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DO LUGAR DAS RELÍQUIAS PARA O LUGAR DA HISTÓRIA: a Biblioteca Nacional e outras instituições de acervo na produção da historiografia brasileira no final do século XIX

From the place of relics to the place of history: the Biblioteca Nacional and other safeguard institutions in the production of Brazilian historiography at the end of the nineteenth century

Resumo

A preocupação mobilizada na pesquisa que resultou esse artigo foi identificar como o estatuto do documento se alterou no século XIX para se tornar o centro de novos procedimentos necessários para a elaboração da história moderna no Brasil. As instituições de salvaguarda de acervos documentais, como a Biblioteca Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Arquivo Nacional foram os objetos da investigação por meio dos quais pude perceber movimentos específicos que denotaram transformações nas práticas, técnicas e atitudes para com as materialidades do passado. Dentre as instituições, ganhou destaque na análise a atuação da Biblioteca Imperial e Pública - atual Biblioteca Nacional - BN, por ter iniciado sua trajetória institucional no país no início do século XIX como símbolo da realeza portuguesa e, aos poucos, se afirmado como emblema da nova nação independente. A BN se estabeleceu como um lugar importante de salvaguarda de acervos que seriam os mediadores para a elaboração da história do país ao introduzir a organização e a crítica documental como um trabalho profissionalizado indispensável para garantir a autenticidade dos documentos.

Palavras-chave:
historiografia brasileira; Biblioteca Nacional; IHGB; Arquivo Nacional; acervos históricos

Abstract

This paper is the result of a research concerned with identifying the reasons and ways of the changes in the status of the document during the Nineteenth Century, when documents acquired a central role amongst new procedures necessary for building the modern history of Brazil. The institutions for the safeguard of document collections, like the Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro and Arquivo Nacional were subjects of this investigation, through which it was possible to observe specific movements related to transformations in practices, technics and attitudes towards the materialities of the past. The Biblioteca Imperial e Pública - currently, Biblioteca Nacional (BN) - is highlighted, since it started its institutional trajectory in the country at the beginning of the Nineteenth Century as a symbol of Portuguese royalty which affirmed itself slowly as an emblem of the new independent nation. The BN established itself as an important place for the safeguard of documents and collections that would become the mediators for the construction of the country’s history, by introducing organization and documental critique as professionalized work crucial for ensuring the documents’ authenticity.

Keywords:
Brazilian historiography; Biblioteca Nacional; IHGB; Arquivo Nacional; historical collections

Até bem pouco se pensou que esta casa era uma repartição morta, espécie de sinecura feliz e abençoada. (Relatório de Ramiz Galvão, então diretor da Biblioteca Nacional, ao Ministro do Império, 1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875., p. 23).

A “repartição morta” a que se referia Ramiz Galvão, diretor da Biblioteca Imperial e Pública entre 1870 e 1882, era o lugar que havia abrigado um acervo considerado dos maiores e mais ricos da Europa, devido à tradição da Corte Portuguesa em acumular livros, estampas, iconografias. A Biblioteca1 1 A Biblioteca Real Portuguesa, trazida ao país quando da vinda de D. João VI ao Brasil, havia passado por inúmeros percalços em Portugal, como o terremoto de 1755, seguido de incêndio, e chegou a se ver ameaçada em seu prestígio com a criação de outra instituição, a “Biblioteca Pública de Lisboa”, durante o Reinado de D. Maria. Ainda assim, foi ela a escolhida para a transferência ao Brasil junto à corte portuguesa. A Biblioteca Real foi tornada pública em 1814 e quando da Independência do Brasil em 1822, boa parte dos manuscritos foi transferida para Portugal pelo responsável pela Biblioteca, Joaquim Dâmaso. Em 13 de setembro de 1822 tornava-se Imperial e Pública e em 1876, pelo decreto 6.141, tornou-se Biblioteca Nacional. SCHWARCZ (2003, p. 58-72). , “orgulho dos reis portugueses” e espelho da erudição2 2 Segundo Guimarães (2002, p. 188) “o verbete da Enciclopédia dedicado ao tema [erudição] parece indicar com clareza as fronteiras da erudição no conjunto dos conhecimentos modernos, impondo um novo sentido que articula erudição e conhecimento desinteressado, desprovido de finalidade e utilidade, critério fundamental ao qual as atividades humanas devem se subordinar nesta modernidade em construção”. lusitana (Schwarcz 2002SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p. 9), ao ser transladada para o Brasil entre 1810 e 1811, precisou elaborar nas novas terras também novos sentidos e funções. Essa elaboração levou algum tempo, como veremos.

Pesquisar sobre o processo de inserção e consolidação da Biblioteca Nacional - BN - na cultura brasileira do século XIX foi fundamental para o entendimento da constituição da história como disciplina científica - objetivo mobilizador do presente trabalho, isto porque as transformações do estatuto do documento no decorrer deste século são estruturantes para esta constituição. A BN, o Arquivo Nacional (1838-) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB (1838-) foram três importantes instituições de custódia documental, cujos sentidos de recolhimento e uso dos acervos se alteraram no tempo e nas relações que estabeleceram entre si. Recuperar a atribuição de novos sentidos para os documentos possibilitou identificar movimentos, que operavam nas instituições analisadas, vinculados à configuração da ideia de nação e do campo historiográfico brasileiro.

O século XIX, considerado pela historiografia como o século da história moderna, pode ser compreendido não apenas pelo exercício daqueles personagens que foram considerados seus precursores, mas também, e é isso que procuro demonstrar nesse artigo, pelas transformações nos entendimentos que se produziram sobre e nas instituições responsáveis pela salvaguarda documental. Nessas instituições aconteceram mudanças no sentido e no uso dos documentos que se tornariam matéria prima para produção do conhecimento histórico sob a orientação de novos procedimentos teóricos e metodológicos. Foi possível identificar, por exemplo, algumas modulações pelas quais passou a Biblioteca Nacional, diretamente ligadas ao seu acervo e, paulatinamente, à configuração da história como disciplina que identifiquei como: lugar do culto antiquário, monumental e de crítica em relação aos documentos. Percurso que procurei apresentar a seguir, com destaque para a Biblioteca Nacional, mas convocando para o diálogo outras duas instituições importantes para a compreensão dos sentidos do documento para a história e vice-versa: o Arquivo Nacional e o IHGB.

Até ser inserida no projeto de constituição de uma nação no Brasil, a Biblioteca Nacional cultivou um longo histórico de lamentos, insatisfações, solicitações não atendidas e um público visitador inexpressivo3 3 Foram consultados os relatórios do Ministério do Império entre os anos de 1823 e 1883 e os relatórios de repartição quando anexos relativos à Biblioteca Nacional, Arquivo Público e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. . A expressão pejorativa “sinecura feliz e abençoada”, utilizada por Ramiz Galvão, para falar da instituição no excerto acima, é reveladora da incompatibilidade daquela situação com o seu pensamento de legítimo representante da “geração de 1870”4 4 A geração de 1870 é caracterizada como um movimento intelectual não homogêneo, composto por leitores ávidos de diferentes teorias produzidas na Europa, muito ativo social e politicamente e que tinha como a questão nacional como eixo condutor de seus pensamentos, debates e proposições. Seus membros eram abertos às “ideias novas” e, muitas vezes, apareciam nos debates articulando e divulgando ideias cientificistas, positivistas, spencerianas, darwinistas e liberais. Fizeram parte do movimento Silvio Romero, Tobias Barreto, Capistrano de Abreu, Joaquin Nabuco, Alberto Salles, Lopes Trovão entre outros. Sobre a geração de 1870 ver Sevcenko (1985), Bottmann (1985), Ventura (1991), Alonso (2002). . A fala de Ramiz Galvão é exemplar da tensão entre o pensamento dos intelectuais do período e a situação de instituições consolidadas, mas pouco ativas, diante da agitação política e cultural vivida no país. Assim, procurando compreender as condições de possibilidade da história moderna no Brasil, por meio de instituições de acervo, pude verificar a transformação da Biblioteca, de instituição representativa da erudição portuguesa para emblema da nova nação independente, com grande valor simbólico para o Império brasileiro que então se constituía política, geográfica e culturalmente.

Biblioteca para um novo tempo

A Biblioteca chegou ao Brasil como ícone de uma erudição baseada no culto à antiguidade. A prática colecionista de “tesouros”, incluindo os bibliográficos, remetia à tradição monacal e tinha como função demonstrar o poder e a riqueza das dinastias, como resultado da proteção divina (Pomian, 2001POMIAN, Krzystof. Collections: une typologie historique. Romantisme - Revue du dix-neuvieme siècle, 2001., p. 9). Servia também como repositório para a instrução da família real. No Brasil, mesmo tendo se tornado Biblioteca Real e Pública, em 1814, o empréstimo de qualquer obra ou documento necessitava de autorização por escrito de representantes da monarquia (Schwarcz, 2002SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.).

O acervo aumentava com a aquisição de coleções particulares e de obras impressas que, obrigatória ou espontaneamente, eram remetidas à instituição (Schwarcz, 2002SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p. 69). As coleções se caracterizavam pela reunião de objetos, documentos, livros antigos e obras de arte. Eram representativas da atitude em relação aos vestígios do passado nascida com o humanismo, expressando a circularidade cultural da prática colecionista de teor antiquário corrente na Europa (Pomian, 2001POMIAN, Krzystof. Collections: une typologie historique. Romantisme - Revue du dix-neuvieme siècle, 2001.). A Biblioteca expressava assim, a ideia de uma “biblioteca real”, a exemplo da Biblioteca Real Francesa, em que as coleções eram constituídas com a finalidade de atender aos eruditos, tornando-a um centro de salvaguarda para os livros considerados merecedores (Chartier, 2008CHARTIER, Roger. O príncipe, a biblioteca e a dedicatória. In BARATIN, Marc & JACOB, CHRISTIAN. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008., p. 184).

Semelhantemente à prática europeia, a aquisição de “coleções merecedoras” foi a finalidade consensual da Biblioteca no Brasil, muito embora estivessem ausentes outras características da erudição, vinculadas a acervos textuais tais como a pesquisa paleográfica e diplomática, confrontação de textos, estudos literários, crítica documental, consolidadas em algumas das bibliotecas europeias entre a segunda metade do século XVII e o século XVIII (Nelles, 2008NELLS, Paul. Justo Lípsio e Alexandria: as origens “arqueológicas” da história das bibliotecas. In BARATIN, Marc & JACOB, CHRISTIAN. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008., p. 214). Tal ausência é percebida no Estatuto da Real Bibliotheca de 1821Estatuto da Real Bibliotheca. Rio de Janeiro. Regia Typographia, 1821. Consultado no site: Consultado no site: http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/acervo.html , em fevereiro de 2018.
http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/...
, que organizava seu quadro funcional da seguinte maneira: um prefeito, um ajudante, dois escreventes e serventes.

O prefeito, como supervisor, estava encarregado de tudo o que fosse necessário para conservar e aumentar o acervo para a Real Bibliotheca. As obrigações diziam respeito a manter a limpeza, a segurança, o registro, o bom atendimento ao público e solicitar ao Ministro d´Estado a compra de “alguma Livraria particular, collecção, ou obra considerável”5 5 O Estatuto foi consultado na página da web, em fevereiro de 2018, http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/acervo.html . O prefeito e os funcionários que assumiam a Biblioteca não precisavam de uma formação específica para o desenvolvimento dos trabalhos e, nas primeiras décadas, a instituição foi administrada por religiosos.

Mesmo com a Independência do Brasil e a compra de parte do acervo da Biblioteca Real Portuguesa, tendo a Biblioteca se tornado Imperial e Pública, a instituição se manteve próxima à família real, sem ampliar consideravelmente seu público. Nesse sentido, a Biblioteca se configurou como mais uma das instituições inseridas no esforço de consolidação do Estado Monárquico e dos princípios de ordem e valores aristocráticos neste lado do Atlântico (Guimarães, 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 73). Diferentemente do Museu Real e do Jardim Botânico, instalados no país no mesmo período, que estiveram voltados ao desenvolvimento das ciências empíricas, a Biblioteca representou o lado mais resistente às mudanças exigidas pelo iluminismo português. Manteve os fortes vínculos com o simbolismo religioso, estático e intemporal ligado à Igreja e à monarquia, bem como a predominância do cultivo do legado clássico e dos valores humanistas. Os documentos, em sua maioria bibliográficos, considerados “históricos” em decorrência do tempo transcorrido desde a sua produção, permaneciam com valor de antiguidade, sem perspectiva de uso imediato, sendo arranjados junto à coleção de História Geral. Os índices do acervo previstos no estatuto da instituição de 1821 demonstram a generalidade na sua forma de organização, assim como as particularidades de uma Biblioteca que trazia a herança censória presente em Portugal por longa data6 6 Segundo Villalta (2006) “a censura [em Portugal] do início do século XVI até 1768, encontrou-se sob os cuidados do Ordinário (juízo eclesiástico), da Inquisição e do Desembargo do Paço. Em 1768, D. José I colocou a censura sob a jurisdição de um único órgão a Real Mesa Censória. Essa iniciativa é um marco do esforço secularizador, definido por uma série de medidas de cunho reformista e regalista, que expressavam uma incorporação seletiva da ideia das Luzes, com a valorização da Razão e das ciências e, ao mesmo tempo, com a condenação a tudo que soasse como ameaça ao Antigo Regime.” .

