio, não era muito alta (4:000$000) se comparada às outras Casas da Província - a Casa de Caridade de Cabo Frio vivia em dificuldades financeiras.

O certo é que a ampliação da Casa de Caridade abalou as frágeis finanças da Irmandade não só pelo tempo que levou, como também pelos inúmeros problemas que a construção sofreu: de roubo de pedras, a queda de paredes e telhado.

Mesmo funcionando em uma edificação adaptada, a Casa atuou nas esferas a que se propôs: a educação das moças órfãs - se não fossem bem na escola, que se dedicassem à costura a fim de terem um trabalho remunerado quando não fossem mais amparadas pela Irmandade; o cuidado dos expostos; e o amparo aos doentes indigentes em seu hospital.

A internação de José Joaquim dos Santos como indigente, a pedido do Juiz, e cuja pobreza fora atestada pelo pároco, nos permite conhecer um pouco do cotidiano da instituição. O hospital, mantido pela Irmandade, oferecia poucos leitos e não tinha funcionários. Quando da internação de José Joaquim, não havia outros doentes, o que permitiu que sua esposa permanecesse a seu lado, servindo de enfermeira. A permanência foi longa: o paciente entrou a 25 de setembro de 1843, e um mês depois (25 de outubro de 1843) a Irmandade ainda discutia acerca de sua estada na instituição.

A partir do caso de José Joaquim, podemos supor que a ocupação do hospital era bem baixa - ele foi o primeiro doente internado no hospital de Cabo Frio. Da mesma forma, a leitura das atas, permite levantar a hipótese de que o número de órfãs atendidas pela instituição não era significativo, como mostram os poucos casos apresentados pelos registros. Em compensação, a movimentação dos expostos era mais constante, exigindo maior atenção dos Irmãos. Ressalte-se que Cabo Frio, no século XIX, abrangia a área dos municípios que compõem a atual Região dos Lagos, o que significa que a roda não era o único mecanismo de exposição, persistindo o abandono de crianças nas portas das casas, prática comum nas freguesias mais afastadas. Essas crianças eram levadas à Casa de Caridade para, então, serem encaminhadas à criação externa, conforme a leitura das atas nos deixa perceber.

Algumas considerações podem ser feitas acerca dessa Casa de Caridade: no início, estava centrada no atendimento aos enjeitados e órfãos - e para tal, os Irmãos alugavam uma casa onde funcionava uma roda para a exposição. Sete anos depois, decidem ampliar suas ações: criam a Irmandade de Santa Isabel, que vai gerir a Casa de Caridade. Era esperado que esta última conseguisse se gerir autonomamente e, segundo a Lei dos Municípios, a Câmara se desobrigaria da manutenção da assistência aos pobres. E como Casa de Caridade estava apta para solicitar verbas à província.

Assim, a criação dessa instituição deve ser entendida à luz da Lei dos Municípios. O funcionamento do hospital e o pouco pessoal disponível mostram que, naquele momento, o município de Cabo Frio não necessitava de um hospital. Não à toa, o prédio passou para a memória da cidade como Roda dos Enjeitados - a principal ocupação da instituição.

Santa Casa da Misericórdia de Valença5 5 Agradecemos a Adriano Novaes, chefe do Arquivo e Museu Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Valença, por nos ter franqueado a documentação da Irmandade valenciana.

Valença está inserida no vale do Paraíba fluminense, ou seja, no coração da economia cafeeira e do escravismo. Faz limite com Minas Gerais e com os municípios fluminenses de Vassouras, Barra do Pirai, Resende e Barra Mansa. Essa região foi, ao longo do século XIX, responsável pela sustentação econômica do estado Imperial brasileiro (1822-1889).

A Santa Casa da Misericórdia de Valença e seu hospital foram criados em 1838; contudo, o memorialista Luiz Damasceno Ferreira aponta o fato de que seu início remonta a dois ou três anos, quando foi criada uma enfermaria para doentes pobres, mantida pelo comendador João Batista de Araújo Leite e pelos fazendeiros Joaquim Pinheiro de Souza, Manoel do Nascimento de Jesus e Francisco Martins Pimentel. Teria cabido a João Baptista de Araújo Leite o convite ao visconde de Baependi para se juntar ao grupo (Ferreira, 1925FERREIRA, Luiz Damasceno. História de Valença (estado do Rio) 1803-1924. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica Editora Paulo Pognetti & Co; 1925.).

Foi com a entrada do visconde de Baependi no grupo que surgiu a Santa Casa de Valença. Brás Carneiro Nogueira da Costa e Gama (1812-1887), sem dúvida a maior liderança local, se tornou visconde de Baependi (2º) em 1828, pelas mãos do imperador Pedro I e, em 1858, conde de Baependi, já pelas mãos de Pedro II. Seu pai, Manoel Jacinto Nogueira da Gama, recebera o título de visconde de Baependi em 1824, ano em que foi outorgada a Constituição imperial da qual foi signatário; em 1826, foi agraciado, pelo imperador Pedro I, com o título de marquês. Dois de seus irmãos também receberam títulos: Manuel Jacinto Carneiro Nogueira da Costa e Gama, barão de Juparanã; e Francisco Nicolau Carneiro Nogueira da Gama, barão de Santa Mônica.

As datas de criação da Irmandade e de seu hospital são extremamente emblemáticas: enquanto a Santa Casa foi criada a 02 de julho de 1838, no dia e mês em que se inicia o ano compromissal das Misericórdias; a data do hospital é uma alusão ao aniversário natalício do imperador Pedro II. Se no plano simbólico, a Misericórdia valenciana procura se aproximar da experiência portuguesa, no plano concreto está mais próxima da política imperial.

A leitura de seu primeiro compromisso não deixa dúvidas - apesar de publicado em 1875, o documento vem datado de 02 de julho de 1838, e é assinado pelo visconde de Baependi. A edição traz ao final uma série de documentos: auto de aprovação, com a aprovação do ordinário - no que tange ao culto; e a confirmação do governo imperial, datada de 08 de outubro, dando o de acordo ao compromisso da Irmandade. O documento vem assinado pelo regente Bernardo Pereira de Vasconcelos (Compromisso, 1875COMPROMISSO da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da cidade de Valença - província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia; 1875.).

O primeiro capítulo já demonstra a diferença com a atuação histórica da Irmandade da Misericórdia, da qual a criação de expostos não era atribuição. A Santa Casa de Valença tem por fim tratar dos expostos ou meninos abandonados, além das tradicionais obras de misericórdia, como curar os enfermos, socorrer os pobres encarcerados e conceder dote às donzelas órfãs ou desamparadas. Não restam dúvidas de que a criação dessa instituição procura responder à Lei dos Municípios.

