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AUTORIA, AUTORIDADE E ESCRITA DA HISTÓRIA NA GRÉCIA ANTIGA

Authorship, authority and history writing in ancient Greece

Resumo

Neste artigo, eu discuto a relação entre autoria, autoridade e escrita da história na Grécia antiga. Meu objetivo é oferecer algumas reflexões sobre o debate atual em torno do desenvolvimento da historiografia antiga e indicar o que considero ser os aspectos mais característicos dos textos históricos gregos. Em seguida, realizo dois estudos de caso a partir de trechos de Tucídides e Políbio a fim de testar meus argumentos. Com isso, eu espero oferecer um modelo explicativo básico que possa servir como ponto de partida para os interessados nesse assunto.

Palavras-chave:
Grécia antiga; historiografia; autoria; autoridade

Abstract

In this article, I discuss the relationship between authorship, authority and history writing in ancient Greece. My objective is twofold: to offer some thoughts on the current debate about the development of ancient historiography and to indicate what I consider to be the most prominent features of Greek historical texts. Subsequently, I present two case studies based on passages of Thucydides and Polybius in order to test my claims. With this, I hope to offer an introductory model that may work as a starting point for those interested in this subject.

Keywords:
Ancient Greece; historiography; authorship; authority

Neste artigo, apresento uma discussão sobre o surgimento da história na Grécia antiga na qual sistematizo algumas reflexões que, para mim, acabaram por atribuir coerência e uma explicação plausível a esse processo tão complexo e significativo para nós historiadores. Meu objetivo é apontar os principais problemas do modelo clássico sobre o desenvolvimento da historiografia antiga, o qual se baseia na tese de que houve uma evolução linear e progressiva do pensamento histórico na qual um autor continua o desenvolvimento do campo a partir das faltas de seu predecessor, e sugerir que a ideia de intellectual milieu constitui uma ferramenta heurística mais interessante no sentido de oferecer possibilidades de interpretação mais nuançadas sobre essa questão. A proposta de pensar um intellectual milieu dos historiadores antigos parte do princípio de que, independentemente da posição cronológica de um autor em relação ao outro, esses indivíduos estão debatendo ideias antes do que construindo argumentos através de uma relação unilateral de dependência tendo como base um predecessor em particular. Tal entendimento tem impactado de forma significativa na maneira como os estudos clássicos têm interpretado textos que antes eram vistos apenas como fontes de informação e que agora têm sido abordados de forma mais problematizada, como os fragmentos dos mitógrafos gregos. (cf. CONDILO, 2017CONDILO, Camila. Agonistic intertextuality: Herodotus’ engagement with Hecataeus on genealogies. Journal of Ancient History, v. 5, n. 2, p. 228-279, 2017. DOI: https://doi.org/10.1515/jah-2017-0001. Disponível em: Disponível em: https://www.degruyter.com/view/journals/jah/5/2/article-p228.xml . Acesso em: 6 nov. 2020.
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) Também exploro a relação entre autoridade autoral e tradição historiográfica, elementos estes sem os quais não podemos entender o funcionamento do universo intelectual dos historiadores gregos.

Uma vez que estou me propondo a tratar do surgimento da história no mundo antigo, eu não poderia deixar de esclarecer, mesmo que em linhas gerais, o que entendo por história. A rigor, o que nós chamamos de história abarca três dimensões interdependentes. A primeira diz respeito à experiência vivida concreta ou aquilo que os historiadores chamam de “fatos” e “eventos”, os quais são a matéria-prima de seu trabalho e objeto de análise. A segunda dimensão consiste no relato dessa experiência vivida, sua representação textual, a qual possui certas formas, temas e estratégias narrativas que o caracterizam como um tipo específico de discurso quando comparado com outros. Essa dimensão da história, que é a história entendida como gênero literário, surgiu na Grécia do Período Clássico (séculos V a IV a.C.), mais precisamente em meados do século V a.C. Por fim, nós temos a história como campo científico, com um corpo de procedimentos e teorias que orientam o processamento crítico da memória social através da análise de documentos. Essa dimensão da história foi uma criação do século XIX. (GREENWOOD, 2006GREENWOOD, Emily. Whose contemporary? In: Thucydides and the shaping of history. London/New York: Bloomsbury, 2006, p. 1-18., p. 11-12; FRANCISCO, 2017FRANCISCO, Gilberto da Silva. O lugar da História Antiga no Brasil. Mare Nostrum, v. 8, n. 8, p. 30-61, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/marenostrum/article/view/138860 . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://www.revistas.usp.br/marenostrum/...
, p. 32-33) Neste artigo, discutirei a questão do surgimento da história como gênero literário. Isso porque, tal como exposto, não existia um campo científico sistematizado na Grécia antiga, tampouco uma divisão clara entre os vários campos do saber. Na verdade, alguns princípios metodológicos históricos eram partilhados por várias áreas do conhecimento. Por exemplo, o uso da autópsia (“ver por si próprio”) é tanto um procedimento característico dos escritos históricos como dos escritos médicos gregos. Contudo, havia um horizonte de expectativa, isto é, certas características do texto que faziam com que o leitor conseguisse perceber a diferença entre o que era uma narrativa histórica e uma descrição médica. Assim, tratarei aqui daquilo que caracteriza os textos históricos na Grécia antiga.