Desta maneira a Biblioteca se apresentava mais próxima ao envolvimento intelectual dos poetas e oradores do que daqueles que “apesar do prisma cosmopolita e universal de sua mentalidade de ilustrados”, tinham grande interesse em estudos de natureza empírica e objetiva que dissessem respeito à realidade material da colônia e que fossem de alguma aplicação prática imediata (Dias, 1968DIAS, Maria Odila Leite da Silva Dias. Aspectos da ilustração no Brasil. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. v. 278, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1968., p. 106).

Assim, nos primeiros anos de sua implantação, a Biblioteca serviu ao trabalho intelectual de perfil beletrista e eclesiástico, estando pouco voltada à aquisição de obras que auxiliassem os estudos derivados da ciência moderna e que atendessem a um tipo de instrução de aplicabilidade imediata do conhecimento. Uma parte do acervo era formado por obras da cultura clássica grega e romana e por manuscritos que se destacavam por sua raridade e valor antiquário, aspecto ressaltado pelos viajantes estrangeiros Maria Graham e Daniel Kidder, que passaram pelo Brasil no início dos oitocentos (Sussekind 1990SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Cia das Letras, 1990.).

Para o olhar estrangeiro, familiarizado com a ciência moderna, uma Biblioteca seria um dos principais instrumentos de civilização e de progresso para uma nação recém-emancipada. Nesse tipo de instituição seria possível identificar a cultura letrada do país e, por meio dela, poder-se-ia perspectivar o potencial de desenvolvimento de uma sociedade. Para os viajantes era como se a Biblioteca pudesse medir o nível de desenvolvimento civilizacional existente no Brasil e também sintetizá-lo. A Biblioteca era vista como um indício, uma promessa sobre o futuro de uma sociedade, aos seus olhos, visivelmente fragmentada pela diversidade cultural e que ocupava um extenso território pouco conhecido e, portanto, pouco dominado. Desta maneira, a instituição era avaliada e julgada como reflexo da cultura letrada do país e de sua capacidade para conduzir um projeto nacional. Assim, a instituição, da forma como se apresentava, causava alguns constrangimentos. Não tanto pelas condições de conservação ou de atendimento ao público, mas quase exclusivamente pelas características do seu acervo, que não contribuía com a modernização das estruturas sociais e culturais do Império luso ou brasileiro.

Os visitantes estrangeiros também destacaram o fato de a Biblioteca ser frequentada por leitores muito interessados em ter acesso aos periódicos impressos no Rio de Janeiro e nas províncias e pouco em obras de fôlego (Sussekind, 1990SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Cia das Letras, 1990.). Tais costumes, consolidados nas primeiras décadas, garantiam alguma vivacidade à Biblioteca, mas já não satisfaziam às necessidades do Estado na década de 1830. Em relatório Bernardo Pereira de Vasconcelos (1837BRASIL. Relatório de Bernardo Pereira de Vasconcellos - Ministro do Império para a Assembleia Geral Legislativa, 1937., p. 21-2), então ministro do Império e da Justiça e político de grande projeção7 7 Bernardo de Vasconcelos, Ministro do Império e da Justiça, cumulativamente, entre os anos de 1837 e 1839, foi um político de grande influência durante o primeiro reinado e o período regencial. Em princípio de posturas liberais, assumiu posteriormente atitudes e projetos conservadores. Foi o idealizador e fundador do Partido Conservador. José Murilo de Carvalho (1999, p. 9) assim o descreve: “inteligência privilegiada, orador eficiente pela concisão e temido pelo sarcasmo, legislador fecundo, foi figura marcante da oposição parlamentar no período em que o sistema representativo dava seus primeiros e inseguros passos”. De família de jurisconsultos atuantes na metrópole e na colônia, estudou em Coimbra junto a nomes importantes da política da Regência e Primeiro Reinado. Crítico ao sistema de ensino daquela instituição, disse ele “Estudei direito público naquela instituição, e por fim sai um bárbaro: foi-me preciso até desaprender”. Vasconcelos considerava o ensino em Coimbra arcaico e isolado do mundo científico “Ali não se admite correspondências com outras academias, ali não se conferem os graus senão aqueles que estudaram o ranço dos seus compêndios” (Carvalho p. 9 e 12). A crítica de Vasconcelos é importante para pensarmos que a sua atuação no Império coaduna com a postura diante da Biblioteca Imperial e Pública, quanto a necessidade de aquisição de obras modernas, procurando romper com os arcaísmos portugueses, mas sem perder os vínculos políticos com a antiga Metrópole. Partiram de Vasconcelos também, as iniciativas de criação do Arquivo do Império e do Colégio Imperial Pedro II. Foi um dos principais ideólogos da centralização política em face às ideias liberais defendidas em um primeiro momento, acabando por entendê-las como princípios favoráveis à anarquia e desagregação do Império. Conclusões decorrentes da experiência de instabilidade política e territorial vivida sob a administração dos liberais, cujo maior símbolo foi Ato Adicional de 1834. , assim se expressava: “É urgente, Senhores, que voteis uma soma avultada para a compra das principais obras, que modernamente tem aparecido em todos os ramos das Sciencias, nos quais, sem exceção, a Biblioteca he extremamente pobre”. Neste momento, o governo suspendeu as assinaturas de periódicos e ordenou a um enviado a Paris a aquisição de obras “mais dignas dos Estabelecimentos desta ordem”. Manifestava-se assim, o interesse em investir menos na vulgarização científica e mais em obras consideradas fundamentais para uma boa formação científica. Dizia o ministro “nunca em taes artigos [de vulgarização] se tratão as matérias com profundidade, e extensão, que se deseja, e convém”.

Vasconcellos evidenciou a tentativa de despertar a Biblioteca Imperial e Pública para o seu papel em um novo tempo. Um tempo bem diferente daquele representado pelo Estatuto da Biblioteca de 1821, em que as orientações principais eram a conservação de obras raras e a exaltação da monarquia. Já no final da década de 1830, nas requisições dos então diretores da Biblioteca ao Ministro do Império, começaram a aparecer os novos entendimentos a respeito da função de um acervo bibliográfico para a nova nação - assunto que adentrava aos salões da Assembleia Geral Legislativa do país.

Nestas solicitações tornaram-se cada vez mais comuns pedidos de ampliação das instalações, do número de funcionários, aumento dos salários e, principalmente a atualização do acervo até então rico em “antiguidades”, mas pobre em obras modernas. Essas reivindicações demonstravam o interesse em tornar a Biblioteca útil aos leitores contemporâneos, sobrepondo a ideia de um lugar de obras antigas, de interesses ultrapassados. Por exemplo, não era adequado que a Biblioteca Pública permanecesse com um acervo que não contemplasse a produção de conhecimentos de sua própria época. Para Bernardo de Vasconcelos (1837BRASIL. Relatório de Bernardo Pereira de Vasconcellos - Ministro do Império para a Assembleia Geral Legislativa, 1937., p. 21-2) era importante que a instituição pudesse também, com recursos do Estado, disponibilizar obras de difícil acesso aos leitores de menor posse.

A percepção, portanto, da necessidade de alterar a “política” de aquisição de acervo da Biblioteca e a sua forma de funcionamento para melhor servir ao desenvolvimento do país, existia, mas seguia sem significativas concretizações.

Havia, no entanto, uma diferença importante no tratamento de documentos como relatos de viagem, corografias e outros relacionados à paisagem e às riquezas da natureza do território da Colônia e do Império do Brasil. A configuração física e especificidades da terra do Brasil eram estratégicas (Schiavinatto, 2003SCHIVINATTO, Iara Lis. Imagens do Brasil: entre a natureza e a história. In Jancsó, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec/Unijuí/Fapesp, 2003.; Kodama, 2009KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. 1. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Fiocruz/EDUSP, 2009., p. 56-57)8 8 Esse conhecimento estava relacionado à atitude pragmática dos letrados luso-brasileiros do final do XVIII, ressaltada por Dias (1968), e que foi estruturada com a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil por meio da criação do Real Horto Botânico, 1808, do Museu Real, 1818 e, da Academia Militar, 1810 (Figueirôa, 1995; Lopes 1997). A reunião dessas instituições no Rio de Janeiro, sede do Império Português, teria contribuído para a elaboração de uma ideia de centralidade, de onde todo o conhecimento existente sobre o território, dividido administrativamente em capitanias e províncias posteriormente, deveria confluir. . Esses documentos, apartados dos demais, além de uma importância pragmática relacionada à exploração das riquezas naturais e definição do território, tornaram-se, aos poucos, os principais elementos de simbolização de uma ideia de nação na primeira metade do século XIX. Com a formação de coleções e inventários, que faziam parte de uma grande área de conhecimento nominada História Natural, era fomentado o conhecimento da natureza circunscrita ao território do país. O exercício dessa operação local tornava possível unir a terra do Brasil ao espaço territorial de todo o globo. Dentro da perspectiva da história universal, em que tudo deveria se encaixar em um ordenamento, a história humana, como integrante da história da natureza, deveria fazer parte de um conjunto de conhecimentos que se constituía para servir ao presente, não mais cabendo a erudição antiquária9 9 Na documentação pesquisada não há indícios de que a prática antiquária, para além da formação de coleções, como a desenvolvida em bibliotecas europeias, tenha aportado no Brasil na primeira metade do século XIX. (Guimarães, 2000GUIMARÃES, Manoel Salgado. História e Natureza em Von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação. Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, vol 7, n. 2, 2000.). Até a primeira metade do século XIX essa documentação era reunida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e não pela Biblioteca ou pelo Arquivo Nacional, como veremos adiante.

Assim, a Biblioteca Imperial e Pública, nesse período, ainda sob a proteção de religiosos, parecia permanecer a serviço da família real, sem oferecer suporte para que o país pudesse acompanhar a modernização que se avistava com o desenvolvimento das ciências modernas.

Os escritos de Nietzsche (2005NIETZSCHE, Friederich. Escritos sobre História. São Paulo: Loyola, 2005., p. 91) sobre “as utilidades e os inconvenientes da história para a vida” presentes em sua Segunda Consideração Intempestiva, de 1874, sintetizam perspectivas históricas com as quais os homens do século XIX lidavam e que são bastante elucidativas para pensar os caminhos e descaminhos da configuração do campo historiográfico no Brasil. Como também, de maneira mais ampla, para se pensar as sensibilidades para com o passado que estavam em contato no período. As caracterizações da história elaboradas por Nietzsche como antiquária, monumental e crítica trazem importantes contribuições sobre conceitos que conviveram, intercambiaram perspectivas, se aproximaram e se afastaram no decorrer do período estudado. É importante ressaltar que essas características não se configuram em etapas processuais de um quadro evolutivo da historiografia, mas dizem respeito a tipos de atitude para como o passado como observou Bann (1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994., p. 131).10 10 Stephen Bann (1994, p. 132) parte do princípio de que a perspectiva de Nietzsche na incorporação desses tipos de atitude para com o passado implica em “mais do que vê-las simplesmente como estratégias lingüísticas, mostra o caminho para uma nova elucidação dos temas centrais da ‘preocupação histórica’ no período moderno. E é particularmente assim com respeito ao tipo que Nietzsche batiza de “história antiquária”. Com muita freqüência, o termo “antiquário” tem sido associado a uma espécie de fracasso em atingir o nível da historiografia verdadeira, “científica”; e o antiquário personificado tem sido retratado como um entusiasta patético, passível de ser desencaminhado por conjeturas absurdas e fantasiosas. Este quadro, evidentemente, não é de todo falso, e teria sido plenamente reconhecível para (por exemplo) os leitores de sir Walter Scott. Mas a questão muda, assim me parece, se nós deixamos de ver o “antiquariado” como a “outra face” desonrosa da história científica e o colocamos no contexto que Nietzsche forneceu. A “a atitude antiquária” não é uma aproximação imperfeita e algo mais - que seria a maturidade da historiografia científica, profissionalizada. É um relacionamento específico, vivo, com o passado e merece ser tratado nestes termos.”

Nietzsche, nesses escritos, ajuda a pensar a Biblioteca Imperial e Pública na perspectiva de uma consciência histórica antiquária ou tradicionalista, vivenciada nesse momento de transição, envolvendo uma corte e dois impérios. Isto porque, diante das inseguranças, é possível aventar que a história poderia interessar aos portugueses e aos brasileiros do primeiro reinado devido ao gosto cultivado “pela conservação e pela veneração, àquele que se volta com amor e fidelidade para o mundo de onde veio e no qual foi formado; com este ato de piedade, ele de algum modo agradece por sua existência. Cultivando cuidadosamente o que sempre foi, quer conservar para aqueles que nascerão depois dele as condições nas quais ele próprio nasceu - e é assim que presta um serviço à vida” (Nietzsche, 2005NIETZSCHE, Friederich. Escritos sobre História. São Paulo: Loyola, 2005., p. 91). Diante do lugar ocupado pela Biblioteca é possível compreendê-la desta maneira. A Biblioteca Real e Pública - e, posteriormente, Imperial e Pública atravessou o Atlântico, instalou-se com a Corte e procurou se manter, nos primeiros anos da nação, como um legado da monarquia portuguesa e da trindade entre política, Estado e Igreja, sem alterações significativas em suas ações.