O enquadramento do Compromisso dessa instituição à Lei de 1828 pode ser visto em diversos capítulos. Por exemplo, na definição de quem é o desvalido que será atendido em suas dependências:

Cap. XV - do mordomo do hospital

Art. 115 - Todo o enfermo desvalido tem direito a ser admitido, e curado, gratuitamente no Hospital da Misericórdia. Reputa-se desvalido: 1 ⸹ aquele que por sua nímia pobreza não tiver meio algum para tratar-se na própria casa; 2 ⸹ aquele que se achar-se como forasteiro, sem parentes ou amigos, que o socorra na sua moléstia.

Art. 116 - Qualquer outro enfermo, que não tenha comodidade para curar-se será admitido ao Hospital por despacho do provedor, prestando fiança, ou comprometendo-se completamente a pagar a despesa que fizer. E só por esta forma serão admitidos os escravos a tratar-se no Hospital, salvo os do Art. 20 (Compromisso, 1875COMPROMISSO da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da cidade de Valença - província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia; 1875.: 25).

Nesses dois artigos, estão definidos os que têm acesso gratuito ao hospital: aqueles que, segundo Robert Castel, estão alijados dos laços de solidariedade primária (família) ou não têm recursos para se tratarem em casa; aos outros, o atendimento se dá mediante pagamento (Castel, 2008CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Ed. Vozes; 2010.). Quanto ao escravo, este era de responsabilidade de seu senhor - a quem cabia arcar com os custos da internação. O artigo 20 refere-se ao Irmão que tivesse apenas um escravo, sendo, neste caso, o Irmão considerado pobre.

No que tange aos expostos, o Capítulo XIV - do Mordomo dos Expostos - este deveria zelar pela criação da criança, encaminhá-la à criação externa, e fazer visitas inesperadas às casas das amas afim de verificar como a criança estava sendo tratada. O compromisso obrigava a ama a levar a criança ao hospital em caso de adoecimento, e também a não se mudar sem comunicar ao Mordomo - sendo a desobediência cabível de demissão. Também cabia ao Mordomo zelar pela educação da criança a partir do momento do desmame, podendo esta permanecer na casa da ama até a idade de seis anos para as meninas, e sete anos para os meninos.

A partir dessa idade, o menino era obrigado a aprender a ler e escrever, além de aprender algum ofício, quer sendo encaminhado como aprendiz, sem definição do lugar, quer sendo encaminhado para alguma oficina dos Arsenais do Império. Se, no primeiro caso, cabe à família que o estiver criando providenciar o encaminhamento; no segundo caso, cabe à Mesa providenciar o local. No caso das meninas, estas deviam, além de ler e escrever, costurar, engomar e lavar, cabendo apenas à família que as criou ensiná-las. Por fim, o Mordomo deveria garantir que as crianças fossem vacinadas.

Com relação ao cuidado com os expostos, o Compromisso não só permite percebermos como essa instituição responde à legislação, incluindo a preocupação com a vacinação; mas também deixa perceber a preocupação com a utilidade dos expostos - a criação deve voltar-se para a profissionalização das crianças.

Apesar de o compromisso ser muito detalhista com relação à criação dos enjeitados, a documentação da Misericórdia de Valença é pouco loquaz quanto a este tipo de assistência.

Entre 1838 e 1857, o Hospital funcionou em prédios alugados pela Irmandade, mas desde 1842 havia projeto para a construção de um prédio específico para sua atividade. Nos anos iniciais, o pessoal do hospital era restrito a um cirurgião (Casemiro Lucio de Azevedo Coutinho), um médico (José Leopoldo Gamard) e um boticário (José Antônio de Queiroz), que fornecia gratuitamente os medicamentos. Ressalte-se que, até 1851, o hospital funcionava a expensas dos Irmãos, não recebendo nenhuma verba da província. Segundo o memorialista, o “estabelecimento de Caridade de Valença fez as honras dos habitantes do município, principalmente aos coevos de sua fundação, que sem contarem com outros recursos, além de suas bolsas, empreenderam uma instituição de tanta utilidade à humanidade” (Ferreira, 1925FERREIRA, Luiz Damasceno. História de Valença (estado do Rio) 1803-1924. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica Editora Paulo Pognetti & Co; 1925.: 63).

O trecho extremamente laudatório do memorialista tem por objetivo enaltecer os feitos dos homens da boa sociedade valenciana, que se empenharam na construção do prédio próprio. A construção do hospital foi extremamente problemática e causou enormes dissabores aos provedores que sucederam ao visconde de Baependi: quer pela contestação do Juízo dos Feitos da Fazenda da Província, que questionou o uso da sobra da subscrição de 1842 - destinada à manutenção das tropas que seguiram para conter a nova lista de subscrição, desta vez destinada à construção do prédio para a criação do hospital -, quer pelo fato de o prédio novo ter ruído em consequência da má qualidade da argamassa utilizada.

Após a inauguração do Hospital em 1857, aparentemente não houve grandes alterações, à exceção da construção do chalet contíguo, onde passou a funcionar a farmácia (1886), doação do barão de Ipiabás quando provedor (1884-86)6 6 Se a construção do prédio coube à benemerência do barão de Ipiabás, a aquisição das drogas e vasilhames coube a uma lista de subscrição pública para qual concorreram os habitantes de Valença (Ferreira, 1925). . Do ponto de vista do movimento do hospital, percebe-se que, no início da década de 1880, este contava com 50 leitos e, no final do mesmo período, já havia dobrado sua capacidade de atendimento. Para os casos de epidemia eram abertas enfermarias especiais, como ocorreu na epidemia de febre amarela que grassou na cidade na década de 1890.

O processo de construção do prédio do hospital chama atenção para alguns aspectos que nos levam em direção ao enobrecimento dos cafeicultores locais; e para o envolvimento da população local, a partir da assinatura das listas públicas de subscrição.

Com relação ao primeiro ponto, deve-se notar que, em 1838, o único a ostentar título de nobreza era o visconde de Baependi, quando da visita do Imperador à região, em 1848, as obras e seus imbróglios já estavam adiantados. Decerto, a criação dessa instituição ajudou a levar ao baronato os ricos cafeicultores de Valença - se o título de barão demorasse a chegar, as comendas já os distinguiam. Tal processo fica bastante evidente no processo de criação da Irmandade da Misericórdia de Vassouras, em 1853.

Santa Casa da Misericórdia de Vassouras

Se, no caso estudado por Mariana Muaze (2008MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa - família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar/Faperj; 2008.) e no caso da Misericórdia de Valença, a ação caritativa ensejou o reconhecimento do imperador por meio da distribuição de títulos nobiliárquicos, o movimento contrário também é percebido: em agradecimento à mercê recebida, faz-se doação para a abertura de uma Casa de Caridade.