Uma questão bastante desafiadora para o entendimento desse processo diz respeito às fontes que temos disponíveis. Conforme aponta Marincola (2007MARINCOLA, John. Introduction. In: MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek and Roman historiography. Volume I. Oxford: Blackwell, 2007, p. 1-9., p. 1-2), a produção histórica no mundo antigo - aqui entendido como Grécia e Roma - compreende um período de cerca de 800 anos que vai desde Heródoto no século V a.C. até Amiano Marcelino no século IV d.C. Dentro desse recorte temporal, milhares de autores buscaram criar alguma forma de registro do passado. De toda essa produção, apenas uma porção mínima dessas obras sobreviveu até hoje e de forma um tanto desigual, pois alguns períodos são melhores representados do que outros. Para os séculos V e IV a.C., nós temos, em termos de obras relativamente completas, Heródoto, Tucídides e Xenofonte. Para o Período Helenístico (fins do século IV ao século I a.C.), nós temos notícia dos nomes de aproximadamente 600 historiadores dos quais apenas três tiveram a obra preservada e apenas em parte: Políbio, Diodoro Sículo e Dionísio de Halicarnasso. Isso do lado grego. Do lado romano, a situação é igualmente decepcionante, pois, de todos os historiadores que escreveram nesse período, apenas uma parte pequena do trabalho de grandes autores sobreviveu: as Histórias de Salústio estão perdidas, bem como a maior parte da História de Roma de Tito Lívio e das Histórias e Anais de Tácito. Assim, Marincola continua, todo nosso conhecimento dos historiadores antigos está baseado em uma porcentagem muito pequena do que na verdade foi produzido por eles. O fato de haver tão poucas obras históricas gregas sobreviventes torna difícil saber se Heródoto e Tucídides se tornaram paradigma por serem referências bem-sucedidas de práticas comuns ou exceções à regra que, justamente por sua excepcionalidade, acabaram por se tornar norma para outros textos históricos que seguiram1 1 Sobre a canonicidade de Heródoto e Tucídides na historiografia do Período Helenístico, veja NICOLAI, 2006; GRAY, 2017; PARMEGGIANI, 2018; SCARDINO, 2018. . Seja como for, o trabalho do historiador se baseia em evidências concretas e não em especulações do que poderia ter sido. Sendo assim, os argumentos a seguir se baseiam em padrões percebidos na documentação existente disponível.

A exposição está estruturada em três partes. Primeiramente, tento esclarecer o porquê considero a ideia de um intellectual milieu mais pertinente do que o modelo explicativo proposto por Jacoby para entender o surgimento e desenvolvimento do gênero histórico na Grécia antiga. Em seguida, defino autoria e autoridade autoral, que, a meu ver, foram elementos chaves nesse processo, bem como aponto o que considero ser os aspectos mais característicos dos textos históricos gregos. Na parte três, finalizo com dois estudos de caso no intuito de demonstrar os pontos levantados nas seções anteriores.

Jacoby x Fowler, Marincola & Thomas sobre o desenvolvimento da historiografia antiga

O modelo explicativo mais influente sobre o desenvolvimento da historiografia antiga na modernidade foi o proposto por Felix Jacoby. Antes de começar sua importante coleção de fragmentos dos historiadores gregos, ele estabeleceu seu entendimento da questão em um artigo intitulado “Sobre o desenvolvimento da historiografia grega e o plano para uma nova coleção de fragmentos dos historiadores gregos” (Über die Entwicklung der griechischen Historiographie und den Plan einer neuen Sammlung der griechischen Historikerfragmente), o qual foi publicado na revista Klio em 1909.2 2 Para a discussão sobre Jacoby, utilizo Marincola (2007, p. 4-8) e a tradução inglesa do artigo de 1909 por Mortimer Chambers & Stefan Schorn (2015). Essa tradução tem como base a versão editada por Herbert Bloch, que inclui referências de outros escritos de Jacoby. Jacoby inicia o texto apontando as limitações de três princípios organizacionais, quais sejam, o puramente alfabético, o puramente cronológico e o local-geográfico, argumentando que, embora fossem importantes como forma complementar de organização, o arranjo dos escritos históricos de acordo com gêneros literários seria o princípio estruturante mais apropriado para sua coleção por ser mais científico e por não tornar a consulta do material muito difícil. O autor, então, divide a escrita da história grega em cinco subgêneros básicos, organizados na ordem em que eles supostamente teriam se desenvolvido.

O primeiro gênero historiográfico teria sido a genealogia/mitografia, a qual teria buscado registrar e atribuir certa coerência às várias tradições míticas do passado distante através do que parece ter sido um processo de racionalização, mesmo que aplicado de forma incipiente e inconsistente para padrões contemporâneos. O segundo gênero teria sido a etnografia, caracterizada por um relato que misturava aspectos históricos e descrições de lugares e pessoas. Tais relatos geralmente eram baseados em testemunhos orais e visuais. O terceiro gênero teria sido a cronografia. Enquanto tal, a cronografia partilha algumas semelhanças com a história local (o quinto gênero), pois baseia suas datações de acordo com os mandatos anuais de magistrados. Contudo, apesar da base de datação do sistema ser local, a cronografia se pretendia pan-helênica.

O subgênero mais importante teria sido o quarto, que Jacoby denomina história contemporânea. Esse gênero é caracterizado por autores que narraram a história da Grécia do seu próprio tempo ou até seu próprio tempo sem se restringir ao âmbito local. Suas principais características são: 1. a narrativa trata principalmente da própria época do autor, independentemente de qual período ela comece; 2. o ponto de vista da narrativa é helênico; 3. a abordagem é pan-helênica, ou seja, trata de eventos das cidades gregas ao invés de uma cidade apenas. (MARINCOLA, 2007MARINCOLA, John. Introduction. In: MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek and Roman historiography. Volume I. Oxford: Blackwell, 2007, p. 1-9., p. 6) No período pós-clássico, a história contemporânea teria dado origem a vários outros subgêneros, como monografias de guerra, história contínua e história centrada em indivíduos (biografias). A história local teria sido o quinto e último gênero histórico a se desenvolver e assim o foi em grande medida por ter sido uma resposta ao gênero anterior. As histórias locais tinham uma estrutura analística concentrada em uma pólis específica, incluindo não só eventos políticos e militares mas também aspectos religiosos e culturais.