Em um primeiro momento, portanto, podemos dizer que a Biblioteca dos tempos de Dom João até as primeiras décadas da nação recém-emancipada, se sobressaiu não pelo papel funcional que desempenhou junto aos seus frequentadores, mas pela “mera existência, tal qual cartão de visitas, ou postal de apresentação” (Schwarcz, 2002SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p. 53). No entanto, é importante destacar que as reivindicações de seus responsáveis para a atualização do acervo e melhores condições de trabalho reverberavam a preocupação de alimentar o gosto por áreas do conhecimento mais ligadas às ciências naturais e de pendor mais pragmático, de modo a ocupar um novo lugar no país a partir do favorecimento de estudos de uso imediato, desprendendo-se do culto às obras antigas e dos estudos clássicos. No entanto, um tempo relativamente longo precisou ser transcorrido para a adoção de novas práticas na Biblioteca Imperial e Pública.

Acervos entre lugares

O esforço para conferir “qualidade à existência de um passado”, como afirmam Babelon e Chastel (1994BABELON, Jean-Pierre & CHASTEL, André. A noção de patrimônio. Paris: Liana Levi, 1994., p. 60)11 11 No processo de constituição da nação francesa, por exemplo, foi atribuída toda uma nova significação às obras de arte, acervos bibliográficos e documentais que após o processo de secularização dos bens da Igreja, o confisco de bens de emigrados, as enormes fortunas das classes tradicionais “o clero e a nobreza” passaram para o domínio do nacional, como patrimônio intangível, representativo e como riqueza moral de uma nação. O exemplo Francês é dramático pois os movimentos populares da Revolução pretendiam eliminar os símbolos da monarquia, incluindo obras de arte, arquitetônicas, castelos e foi preciso haver discussões e a implementação de legislação para criar um novo sentimento com relação aos vestígios do antigo regime. O esforço era por torná-los “testemunhos” únicos do passado francês e não apenas símbolos monárquicos (Babelon & Chastel, 1994, p. 57-61). ao se referirem aos Estados nacionais na Europa pós-Revolução Francesa, só começou a fazer parte de um interesse dirigido pelo Estado Imperial no Brasil, a partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Arquivo Público do Império, em 1838. Muito embora a iniciativa de criação do IHGB tenha partido da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, os envolvidos no projeto tinham relações estreitas com o grupo político que se ocupava da organização do Estado e da nação brasileiros. Sob proteção do Imperador, o IHGB esteve no centro do processo de consolidação do Estado Imperial, comandado por um grupo de homens cujas ideias permeavam a estruturação do organismo estatal e também da sociedade, defendendo princípios de ordem e civilização (Mattos 2004MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004., p. 296). Este “tempo saquarema”, de triunfo da ordem e civilização, representaria a superação de um “momento anterior, sempre compreendido como desorganizado e bárbaro, não obstante os aspectos positivos que o passado colonial encerrava”12 12 Mattos (2004, p. 296), localiza o que denominou “Tempo Saquarema” “entre os últimos anos do período regencial e o ´renascer liberal´ dos anos sessenta do século XIX”. .

Arquivo e IHGB foram criados nesse momento com o propósito de centralizar documentos e informações sobre o país. O IHGB assumia a função de desenhar o perfil da nação (Guimarães, 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988.), enquanto o Arquivo, a de demonstrar seu esqueleto. Um surgia como órgão do Estado, o outro como instituição civil organizada, muito embora essas duas dimensões tendessem a se confundir nos primeiros anos do Império.

Sem perder o cariz universalista, as ideias iluministas nesse período voltavam-se para a construção de uma singularidade Brasil. O passado do país como parte da História da Natureza começava a ser matizado pelo interesse na criação de um tipo de coletividade que surgia com o Estado e mundo modernos. Novas ritualizações foram criadas para a constituição de laços e sentimentos profundos e comuns a uma sociedade13 13 Benedict Anderson (1989, p. 12) em seu livro Nação e consciência nacional procura destrinchar as maneiras pelas quais se consolidou a ideia de nação como um artefato cultural; para tanto, o autor diz ser necessário considerar “como se tornaram [as nações] entidades históricas, de que modo seus significados se alteraram no correr do tempo, e porque inspiram uma legitimidade emocional tão profunda”. Esse entendimento ajuda a pensar na confluência entre o desenvolvimento da história como disciplina e o próprio conceito de nação no Brasil - questão apontada por Guimarães (1988) e que permeia este artigo. . No Brasil, essa “formulação” moderna não se iniciou com a Independência; somente no final dos anos de 1830 é que o desenvolvimento criativo da nação tomou corpo e se materializou em ações e instituições.

O processo de consolidação do Estado e Nação brasileiros estimulou a produção de novos conhecimentos sobre o país e o esforço de reunião de documentos para que os letrados e o governo melhor se assenhoreassem do que tinham em mãos de modo a dar continuidade à monarquia, manter os monopólios políticos e econômicos e inventar uma nova nação.

Com isso, emergiram as preocupações de cunho efetivamente histórico com a documentação sobre o passado do país. A constituição, organização e divulgação de acervos foi um reflexo do comprometimento de instituições com a formação da nacionalidade. Os lugares de produção da história brasileira se desenvolveram, portanto, em estreita relação com a constituição do Estado nacional (Guimarães 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 6).

A Biblioteca Imperial e Pública, o IHGB e o Arquivo Nacional se tornaram à época as principais instituições de acervo documental do Brasil, imprimindo formas próprias de lidar com o processo de constituição da nacionalidade brasileira então em vigor.

Tal como aponta Derrida (2001DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo - uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 11) na genealogia da palavra “arquivo”, começo e comando foram os pressupostos que mobilizaram a reunião de documentos para estabelecer um início à história nacional e evidenciar de onde partia essa iniciava. Além do aspecto administrativo, as instituições de acervo certificavam o começo da história da nação reunindo documentos espalhados em diferentes partes do território do país e além-mar.

O Arquivo Público, por exemplo, criado em 1838 e implantado no ano seguinte, assumiu a responsabilidade de recolher “os documentos para a História” do país (BRASIL, 1839BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1839., 4-5; 1843BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1843., p. 55). Logo em sua criação estabeleceu as seguintes seções para acomodar a produção documental do Império: Administrativa (documentos do poder Executivo e Moderador); Legislativa e Histórica. Interessante notar que a seção “histórica” significou o comprometimento da Instituição no sentido de mobilizar o governo para recolher documentos de interesse do Estado, a serem mantidos num lugar sob seu controle. No entanto, a atuação do Arquivo Público permaneceu marginal até a reestruturação institucional ocorrida em 1847 (BRASIL, 1847BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1847., p. 6).

O primeiro Estatuto do IHGB, por sua vez, prescreveu a finalidade de “coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a historia e geographia do império do Brasil; e assim tambem promover os conhecimentos destes dous ramos philologicos por meio do ensino publico...” (IHGB, 1839IHGB. Estatuto do Instituto Historico e Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia da Ass. Do Despertador, 1839., p. 3).

O IHGB foi fundado por homens como José Feliciano Fernandes Pinheiro (Visconde de São Leopoldo), primeiro presidente perpétuo do IGHB, Raimundo José da Cunha Matos, idealizador do Instituto, e Januário da Cunha Barbosa, primeiro secretário perpétuo. Diferentemente de Cunha Matos, os outros dois eram nascidos no Brasil e pertencentes à elite política imperial. Eles conjugavam o interesse na produção da diferenciação do Brasil de Portugal, procurando demonstrar, por meio das diretivas do IHGB, que a situação colonial teria sido substituída pela Independência, de forma a expressar a participação efetiva na construção do novo Império.

Os três participaram da administração da Corte portuguesa e vivenciaram ativamente o processo da Independência. Recuaram da vida política quando esteve no poder o Partido Conservador, de Bernardo de Vasconcelos, um evento político que para Lúcia Guimarães (1995GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal Guimarães. De baixo da imediata proteção de Sua Magestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 338, jun/set. 1995., p. 482) influenciou diretamente a criação do IHGB. A autora sugere que o IHGB funcionou como “entidade alternativa”, uma “espécie de arquivo paralelo, organizado pelos opositores do Ministro Vasconcelos” (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal Guimarães. De baixo da imediata proteção de Sua Magestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 338, jun/set. 1995., p. 481). Os projetos institucionais do IHGB e do Arquivo se diferenciavam pouco no entendimento da centralização política, consolidação do Estado Imperial e constituição da nação brasileira, mas disputaram verbas para o incremento de suas atividades.

As movimentações de Januário da Cunha Barbosa junto aos salões do palácio do Imperador e à Assembleia Legislativa garantiram verbas generosas ao IHGB, além da proteção do soberano, respaldada pelo fato de vários dos seus membros terem participado do golpe que o levou ao trono, em 1840 (Guimarães, 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 10; 1995, p. 484). Em contrapartida, a Biblioteca Imperial e Pública e o Arquivo mantiveram-se com dificuldades de estruturação, o que fica visível nos relatórios ministeriais14 14 Costa (2000, p. 218) em seu artigo “O Arquivo Público do Império: o legado absolutista na construção da nacionalidade” diz que ‘tomando como referência os arquivos nacionais europeus surgidos no século XIX, observa- se que o arquivo brasileiro encontrou sérias dificuldades para realizar os objetivos inerentes a esse tipo de instituição: "instrumentalizar" a ação administrativa do Estado nacional emergente e subsidiar a pesquisa histórica.” .

A década de 1840 foi marcante na estruturação das três instituições que contribuiriam para dar suporte ao processo de individualização da nação por meio do território. O papel fundamental do território na consolidação do Império brasileiro relacionou-se diretamente à manutenção do poder central, fortalecido pelas ações repressivas e diplomáticas contra as “ameaças” internas (como a Cabanagem e a Farroupilha) e externas (Questão Platina). Também trouxe à cena o significado político das províncias, entendidas pelo Estado muito mais como circunscrições espaciais do que como entes configurados, com relativa autonomia perante o Estado monárquico (Mattos, 2004MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004., p. 98). Por outro lado, as oligarquias regionais, desejosas de autonomia para comerciar seus produtos fora do controle da metrópole, entenderam o apoio à monarquia como o meio de garantir seus monopólios econômicos e a manutenção da mão-de-obra escrava. Nas palavras de Mattos (2004MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004., p. 105), a Coroa emergiu nesse momento como centro “gestor dos interesses dominantes que se distribuem de maneira irregular pela imensidão do território”.

A centralidade do território durante a consolidação do Império, portanto, dizia respeito tanto a questões administrativas diretas quanto à utilização do respaldo político advindo do controle do espaço, por parte do Estado, para manipulação das forças internas. Situação que levou o Governo e a elite promotora da Independência a procurar conhecer melhor o país. Principalmente no final da Regência e Segundo Reinado, o Estado passou a usar de forma inédita a exploração do território e seu resultado para o processo de construção simbólica da nacionalidade. É nesse sentido que podemos entender a reunião, produção e publicização de documentos tais como roteiros de viagens, coreografias e descrições geográficas de todos os gêneros associados à história, numa perspectiva de apropriação das especificidades físico-territoriais para a construção narrativa de um começo.

As trajetórias dos fundadores do IHGB se articularam intimamente a este processo, figurando como emblemas do momento e do tipo de letrado que se agregou à instituição. A preocupação com questões históricas e geográficas aparecia na proposta de criação do Instituto, apresentada à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, assim como as de formação de uma elite governamental, e foram expressas no discurso inaugural do IHGB, proferido por Januário da Cunha Barbosa:

Sendo innegavel que as lettras, além de concorrerem para o adorno da sociedade, influem poderosamente na firmeza de seus alicerces, ou seja pelo esclarecimento de seus membros, ou pelo adoçamento dos costumes públicos, é evidente que em uma monarchia constitucional, onde o mérito e os talentos devem abrir as portas aos empregos, e em que a maior somma de luzes deve formar o maior grao de felicidade publica, são as letras de uma absoluta e indispensavel necessidade, principalmente aquelas que, versando sobre a história e a geographia do paiz, devem ministrar grandes auxílios a publica administração e ao esclarecimento de todos os Brazileiros. (Barbosa, 1839).

O sentido político da monarquia constitucional, modelo administrativo apoiado pelo grupo, compunha o eixo do seu projeto no Instituto, dedicado a agregar homens esclarecidos para ocupar cargos públicos. A exemplaridade dos homens ilustres caminharia ao lado da riqueza econômica e grandiosidade da natureza brasileira, circunscrita em um território constituído pelos atos heroicos de quem o defendeu. O território físico, portanto, aparecia como o conformador de toda a história possível sobre o país.

Ao mesmo tempo em que se estabelecia a necessidade de história e geografia, configurava-se o lugar onde essas áreas deveriam ser desenvolvidas com legitimidade e as pessoas capazes do empreendimento, que seriam os mesmos esclarecidos burocratas e políticos do Império, um grupo social que florescia com a consolidação do Estado (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal Guimarães. De baixo da imediata proteção de Sua Magestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 338, jun/set. 1995.). Esses homens tinham uma opinião clara sobre política e administração, sentido a partir do qual pensavam a história. Suas compreensões estavam enredadas no espírito das luzes e sua preocupação com o presente, como se apresentava na virada do século XVIII para o XIX.