A história da Santa Casa de Vassouras está intimamente ligada à da Irmandade de N. Sra. da Conceição de Vassouras - a principal Irmandade da vila de Vassouras, orago que batiza a vila de N. Sra. da Conceição de Vassouras. A Irmandade foi criada a 02 de julho de 1830, e sua primeira mesa diretora foi eleita a 04 de julho. A ela coube a administração do cemitério da vila.

Conforme já dito anteriormente, a visita do Imperador à Vassouras, em 1848, agraciou vários fazendeiros com os mais diversos títulos. Além do barão de Capivary, já referenciado, Pedro Correa e Castro se tornou, a 11 de outubro, barão do Tinguá. Este, para agradecer o título recebido, doou a quantia de 10 contos de réis para a Câmara construir sua Casa de Caridade (Raposo, 1935RAPOSO, Ignacio. História de Vassouras. Vassouras: Fundação 1 de Maio; 1935.).

A Câmara decidiu passar a incumbência recebida do barão de Tinguá à Irmandade da Conceição, por considerar que tal administração fugia a seus encargos. Na sessão da Irmandade de 26 de outubro de 1848, foi lido o ofício e deliberado que esta aceitaria a incumbência, com a condição de que o custeio do hospital não viesse de suas rendas. Na resposta à Câmara, transparece a relação não muito amistosa entre ambas as instituições.7 7 Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1848, sessão de 26/10/1848. Folhas 55 e 56. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.

O memorialista Ignácio Raposo afirma que, a 02 de dezembro de 1848, o cortejo saiu da Igreja de N. Sra. da Conceição para o lançamento da pedra fundamental do Hospital, que recebera o nome de Hospital de N. Sra. da Conceição de Vassouras. Raposo afirma ainda que o ato recebeu “as mais calorosas palmas da pobreza sofredora” (Raposo, 1935RAPOSO, Ignacio. História de Vassouras. Vassouras: Fundação 1 de Maio; 1935.: 73). A data escolhida e a narrativa reforçam o papel simbólico da nova instituição: sua pedra fundamental foi lançada no aniversário natalício do jovem imperador, em agradecimento à honraria recebia pelo barão de Tinguá, e o evento é acompanhado pela “pobreza sofredora” para o socorro de quem a instituição estava sendo criada.

Entre 26 de outubro de 1848 e 1853, ano em que é criada a Irmandade da Misericórdia de Vassouras, a Irmandade da Conceição e a Câmara não chegam a um consenso acerca do custeio do hospital. Em janeiro de 1851, a questão não estava ainda resolvida.8 8 Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 12/01/1851. Folha 60. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras. A última menção ao assunto é em 06 de dezembro de 1868, e neste momento o hospital já funcionava administrado pela Irmandade da Misericórdia, e a questão eram os livros abertos para custeio do hospital.9 9 Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 06/12/1868. Folha 133 a 137. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.

Em que momento foi tomada a decisão de abrir outra Irmandade para gerir o hospital, as fontes não permitem dizer. O fato é que, a 02 de dezembro de 1853, o juiz municipal, Laureano Correa e Castro (futuro barão de Campo Bello), instalou a Santa Casa de Vassouras, ocasião em que foi eleita sua mesa diretora: como provedor, o barão de Tinguá (Pedro Correa e Castro); tesoureiro, o comendador Francisco José Teixeira Leite (futuro barão de Vassouras); escrivão, Francisco José Teixeira e Souza; procurador, Rodrigo da Silva Araújo; e como mordomos, Lourenço Luiz de Athaide, Estevão José de Siqueira, Antonio Moreno de Alagon, e João Alves Pimenta. Para elaborar o compromisso foram indicados Joaquim Teixeira Leite e Domiciano Leite Ribeiro (Almanach, 1889ALMANACH do Vassourense para o ano de 1889. 3º ano. Vassouras: Typografia do Vassourense; 1889.: p. 170).

Já em fevereiro de 1854, a Santa Casa se habilitava para receber as quotas de loteria da província do Rio de Janeiro, conforme a lei provincial de 10 de março de 1841 (Almanach, 1889ALMANACH do Vassourense para o ano de 1889. 3º ano. Vassouras: Typografia do Vassourense; 1889.: p. 171).

Foram provedores da Misericórdia: o barão de Tanguá (1853-1869), Joaquim José Teixeira Leite, o visconde de Araxá, o barão de Cananéa e o dr. Joaquim Alexandre de Siqueira.

No que tange ao compromisso da Irmandade da Misericórdia, este pouco se difere daquele da congênere de Valença. O primeiro capítulo define seus objetivos: curar os enfermos necessitados; recolher, mandar criar e educar os expostos; socorrer os presos pobres. Além de nomear o barão de Tinguá como Irmão benfeitor, protetor e provedor perpétuo honorário.

No cuidado aos expostos, as obrigações são quase as mesmas, com duas exceções: não detalha o destino das crianças depois dos 6-7 anos, como o faz a valenciana; e explicita a necessidade do batismo.

Sobre o hospital, em 1877 Alberto Brandão publicou nas páginas de O Município, posteriormente republicado pelo Almanach d’OVassourense em 1889, o nome dos médicos do estabelecimento: Antonio Lazzarini; Andrade; Siqueira; Fernandes; Macedo; Lucindo Filho; e Alberto Leite Ribeiro. A publicação afirma que “o estabelecimento tem melhorado muito, possui enfermarias vastas e arejadas, água, latrinas, cozinha; finalmente tudo o quanto é necessário para preencher seus fins altamente humanitários” (Almanach, 1889ALMANACH do Vassourense para o ano de 1889. 3º ano. Vassouras: Typografia do Vassourense; 1889.: 190). Ressalte-se que Antonio Lazzarini também foi médico de partido da fazenda Cachoeira Grande, propriedade da baronesa de Vassouras (Proença, 2007PROENÇA, Anne Thereza de Almeida. Vida de médico no interior fluminense: a trajetória de Carlos Eboli em Cantagalo e Nova Friburgo (1860-1880). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2017. 141 f.).

Asilo Santa Leopoldina10 10 Para a documentação do Asilo Santa Leopoldina, baseio-me no levantamento feito pelo bolsista IC Bernardo Felberg.

Tal como o Hospital e a Misericórdia de Vassouras, a criação do Asilo Santa Leopoldina vincula-se a uma visita do Imperador a Niterói, capital da Província do Rio de Janeiro. A criação, a 24 de junho de 1854, deve-se à figura do então presidente da Província, João Pereira Darrigue de Faro, barão do Rio Bonito, homem muito próximo ao Imperador. Para administrar o Asilo, foi criada a Irmandade de São Vicente de Paulo - contudo a instalação da Irmandade só ocorreu no ano seguinte, com a aprovação do Compromisso, a 14 de agosto de 1855; e a do ordinário, a 03 de dezembro do mesmo ano.