No modelo explicativo de Jacoby, esses cinco gêneros históricos se sucedem de forma linear e teleológica, com Hecateu representando um primeiro momento das histórias de tipo genealógico/mitográfico e etnográfico, as quais foram seguidas pelas histórias de tipo cronográfico, caracterizadas na figura de Helânico, que foram sucedidas pelas histórias contemporâneas, impulsionadas por Heródoto e cristalizadas na figura de Tucídides, sendo estas, por fim, seguidas pelas histórias locais, sem grandes figuras representativas. A historiografia romana, embora não tenha sido submetida ao mesmo tipo de modelo desenvolvimentista, foi bastante influenciada pelo esquema de Jacoby acerca dos autores gregos. No entanto, Marincola (2007MARINCOLA, John. Introduction. In: MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek and Roman historiography. Volume I. Oxford: Blackwell, 2007, p. 1-9., p. 7) alerta que esse desenvolvimento para o entendimento da historiografia romana é muito problemático porque as obras dos primeiros historiadores de Roma foram perdidas. Além disso, o autor indica uma série de particularidades: 1. Fábio Pictor (século III a.C.), o mais antigo historiador romano de que temos notícia, escreveu sua história de Roma em grego tal qual seus sucessores imediatos. Apenas um século depois, com Catão o Velho, Roma teria uma história em latim. 2. Em termos comparativos, a historiografia romana se desenvolveu tardiamente. Enquanto Heródoto escreveu por volta de uma geração depois dos eventos que registrou, Pictor escreveu em meados do século III a.C., quando a história romana já tinha séculos de existência. 3. Apesar de existirem alguns registros do exercício de magistraturas e sacerdócios, não é possível saber se eles tiveram relação com o desenvolvimento e características que a historiografia romana viria a adquirir.

Muitas críticas foram feitas à teoria de Jacoby nas últimas décadas. Em linhas gerais, elas podem ser sintetizadas da seguinte maneira (MARINCOLA, 2007MARINCOLA, John. Introduction. In: MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek and Roman historiography. Volume I. Oxford: Blackwell, 2007, p. 1-9., p. 6-7): 1. A visão evolucionista de Jacoby sugere que os primeiros historiadores são primitivos quando comparados com Heródoto e, principalmente, com Tucídides. Além disso, ao atribuir o auge da historiografia grega a Tucídides, Jacoby estabelece o ápice da produção histórica grega cedo demais. Uma implicação importante disso é que toda a historiografia posterior é em grande medida vista como declínio em relação à grandeza de Tucídides. De fato, Jacoby não parece ter muita simpatia pela produção histórica tanto helenística quanto posterior. 2. Jacoby coloca demasiada ênfase em um único indivíduo para entender o desenvolvimento da historiografia antiga, haja vista que é apenas através do desenvolvimento intelectual de Heródoto que a escrita da história grega passa realmente a existir. Em outras palavras, a “evolução” intelectual que levou Heródoto de geógrafo e etnógrafo a historiador teria dado origem tanto ao desenvolvimento de todo um gênero literário quanto à consciência histórica de todo um povo. Tal individualização limita a possibilidade de percebermos atores outros que não os historiadores participando também do processo de entendimento e preservação das histórias do passado. 3. Por fim, o modelo explicativo de Jacoby muitas vezes parece impor categorias modernas à escrita da história grega antiga sem problematizá-las. Uma consequência disso é que ficamos menos atentos às particularidades e inovações da tradição historiográfica antiga. Vejamos algumas passagens do artigo de Jacoby que sustentam essas críticas:

Desenvolvimento do gênero histórico como linear e evolutivo

... I probably need not set forth in detail that Thucydides for his part, despite all differences, nevertheless sees himself once again as the successor of Herodotus, whereas he dismisses the local chronicles. The inner connection of the three works, Hekataios’ Γενεαλογίαι [Genealogies] - Herodotus’ Μηδικά [Mēdika] - Thucydides’ Πελοποννησιακὸς πόλεμος [Peloponnesian War] - is certain. These are the three stages that the development of Greek historiography ran through from its beginning to its fulfillment. (JACOBY, 1909JACOBY, Felix. On the development of Greek historiography and the plan for a new collection of the fragments of the Greek historians. Translation by M. Chambers & S. Schorn. 1st published in 1909. Histos, Supplement 3, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/HistosSupplements.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
, p. 34-35).

I here take a stand, as in the previous discussion, in sharp opposition to the recent discussion by Meyer (1907) I.1 §§ 132-3 [= Meyer (1907) 226-8 = (1910) 228-3] about the rise of historical literature, if I have rightly understood his opinion. He derives it generally from two separate tendencies in the human spirit; he sees, as the two main representatives of these tendencies among the Greeks, Hesiod-Hekataios, and on the other hand Charon-Herodotus. I cannot agree with that, because from Hesiod the line of development runs unbroken over Hekataios and Herodotus to Thucydides. The line is, when seen from our standpoint, a rising one... (JACOBY, 1909JACOBY, Felix. On the development of Greek historiography and the plan for a new collection of the fragments of the Greek historians. Translation by M. Chambers & S. Schorn. 1st published in 1909. Histos, Supplement 3, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/HistosSupplements.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
, p. 36, nota 67)