O vínculo entre a monarquia constitucional e o mundo das letras e das luzes possibilitava a união explicita entre história e política. É evidente neste aspecto a inspiração francesa na formação do Império do Brasil e, por conseguinte, da História como área a contribuir para sua consolidação. Ao mirar-se no Instituto Histórico de Paris, os idealizadores do Instituto brasileiro, compreendiam que o modelo francês era tão adequado à história quanto à política, sendo ambos os frutos de um mesmo desenvolvimento15 15 Para estabelecer a proximidade definia-se também a distância, e neste caso, a distância assinalada referia-se às repúblicas americanas. Assim se refere Guimarães (1988, p. 7) sobre o IHGB: “Na medida em que o Estado, Monarquia e Nação configuram uma totalidade para a discussão do problema nacional brasileiro, externamente define-se o “outro” desta Nação a partir do critério político das diferenças quanto às formas de organização do Estado. Assim, os grandes inimigos externos do Brasil serão as repúblicas latino-americanas, corporificando a forma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representação da barbárie”. . Ainda no discurso fundador, Januário da Cunha Barbosa cita amplamente Barante, um dos responsáveis, junto a Guizot e a Thierry, pela “reforma histórica e de reconquista do passado nacional” na França dos anos 1820 (Hartog, 2003HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.a, p. 98).

Em uma das referências a Barante, Barbosa (1839, p. 12) mostra como a história a ser praticada no Brasil deveria se inspirar nos métodos da história natural:

O talento do historiador, diz o barão de Barante, assemelha-se à sagacidade do naturalista, que com pequenos fragmentos de ossos, colhidos de escavações, como que resuscita um animal, cuja raça desconhecida existia em plagas que sofreram cataclysmos.

O futuro historiador brasileiro teria muita dificuldade para fazer história devido aos pequenos fragmentos existentes de um passado desconhecido, mas que se estimava grandioso. Este passado era compreendido como algo pronto e acabado, mas do qual não se podia falar devido à falta de elementos repertoriados, catalogados e trazidos à luz. Por isso, a tarefa do Instituto era antes de tudo a de “salvar” do esquecimento os fatos, os escritores e os heróis nacionais “sepultados” tanto pelo descuido dos patriotas, quanto pela monarquia absolutista portuguesa, que abafou a impressão dos escritos de brasileiros ou deles se apropriou (Barbosa, 1839). Desta forma, os idealizadores do Instituto desconsideravam a ideia de o Brasil ser um país recente, cuja narrativa histórica teria início com a Independência. Haveria muita história soterrada, necessitando, para resgatá-la, dos procedimentos arqueológicos de escavação16 16 Para Kodama (2008, p. 65-69) “um dos pressupostos presentes na arqueologia do Instituto era o de que haveria elos perdidos, a serem encontrados, que vinculassem a história da povoação do continente à história dos povos mencionados pela Bíblia”. .

O IHGB também assumiu a função de corrigir as informações históricas e geográficas sobre o país publicadas na Europa, visando atender aos interesses administrativos e diplomáticos (Relatório do Ministério do Império, 1838, p. 15). Segundo Cezar (2004CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história. Historiografia e nação no Brasil do século XIX. Diálogos (Maringá), Maringá - Paraná, v. 8, p. 11-29, 2004., p. 14) não se tratava por parte do IHGB de uma “história a ser feita ou desvelada”, mas, principalmente, de “uma história já feita a qual é necessário examinar com um olhar crítico”. O Relatório do Ministério de 1838 certificava, por exemplo, que o Governo havia comprado e distribuído pelas Províncias 180 exemplares do Diccionário Topográphico do Brasil, elaborado pelo Senador José Saturnino da Costa Pereira, assinalando que o Governo estaria contribuindo para esclarecer pontos do Diccionário, para que o Senador pudesse corrigi-los na segunda edição (Relatório do Ministério do Império, 1838, p. 15).

História e Geografia, portanto, apresentavam-se como questões estratégicas ao Governo justamente pela precisão necessária das informações para melhor administrar e melhor defender o espaço territorial do país no confronto com interesses, maledicências, desinformações e desconhecimentos por parte de estrangeiros.

Tais preocupações provocaram interesses documentais que iam desde a coleta de documentos e informações sobre a população, território e natureza brasileiros, à elaboração de biografias de “brasileiros distintos” (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Josiane Roza de. Um historiador em formação: os primeiros anos da vida intelectual de Capistrano de Abreu (1875-1882). Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, 2011.), incluindo ainda a produção de novos dados obtidos pelas expedições científicas promovidas pelo próprio Instituto. As expedições tinham consigo a ideia de conhecer o território para melhor administrar e a perspectiva da descoberta de glórias de uma civilização perdida.

Utilizando-me mais uma vez da caracterização Nietzsche, é possível dizer que a concepção de história do Instituto e do Estado, principalmente a partir do final dos anos de 1830, é a de tipo monumental. Neste caso, a necessidade de história estava diretamente relacionada com a política, era um instrumento de “ação e de luta” como teria caracterizado Nietzsche. Bann (1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994.), lembra que o autor alemão fazia a passagem dos tipos de historiografia para os tipos de atitude para com o passado, reforçando seu argumento sobre a impossibilidade de se analisar um texto histórico apenas por sua forma narrativa, uma vez que a narrativa seria forjada na experiência vivida17 17 A discussão de Bann (1994) está relacionada à afirmativa de Hayden White sobre o estatuto do texto histórico como fundamentalmente constituidor da distintividade histórica (White, p. 251994). Para Bann embora a forma narrativa seja um elemento importante na configuração da prática historiográfica, sua dimensão como experiência e como atitude perante o passado vivido distingue uma maneira específica de o historiador exercer o seu ofício e produzir conhecimento histórico que não se resume ao resultado narrativo. . Assim, podemos perceber o quão significativo eram o “terreno e o clima” que tornaram possível esse tipo de historiografia e não outro no Brasil do período analisado. Os homens de ação procuravam “fazer de si mesmo senhor” por meio da elaboração de um tipo de historiografia muito específico: aquele que via no elogio aos seus “heróis”, na busca de um passado glorioso e na exaltação de seu território e natureza os meios para reconfigurar o seu tempo presente. Seria ainda, na análise de Bann (1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994.), a partir de Barthes, a “história estratégica”, aquela que não dá as costas à história clássica, e no caso do Brasil, ao valor da retórica e do “bacharelismo”, mas que é ação, na medida em que procura interferir na forma como aqueles próprios homens, a exemplo dos fundadores do Instituto, e o país eram vistos e seriam lembrados. Além, é claro, de colaborar para a administração e conquistas políticas e diplomáticas.

Apesar de a preocupação com os documentos históricos do país estar presente na criação tanto do IHGB quanto do Arquivo Público do Império, o primeiro distinguia-se por não ser apenas o lugar do acúmulo de documentos e de sua publicação, mas também da ação, da elaboração voluntária da História e da Geografia do Brasil. A esse respeito o IHGB mantinha uma situação privilegiada em termos de recursos provenientes da Assembleia ou por intermédio do próprio Imperador. Tal diferença é evidenciada quando se compara, no Relatório do Ministério do Império de 1846BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1846. (p. 5; 15), que o IHGB havia impresso a primeira “Carta Corographica do Império” e solicitava verbas para expedições destinadas à exploração dos “sertões desconhecidos”, enquanto o Arquivo Público questionava a redução de seu orçamento, justificando sua importância.

Podemos dizer, com isso, que cada instituição procurou cumprir suas atribuições dentro das possibilidades. Em 1851, a Biblioteca Pública, por exemplo, elaborou o primeiro catálogo do seu acervo, o “Catálogo especial dos manuscriptos e obras impressas relativas as cousas do Brasil” (BRASIL, 1851BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1851., p. 5). No Arquivo Público do Império18 18 Convindo que no archivo publico sejão arrecadados todos os documentos, que possão interessar á nossa historia, dirigi-me aos diversos ministérios, solicitando as providencias necessárias afim de que sejão elles collecionados e entregues aquela repartição. (Relatório do Arquivo do Império, do diretor Antonio Pereira Pinto, 1861, p. 19). , um ano depois, foram concluídos, por Antonio de Gonçalves Dias, os trabalhos da comissão criada para “Colligir nas Bibliotecas e Archivos dos Mosteiros e Repartições Públicas de diversas Províncias do norte, todos os documentos e com especialidade os concernentes à história do Paíz” (BRASIL, 1852BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1852., p. 14). Na Biblioteca Pública, no ano de 1854, também aparecia a iniciativa para tornar-se um centro de informações sobre o Brasil:

No intuito de se colligerem e serem convenientemente aproveitadas todas as memórias publicadas nas províncias, relativamente à estatística e à história, tenho recomendado aos respectivos presidentes a sua remessa, afim de serem recolhidos na Biblioteca Pública. Tenho também exigido dos mesmos presidentes informações sobre as publicações diárias e periódicas, afim de se poder organisar em quadro estatístico o movimento da imprensa no Império. (Relatório do Ministério do Império de 1854, p. 78)

Nota-se que a Biblioteca, à época dirigida por Frei Camillo de Monserrate (desde 1953) e alocada no Ministério do Império, apresentava à Assembleia Geral preocupações administrativas cada vez mais caras ao Governo, que envolviam as instituições de salvaguarda documental do Estado.

No IHGB, a partir de 1849, segundo Manoel Guimarães (1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988.), o interesse principal deixou de ser a coleta e publicação de documentos para dar “prioridade à produção de trabalhos inéditos no campo da história, da geografia e da etnologia”. O estatuto de 1851 incluiu cláusula segundo a qual os novos membros deveriam comprovar produção intelectual para ingressar na instituição (Guimarães, 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988. p. 12). É possível pensar que tais alterações na orientação do Instituto estiveram em consonância com a ressignificação do Arquivo e da Biblioteca, que demarcaram melhor suas funções de recolhimento, guarda e preservação de documentos relativos à história do país, cabendo-lhes o papel de subsidiar a produção do conhecimento histórico, mas não de realizá-lo. O IHGB, por sua vez, manteve a salvaguarda e publicização documental, ao mesmo tempo em que foi convocado a produzir narrativas históricas de assuntos de interesse do país. Após esta modificação, cresceu o número de “Memórias Históricas” na Revista do IHGB, em detrimento dos demais gêneros (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal Guimarães. De baixo da imediata proteção de Sua Magestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 338, jun/set. 1995., p. 529).

Na Biblioteca teve início um lento processo de deslocamento de funções, que passaram a abranger atitudes pragmáticas, além de simbólicas. Depois de tantas reivindicações, em 1854 foi realizada a compra de uma casa na Lapa (atual Escola de Música da UFRJ), para abrigar o acervo. O Ministro justificou tal compra pela “urgência de salvar grande parte dos livros de uma ruína certa, de que já aparecião signais bem visíveis” (BRASIL, 1854BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1854., p. 79).

Muito embora o desejo de Frei Camillo tenha sido de uma nova construção, mais propícia para abrigar o acervo, a compra da casa ofereceu condições para que a Biblioteca aumentasse o número de seus frequentadores e melhor conservasse os documentos. No entanto, a frequência continuou no mesmo nível - em torno de 2400 pessoas por ano, um número baixo, porém condizente com os índices de alfabetização do período, o acervo ainda pouco atualizado, e o grupo restrito de “homens de letras” do país.

Na segunda metade do século XIX, com a consolidação do Estado centralizado e monárquico, as atitudes com relação aos documentos sobre a história brasileira passaram a ser mais bem orquestradas. Por exemplo, em 1854 foram compartilhados documentos entre a Biblioteca, o IHGB e a Secretaria do Estado de Negócios Estrangeiros, os quais incluíam manuscritos sobre os limites do Império (BRASIL, 1854BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1854., p. 77). Também foi destacada a relevância do Arquivo Público e a necessidade de capacitá-lo a cumprir a função de uma instituição de acervo:

Até então o nosso archivo publico não poderia ser mais do que é: um depósito incompleto dos documentos officiaes que as diversas repartições costumam remetter-lhes, sem meios e proporções, nem para enriquecer-se todos os que deve possuir, nem para confeccionar sobre taes elementos os trabalhos destinados a esclarecer e fixar os factos e princípios da história social, política e administrativa do paíz. (BRASIL, 1855BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1855., p. 5)

Havia poucos estudiosos interessados no acervo de documentos históricos e, em sua ampla maioria, estes faziam parte do IHGB. O Arquivo do Império se ressentia da ausência dos “letrados” no estabelecimento que “vive uma vida ignorada mesmo dos que se ocupão em escrever a história do paiz”, lamuriou seu diretor em relatório de 1862” (BRASIL 1862BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1862., p. 6-7).

A precariedade dos lugares de acervo no país expressava a dificuldade de inserção na política de Estado, muito embora, como vimos, ganhassem terreno devido ao seu papel na elaboração da história e da geografia do Brasil, de grande significado para afirmação da nação.

Mesmo assim, pouca atenção se dava na Assembleia Geral às solicitações dos diretores da Biblioteca Pública e do Arquivo, muito embora constassem nos relatórios ministeriais. No caso da Biblioteca Pública, por exemplo, o Governo teve algumas iniciativas, como a regulamentação, em 1853, do decreto que obrigava todos os editores e impressores a remeter à instituição um exemplar de cada obra publicada (BRASIL, 1854BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1854., p. 78). Mas a lei funcionou precariamente. Outro problema constante foi a ausência de obras modernas no acervo; faltavam “especialmente a parte relativa aos livros e documentos concernentes à História, à Ethnographia e Philologia do Brasil, e da América em Geral”, preocupações constantes na gestão de Frei Camillo (BRASIL, 1853BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1853., p. 70).