A proximidade do barão do Rio Bonito com a casa imperial fez com que d. Pedro II e d. Thereza Christina se tornassem protetores tanto do Asilo quanto da Irmandade. Com relação a esta última, a figura do Imperador era mais do que a de um protetor: cabia-lhe designar o provedor e o vice-provedor da Irmandade. Tal influência singulariza essa instituição dentre todas as suas congêneres.

Se as Misericórdias dependiam da aprovação real para existirem, viviam sob o padroado régio, não dependiam da aprovação do ordinário para funcionarem e definiam, elas próprias, a mesa diretora; de outro lado, as Irmandades, em geral, por estarem vinculadas ao culto, precisavam da autorização eclesiástica. A Irmandade de São Vicente de Paulo seguiu o rito normal: pediu autorização ao ordinário, mas o provedor e o vice-provedor eram escolhas do Imperador.

Desde o processo de ascensão ao trono do jovem imperador e das obras do Hospício de Pedro II, conforme já destacado aqui, a imagem de Pedro II foi vinculada às obras de cariz filantrópico ou caritativo. Assim, agradar ao Imperador - e com isto conseguir mercês - significava muitas vezes a abertura de instituições de caridade. As visitas da família Imperial acabam por coincidir com a criação de instituições, a inauguração de ampliações ou apenas a proposição da ideia - o tempo que levaria para se concretizar podia ser longo, mas era um detalhe.

Nascido do desejo do presidente de Província, e administrado por uma Irmandade cujo provedor era escolha do Imperador, o Asilo Santa Leopoldina tinha um lugar de destaque na província do Rio de Janeiro. E, por sua forte vinculação ao governo provincial, havia a intenção de ramificação da Irmandade por todo o seu território, a despeito de a sede ficar em Niterói.

Quando, em 1870, finalmente a província do Rio de Janeiro tiver seu primeiro hospital - o Hospital São João Batista - este será administrado pela província, não haverá o recurso de uma Irmandade para sua administração. Para o cotidiano do Hospital, será contratada uma congregação religiosa encarregada de realizar os trabalhos de enfermagem e a administração, seguindo o exemplo do Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro. Inicialmente essas tarefas estariam a cargo das Irmãs do Santíssimo Coração de Maria, substituídas, posteriormente, pelas Filhas da Caridade (a partir de 1878), a mesma congregação que estava na Misericórdia da Corte desde 1852.

Como visto, a província do Rio de Janeiro foi abrindo, gradativamente, Casas de Caridade em seu território, seguindo a expansão econômica e social das regiões. A capital da província só começou, em 1854, a criar instituições de assistência - o pagamento à Misericórdia da Corte para atendimento dos indigentes em seus hospitais era a forma de fazer assistência. A tardia organização da assistência em Niterói justifica-se pela elevação do povoado de Praia Grande a vila, em 1819 e, pouco tempo depois torna-se a capital da província do Rio de Janeiro.

A opção da província se deu pela criação de um Asilo voltado à proteção e à educação da infância desvalida. No início o estabelecimento era misto, mas a partir de 1864 decidiu por receber apenas meninas entre três e oito anos.

De outro lado, não há notícias acerca da assistência aos expostos na cidade. Por que a decisão de atender a este grupo em particular? A esta pergunta não temos respostas, nem pistas...

Com relação à proveniência dos asilados, chamam atenção os dados apresentados por Bernardo Felberg: 65,7% dos internos eram provenientes da província do Rio de Janeiro, com leve preponderância do seu interior (33,2%) sobre a sua capital, Niterói (32,5%). Em seguida vinha a Corte (20,7%), outras províncias (6,5%) e estrangeiras (2,9%). A presença de crianças de outras províncias e estrangeiras demonstra o processo de imigração e seu impacto na província (Felberg, 2018FELBERG, Bernardo M. O Asilo de Santa Leopoldina e as suas asiladas - origem e perfil (1850-1890). TCC de Graduação. Escola de História da Unirio, 2018.). Todavia, a questão para a qual não há resposta é: por que a Corte, onde a Misericórdia mantinha a Casa do Expostos e os Recolhimentos, atraía crianças para serem cuidadas em Niterói?

Há grande diferença entre a Casa dos Expostos e o Asilo Santa Leopoldina. Enquanto a primeira instituição ainda estava mais preocupada com o abandono, a segunda voltava-se para a preparação dos menores ao mercado de trabalho. Enquanto na Misericórdia as crianças eram enjeitadas11 11 A partir de 1870, vemos cada vez mais crianças serem encaminhadas à Casa dos Expostos em consequência da internação de suas mães nos hospitais e hospícios da Irmandade; este trânsito de crianças temporárias acaba por transformar, gradativamente, a instituição colonial (Sanglard, 2016). Entretanto, será apenas a partir da primeira década do século XX que se perceberá as mães deixando filhos na roda, mas explicitando seu nome no bilhete que acompanhava a criança (Cosati, 2019). , no Asilo eram as famílias quem solicitavam a internação destas. Talvez esteja aí uma pista para entendermos a admissão de crianças oriundas da Corte.

Assistência à saúde na velha Província

Como visto acima, podemos perceber pela qual a criação das casas de caridade, quer Misericórdias ou não, no interior da província do Rio de Janeiro procurara responder às exigências da Lei dos Municípios de 1828, cada uma dando as respostas de que tinha condições. A fragilidade econômica das instituições, algo que já havia sido indicado por Renato Franco (2011FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga - As Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2011. e 2014FRANCO, Renato. “O modelo luso de assistência e a dinâmica das Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa”. Estudos Históricos, v. 27, n. 53, jan-jun 2014, p. 5-25.), fica mais evidente nos casos aqui analisados.

A leitura das atas da Irmandade de N. Sra. da Conceição de Vassouras é lapidar neste sentido. Em 1868, o Irmão tesoureiro declara que o patrimônio da instituição é bastante sólido e, ao se comparar às outras congêneres, afirma “que não pode justificar a pobreza a irmandade de outras comarcas, pois a Nossa Senhora da Conceição [de Vassouras] tem um bom e notável patrimônio, e não pode deixar de ser aplicado em seus rendimentos”12 12 Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 06/12/1868. Folha 133 a 137. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras. . Em maio do ano seguinte, ficamos sabendo que o patrimônio da Irmandade era composto, além de bens imóveis (terrenos e casas) que lhe auferiam rendimentos de aluguéis e foro, de empréstimos a juros. O montante destes últimos devia ser considerável, uma vez que:

[...] foi proposto pelo consultor Antonio Moreno de Alagoas que os dinheiros emprestados a juros a particulares, fossem recolhidos ao cofre do patrimônio, e empregados em apólices de dívidas públicas, possuindo o patrimônio só a quantia de quarenta conto de reis, sendo o excedente empregado em obras da Matriz e compras de alforrias.13 13 Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 09/05/1869. Folha 140. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.