Heródoto como momento central do desenvolvimento do gênero histórico

... Herodotus - for he and not Thucydides here plays the decisive role - apparently ties in with the genealogical literature and feels himself as its continuator... A detailed account of this part of Greek history is expressly declined, surely not out of clearly formed critical suspicion about the truth and the historical accuracy of the tradition about this period, but out of a purely external and practical point of view: these stages - Io, Europa, Helena - have already received an extended critical (that is, rationalising and historicising) treatment from Herodotus’ predecessors. Herodotus briefly reports their narrative, which departs so notably from the picture in Greek epics and which is the result of their criticism and ἱστορίη [research] among the eastern λόγιοι [learned men]; he does so without the claim or even the suggestion that he is contributing something new. On the contrary, it is very clear that the content of these chapters, which deal with the period of the epics, has already passed through the intermediate phase of the quasi-historical narrative in the Genealogies. (JACOBY, 1090JACOBY, Felix. On the development of Greek historiography and the plan for a new collection of the fragments of the Greek historians. Translation by M. Chambers & S. Schorn. 1st published in 1909. Histos, Supplement 3, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/HistosSupplements.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
, p. 33-34)

... about the ‘tendency’ of Herodotus’ work - for this is the decisive element that turned the man who described lands in a periegetic way and gave epideictic lectures into the prose writer and historian, the element that turned the successor of Hekataios into the predecessor of Thucydides - I need not expand... Herodotus’ admiration for Athens and its king-like statesman [Pericles] created the first Greek work of history that deserves this name. Athens also gave the world historiography, not first through Thucydides, but already before him through Herodotus [cf. Jacoby (1913) 352-60]. I have the impression that Wilamowitz (1905) 56 [cf. Wilamowitz (1912) 96 f.] actually underestimates the place of Herodotus in the development of historiography, or at least presents him to the reader as too much of a pleasant story-teller; although I agree with all the details in his discussion of Herodotus as a historian (it is basically the appraisal given by Thucydides), the final judgement in my opinion must be expressed differently. (JACOBY, 1909JACOBY, Felix. On the development of Greek historiography and the plan for a new collection of the fragments of the Greek historians. Translation by M. Chambers & S. Schorn. 1st published in 1909. Histos, Supplement 3, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/HistosSupplements.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
, p. 37, nota 70).

Tucídides como o auge do desenvolvimento do gênero histórico

We come now to the most important volume of the collection... It will include all authors who have narrated general Greek history of their own time, or down to their own time, without limitation to any locality. ... It would probably be best to refer to them as Πράξεις Ἑλληνικαί [Accomplishments of the Greeks] and add a modern accompanying title, ‘contemporary Greek history’. With this secondary title we make it clear that the whole genre is to be considered a successor to the work of Thucydides - leaving Herodotus aside for a moment... the reason is... not the one often given, that the oldest narrators of contemporary history... namely Kratippos and the historian of Oxyrhynchos, Theopompos, and Xenophon, continue Thucydides in external form and also, at least in part, stand under the influence of his historical style, and because others too begin their narratives where these first successors end. The basic cause lies deeper: only with Thucydides did Greek historiography reach τὴν αὑτῆς φύσιν... in that it creates the genre that now permanently remains the noblest and most significant, which actually alone truly ranks as ‘historiography’, namely contemporary history. ... (JACOBY, 1909JACOBY, Felix. On the development of Greek historiography and the plan for a new collection of the fragments of the Greek historians. Translation by M. Chambers & S. Schorn. 1st published in 1909. Histos, Supplement 3, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/HistosSupplements.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
, p. 27-31).

Embora a abordagem de Jacoby não seja de forma alguma sem mérito - muito pelo contrário! -, outros autores têm sugerido uma interpretação alternativa para o surgimento e desenvolvimento da historiografia antiga com vistas a tentar superar tais limitações. Robert Fowler (1996FOWLER, Robert. Herodotos and his contemporaries. Journal of Hellenic Studies, v. 116, p. 62-87, 1996., 2006FOWLER, Robert. Herodotus and his prose predecessors. In: DEWALD, Carolyn; MARINCOLA, John (eds) The Cambridge companion to Herodotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2006, p. 29-45.), por exemplo, relativiza a genialidade de Heródoto ao apontar a influência de outros autores (antigos e contemporâneos) em sua obra. Na mesma linha, John Marincola (1997MARINCOLA, John. Authority and tradition in ancient historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.) sugere que os historiadores greco-romanos trabalhavam a partir da dinâmica da relação entre autoridade textual (a busca por credibilidade autoral por parte dos historiadores antigos) e tradição (temas, práticas, formas narrativas etc. característicos do fazer histórico na Antiguidade) - mais sobre este ponto adiante. Rosalind Thomas (2000THOMAS, Rosalind. Herodotus in context: Ethnography, science and the art of persuasion. Cambridge: Cambridge University Press , 2000., 2006aTHOMAS, Rosalind. The intellectual milieu of Herodotus. In: DEWALD, Carolyn; MARINCOLA, John (eds) The Cambridge companion to Herodotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2006a, p. 60-75., 2006bTHOMAS, Rosalind. Thucydides’ intellectual milieu and the plague. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill , 2006b, p. 87-108., 2017THOMAS, Rosalind. Thucydides and his intellectual milieu. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 567-586.), por sua vez, sugere a ideia de intellectual milieu. No lugar de um desenvolvimento linear focado em autores, Thomas entende que os escritores antigos participavam de um debate intelectual coletivo no qual visavam oferecer uma contribuição pessoal para a discussão ao mesmo tempo em que tentavam persuadir seus interlocutores diversos sobre a autoridade de seus argumentos em relação aos argumentos de outros autores sobre a mesma questão. Há que se observar que a teoria de Jacoby ainda é utilizada.3 3 Cf. PORCIANI, 2017, especialmente p. 555-556 e 560, para uma apropriação atual do modelo jacobiano. Todavia, meu propósito aqui é discorrer sobre como teria sido o desenvolvimento da historiografia antiga dentro da perspectiva desse modelo alternativo e quais suas características principais.