Esta última queixa reflete a direção, dada ao IHGB, de produção historiográfica sobre o Brasil, fomentada a partir da memória do naturalista bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius “Como se dever escrever a História do Brasil”, premiada pelo Instituto em 1847 (Guimarães 1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 12). Assumindo o programa do autor bávaro, o IHGB procurou estabelecer a “origem” imemorial da nação e o lugar dos indígenas na “cadeia civilizatória” sustentada pela utopia de um “povo” branco e civilizado, tendo como referência os europeus, como explicita Guimarães (1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 14). Fez isso por meio de expedições de reconhecimento do território, nas quais procurava identificar elementos da natureza propícios ao aproveitamento econômico, localizar documentos que contribuíssem para questões de limites territoriais e investigar a etnologia e filologia indígenas, tidas como fundamentais para a elaboração de uma coerência nacional. Diplomacia, economia, história, etnologia e filologia do país eram as preocupações que mobilizaram as instituições de acervo do período (Kodama, 2009KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. 1. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Fiocruz/EDUSP, 2009.; Schiavinato 2000SCHIVINATTO, Iara Lis. Imagens do Brasil: entre a natureza e a história. In Jancsó, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec/Unijuí/Fapesp, 2003.; Peixoto, 2005PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e cartografias do século XIX. 2005. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.)19 19 Exemplo dessa iniciativa foi anotada em relatório do ministro Coutto Ferraz ao falar do IHGB, em 1856 “Entre aquelles trabalhos merece especial menção o projeto de instruções que o Instituto offereceu ao governo e que este approvou, para a comissão scientífica de naturalistas nacionaes, que tem de explorar algumas das províncias menos conhecidas do Império, da qual tratarei no artigo - Musêo Nacional - e cuja criação foi solicitada pelo mesmo Instituto” . A instrução consta do Anexo do Relatório Ministerial daquele ano. Sobre a Comissão ver Lopes (1995); Kury (2009). .

Aquisições de novas coleções documentais20 20 Consta no Relatório do Ministério do Império de 1859 (p.73): “(...) ultimamente recebi uma porção de documentos históricos, em parte de subido interesse, remettidos pelo mesmo doutor, e resolvi mandá-los archivar no Instituto. Igual destino deve ter outros que se estão preparando, e que se espera receber brevemente. Ali poderão ser aproveitados, servindo de complemento e auxílio aos que já possue o Instituto.” (Relatório do Ministério do Império de 1856, p. 73). para a Biblioteca Pública, portanto, integravam-se a esse projeto maior e eram destacadas no Relatório Ministerial21 21 Também em 1859 tem destaque no Relatório Ministerial a preocupação com as temáticas que norteavam a construção da nação: “Muito convém preencher-se a falta que há nesta biblioteca de obras antigas relativas a história do Brasil e da América, e às línguas indígenas; bem como cópias de manuscriptos concernentes aos mesmos assuntos, que se achão em bibliotecas estrangeiras.” (Relatório Ministério do Império, 1859, p. 52). . Entre as aquisições estavam os manuscritos de Antônio Corrêa de Lacerda, referentes predominantemente à História Natural, e a livraria de Pedro de Angelis, que incluía documentos, mapas e livros, estes relativos principalmente à História da América (BRASIL, 1853BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1853., p. 70).

Por outro lado, a indeterminação do papel de cada instituição e os estreitos vínculos do IHGB com o Estado evidenciavam as vantagens deste último frente às demais. Indício disso foi a iniciativa tomada, em 1856, de arquivar no IHGB os documentos localizados por João Francisco Lisboa, substituto de Gonçalves Dias na tarefa de reunir documentos sobre o país (BRASIL, 1856BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1856.). Relatório de dez anos depois reafirma esta posição vantajosa, ao mencionar o aumento de verbas para o Instituto para a reimpressão de obras e obtenção de documentos, manuscritos e livros (BRASIL, 1866BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1866.). É flagrante o contraponto com a situação da Biblioteca Pública narrada no mesmo relatório: a escassez de recursos faria com que as novas aquisições se limitassem, quase exclusivamente, aos trabalhos e documentos enviados pelas repartições do Império, obras publicadas no Rio de Janeiro e periódicos estrangeiros (BRASIL, 1866BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1866.).

Enfim, a busca por documentos nas províncias e no exterior, representada pelo Arquivo Público, pelo IHGB e pela Biblioteca Pública denotou questões pragmáticas ligadas aos limites territoriais e à definição simbólica da nação, demandas históricas que caminharam juntas na segunda metade do século XIX. Assim, paulatinamente, a Biblioteca Pública passou a abranger entre suas atribuições a necessidade de elaboração de uma história nacional.

O desenvolvimento de uma técnica

Segundo Ramiz Galvão, a nomeação de Frei Camillo de Monserrate como diretor da Biblioteca Pública em 1853 contribuiu para a alteração das expectativas criadas em torno daquele estabelecimento. Galvão, seu sucessor entre os anos de 1870-1882, descreveu-o como um erudito com muitas características dos antiquários do século XVIII22 22 Com interesses por arqueologia, em especial pré-história egípcia, geologia, paleografia, filologia, conhecia as línguas grega e latina e era considerado um helenista ainda na juventude. Iniciado nas letras clássicas e na crítica, vivia na efervescência de Paris, circulando pelas sociedades científicas e bibliotecas. Depois de problemas pessoais, financeiros e profissionais viajou para o Brasil em 1844. Não encontrando melhor sorte, decidiu pela vida no claustro, tendo escolhido a Ordem Beneditina “por índole, por educação literária”. Em 1847 entrou para o Mosteiro de São Bento, mas, sem demonstrar vocação para a vida monástica, foi incumbido de “ordenar e classificar a Biblioteca do Mosteiro” quando começou a se dedicar à biblioteconomia. Em 1850 assumiu a segunda cadeira de Geografia e História do Colégio Pedro II, deixando-a em 1855. Em 1853 foi nomeado Bibliotecário da atual Biblioteca Nacional (Galvão, 1885). e atento à crítica documental. Para Galvão, Frei Camillo era um “crítico e philologo que trabalhava pela glória não pelo dinheiro”. Pertenceu à Sociedade de Geologia da França, conhecia paleografia grega e o grego moderno e participou de controvérsias eruditas, demonstrando especial interesse em Arqueologia (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885.). Desde 1850 era professor da segunda cadeira da disciplina de História e Geografia do Colégio Pedro II. Seu perfil de erudito, desenvolvido nos círculos europeus, diferenciava-o dos seus antecessores à frente da Biblioteca Pública.

A Biblioteca, apesar das dificuldades e dos poucos recursos para a gestão23 23 Ao mesmo tempo em que enaltecia a erudição e competência de Frei Camillo, Ramiz Galvão reforçava a precariedade da Biblioteca durante toda a gestão do religioso. Para Galvão, a principal conquista do beneditino foi a mudança da Biblioteca para o casarão no Largo da Lapa, em 1858, onde permaneceu até a construção da atual sede e sua transferência definitiva em 1910. , parecia ter representado para Frei Camillo o lugar em que poderia dar vazão às suas aspirações de erudição, como notou Galvão (1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885.). Tanto Frei Camillo de Monserrate quanto Ramiz Galvão, dois letrados de gerações diferentes e por isso marcados por aproximações e distanciamentos, foram os responsáveis por introduzir naquela instituição algumas das práticas eruditas24 24 É necessário pensar o antiquariato a partir de duas perspectivas que se apresentaram no Brasil de forma fragmentada. O antiquariato relacionado à erudição, ao estudo exaustivo da especificidade documental de cada elemento salvaguardado teve pouca penetração na Biblioteca e mesmo no IHGB. Mas a perspectiva do culto ao antigo, ao belo, ao único esteve consolidada durante longo tempo nas atividades dessas duas instituições de acervo. Mesmo a erudição produzida nos mosteiros devido a questões de disputas religiosas não teve alcance na prática biblioteconômica até o início dos anos 1870. Refiro-me aqui especialmente à diplomática e paleografia, desenvolvidas no final do século XVII. que visavam garantir, a partir da crítica documental, a integridade e autenticidade dos documentos. que se incluiriam entre as principais características da moderna escrita da história.

Como vimos, intensificaram-se a partir do final dos anos 1840 as aquisições de acervos, principalmente os relativos à história do país, mas não havia um tratamento propriamente bibliográfico das obras. Frei Camillo insistiu com o Ministro sobre a necessidade de um “catálogo completo e systemático das obras existentes na biblioteca” (BRASIL, 1859BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1859.). Do contrário, de pouco serviria o acúmulo de livros e documentos na instituição. A preocupação de Frei Camillo com a sistematização das obras e da documentação não se limitava ao arrolamento por ordem alfabética, como feito pelos seus antecessores. A catalogação do acervo por ele pretendida, no entanto, esbarrava na ausência de recursos humanos em número, remuneração e qualificação suficientes - situação resultante das restrições orçamentárias da Biblioteca.

São visíveis os sinais de que Frei Camillo esmorecia diante das requisições não atendidas. No livro Biografia da Biblioteca Nacional, Gilberto Villar Carvalho (1994CARVALHO, Gilberto Villar. Biografia da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1994., p. 63), sintetiza uma série de solicitações do religioso ao Governo, nenhuma das quais teria sido contemplada.

a compra de livros especiais sobre o Brasil e a América; a formação de um arquivo de obras sobre línguas indígenas do Brasil e das Américas em geral; a formação de uma equipe de estudiosos para levantarem ‘todos os problemas que se referem aos habitantes indígenas do nosso continente, antes e depois de sua descoberta pelos Europeus, exigindo a análise comparada das diversas línguas americanas e a previa fusão dos vocabulários d´ellas’; a formação de uma coleção heráldica de brasões; a coleta de moedas e medalhas; a colheita de notícias sobre as personagens históricas brasileiras; a cópia, em Portugal e Espanha, dos manuscritos relativos à nossa história; a fundação de uma tipografia na Biblioteca, uma oficina de encadernação, a organização de cursos sobre paleografia, arqueologia, etnografia e filologia americana (Carvalho 1994CARVALHO, Gilberto Villar. Biografia da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1994., p. 63).

Por 17 anos à frente da Instituição, Frei Camillo procurou configurá-la desenhando um programa de estudos a fim de torná-la mais útil ao país. Ele repercutia, nesse sentido, as iniciativas do IHGB, além de estar em consonância com as práticas colecionistas mais tradicionais. Seu ideal foi o de uma instituição ativa, participante da consolidação nacional e formadora de homens de letras capazes de contribuir para a ampliação do acervo sobre a história brasileira e americana25 25 Frei Camillo é considerado o primeiro propositor do ensino de História da América no Brasil. Para o frade “o ensino da história nacional não poderia ser completo sem que seja paralelo ao das outras nações americanas. Numerosos problemas de história do Brasil não poderão ser tratados e resolvidos de maneira mais ou menos definitiva sem o recurso aos dados fornecidos pela história dos outros países do Novo Mundo”. (Frei Camillo de Monserrate apud Viana, 1953, p. 81) . Imaginava ele, ser necessário reproduzir nos trópicos a efervescência intelectual vivida em Paris e promover o cultivo local da figura do savant. Para Frei Camillo, o savant era muito mais alguém dedicado a aprofundar algumas áreas de conhecimento do que um beletrista, um homem de generalidades. A promoção dos cursos de paleografia, arqueologia, etnografia e filologia americana representava, assim, um projeto grandioso, formador, a ser gestado pela Biblioteca Pública, entendida por ele como um centro produtor e irradiador de conhecimentos sobre o país.26 26 A arqueologia esteve muito vinculada à ideia de descoberta de civilizações “avançadas” no território do atual Brasil, uma vez que os indígenas durante o período conhecido como “romantismo” eram tidos como o principal núcleo de desenvolvimento do brasileiro, acrescido a isso o valor simbólico da “antiguidade”, uma vez que seguindo a dica de Von Martius e outros viajantes, haveria vestígios de uma civilização antiga que teria vivido no país. Desta forma, uma das áreas de especial interesse foi a epigrafia - estudo de inscrições dos povos antigos. Essas inscrições foram feitas geralmente em pedras ou penedos, chamadas de inscrições rupestres e provocaram grandes debates entre os eruditos sobre seus significados (Kodama, 2009). Segundo Rodrigues (1978, p. 249-250), Frei Camilo teria tentado sem êxito reunir a epigrafia Brasileira, em 1855 “Para isso oficiou ao Ministro do Império Luís do Couto Ferraz, depois Visconde do Bom Retiro, que, apoiando a ideia do sábio bibliotecário, expediu ordens aos presidentes das províncias, para que obtivessem coleções epigráficas para a Biblioteca Nacional, e ao Diretor das Obras Públicas da Corte para que tivesse o maior cuidado na preservação dos monumentos, a fim de se não destruírem as inscrições que, porventura, neles estivessem gravadas”. Rodrigues aponta essa iniciativa do Frei como a primeira no país voltada à preservação dos monumentos nacionais (idem, p. 250).

Apesar do desânimo que as constantes debacles impuseram a Frei Camillo (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885.; Carvalho, 1994CARVALHO, Gilberto Villar. Biografia da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1994.), sua presença significou uma aproximação com os trabalhos eruditos, introduzindo na instituição uma postura diferenciada em relação à documentação histórica e ao seu papel perante a nação. O passo inicial para o ato de reunir, tratar e analisar criticamente o acervo foi ensaiado, mas não concretizado. Era como se apenas uma parcela da erudição dos séculos XVII e XVIII tivesse aportado na Instituição: possuía-se um acervo valoroso por sua antiguidade e raridade, mas o aprofundamento do gosto antiquário no trabalho erudito de análise documental custava a se estabelecer. O impulso nesse sentido veio depois de 1870, ano da morte de Frei Camillo, quando era outra a configuração social do país, como não passou despercebido ao seu sucessor, Ramiz Galvão. Segundo este, a expansão do conhecimento humano, a intensificação da prática da escrita e a ampliação da sede intelectual a outras classes sociais impunham novos desafios ao bibliotecário, que deveria apresentar “saber excepcional e sobretudo variado, sem presumpção nem altivez, um juízo seguro e superior às suggestões de doctrina ou aos preconceitos de eschola” (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 110).