Se o patrimônio da Irmandade de N. Sra. da Conceição de Vassouras ia bem, o mesmo não se pode dizer das instituições que mantinham casas de caridade, incluindo as duas Misericórdias aqui analisadas.

Ao analisar a subvenção da província do Rio de Janeiro às Casas de Caridade, Tania Salgado Pimenta chama atenção para o fato de anualmente serem extraídas loterias para diversos fins, montante que chegou a 155 em um ano, o que inviabilizava tal forma de investimento, pois os sorteios ficariam prejudicados. Em todo caso, as Casas de Caridade contavam com verbas de quatro loterias anuais. Os hospitais considerados públicos, como o de Magé, o de Petrópolis e o São João Batista de Niterói, tinham verbas asseguradas pelos cofres públicos. As Casas de Caridade com maior dificuldade financeira tinham direito a uma loteria extra. Contudo, como Tania Pimenta ressalta, os “valores direcionados pelo orçamento da província eram fundamentais para a maior parte das Casas de Caridade, mas não suficientes para atender a todas as ‘necessidades’ e, menos ainda, para realizar melhoramento nos prédios” (Pimenta, 2017PIMENTA, Tania Salgado. “Assistência à saúde no interior do Rio de Janeiro do Oitocentos”. In: KONDÖRFER, Ana Paula et al (Orgs). História da assistência à saúde e à pobreza - olhares sobre suas instituições e seus atores. São Leopoldo: Ed. Oikos; 2017.: 45). Contudo, no final do Império a situação já havia se modificado, ao menos para a Misericórdia de Vassouras. Segundo o jornal O Vassourense de 30 de abril de 1882, o patrimônio dessa instituição estava bem alicerçado em títulos da dívida pública e outros rendimentos (Asylo Furquim IIASYLO Furquim II. Jornal O Vassourense, 30 de abril de 1882, p. 1-2., 1882: 1).

Como consequência, as instituições passaram a maior parte do período aqui estudado lutando para conseguirem melhores condições sanitárias para seus hospitais. Em relação à assistência aos expostos de Valença e Vassouras, pouco sabemos sobre a forma pela qual as instituições administravam esta questão.

Para Vassouras, há a indicação da doação de um palacete para a Câmara, por Caetano Furquim, a fim de que fosse instalado um Asilo para meninas desvalidas - o Asilo Furquim. O Jornal O Vassourense discute o legado e a inércia da Câmara em dar corpo às vontades do rico comerciante. Segundo o articulista, provavelmente o redator e médico do hospital Lucindo Filho, o asilo “é também um grande estabelecimento de instrução pública, mais elevado pelo amparo e socorro às meninas pobres”. Sobre os objetivos da instituição, o médico afirma que as meninas receberão instrução para aprenderem a ler, escrever, contar, terão aulas de música e “trabalhos próprios do seu sexo”; “muitas delas por sua inteligência e aplicação, poderão cursar estudos secundários, para no futuro se tornarem preceptoras do mesmo e de outros estabelecimentos públicos” (Asilo Furquim IASYLO Furquim I. Jornal O Vassourense, 23 de abril de 1882, p. 2., 1882: 2).

Na edição de 30 de abril, o jornal conclama as senhoras da sociedade vassourense a angariarem fundos para a manutenção do Asilo Furquim. Afirma que as irmandades da Misericórdia e da Conceição poderiam facilmente amparar a nova instituição e completa que a Misericórdia de Vassouras deveria seguir o exemplo da congênere da Corte, que mantém a Casa dos Expostos e o Recolhimento de Órfãs.

Os pedidos do jornal parecem ter surtido efeito. Na edição de 04 de junho do mesmo ano é publicada uma nota com a informação de que os filhos do finado visconde de Araxá legarão, para a manutenção do Asilo Furquim, os fundos recolhidos da venda dos últimos manuscritos deixados pelo pai e ainda inéditos; e na edição de 09 de julho é informado que o Imperador e a Imperatriz doam 200$ (duzentos contos) para o Asilo. Outras tantas doações vão sendo acrescentadas a estas e anunciadas pelo periódico; bem como as ações da Câmara em prol da arrecadação de fundos. A 23 de dezembro de 1883, é anunciado que a Província adiantou a verba de cinco loterias para a manutenção do Asilo.

Fora as notícias d’O Vassourense, poucas informações temos sobre a instituição. Uma singularidade a liga ao Asilo Santa Leopoldina de Niterói. Ambas as instituições foram voltadas à educação de meninas desvalidas, muitas das quais se tornaram professoras, conforme a matéria afirmou ser o objetivo do Asilo Furquim, e no que tange ao Asilo Santa Leopoldina isto foi realidade (Felberg, 2018FELBERG, Bernardo M. O Asilo de Santa Leopoldina e as suas asiladas - origem e perfil (1850-1890). TCC de Graduação. Escola de História da Unirio, 2018.). Igualmente ambas se tornaram importantes escolas privadas em suas cidades: o colégio São Vicente de Paulo em Niterói, mantido pela Irmandade de São Vicente de Paulo; e o colégio dos Santos Anjos, mantido pela congregação homônima.

A criação dessas instituições evidencia o papel da caridade e da filantropia na sociedade oitocentista, o qual se agudizará no início do século XX. Para além das mercês recebidas e da forma de retribuição - que pode ser inserida na lógica do dom e contra dom, já evidenciada por diversos autores desde o clássico de Marcel Mauss -, o que chama atenção nos dados aqui apontados é a mudança que aos poucos vai se operando nas instituições, como os propósitos da criação do Asilos Santa Leopoldina e do Asilo Furquim, nos quais a formação para o mercado de trabalho começa a ganhar espaço. A escolha feita pelos beneméritos reforça o papel de utilidade social que a filantropia carrega desde que foi cunhado este neologismo na França do Iluminismo (Duprat, 1994 e Sanglard, 2008SANGLARD, Gisele. “Entre o Hospital Geral e a Casa dos Expostos: assistência à infância e transformação dos espaços da Misericórdia carioca (Rio de Janeiro, 1870-1920)”. In: Revista Portuguesa de História, t. XLVII (2016) - p. 337-358.).

Se nas instituições voltadas à infância veremos preocupação cada vez maior com a inserção profissional de meninos e meninas - para os meninos, o século XIX oferecia as oficinas do Arsenal de Marinha; e para meninas, o trabalho de lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras e professoras -, nos hospitais aqui analisados veremos que a função de hospital de caridade vai concorrer par et passu com a ciência médica. O caso do Asilo Santa Leopoldina aponta para a questão da utilidade das órfãs, que estava presente desde sua fundação.