Autoria e autoridade

Os autores antigos de qualquer gênero literário se engajavam ativamente, seja implícita ou explicitamente, nas discussões com predecessores e contemporâneos sobre os tópicos mais importantes da época em que viviam e trabalhavam, todavia, tais relações intelectuais não são facilmente definíveis. Elas envolviam em maior ou menor medida empréstimos, complementação, refutação, desenvolvimento e transformação de argumentos e informações em assuntos diversificados. A fim de se fazerem ouvir em meio a tantos outros que estavam abordando as mesmas questões em um ambiente intelectual tão intrincado e competitivo, esses indivíduos tinham de afirmar sua autoridade e o faziam de maneira variada e complexa através do uso de diversas técnicas narrativas e retóricas. Mas a que exatamente os pesquisadores modernos estão se referindo quando abordam a questão da autoridade textual no mundo antigo? O que faz um texto mais autoritativo do que outros? Seria o artefato físico no qual o texto está escrito, o contexto social no qual a audiência se depara com a mensagem do texto, a recepção positiva do texto pelo público, uma declaração de veracidade, a estrutura e a apresentação do texto, a reputação do autor, o lugar institucional de onde fala o autor? A que ou a quem pertence de fato a autoridade? Ao texto, ao autor, ao usuário, à instituição responsável por ele ou a algum outro agente? Ou, antes, a autoridade pertence a mais de um agente e é constantemente renegociada em meio a tendências antagônicas no tempo e no espaço? (GALEWICZ, 2006GALEWICZ, Cezary (ed.) Texts of power, the power of the text: Readings in textual authority across history and cultures. Krákow: Wydawnictwo Homini, 2006.; cf. NAGY, 1990NAGY, Gregory. Pindar’s Homer: The lyric possession of an epic past. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990., p. 52-81; LLOYD, 1996LLOYD, Geoffrey Ernest Richard. Adversaries and authorities: Investigations into ancient Greek and Chinese science. Cambridge: Cambridge University Press , 1996.).

O surgimento da escrita da história no mundo grego antigo está intimamente relacionado a uma busca por autoridade intelectual, a qual se expressa via textual. Esse tipo de autoridade diz respeito a fenômenos variados, muitas vezes relacionados. Alguns deles são intrínsecos à estrutura narrativa do texto, outros mais próximos do meio através do qual os leitores recebem o texto. Especialmente no caso de textos religiosos como a Bíblia ou o Alcorão, uma maneira de abordar o problema da autoridade seria considerar onde situá-la quando convertemos o texto original em outras mídias, tais como a transmissão oral, tradução em outras línguas ou mesmo a internet. Autoridade textual também poderia ser discutida em termos do cenário que media o contato do leitor com o texto. Textos escritos com o propósito de performance pública podem gozar de um status privilegiado em relação a textos impressos voltados para distribuição e leitura privada dependendo dos costumes do período histórico em consideração. Outra forma ainda de abordar autoridade textual seria focar no impacto emocional que certos textos têm sobre a audiência. A lista poderia continuar. Neste estudo, estou interessada em manifestações de autoridade resultantes de um momento específico da história grega, que marcará também toda a tradição histórica posterior até o presente, no qual a natureza e o escopo do conhecimento acerca do mundo natural e da natureza do homem - que até então era monopólio do que Detienne (1967DETIENNE, Marcel. The masters of truth in archaic Greece. 1st edition 1967. New York: Zone Books 1996.) chamou de “mestres da verdade” (o poeta com sua poesia, o adivinho com suas interpretações oraculares e o rei com seus pronunciamentos e administração da justiça) - começaram a ser renegociados a partir de fins do século VI e começo do século V a.C., levando a um processo de legitimação de fontes e formas alternativas de conhecimento. Conforme vozes autoritativas se multiplicam, surge uma cultura mais argumentativa que progressivamente promove uma virada na estrutura normativa e cultural do conhecimento e que, consequentemente, atribuirá novos significados ao exercício e determinação da autoridade sobre o conhecimento, ou seja, daquilo que são informações, argumentos, hipóteses e explicações socialmente válidas e confiáveis. Há que se ressaltar aqui a palavra renegociação, pois, por um lado, ela rompe com uma noção progressiva e teleológica do conhecimento, sugerindo que as condições de expressão da atividade intelectual podem variar temporalmente e geograficamente. Por outro lado, ela é indicativa da agência dos atores sociais e de como, coletivamente, eles definem um sentido para seus atos.4 4 Veja PALMEIRA, 2018 acerca de controvérsias intelectuais, particularmente p. 362.

Nesse contexto, dois aspectos principais caracterizam esse processo de renegociação epistemológica: a busca de formas alternativas de validação do conhecimento e a adoção de uma nova linguagem mais apropriada para seus propósitos. No Período Arcaico (séculos VIII a VI a.C.), a poesia era a fonte de conhecimento autorizada socialmente. Toda e qualquer discussão intelectual sobre os mais variados assuntos, desde as questões mais sérias relacionadas à guerra e à política até as mais corriqueiras como lazer, agricultura e religião, utilizavam a poesia como meio de expressão e divulgação - tomem os poemas de Homero, Hesíodo e Sólon como exemplo. O poeta tinha a confiança da audiência em todos esses assuntos porque suas palavras eram validadas pela inspiração divina das musas, que sabiam tudo o que foi, é e será. Falar de fora dessa esfera autorizada envolvia reconhecer a limitação das capacidades cognitivas humanas em contraposição a todo o ilimitado potencial intelectual do conhecimento inspirado pelo divino.