Nesse período houve uma alteração visível na posição da Biblioteca Pública e em sua participação na constituição da nacionalidade. Métodos e práticas outrora difíceis de ganhar terreno na instituição, foram iniciadas a um só golpe nos anos de 1870, durante a gestão de Ramiz Galvão. Este privilegiou a experiência erudita de Frei Camillo, a qual legou-lhe um perfil diferente de biblioteca, ao mesmo tempo em que criticou alguns projetos do antecessor, como o incentivo aos estudos de paleografia e arqueologia (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 136). A biografia que fez de Frei Camillo serviu para Galvão atualizar o perfil da Biblioteca em sua relação com outros lugares de saber, frente às demandas dos novos tempos de utilidade, praticidade e urgência e às necessidades do país. Para Galvão, os eruditos brasileiros deveriam adaptar as técnicas seculares de erudição ao tipo de documento existente num país tão novo como o Brasil.

Porém Ramiz também defendia a visão do frade sobre a necessidade de desenvolver estudos de linguística americana (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 136). Ambos expressavam nesse ponto a compreensão de que é “na língua que se imprime o conjunto do caráter nacional” (La Combe, 1993LA COMBE, P. Judet de. Filologia e História. In BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993., p. 336), não sendo casual que investigações nessa área tenham ocupado membros do IHGB e da futura equipe da Biblioteca Nacional. É importante notar que a preocupação com a língua da população indígena propiciava o alargamento da compreensão da história para além da história política.

Ramiz Galvão se aproximou da ideia de savant defendida pelo Frei Camillo, concordando, inclusive, com o diagnóstico de ausência desse perfil intelectual no Brasil, atribuída à falta de pesquisas originais e de incentivo à investigação científica. Nesse cenário abundavam, por sua vez, as atividades compilatórias e bacharelescas (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 223-4).

Esse entusiasmo pela figura do savant foi uma das principais ligações entre esses dois diretores da Biblioteca Imperial e Pública, que vislumbravam estudiosos que se dedicassem à “criação, meditação e experimentação”. Segundo Galvão, a situação na Biblioteca com a qual se defrontou Frei Camillo foi de terra incógnita: “A verdade é que, salvas poucas exceções, eram todos [os funcionários da Biblioteca] destituídos de habilitações clássicas, e alguns d´elles verdadeiros illiteratos, que só por ironia da sorte se achavam empregados em tractar de livros” (Galvão 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 112).

A falta de recursos não permitiu a Frei Camillo avançar no processo de organização ou sistematização do acervo e na obtenção de eruditos bem remunerados para compor o quadro da Biblioteca Nacional. Ramiz Galvão, por sua vez, ao assumir a direção da Biblioteca em 1870, com uma conjuntura favorável e sua capacidade empreendedora, conseguiu formar uma boa equipe propiciando o encontro da Biblioteca com algumas das práticas eruditas. Desta forma ele destacou a importância da Biblioteca para a consolidação do projeto de nação, anunciado desde a segunda metade do oitocentos. Ramiz Galvão (1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885.) visitou instituições similares na Europa, a fim de conhecer seus métodos de trabalho e formas de organização. Com o orçamento “quintuplicado”, imprimiu uma transformação na Biblioteca Nacional, objetivando torná-la uma referência para os homens de letras do país. Iniciou as mudanças retomando a abertura no período noturno e obteve a ampliação de verbas para: aquisição de obras “modernas”, melhoria do edifício, implantação de medidas de conservação do acervo e a conclusão de um catálogo das obras (Relatório do Ministério de Império, 1870). Tudo com certo nível de autonomia.

Organizou a Biblioteca em quatro seções: Manuscritos, Impressos, Estampas e Periódicos. Cada uma delas passou a ter um chefe de seção incumbido do trabalho técnico de organização, higienização, conservação, catalogação do acervo, análise crítica e recepção aos visitantes e estudiosos. Os chefes de seção foram responsáveis também por reportar ao diretor suas atividades. As tarefas das seções bem definidas pretendiam visibilizar o acervo, aumentar o número de estudiosos e garantir acesso às “preciosidades” sob a guarda da instituição as quais começavam a ser “descobertas”. Fazendo isso, Ramiz Galvão franqueou acesso ao acervo a uma nova geração de intelectuais estabelecida no Rio de Janeiro e que se interessava pela história pátria procurando delimitar a especificidade Brasil frente à história de Portugal.

De orientação pragmática e como “homem de ação”, Ramiz Galvão delineou o perfil do bibliotecário desejado naqueles anos de grandes transformações no país:

E o bibliotecário tem alli a sua obra. Elle examina, ordena e classifica como o naturalista; ele compara os textos, e decide a primazia como o critico; restaura os monumentos injustamente esquecidos e exuma as relíquias do passado como o archeologo; lê no palimpsesto e no papyrus como o geólogo interpreta nas camadas da terra os annaes préhistóricos do globo; analysa as creações do bello como o artista: archiva, commenta e illumina de notas as obras odiernas para auxiliar as investigações do futuro, dá o fio de Ariadne a toda a sorte de pessoas, anima com seu conselho e ajuda com suas luzes tanto o inexperto caminheiro como o explorador provecto; ao litterato fornece e aponcta os modelos e as fontes, ao sábio faculta os annaes das Academias, ao artista os materiais da composição, ao político os documentos da administração dos Estados; em summa, não há trabalhador no immenso campo da sciencia profana e sagrada ou no domínio das artes, a quem elle não preste o seu braço, não há monumento litterario de vulto, para cuja construcção elle não concorra com pedras angulares.” (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 108)

O bibliotecário seria a base para o desenvolvimento das demais atividades, científicas ou artísticas. Ele seria em suma o mediador entre o presente e o passado. Aquele que ofertaria a luz necessária para o encontro do presente com o obscuro tempo percorrido e propiciaria para que a até então velada produção humana pudesse ser vista e tomada a si como herança.

Ramiz elevou o padrão social e intelectual da atividade de bibliotecário e de diretor da Biblioteca Pública. O perfil almejado para o funcionário destinado a ocupar o cargo na Biblioteca já não era o de um simples amanuense; configurava-se, efetivamente, como um trabalho que requeria instrução e especialização. Esses novos profissionais deveriam cultuar os livros à moda dos érudits, mas em nome, principalmente, dos interesses da nação. Nesse momento, na gestão de Ramiz Galvão, a Biblioteca desencadeou o processo de aperfeiçoamento de um novo tipo de homem de letras, com habilidades profissionais que o destacavam entre os demais e o tornavam portador de um ofício.

O ofício de bibliófilo, concebido por Ramiz Galvão à maneira dos antiquários, mesclava o entendimento entre a especialização e o culto à erudição por deleite pessoal. É preciso destacar que era uma erudição menos ligada à retórica, tão comum aos letrados do período, e mais próxima da História Natural, da arqueologia e de seus trabalhos com a cultura material, pelo nível de investigação, descrição e precisão com que pretendiam abordar os documentos. Acima de tudo, eram importantes o tratamento das evidências passíveis de serem tomadas, descritas e criticadas e o reconhecimento de profissionais aptos a desenvolver a contento tais atividades. Tratava-se de um tipo muito específico, que reuniria algumas práticas e posturas já existentes, ao mesmo tempo em que configurava outra atitude perante as obras e documentos, voltando-se, sobretudo, ao interesse da nacionalidade.

E o que dizer dos encantos da pesquisa bibliographica em que o corpo não sente cansaço, porque a tensão do espírito o-sustenta; do affan com que se-corre atraz de uma informação preciosa ou de um documento ignorado, - labor em que se não sente o passar das horas; dos vícios preciosos que se-des-cobrem em caminho a cada passo, indemnizando a pequena mágua d´um insucesso; o que dizer afinal do achado feliz dos thesouros que se-buscam, ou da decifração de um enigma que até então se-julgára insolúvel? Que momentos de prazer indizível não proporciona, que victorias sem sombra, que alegrias serenas, que doce consolação do tempo consumido! (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., p. 109).

Este gosto pelos documentos que envolveria o trabalho na biblioteca faz lembrar o perfil do antiquário descrito por Momigliano (2004, p. 85), aquele que “se interessa pelos fatos históricos sem se interessar pela história”. O antiquário, esse “tipo social” tão vilipendiado pela história moderna (Bann ,1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994.), teve papel fundamental no desenvolvimento da mesma. A busca pelos “tesouros” e decifração de “enigmas insolúveis”, como a data do documento, autenticidade, autoria, trazia como recompensa o regozijo perante resultados positivos. Essa busca incansável caracterizou as atividades dos novos funcionários da Biblioteca, de quem Ramiz Galvão falava em seu texto de 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885., depois de já ter saído da instituição.

Mesmo num contexto favorável não foi fácil a Ramiz Galvão conseguir funcionários com o perfil descrito. Havia mais letrados do que no tempo de Frei Camillo, mas era difícil fazer que se interessassem pelas atividades da Biblioteca, tendo em vista tanto o baixo salário quanto a escassez de “investigadores esclarecidos”. Segundo Ramiz Galvão (1876GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1876., p. 15) “em que por consequência as boas letras só por excepção acham cultores devotados e entusiastas, sonhadores desinteressados de gloria, soldados do idealismo”. Neste ponto há um contraste com o IHGB, que reunia pessoas com outras ocupações e o vínculo com o instituto não correspondia, necessariamente, ao caráter erudito de seus membros. Havia exceções, afirmava Galvão, mas a jovialidade do Brasil fazia com que o número diminuto de eruditos não favorecesse a dedicação plena à produção de conhecimento, precisando dividi-la entre outras funções. Sendo assim, como então surgiu a equipe que trabalhou com Galvão logo que ele assumiu a Biblioteca Pública?

Entre os anos de 1870 e 1874, os Relatórios do Bibliotecário ao Ministério do Império registraram continuamente queixas sobre os poucos, inábeis e mal remunerados funcionários; sobre o edifício inadequado para comportar o acervo e permitir o acesso aos consulentes; sobre a inexistência de um catálogo das obras e o não cumprimento da lei que obrigava as gráficas da Capital a depositar no estabelecimento um exemplar de todas as publicações. Foi somente em 1874 que Ramiz conseguiu verbas para implantar uma Comissão27 27 A Comissão foi composta por João Saldanha da Gama, Antonio Mendes Limoeiro, Alfreddo do Valle Cabral e Antonio José Fernandes d´Oliveira, sendo mais tarde incorporados Antonio da Costa e Sá e o bacharel Domingos Jacy Monteiro Júnior. (Relatório de Ramiz Galvão ao Ministério do Império, 1874, p. Anexo-D1-7). externa à Biblioteca, com gratificação financeira para organização de novos catálogos do acervo28 28 Dizia ele sobre os catálogos existentes: “Nos três primeiros anos de minha administração tive innumeras opportunidades de apreciar os muitos erros e as lacunas lastimáveis de todos estes trabalhos, e cheguei a convencer-me de que fora improfícuo e até prejudicial querer aproveitar qualquer cousa delles”. Relatório de Ramiz Galvão ao Ministro do Império, 1874, p. A-D 1-6) .

A Comissão tinha como tarefa investigar a

(...) procedência; valor litterario e commercial das edições, raridade dellas, o verdadeiro nome dos autores de obras pseudonymas, o dos autores de obras anonymas e asteronymos; as fraudes typographicas relativas ao logar e data de impressão; os acidentes de encadernação e outros que dão mais ou menos valor ao exemplar; em summa, tudo quanto da consulta de numerosas bibliografias geraes e especiaes, que aqui temos à mão (Galvão, 1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875.)

O trabalho da Comissão foi muito elogiado por Ramiz Galvão ao Ministro do Império. Tratava-se, sobretudo, de um trabalho de utilidade prática, pois catálogos, segundo ele, são “instrumentos de pesquisa” e não “obras científicas” (Galvão, 1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875., Anexo A - D1, p. 7-9). A finalidade era familiarizar os funcionários com o acervo, de modo a poder melhor atender ao público e organizar e oferecer aos pesquisadores a documentação relativa à história do país.

Observando o programa de organização do catálogo, percebemos um apuramento das técnicas, que não se configuravam numa ciência propriamente dita, mas assentavam procedimentos indispensáveis para o trato com obras e documentos. Desta maneira, as técnicas eruditas são implantadas na Biblioteca, salvaguardando uma tradição e promovendo a renovação dos seus usos.

Muito embora a compreensão de Ramiz Galvão sobre a atividade do bibliófilo estivesse relacionada menos à produção de conhecimento do que às suas condições de possibilidade, no trabalho prático de produção do catálogo evidenciava-se o processo de individualização de um objeto. No trabalho desenvolvido na Biblioteca se destacava a investigação minuciosa sobre a “história de cada obra, de cada edição e de cada exemplar ou, que vale o mesmo, em relação ao gênero, à espécie e ao indivíduo”. Este exercício, conforme indica Momigliano (2004), foi significativo para a emergência da história moderna.