Os hospitais das Misericórdias de Vassouras e Valença eram pequenos. Ambos contam, em 1882, com 50 leitos cada um. Para o final do período imperial, o de Valença chega a 100 leitos, e o de Vassouras a, mais ou menos, 70 leitos.14 14 O número de leitos do hospital de Valença é calculado a partir dos números dos leitos atribuídos durante os anos de 1882 a 1893, no livro de matrículas do hospital ao qual tivemos acesso. Já para Vassouras, baseio-me no número máximo de pacientes internados a partir dos dados da movimentação do hospital, publicados mensalmente, até 1889, no jornal O Vassourense. E como todo hospital de caridade era discricionário na definição de quem podia ser atendido: o de Valença, como já apontado, deixava claro que o Irmão com um único escravo seria considerado pobre, e seu escravo teria atendimento gratuito, bem como qualificava o pobre - aquele que não tem recursos de se tratar em sua própria casa; já Vassouras, apenas informa que o Irmão com apenas um escravo será considerado pobre. Em ambos os casos, o escravo era considerado como público pagante, não à toa a população de escravos no Hospital de Valença será ínfima, apenas 6% do total.

Ao lado dos barões do café - como o visconde de Baependi e os barões da Cananéa e Guaraciaba -, outros homens fizeram parte da Irmandade da Misericórdia de Valença, como o português Manoel Lopes de Sá, casado, residente em Santa Teresa, 34 anos, enfermeiro, internado em 1883 por tuberculose; o brasileiro Luiz Pereira Baptista, viúvo, Valença, 61 anos, lavrador, internado em 1884 por fístula; o brasileiro Antônio Augusto de Oliveira, pardo, solteiro; Valença, 48 anos, alfaiate, internado em 1884 com sífilis; e o português Jacinto Raposo Teixeira, Valença, casado, 27 anos, trabalhador, internado em 1886 por febre. A presença desses homens que viviam de respectivos trabalhos mostra o quão diversificada era a composição dos membros da Irmandade valenciana.15 15 Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença, 1882 a 1897.

O Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença (1882 a 1897) permite que percebamos as mudanças do público que frequentava a instituição, dentre estas o envelhecimento da população. No gráfico a seguir, pode- se notar variação de quase 40% entre a média etária de 1883 e aquela apresentada em 1893.

Figura 1:
Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença, 1882 a 1897.

O envelhecimento da população traz o aumento das doenças cardíacas, bem como o aumento das doenças reumáticas; mas há permanência da sífilis e de doenças venéreas como um todo (blenorragia, gonorreia, entre outras) e da tuberculose. As cardiopatias contam com 285 registros de ocorrência (7,3%) e têm maior incidência nas faixas etárias de 60-69 anos (47 casos ou 16,5%) e 70-79 anos (78 casos ou 27,4%), mas atinge pacientes entre os 40 e os 89 anos. Dentre as indicações de sintomas ou doenças, há lesão orgânica do coração; ectazia do coração; hipertrofia cardíaca; asma cardíaca; lesão cardíaca; dilatação aórtica; insuficiência mitral.

Outras descrições são indicativos da idade do paciente: arteriosclerose e as senilidades (marasmo senil, catarro senil e enfisema senil). A arteriosclerose era uma indicação de que o paciente podia permanecer longa temporada no hospital, como o caso de José Joaquim de Souza Pinto, brasileiro, preto, jornaleiro, viúvo de Cândida de Jesus, residente na Fazenda da Glória. O doente deu entrada no hospital a 18 de janeiro de 1904 e faleceu a 17 de dezembro do mesmo ano, tendo passado 11 meses internado. Foi diagnosticado com arteriosclerose, todos os tratamentos empregados foram ineficazes. Seu prontuário tem quatro páginas.

Em outros casos, pode ser fulminante a passagem do indivíduo, como José Ignácio da Costa, brasileiro, fluminense, pardo, 90 anos. Viúvo de Luiza Valéria. Deu entrada a 03 de outubro de 1904 com arteriosclerose, vindo a óbito no mesmo dia.

Os exemplos aqui coligidos apontam pacientes egressos da escravidão. A escolha não foi proposital. A par do envelhecimento dos pacientes, há indubitavelmente uma mudança na cor destes indivíduos - sobretudo após a promulgação da Lei do Sexagenário. Em dez anos, o hospital de Valença passou a receber maior número de homens pretos e velhos, conforme pode ser percebido mais adiante neste artigo.

Para Vassouras, temos poucos dados, mas acreditamos que seja verificada a mesma tendência de Valença. Além de vizinhas, a composição da população das cidades era bastante parecida - com grande presença de escravos. Durante a década de 1880, o jornal OVassourense publicava mensalmente a movimentação do hospital e, em julho, apresentava o balanço do ano compromissal findo. Na edição de 05/07/1885, o periódico publica o balanço do ano de 1884-1885 e traz a idade dos falecidos. Dos 58 óbitos naquele período, a grande concentração está na faixa etária entre 40 e 64 anos - respondendo por 45% dos óbitos -, conforme pode ser percebido no gráfico abaixo:

Figura 2:
Jornal O Vassourense. 05 de julho de 1885, p. 1.

Para o ano compromissal de 1888-1889, dos 64 óbitos ocorridos, 11 foram por lesão cardíaca (17,2%), 10 por tuberculose (15,6%), e 7 por marasmo senil (11%).

A comparação entre estes dois anos apresentados aqui nos permite afirmar que o envelhecimento dos pacientes no Hospital de Vassouras também ocorreu, tal qual verificado em Valença.

Esse envelhecimento deve-se ao processo de abolição da escravatura. A partir da promulgação da Lei do Sexagenário (1885), começa-se a perceber maior presença de pretos no hospital. A anotação da “cor” dos pacientes começa a ser feita em Valença em janeiro de 1883, até então era apenas anotada a condição do indivíduo (livre, liberto, escravo). Consideramos que a anotação da cor após a Abolição continuasse a refletir sua condição social (preto equivalente a egresso do cativeiro), tal como proposto por Hebe Mattos (2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudoeste escravista (Brasil, século XIX), Campinas, Ed. Unicamp, 3ª ed. (Rev.), 2013.), uma vez que o contingente de pardos se manteve estável entre 1883 e 1893. São os idosos, agora libertos e solteiros ou viúvos, em sua maioria, que vão procurar o hospital.