Nesse momento, vozes dissidentes tinham que tomar uma série de precauções a fim de validar sua fala dentro de um campo circunscrito ao alcance de sua própria observação e julgamento pessoal e a prosa acabaria por tomar o lugar da poesia, ou ao menos por rivalizar com ela, como uma forma moderna e provocativa de expressão intelectual. Sobre esse ponto, é importante observar que o estabelecimento das leis gregas a partir do século VII a.C. precede o uso normativo da prosa como uma forma confiável de expressão. Contudo, é apenas no século V a.C. que florescem novas formas de pensar e escrever sobre o mundo (medicina, filosofia, história...) e é apenas então que a prosa se torna o meio por excelência através do qual acontece a revolução cultural e política da cidade clássica (GOLDHILL, 2002GOLDHILL, Simon. The invention of prose. Oxford: Oxford University Press , 2002., p. 3-4; cf. LLOYD, 1996LLOYD, Geoffrey Ernest Richard. Adversaries and authorities: Investigations into ancient Greek and Chinese science. Cambridge: Cambridge University Press , 1996.; CAREY, 2007CAREY, Christopher. Epideictic oratory. In: WORTHINGTON, Ian (ed.) A companion to Greek rhetoric. Malden, MA/Oxford: Blackwell, 2007, p. 236-252., p. 238; GRETHLEIN, 2011GRETHLEIN, Jonas. The rise of Greek historiography and the invention of prose. In: FELDHERR, Andrew; HARDY, Grant (eds) The Oxford history of historical writing. Volume 1: Beginnings to AD 600, 2011, p. 148-170.).

Reivindicar autoridade nesse novo ambiente intelectual significava assumir responsabilidade por aquilo que se dizia. O falante expunha suas opiniões e suas razões por pensar daquela forma, pois ele estava ciente de que estava se dirigindo a uma audiência crítica que testaria suas opiniões em relação a outras opiniões, princípios e ideias. Nesse jogo, oferecer razões apenas não era suficiente, pois os poetas também tinham seus próprios motivos para dizer o que diziam. A mudança que nós observamos nesse período diz respeito a uma atividade metacognitiva. Conhecimento do mundo é o resultado de esforços intelectuais, dúvidas e julgamentos humanos. Assim, uma opinião válida é a opinião que expõe os fundamentos sobre os quais foi construída. (FOWLER, 2001FOWLER, Robert. Early historiē and literacy. In: LURAGHI, Nino (ed.) The historian’s craft in the age of Herodotus. Oxford: Oxford University Press , 2001, p. 95-115., p. 102) Essa mudança levou a uma intensificação e formalização do uso de certos procedimentos discursivos a fim de encorajar um debate honesto - ao tornar possível identificar quem está falando e com qual autoridade - e o julgamento crítico - um instrumento valioso contra argumentos e acusações falaciosas nos vários tipos de discurso.

Vale destacar seis desses procedimentos discursivos (DEWALD, 1987DEWALD, Carolyn. Narrative surface and authorial voice in Herodotus’ Histories. Arethusa, v. 20, p. 147-170, 1987.; MARINCOLA, 1997MARINCOLA, John. Authority and tradition in ancient historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., especialmente páginas 3-12; GOLDHILL, 2002GOLDHILL, Simon. The invention of prose. Oxford: Oxford University Press , 2002. p. 114-116). Esses procedimentos estão intimamente relacionados, mas eu os separei aqui para fins de maior clareza na explicação. Pode haver variação na forma como eles aparecem em cada contexto: todos os procedimentos juntos ou apenas dois ou três deles, por exemplo. Além disso, há que se ressaltar que os quatro últimos aspectos aparecem em textos de outros gêneros literários, mas que os dois primeiros são um apanágio de textos históricos. Nesse sentido, tendo a pensar as particularidades desse tipo de texto como um desdobramento específico de um movimento intelectual mais amplo (descrito acima). Vejamos quais são eles.

Primeiro, esses historiadores apresentam um esforço explícito no sentido de preservar do esquecimento feitos por eles considerados importantes. Segundo, esses feitos, geralmente, dizem respeito à esfera política e militar. Os próprios autores antigos, mesmo que de forma um tanto genérica, parecem se referir à história como sendo a abordagem de fatos ligados especialmente a esses dois temas. Por exemplo, ao mencionar tipos de composições literárias em duas ocasiões, Isócrates faz alusão aos autores que se dedicaram a escrever sobre feitos de guerra (Antid. 45) e aos que se debruçaram tanto sobre os fatos antigos como sobre as guerras realizadas pelos gregos (Panath. 1). Para Aristóteles, os relatos das investigações daqueles que escreviam sobre as ações humanas eram úteis para se aprender sobre política (Rh. 1360a; cf. NICOLAI, 2006NICOLAI, Roberto. Thucydides continued. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 693-719., p. 698). De fato, a maior parte dos historiadores antigos vão eleger a guerra e a política como temas históricos por excelência. Heródoto, por exemplo, se propôs a preservar a memória dos feitos humanos e a glória da guerra entre gregos e bárbaros para que eles não fossem esquecidos com o passar do tempo (Hdt. 1.1). Guerra e política são aspectos que já se fazem presentes nas obras dos poetas, mas aqui se coloca a questão do julgamento. Afinal, em uma sociedade competitiva como a grega, quem ou o que merece ser preservado do esquecimento e por quê?