Em 1873, Galvão contratou Alfredo do Valle Cabral, “jovem amador de estudos bibliográfhicos, que então começava a se fazer conhecido por alguns artigos publicados nas folhas diárias da Corte”. Publicava artigos de crítica documental, geralmente relativos à história do país, tendo logo despertado interesse pela língua Tupi. Sua contratação foi narrada por Ramiz Galvão como “o ponto de partida, só póde dizer, do renascimento da secção de manuscritos desta repartição” (idem p. 9)29 29 “(...) todo esse espaço de tempo [um ano] gastou-o o zeloso jovem bibliografho em coordenar os papéis esparços, e em estudar as preciosidades que possuímos; pouca cousa fez em matéria de catálogo, por isso mesmo que não convinha trabalhar neste sentido antes de haver posto em ordem nos manuscriptos, e antes de conhecer mais ou menos perfeitamente o conteúdo delles” (Ramiz Galvão, Relatório 1875, Anexo D1, p. 9). , tendo sido o primeiro “letrado” hábil a desenvolver as atividades compatíveis com os anseios do estabelecimento.

O desenvolvimento do catálogo de manuscritos, por exemplo, exigia o estabelecimento de uma rotina minuciosa de trabalho, que envolvia o levantamento dos dados bibliográficos e das características do documento, datação, autenticidade, autoria etc. (Galvão, 1874GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1874., RMI, A - D1, p. 10). Nesse sentido, os novos procedimentos no trato com a documentação destacados na Biblioteca diferenciavam-se daqueles do IHGB, que não incluía nos documentos publicados em sua Revista notas explicativas, investigações de autenticidade, datação, autoria obtidos pela crítica interna e externa dos documentos.

Para constituir uma equipe condizente com os trabalhos na Biblioteca, Ramiz Galvão (1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875.), insistia na qualificação do funcionário, e instituiu o concurso público como forma de contratação, argumentando que os trabalhos bibliográficos exigiam saber técnico, formação superior e certo nível de erudição.

(...) Os trabalhos bibliographicos são penosos, diffíceis, demandam variedade de conhecimentos e estudo especial de um certo ramo de sciencia, que em algum tempo foi nada, mas que hoje é muito. Pensam os profanos que basta copiar o título de um livro para o haver catalogado. Não preciso demonstrar a V. Ex. quanto há de errôneo nesta proposição, e quão longe anda de saber o que é bibliographia quem a profere. A verdade é que não são de mais para um bibliographo algum conhecimento das línguas grega e latina, perfeito conhecimento do francez e do inglez, de história e de litteratura em geral, - e tudo isto sem excluir a sciencia bibliographica propriamente dita. Ora, sendo certo que taes conhecimentos não são vulgares, força é confessar que nem todos servem para empregados superiores de bibliotheca. O meio de os haver pois é exigir-se dos candidatos um diploma acadêmico, como de bacharel em letras ou em sciencias, e o concurso prévio onde se haja de decidir quem tem mais habilitações para bem servir. (Galvão, Relatório Biblioteca Nacional ao Ministro do Império, 13.04.1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875.)

A forma de Galvão entender o trabalho na Biblioteca alterou em muitos sentidos a postura vigente em relação aos documentos sobre o país, uma vez que reconfigurou os lugares e agentes habilitados a reuni-los, salvaguardá-los e divulgá-los. A atitude técnica perante a documentação distinguia o funcionário da Biblioteca dos homens de letras do IHGB, devotados à política. Houve, portanto, entre as duas instituições, diferenciações nas atitudes e contribuições para com a escrita de uma história nacional.

O IHGB, além de manifestar uma preocupação com a documentação histórica e geográfica do país, configurava-se como uma entidade de sociabilidades (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal Guimarães. De baixo da imediata proteção de Sua Magestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 338, jun/set. 1995.). Seu acervo em certa medida servia apenas aos seus sócios, notabilizados pelo pertencimento à Instituição (Guimarães, 1998GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988.). Já a Biblioteca baseou-se na ideia de oferecer os alicerces para a produção segura do conhecimento, a partir de documentos abalizados pelo tratamento prévio. Diferentemente do IHGB, seus funcionários não eram membros acolhidos por associação com regras de pertencimento e status social elevado. Esse diferencial produziu níveis variados de dedicação ao tratamento documental, numa e noutra instituição. Enquanto o IHGB foi marcado pelo trabalho voluntário e com valor hierárquico, na Biblioteca configurou-se um perfil profissionalizado, remunerado, ainda que parcamente, e menos reconhecido socialmente.

De uma instituição que representou a herança do período colonial, a Biblioteca Nacional transformou-se em um importante lugar de desenvolvimento de técnicas e práticas específicas com a documentação histórica sobre o país e instrumento de instrução pública, contribuindo para o desenvolvimento da história moderna no Brasil.

Considerações Finais

O artigo procurou evidenciar como a forma de compreender o passado e de se utilizar dos testemunhos materiais para a produção da história se transformou no decorrer do tempo, tendo como objeto de análise a atuação da Biblioteca Imperial e Pública na sua relação contextual com o Arquivo Público do Império (atual Arquivo Nacional), e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. O objetivo da pesquisa foi perceber as movimentações nas práticas e entendimentos sobre como a reunião e organização de documentos do passado tiveram diferentes significados para a compreensão da consciência histórica do período e da produção historiográfica moderna que se configurou no país a partir dos anos de 1870.

A estratégia de abordar a consciência histórica e a produção historiográfica em instituições de guarda de documentos, partindo da Biblioteca Imperial e Pública, visou contribuir com o entendimento de que a produção historiográfica moderna emergiu juntamente com a ressignificação dos usos das materialidades do passado. A estruturação do país para a criação deliberada de um projeto nacional implicava organizar instituições que cuidassem de sua história e, por conseguinte, dos vestígios do passado que seriam tidos como testemunhas de sua existência. Essas iniciativas surgiram mais precisamente com a criação do Arquivo Imperial e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ambos vinculados a própria configuração do Estado. Já a Biblioteca Imperial aparecia como herança, embora adquirida, que precisou passar por um processo de nacionalização para servir aos interesses do Brasil como uma nação independente de Portugal. Assim como foi necessário que novos entendimentos sobre o seu papel na reunião, salvaguarda e organização de acervos pudessem se consolidar para que viessem a contribuir com a produção de história brasileira.

Em resumo, somente nas últimas décadas do século XIX um acervo sobre a história do Brasil foi tratado de maneira profissional, menos vinculado ao gosto pelo antigo - caro à cultura antiquária e à história monumento - cara à política e à administração do Estado. Importante ressaltar, porém, que os novos tratamentos dedicados aos acervos se diferenciavam paulatinamente sem excluir tais experiências. Assim, a articulação de práticas da cultura antiquária europeia, a preocupação com a história do Estado e da nação brasileira, independentes de Portugal, que se consolidaram nos oitocentos pôde, junto a uma nova postura em relação à ideia de ciência emergente, principalmente a partir da década de 1870 no Brasil, contribuir para o surgimento de uma nova prática no trato com a documentação do passado e com novas formas de produzir a história.