Homens e mulheres que, na condição de cativos, eram tratados nos hospitais e/ou enfermarias mantidas pelos fazendeiros, como apontam Keith Barbosa e Anne Thereza Proença (2014BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Escravidão, saúde e doenças nas plantations cafeeiras do Vale do Paraíba Fluminense, Cantagalo (1815-1888). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2014. 269 f. e 2017PROENÇA, Anne Thereza de Almeida. Vida de médico no interior fluminense: a trajetória de Carlos Eboli em Cantagalo e Nova Friburgo (1860-1880). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2017. 141 f., respectivamente). Não restam dúvidas de que a abolição transformou os ex escravos idosos - que por motivo da idade avançada não podiam mais encontrar o sustento através do trabalho - em grupo vulnerável para transporem a linha imaginária que separa a pobreza da miséria, como proposto por José Roberto do Amaral Lapa (2008LAPA, José Roberto do Amaral. Os excluídos - contribuição à história da pobreza no Brasil (1850-1930). São Paulo: Edusp; 2008.).

Se os escravos eram considerados público pagante para as Misericórdias, na condição de libertos podiam vir a precisar dos serviços médicos oferecidos por estas instituições. Mais do que o jovem, a vulnerabilidade do idoso se faz presentes nos dados aqui levantados, conforme os dados de Valença apresentados no gráfico abaixo nos permitem perceber.

Figura 3:
Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença, 1882 a 1897.

Figura 4:
Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença, 1882 a 1897.

A situação dos velhos, ex escravos, pode ser percebida também a partir de outras fontes. Entre os anos de 1893 e 1894, Moncorvo Filho oferece seus serviços ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Valença e publica na revista Brazil-Médico, principal periódico científico da época, uma série de 20 observações clínicas acerca do tratamento de doenças da pele - notadamente lesões sifilíticas. Chama atenção a observação 14:

Observação 14 (pessoal) - Manoel Marcelino de Aguiar, brasileiro, pardo, de 50 anos de idade, viúvo, procura o hospital em 2 de março de 1894. Algumas bolhas de pênfigo sobre vários pontos do corpo. Lipoma na região glútea direita. Várias pequenas úlceras atônicas em ambas as pernas resistindo há 29 anos a todos os meios locais e gerais sucessivamente empregados. O doente pálido e desnutrido.

Segundo o relato do jovem médico, o tratamento realizado por ele fez com que o pênfigo fosse curado ou, em suas palavras, levou “a completa cicatrização das úlceras tão rebeldes até então”. Pode-se levantar a hipótese de que Manoel Marcelino de Aguiar também tenha melhorado da desnutrição, no período em que esteve no hospital.

Outro indício da situação em que ficou a população já idosa de egressos do cativeiro refere-se ao local de moradia. O prontuário datado de 1904, pertencente a Pedro João, originário da Bahia, preto, solteiro, jornaleiro, 70 anos de idade, e internado por arteriosclerose nos fornece um indício: Pedro João indica como local de moradia um abarracamento - típica moradia coletiva, das mais pobres entre estas. Por ter cerca de 54 anos de idade quando houve a Abolição, pode-se supor que a capacidade de trabalho desse jornaleiro logo tenha sido reduzida.

A situação de aumento da pobreza também é percebida no hospital de Vassouras. O Vassourense, de 16 de fevereiro de 1890, publica relatório da Câmara, no qual os vereadores falam da necessidade de aumentar a parte do cemitério destinada ao enterro de indigentes. Afirma o relatório “que só os corpos de indigentes falecidos na Misericórdia desta cidade ocupam mais da metade do espaço do cemitério” (Câmara Municipal, 1890CAMARA Municipal - relatório. O Vassourense, 16 de fevereiro de 1890, p. 2.: 2).

Os dados aqui apresentados permitem perceber a transformação da assistência, ao longo do século XIX, na antiga província do Rio de Janeiro. Criadas muitas vezes como resposta aos dispositivos da Lei dos Municípios, frágeis do ponto de vista financeiro e patrimonial, estas instituições vão se estabelecendo gradativamente e equilibrando suas finanças - como parece ser o caso das Misericórdias de Valença e Vassouras.

No que tange à sociedade na qual estão inseridas, podem ser interpretadas como uma forma de consolidação do poder imperial. O apoio às novas elites, que passaram a se dividir entre as Misericórdias e as Câmaras, foi recurso amplamente usado pela Coroa portuguesa desde o século XVI, conforme demonstrou Laurinda Abreu (Abreu, 2014ABREU, Laurinda. O poder e os pobres - as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014.). Guardadas as devidas proporções, a reciprocidade percebida - tanto no agrado ao imperador (quando criavam a instituição esperando receber a mercê) quanto no agradecimento à mercê recebida - permite refletir e problematizar o uso político das comendas, como também uma forma de legitimação das mesmas elites fora de seus municípios de origem, possibilitando que atingissem, assim, o cenário nacional.

A característica da nobreza brasileira era o mérito. Era preciso ter feito algo para merecer o título e, sobretudo, a distinção com grandeza - eram os “serviços prestados” em prol de ações de interesse da Monarquia: contra o cólera morbus, em prol do Hospício de Pedro II e da Guerra do Paraguai, em favor dos flagelados da seca no Ceará. As ações eram amplas e diversificadas, mas as de cariz caritativo e filantrópico tinham especial apreço (Schwarcz, 1998SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do Imperador - D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras; 1998.). Os aniversários natalícios na família Imperial constituíam datas em que eram distribuídas as mercês, não à toa muitas das instituições aqui analisadas tiveram sua criação no dia do aniversário de Pedro II. É neste jogo de interesses que a criação dessas instituições deve ser entendida.

Como Laurinda Abreu chamou atenção, o hospital era, ele próprio, um lugar de convergência dos mais distintos interesses - desde aqueles mais diretamente ligados à Coroa, quanto os ligados às elites e aos utentes. Se, no caso do Portugal moderno, questões políticas, econômicas e sociais motivaram a Coroa a incentivar a abertura de hospitais; as elites adaptaram a estrutura a seus interesses, capitalizando as ações a seu favor; e os utentes encontravam abrigo para seus problemas - no caso analisado pela autora, o Hospital do Espírito Santo de Évora foi caracterizado pela grande presença de trabalhadores migrantes (Abreu, 2014ABREU, Laurinda. O poder e os pobres - as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014.) - nos exemplos aqui analisados não parece ser muito diferente.

A opção por abrir um hospital - a mais cara das obras de misericórdia - pelas elites locais responde também ao interesse das Câmaras municipais, ao eximi-las dos custos, repassados às Irmandades que administravam estas casas de caridade - tal qual a Lei dos Municípios indicava. E, por sua vez, permitiam-lhes recorrerem aos cofres provinciais para conseguir as verbas de loterias, fundamentais para o sustento de instituições com parco patrimônio, como visto ao longo do capítulo.