O processo de memorialização de fatos, eventos, pessoas e ideias deve ser justificado. Esse processo implica uma seleção crítica e rigorosa do historiador, o que nos leva à terceira característica da historiografia antiga: uma preocupação a respeito daquilo que dá credibilidade aos historiadores para falar. Os historiadores justificavam sua autoridade de várias formas, tais como o uso de fontes confiáveis, correção de declarações prévias, autoapresentação como bom pesquisador e assim por diante. Cada autor, na sua própria maneira, tenta criar um espaço privilegiado que legitime seu direito de falar e ser ouvido. A questão das credenciais do historiador está estreitamente relacionada com o quarto aspecto dos textos históricos gregos: eles apresentam uma consciência de seu próprio funcionamento e um grande senso crítico em relação ao poder da linguagem. Muitas das observações metodológicas que os historiadores apresentam visam controlar possíveis manipulações da linguagem. As preocupações metodológicas dos escritores de prosa fortalecem a estrutura do argumento ao expor seus fundamentos, criando dificuldades para argumentos rivais que queiram contestá-lo. Um exemplo bastante ilustrativo desse ponto é a afirmação de Heródoto (2.99) de que seu relato é resultado de visão/observação (ὄψις), julgamento crítico (γνώμη) e pesquisa (ἱστορίη). Ao mesmo tempo, autoconsciência textual encoraja um posicionamento crítico na audiência, tanto em relação aos argumentos do autor em questão quanto aos argumentos de outros autores. Nesse ponto, os comentários de Heródoto sobre a plausibilidade dos eventos que está narrando e críticas acerca da confiabilidade de suas fontes são fornecidos para a audiência como um convite para que ela própria se torne crítica e participe de sua jornada investigativa, tal como quando ele se recusa a escolher entre versões alternativas (e.g. Hdt. 2.123, 7.152).

Quinto, os historiadores antigos apresentam uma notável preocupação com aitia (αἰτία, Ion. αἰτίη), isto é, com causalidade e responsabilidade. Com o distanciamento do divino como forma principal de explicação e motivação, o homem se torna o agente responsável por seus próprios atos, êxitos e fracassos, socialmente e intelectualmente. Da busca de Heródoto pela causa ou responsabilização da guerra entre gregos e persas (τά τε ἄλλα καὶ δι’ ἣν αἰτίην ἐπολέµησαν ἀλλήλοισι, Hdt. 1.1) à tentativa dos textos médicos de explicar uma doença a partir de sinais e sintomas, há um esforço intelectual não só para descrever as conexões que levaram de um estado de coisas a outro, mas também para entender o mundo, na medida em que entender um determinado fenômeno envolve compreender as regras pelas quais ele opera.

Por fim, os historiadores gregos constroem diferentes contratos textuais com suas audiências. Desde o começo eles estabelecem os parâmetros a partir dos quais esperam que suas obras sejam recebidas e julgadas:

Essas são as histórias contadas por persas e fenícios. Eu mesmo não tenho nenhuma intenção de afirmar que esses eventos ocorreram dessa ou daquela maneira. Mas eu sei quem foi o primeiro homem a cometer atos injustos contra os gregos. Eu o identificarei e então prosseguirei com minha história, falando igualmente das cidades grandes e pequenas dos homens. Pois muitos estados que foram grandes uma vez agora se tornaram pequenos e aqueles que eram grandes na minha época tinham sido pequenos antes. Sabendo, portanto, que a prosperidade humana nunca continua no mesmo lugar, eu mencionarei ambos igualmente. (Hdt. 1.5).

Em outras palavras, cada um vai expressar os aspectos elencados acima de forma diferente, de acordo com seu próprio pensamento, estilo e propósito.5 5 Penso ser importante ressaltar meu entendimento de que qualquer contribuição para um debate intelectual, mesmo na Antiguidade, implica a elaboração de argumentos verdadeiros. Dessa forma, uma sétima característica poderia ser acrescentada a essa lista: pretensão à verdade. “Verdade” é aqui entendida no sentido de verossimilhança (sobre este ponto ver CONDILO, 2018, p. 18-24) e com a ressalva de que uma pluralidade de verdades podia coexistir harmoniosamente nesse momento sócio-histórico. Não incluí essa característica porque os procedimentos três, quatro e cinco me parecem ser indicativos claros dessa pretensão, pelo menos no plano do discurso. Por isso utilizo “pretensão à verdade” ao invés de “verdade” propriamente. Fora desse contexto específico, pretensão à verdade talvez deva entrar como um aspecto adicional. Com isso, não quero dizer que não possa existir verdade em textos ficcionais, por exemplo. Digo apenas que a história tem uma maneira própria de expressar a verdade e que este elemento é constitutivo de seu gênero literário.

Um ponto importante a ser enfatizado é que a renegociação epistemológica em torno da produção do conhecimento de forma geral e da história em particular foi um processo gradual, complexo e irregular. A poesia continuou sendo uma forma autoritativa de expressão juntamente com os trabalhos em prosa e ambos mantiveram por muito tempo uma complicada relação. Por exemplo, quando Hecateu desafia a autoridade das musas a transferindo para seu próprio julgamento - “Eu escrevo essas coisas como me parecem ser verdadeiras. Pois as histórias dos gregos são muitas e ridículas, como me parecem.” (BNJ 1 F1) -, ele apresenta seu projeto de revisão crítica da tradição com um verbo derivativo de mythos (µῦθος), uma palavra fortemente marcada por conotações autoritativas na poesia épica: “Hecateu de Mileto diz (µυθεῖται) o seguinte”. Tal como Hecateu, outros autores de prosa lidaram diferentemente com as dificuldades teóricas e metodológicas que encontraram em suas trajetórias intelectuais.