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Notas

  • 1
    A Biblioteca Real Portuguesa, trazida ao país quando da vinda de D. João VI ao Brasil, havia passado por inúmeros percalços em Portugal, como o terremoto de 1755, seguido de incêndio, e chegou a se ver ameaçada em seu prestígio com a criação de outra instituição, a “Biblioteca Pública de Lisboa”, durante o Reinado de D. Maria. Ainda assim, foi ela a escolhida para a transferência ao Brasil junto à corte portuguesa. A Biblioteca Real foi tornada pública em 1814 e quando da Independência do Brasil em 1822, boa parte dos manuscritos foi transferida para Portugal pelo responsável pela Biblioteca, Joaquim Dâmaso. Em 13 de setembro de 1822 tornava-se Imperial e Pública e em 1876, pelo decreto 6.141, tornou-se Biblioteca Nacional. SCHWARCZ (2003SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p. 58-72).
  • 2
    Segundo Guimarães (2002GUIMARÃES, Manoel Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo: as tensões da prática histórica do século XIX. Revista Topói, vol 3, 2002., p. 188) “o verbete da Enciclopédia dedicado ao tema [erudição] parece indicar com clareza as fronteiras da erudição no conjunto dos conhecimentos modernos, impondo um novo sentido que articula erudição e conhecimento desinteressado, desprovido de finalidade e utilidade, critério fundamental ao qual as atividades humanas devem se subordinar nesta modernidade em construção”.
  • 3
    Foram consultados os relatórios do Ministério do Império entre os anos de 1823 e 1883 e os relatórios de repartição quando anexos relativos à Biblioteca Nacional, Arquivo Público e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB.
  • 4
    A geração de 1870 é caracterizada como um movimento intelectual não homogêneo, composto por leitores ávidos de diferentes teorias produzidas na Europa, muito ativo social e politicamente e que tinha como a questão nacional como eixo condutor de seus pensamentos, debates e proposições. Seus membros eram abertos às “ideias novas” e, muitas vezes, apareciam nos debates articulando e divulgando ideias cientificistas, positivistas, spencerianas, darwinistas e liberais. Fizeram parte do movimento Silvio Romero, Tobias Barreto, Capistrano de AbreuABREU, Capistrano. Correspondências Capistrano de Abreu. vol. 2. In RODRIGUES, J. H. (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977., Joaquin Nabuco, Alberto Salles, Lopes Trovão entre outros. Sobre a geração de 1870 ver Sevcenko (1985SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. São Paulo: Cia das Letras, 1885.), Bottmann (1985BOTTMANN, Denise Guimarães. Padrões explicativos na historiografia brasileira. Dissertação de mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Unicamp, 1985.), Ventura (1991VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultual e polêmicas literárias no Brasil. Cia das Letras, 1991.), Alonso (2002ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).
  • 5
    O Estatuto foi consultado na página da web, em fevereiro de 2018, http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/acervo.html
  • 6
    Segundo Villalta (2006VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In DUTRA, Eliana & MOLLIER, Jean-Yves. Política, nação e edição: o lugar do impresso na construção da vida política, Brasil, Europa e Américas, séculos XVIII a XX. São Paulo: Annablume, 2006.) “a censura [em Portugal] do início do século XVI até 1768, encontrou-se sob os cuidados do Ordinário (juízo eclesiástico), da Inquisição e do Desembargo do Paço. Em 1768, D. José I colocou a censura sob a jurisdição de um único órgão a Real Mesa Censória. Essa iniciativa é um marco do esforço secularizador, definido por uma série de medidas de cunho reformista e regalista, que expressavam uma incorporação seletiva da ideia das Luzes, com a valorização da Razão e das ciências e, ao mesmo tempo, com a condenação a tudo que soasse como ameaça ao Antigo Regime.”
  • 7
    Bernardo de Vasconcelos, Ministro do Império e da Justiça, cumulativamente, entre os anos de 1837 e 1839, foi um político de grande influência durante o primeiro reinado e o período regencial. Em princípio de posturas liberais, assumiu posteriormente atitudes e projetos conservadores. Foi o idealizador e fundador do Partido Conservador. José Murilo de Carvalho (1999CARVALHO, José Murilo. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999., p. 9) assim o descreve: “inteligência privilegiada, orador eficiente pela concisão e temido pelo sarcasmo, legislador fecundo, foi figura marcante da oposição parlamentar no período em que o sistema representativo dava seus primeiros e inseguros passos”. De família de jurisconsultos atuantes na metrópole e na colônia, estudou em Coimbra junto a nomes importantes da política da Regência e Primeiro Reinado. Crítico ao sistema de ensino daquela instituição, disse ele “Estudei direito público naquela instituição, e por fim sai um bárbaro: foi-me preciso até desaprender”. Vasconcelos considerava o ensino em Coimbra arcaico e isolado do mundo científico “Ali não se admite correspondências com outras academias, ali não se conferem os graus senão aqueles que estudaram o ranço dos seus compêndios” (Carvalho p. 9 e 12). A crítica de Vasconcelos é importante para pensarmos que a sua atuação no Império coaduna com a postura diante da Biblioteca Imperial e Pública, quanto a necessidade de aquisição de obras modernas, procurando romper com os arcaísmos portugueses, mas sem perder os vínculos políticos com a antiga Metrópole. Partiram de Vasconcelos também, as iniciativas de criação do Arquivo do Império e do Colégio Imperial Pedro II. Foi um dos principais ideólogos da centralização política em face às ideias liberais defendidas em um primeiro momento, acabando por entendê-las como princípios favoráveis à anarquia e desagregação do Império. Conclusões decorrentes da experiência de instabilidade política e territorial vivida sob a administração dos liberais, cujo maior símbolo foi Ato Adicional de 1834.
  • 8
    Esse conhecimento estava relacionado à atitude pragmática dos letrados luso-brasileiros do final do XVIII, ressaltada por Dias (1968DIAS, Maria Odila Leite da Silva Dias. Aspectos da ilustração no Brasil. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. v. 278, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1968.), e que foi estruturada com a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil por meio da criação do Real Horto Botânico, 1808, do Museu Real, 1818 e, da Academia Militar, 1810 (Figueirôa, 1995FIGUEIRÔA, Silvia F. de M. Ciência no Torrão Natal: a adaptação de modelos estrangeiros e a construção de uma problemática científica nacional. In. História da ciência: o mapa do conhecimento. São Paulo: Edusp, 1995.; Lopes 1997LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX, 1997.). A reunião dessas instituições no Rio de Janeiro, sede do Império Português, teria contribuído para a elaboração de uma ideia de centralidade, de onde todo o conhecimento existente sobre o território, dividido administrativamente em capitanias e províncias posteriormente, deveria confluir.
  • 9
    Na documentação pesquisada não há indícios de que a prática antiquária, para além da formação de coleções, como a desenvolvida em bibliotecas europeias, tenha aportado no Brasil na primeira metade do século XIX.
  • 10
    Stephen Bann (1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994., p. 132) parte do princípio de que a perspectiva de Nietzsche na incorporação desses tipos de atitude para com o passado implica em “mais do que vê-las simplesmente como estratégias lingüísticas, mostra o caminho para uma nova elucidação dos temas centrais da ‘preocupação histórica’ no período moderno. E é particularmente assim com respeito ao tipo que Nietzsche batiza de “história antiquária”. Com muita freqüência, o termo “antiquário” tem sido associado a uma espécie de fracasso em atingir o nível da historiografia verdadeira, “científica”; e o antiquário personificado tem sido retratado como um entusiasta patético, passível de ser desencaminhado por conjeturas absurdas e fantasiosas. Este quadro, evidentemente, não é de todo falso, e teria sido plenamente reconhecível para (por exemplo) os leitores de sir Walter Scott. Mas a questão muda, assim me parece, se nós deixamos de ver o “antiquariado” como a “outra face” desonrosa da história científica e o colocamos no contexto que Nietzsche forneceu. A “a atitude antiquária” não é uma aproximação imperfeita e algo mais - que seria a maturidade da historiografia científica, profissionalizada. É um relacionamento específico, vivo, com o passado e merece ser tratado nestes termos.”
  • 11
    No processo de constituição da nação francesa, por exemplo, foi atribuída toda uma nova significação às obras de arte, acervos bibliográficos e documentais que após o processo de secularização dos bens da Igreja, o confisco de bens de emigrados, as enormes fortunas das classes tradicionais “o clero e a nobreza” passaram para o domínio do nacional, como patrimônio intangível, representativo e como riqueza moral de uma nação. O exemplo Francês é dramático pois os movimentos populares da Revolução pretendiam eliminar os símbolos da monarquia, incluindo obras de arte, arquitetônicas, castelos e foi preciso haver discussões e a implementação de legislação para criar um novo sentimento com relação aos vestígios do antigo regime. O esforço era por torná-los “testemunhos” únicos do passado francês e não apenas símbolos monárquicos (Babelon & Chastel, 1994BABELON, Jean-Pierre & CHASTEL, André. A noção de patrimônio. Paris: Liana Levi, 1994., p. 57-61).
  • 12
    Mattos (2004MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004., p. 296), localiza o que denominou “Tempo Saquarema” “entre os últimos anos do período regencial e o ´renascer liberal´ dos anos sessenta do século XIX”.
  • 13
    Benedict Anderson (1989ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989., p. 12) em seu livro Nação e consciência nacional procura destrinchar as maneiras pelas quais se consolidou a ideia de nação como um artefato cultural; para tanto, o autor diz ser necessário considerar “como se tornaram [as nações] entidades históricas, de que modo seus significados se alteraram no correr do tempo, e porque inspiram uma legitimidade emocional tão profunda”. Esse entendimento ajuda a pensar na confluência entre o desenvolvimento da história como disciplina e o próprio conceito de nação no Brasil - questão apontada por Guimarães (1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988.) e que permeia este artigo.
  • 14
    Costa (2000COSTA, Célia. O Arquivo Público do Império: o legado absolutista na construção da nacionalidade. In Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, 2000., p. 218) em seu artigo “O Arquivo Público do Império: o legado absolutista na construção da nacionalidade” diz que ‘tomando como referência os arquivos nacionais europeus surgidos no século XIX, observa- se que o arquivo brasileiro encontrou sérias dificuldades para realizar os objetivos inerentes a esse tipo de instituição: "instrumentalizar" a ação administrativa do Estado nacional emergente e subsidiar a pesquisa histórica.”
  • 15
    Para estabelecer a proximidade definia-se também a distância, e neste caso, a distância assinalada referia-se às repúblicas americanas. Assim se refere Guimarães (1988GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história-nacional”. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988., p. 7) sobre o IHGB: “Na medida em que o Estado, Monarquia e Nação configuram uma totalidade para a discussão do problema nacional brasileiro, externamente define-se o “outro” desta Nação a partir do critério político das diferenças quanto às formas de organização do Estado. Assim, os grandes inimigos externos do Brasil serão as repúblicas latino-americanas, corporificando a forma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representação da barbárie”.
  • 16
    Para Kodama (2008KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. 1. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Fiocruz/EDUSP, 2009., p. 65-69) “um dos pressupostos presentes na arqueologia do Instituto era o de que haveria elos perdidos, a serem encontrados, que vinculassem a história da povoação do continente à história dos povos mencionados pela Bíblia”.
  • 17
    A discussão de Bann (1994BANN, Stephen. As invenções da história. São Paulo: Editora Unesp, 1994.) está relacionada à afirmativa de Hayden White sobre o estatuto do texto histórico como fundamentalmente constituidor da distintividade histórica (White, p. 251994). Para Bann embora a forma narrativa seja um elemento importante na configuração da prática historiográfica, sua dimensão como experiência e como atitude perante o passado vivido distingue uma maneira específica de o historiador exercer o seu ofício e produzir conhecimento histórico que não se resume ao resultado narrativo.
  • 18
    Convindo que no archivo publico sejão arrecadados todos os documentos, que possão interessar á nossa historia, dirigi-me aos diversos ministérios, solicitando as providencias necessárias afim de que sejão elles collecionados e entregues aquela repartição. (Relatório do Arquivo do Império, do diretor Antonio Pereira Pinto, 1861BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1861., p. 19).
  • 19
    Exemplo dessa iniciativa foi anotada em relatório do ministro Coutto Ferraz ao falar do IHGB, em 1856 “Entre aquelles trabalhos merece especial menção o projeto de instruções que o Instituto offereceu ao governo e que este approvou, para a comissão scientífica de naturalistas nacionaes, que tem de explorar algumas das províncias menos conhecidas do Império, da qual tratarei no artigo - Musêo Nacional - e cuja criação foi solicitada pelo mesmo Instituto” . A instrução consta do Anexo do Relatório Ministerial daquele ano. Sobre a Comissão ver Lopes (1995LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX, 1997.); Kury (2009KURY, Lorelai. Explorar o Brasil: o Império, as Ciências e a Nação. In: Lorelai Kury (Org.). Comissão Científica do Império. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2009.).
  • 20
    Consta no Relatório do Ministério do Império de 1859 (p.73): “(...) ultimamente recebi uma porção de documentos históricos, em parte de subido interesse, remettidos pelo mesmo doutor, e resolvi mandá-los archivar no Instituto. Igual destino deve ter outros que se estão preparando, e que se espera receber brevemente. Ali poderão ser aproveitados, servindo de complemento e auxílio aos que já possue o Instituto.” (Relatório do Ministério do Império de 1856BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1856., p. 73).
  • 21
    Também em 1859 tem destaque no Relatório Ministerial a preocupação com as temáticas que norteavam a construção da nação: “Muito convém preencher-se a falta que há nesta biblioteca de obras antigas relativas a história do Brasil e da América, e às línguas indígenas; bem como cópias de manuscriptos concernentes aos mesmos assuntos, que se achão em bibliotecas estrangeiras.” (Relatório Ministério do Império, 1859BRASIL. Relatório do Ministério do Império de 1859., p. 52).
  • 22
    Com interesses por arqueologia, em especial pré-história egípcia, geologia, paleografia, filologia, conhecia as línguas grega e latina e era considerado um helenista ainda na juventude. Iniciado nas letras clássicas e na crítica, vivia na efervescência de Paris, circulando pelas sociedades científicas e bibliotecas. Depois de problemas pessoais, financeiros e profissionais viajou para o Brasil em 1844. Não encontrando melhor sorte, decidiu pela vida no claustro, tendo escolhido a Ordem Beneditina “por índole, por educação literária”. Em 1847 entrou para o Mosteiro de São Bento, mas, sem demonstrar vocação para a vida monástica, foi incumbido de “ordenar e classificar a Biblioteca do Mosteiro” quando começou a se dedicar à biblioteconomia. Em 1850 assumiu a segunda cadeira de Geografia e História do Colégio Pedro II, deixando-a em 1855. Em 1853 foi nomeado Bibliotecário da atual Biblioteca Nacional (Galvão, 1885GALVÃO, Ramiz. Relatório ao Ministério do Império de 1885.).
  • 23
    Ao mesmo tempo em que enaltecia a erudição e competência de Frei Camillo, Ramiz Galvão reforçava a precariedade da Biblioteca durante toda a gestão do religioso. Para Galvão, a principal conquista do beneditino foi a mudança da Biblioteca para o casarão no Largo da Lapa, em 1858, onde permaneceu até a construção da atual sede e sua transferência definitiva em 1910.
  • 24
    É necessário pensar o antiquariato a partir de duas perspectivas que se apresentaram no Brasil de forma fragmentada. O antiquariato relacionado à erudição, ao estudo exaustivo da especificidade documental de cada elemento salvaguardado teve pouca penetração na Biblioteca e mesmo no IHGB. Mas a perspectiva do culto ao antigo, ao belo, ao único esteve consolidada durante longo tempo nas atividades dessas duas instituições de acervo. Mesmo a erudição produzida nos mosteiros devido a questões de disputas religiosas não teve alcance na prática biblioteconômica até o início dos anos 1870. Refiro-me aqui especialmente à diplomática e paleografia, desenvolvidas no final do século XVII. que visavam garantir, a partir da crítica documental, a integridade e autenticidade dos documentos.
  • 25
    Frei Camillo é considerado o primeiro propositor do ensino de História da América no Brasil. Para o frade “o ensino da história nacional não poderia ser completo sem que seja paralelo ao das outras nações americanas. Numerosos problemas de história do Brasil não poderão ser tratados e resolvidos de maneira mais ou menos definitiva sem o recurso aos dados fornecidos pela história dos outros países do Novo Mundo”. (Frei Camillo de Monserrate apud Viana, 1953VIANA, Hélio. O Ensino de História da América. In: REIS, Artur César D. at all. O Ensino de História do Brasil. México. D.F, 1953., p. 81)
  • 26
    A arqueologia esteve muito vinculada à ideia de descoberta de civilizações “avançadas” no território do atual Brasil, uma vez que os indígenas durante o período conhecido como “romantismo” eram tidos como o principal núcleo de desenvolvimento do brasileiro, acrescido a isso o valor simbólico da “antiguidade”, uma vez que seguindo a dica de Von Martius e outros viajantes, haveria vestígios de uma civilização antiga que teria vivido no país. Desta forma, uma das áreas de especial interesse foi a epigrafia - estudo de inscrições dos povos antigos. Essas inscrições foram feitas geralmente em pedras ou penedos, chamadas de inscrições rupestres e provocaram grandes debates entre os eruditos sobre seus significados (Kodama, 2009KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. 1. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Fiocruz/EDUSP, 2009.). Segundo Rodrigues (1978RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil (Introdução metodológica). São Paulo: Editora Nacional, 1978., p. 249-250), Frei Camilo teria tentado sem êxito reunir a epigrafia Brasileira, em 1855 “Para isso oficiou ao Ministro do Império Luís do Couto Ferraz, depois Visconde do Bom Retiro, que, apoiando a ideia do sábio bibliotecário, expediu ordens aos presidentes das províncias, para que obtivessem coleções epigráficas para a Biblioteca Nacional, e ao Diretor das Obras Públicas da Corte para que tivesse o maior cuidado na preservação dos monumentos, a fim de se não destruírem as inscrições que, porventura, neles estivessem gravadas”. Rodrigues aponta essa iniciativa do Frei como a primeira no país voltada à preservação dos monumentos nacionais (idem, p. 250).
  • 27
    A Comissão foi composta por João Saldanha da Gama, Antonio Mendes Limoeiro, Alfreddo do Valle Cabral e Antonio José Fernandes d´Oliveira, sendo mais tarde incorporados Antonio da Costa e Sá e o bacharel Domingos Jacy Monteiro Júnior. (Relatório de Ramiz Galvão ao Ministério do Império, 1874GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1874., p. Anexo-D1-7).
  • 28
    Dizia ele sobre os catálogos existentes: “Nos três primeiros anos de minha administração tive innumeras opportunidades de apreciar os muitos erros e as lacunas lastimáveis de todos estes trabalhos, e cheguei a convencer-me de que fora improfícuo e até prejudicial querer aproveitar qualquer cousa delles”. Relatório de Ramiz Galvão ao Ministro do Império, 1874GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1874., p. A-D 1-6)
  • 29
    “(...) todo esse espaço de tempo [um ano] gastou-o o zeloso jovem bibliografho em coordenar os papéis esparços, e em estudar as preciosidades que possuímos; pouca cousa fez em matéria de catálogo, por isso mesmo que não convinha trabalhar neste sentido antes de haver posto em ordem nos manuscriptos, e antes de conhecer mais ou menos perfeitamente o conteúdo delles” (Ramiz Galvão, Relatório 1875GALVÃO, Ramiz. Relatório da Biblioteca Imperial e Pública ao Ministério do Império de 1875., Anexo D1, p. 9).

Declaração de financiamento

  • Pesquisa beneficiada com bolsa de doutorado da Capes. A tese Um historiador em formação: os primeiros anos da vida intelectual de Capistrano de Abreu (1875-1882), foi defendida em 2011, no Programa de Pós-Graduação em História da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, sob orientação do Prof. Robert Wegner.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2019
  • Aceito
    16 Mar 2020
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