A questão do tempo exerce papel importante na dinâmica dessas instituições. Se no início a criação do enjeitado parecia ser a maior preocupação, a partir da segunda metade do século XIX, a preocupação com a utilidade social das crianças e a preparação para o mercado de trabalho parecem dominar as ações. Tratava-se de crianças órfãs de ao menos um dos pais, as quais, pela pobreza da família, eram encaminhadas para instituições asilares onde iriam aprender um ofício - como parece ter sido o caso do Asilo Santa Leopoldina e do Asilo Furquim, aqui analisados. Exemplos nos quais o papel da filantropia parece se sobrepor ao da caridade.

A proteção do público mais vulnerável - meninas e idosos - marcou as ações das Misericórdias, a partir da segunda metade do século XIX. Experiências, como a da Misericórdia do Porto, mostram que essa preocupação traduz a inquietação do período. O antigo Recolhimento passa a oferecer a educação mais completa possível às jovens asiladas; bem como são criadas instituições voltadas à educação profissional, além de instituições voltadas para os idosos, notadamente às viúvas (Esteves, 2018ESTEVES, Alexandra. “A força dos pobres e a condição humana: vigiar, acudir e prevenir” In: CRUZ, Maria Antonieta (Coord.). Sob o manto da Misericórdia - contributos para a história da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Vol. 3. Coimbra: Almedina; 2018.).

No caso das instituições aqui analisadas, percebem-se as escolhas feitas pelas instituições e pelos filantropos, no caso dos Asilos. Já os hospitais vieram a se tornar espaço de acolhimento de idosos, muitos egressos do cativeiro. A falta de estrutura das Misericórdias inviabilizava a criação de estruturas destinadas a esse público, o que obrigou os hospitais a recebê-los em seus leitos - mesmo que a doença fosse velhice. A questão do envelhecimento do público assistido nos hospitais de Valença e Vassouras, notadamente homens negros, não é um caso isolado, já havia aparecido nos dados analisados por Virna Braga para Minas Gerais (Braga, 2015BRAGA, Virna Lígia Fernandes. Pobreza e Assistência Pública e Privada em Minas Gerais (1888-1923). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora; 2015.).

Sob o manto da Misericórdia, para me apropriar da iconografia clássica da Virgem da Misericórdia, foram abrigadas inúmeras instituições, desde o século XVI, por todo o império português. Muitas casas de caridade foram criadas à sua imagem e semelhança, e a ela procuraram se vincular simbolicamente, mas sua prática estava enraizada no tempo e no espaço em que foram sendo criadas. Respondiam, assim, às necessidades de cada localidade, em cada momento histórico. De outro lado, marcam também sua capacidade de transformação e de adaptação - que é, no limite, a potência do nome e de sua missão.

Referências

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  • ALMANACK Industrial e Administrativo da cidade e município de Campos (Rio de Janeiro). Campos: Typographia do Monitor Campista; 1881.
  • ALMANACK Comercial, Administrativo, Noticioso, Industrial, Mercantil e Indicador de Nitheroy para o ano de 1889. Niterói: Typ. Sallesiana do Colégio de Artes e Ofícios de Santa Rosa; 1888.
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  • SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do Imperador - D. Pedro II, um monarca nos trópicos São Paulo: Companhia das Letras; 1998.
  • VENÂNCIO, Renato P. Famílias abandonadas. Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador - séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus, 1999.

Notas

  • 1
    A criação de expostos pelas câmaras municipais estava presente nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, que foram aplicadas na então colônia (Marcílio, 1998MARCÍLIO, M.L. História social da criança abandonada. São Paulo, HUCITEC, 2ª ed., 2006.; Venancio, 1999VENÂNCIO, Renato P. Famílias abandonadas. Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador - séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus, 1999.; Franco; 2011FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga - As Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2011.).
  • 2
  • 3
    O Ministério do Império mantinha, na ponta de Jurujuba, o Hospital Marítimo de Santa Isabel, voltado para atender a saúde dos portos: passageiros e marinheiros que chegassem à Corte com suspeita de doenças infectocontagiosas e necessitassem de quarentena. Por não atender à população em geral, essa instituição não faz parte daquelas aqui analisadas.
  • 4
    Sobre a documentação da Casa de Caridade de Cabo Frio, agradeço a Nicole Macedo, aluna do mestrado em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural da Saúde/Fiocruz.
  • 5
    Agradecemos a Adriano Novaes, chefe do Arquivo e Museu Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Valença, por nos ter franqueado a documentação da Irmandade valenciana.
  • 6
    Se a construção do prédio coube à benemerência do barão de Ipiabás, a aquisição das drogas e vasilhames coube a uma lista de subscrição pública para qual concorreram os habitantes de Valença (Ferreira, 1925FERREIRA, Luiz Damasceno. História de Valença (estado do Rio) 1803-1924. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica Editora Paulo Pognetti & Co; 1925.).
  • 7
    Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1848, sessão de 26/10/1848. Folhas 55 e 56. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.
  • 8
    Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 12/01/1851. Folha 60. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.
  • 9
    Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 06/12/1868. Folha 133 a 137. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.
  • 10
    Para a documentação do Asilo Santa Leopoldina, baseio-me no levantamento feito pelo bolsista IC Bernardo Felberg.
  • 11
    A partir de 1870, vemos cada vez mais crianças serem encaminhadas à Casa dos Expostos em consequência da internação de suas mães nos hospitais e hospícios da Irmandade; este trânsito de crianças temporárias acaba por transformar, gradativamente, a instituição colonial (Sanglard, 2016SANGLARD, Gisele. “Entre o Hospital Geral e a Casa dos Expostos: assistência à infância e transformação dos espaços da Misericórdia carioca (Rio de Janeiro, 1870-1920)”. In: Revista Portuguesa de História, t. XLVII (2016) - p. 337-358.). Entretanto, será apenas a partir da primeira década do século XX que se perceberá as mães deixando filhos na roda, mas explicitando seu nome no bilhete que acompanhava a criança (Cosati, 2019COSATI, Letícia C. M.. Assistência à infância na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro: a transformação da Casa dos Expostos (1888-1912). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz Fiocruz, 2019.).
  • 12
    Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 06/12/1868. Folha 133 a 137. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.
  • 13
    Livro de Atas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, sessão de 09/05/1869. Folha 140. Centro de Documentação Histórica - Iphan Vassouras.
  • 14
    O número de leitos do hospital de Valença é calculado a partir dos números dos leitos atribuídos durante os anos de 1882 a 1893, no livro de matrículas do hospital ao qual tivemos acesso. Já para Vassouras, baseio-me no número máximo de pacientes internados a partir dos dados da movimentação do hospital, publicados mensalmente, até 1889, no jornal O Vassourense.
  • 15
    Livro de registro de entrada de pacientes do Hospital da Misericórdia de Valença, 1882 a 1897.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2019
  • Aceito
    14 Fev 2020
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