Tendo em vista esse contexto, eu adoto os conceitos de autoridade textual e tradição historiográfica proposto por Marincola no seu Authority and Tradition in Ancient Historiography, por expressarem com clareza a dinâmica de todos os elementos que descrevi desde o começo desta seção (MARINCOLA, 1997MARINCOLA, John. Authority and tradition in ancient historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 1-19 e também MARINCOLA, 1999MARINCOLA, John. Genre, convention, and innovation in Greco-Roman historiography. In: KRAUS, Christina Shuttleworth (ed.) The limits of historiography: Genre and narrative in ancient historical texts. Leiden/Boston: Brill , 1999, p. 281-324.). Autoridade diz respeito à relação entre autor e audiência, que Marincola define como os meios retóricos através dos quais um autor - notadamente o historiador - estabelece sua competência na área e ao mesmo tempo cria uma pessoa que a audiência pensará ser persuasiva e confiável. Tradição diz respeito à relação entre o historiador e os outros historiadores que o precederam. Nesse sentido, tradição consiste em temas, convenções, estratégias de composição e exemplos herdados de predecessores e cristalizados através de constante reinterpretação e debate aos quais os autores estão condicionados no seu processo de criação intelectual, ou seja, esses elementos criam condições que possibilitam o processo de inovação, mas ao mesmo tempo também estabelecem limites para a inventividade do historiador (MARINCOLA, 1997MARINCOLA, John. Authority and tradition in ancient historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 14).6 6 Para a questão da autoridade literária entre poetas, NAGY, 1990, p. 52-81; GAGNÉ, 2013, p. 206-274; MASLOV, 2015; cf. CORCELLA, 2006.

Antes de seguir com exemplos práticos de como a relação entre autoridade e tradição consolidaram a história como gênero literário, é necessária uma última observação sobre o que entendo pela palavra autor e sobre qual é sua relação com o conceito de autoridade. Por questão de espaço, não tenho como esmiuçar toda a discussão sobre o tema da autoria, cujo problema mais importante desde a segunda metade do século XX, quando Barthes (1967BARTHES, Roland. A morte do autor. 1ª edição 1967. In: O Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 57-64.) declarou a morte do autor, tem sido o de tentar entender o que é um autor e como se dá a passagem do auctor medieval para o autor romântico moderno. Nesse debate, Foucault (1969FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Publicado pela 1ª vez em 1969. In: MOTTA, Manoel Barros da (org.) Ditos & escritos, Volume III. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 264-298.) defendeu que o autor não é uma pessoa, mas uma função do discurso, ponto de vista este que tem sido nuançado na produção mais recente. (cf. HAWTHORN, 2008HAWTHORN, Jeremy. Authority and the dead of the author. In: DONOVAN, Stephen; ZADWORNA-FJELLESTAD, Danuta; LUNDÉN, Rolf (eds) Authority matters: Rethinking the theory and practice of authorship. Amsterdam/New York: Rodopi, 2008, p. 65-88.) Para os propósitos deste artigo, será suficiente apontar alguns aspectos da discussão de Maslov (2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116.) que expressam de forma sucinta e objetiva, porém sem ser simplista, tanto o significado da autoria como a natureza de sua relação com a autoridade.

Maslov (2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116., p. 51) observa que o discurso literário as conceived of in the Western world, comprises genres that enforce individual authorship. Moreover, it is precisely the ascription of individual authorship that unites these genres into what we recognize as a literary system.” Assim, a individualidade constitui o cerne da produção textual contemporânea. Evidentemente que tal individualidade por si só não torna um texto mais merecedor de ser valorizado ou lembrado. Textos antigos e medievais atestam que não necessariamente a criação de um indivíduo específico leva o nome de um autor. Trabalhos sobre tradição poética oral em várias culturas também nos mostram que há inovação na performance de bardos sem que seus nomes sejam registrados. Além disso, a Ilíada e a Odisséia são evidências de que um corpus poético foi associado a um indivíduo específico, Homero, depois de ser amplamente disseminado pelo mundo grego (MASLOV, 2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116., p. 50-55). A grande questão aqui é que a personalização ou individualização da produção textual confere estabilidade a uma tradição dinâmica:

As for individual authorship, it is a token of a culture’s self-awareness of its verbal resources, of a determination to identify and objectify forms of discourse, whether it is a means of fixing a preexistent text or a body of texts, or a way of controlling rapidly proliferating new forms. It is not unlikely that names get assigned to segments of preexistent lore at a time when new textual practices arise that are perceived as a threat to its integrity. The case of Homer may, again, be instructive. While furnishing a precedent that prompted lyric poets to think of themselves as authors, Greek epic may have crystallized as a literary form in the context of Archaic Greece because it was a culture where an increasingly large number of kinds of texts competed for authority. (MASLOV, 2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116., p. 56-57).

Dessa forma, para Maslov, o que realmente motiva a participação de um autor em uma determinada tradição, seja de forma consciente ou não, é o desejo de perturbar/desestabilizar formas estabelecidas em um processo de renovação contínua do gênero no qual se insere. Nesse processo, um indivíduo bem-sucedido em sua intervenção na tradição pode sedimentar um novo gênero que carregará o nome de seu inventor, tal como a ode pindárica ou o soneto petrarquiano (MASLOV, 2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116., p. 55). É a partir de então que tais textos se tornam referências para serem copiados e preservados, isto é, que autoria e autoridade se encontram. Embora a discussão de Malov se concentre na questão da autoria e do gênero poéticos, suas considerações são pertinentes para pensar a relação entre historiadores e historiografia na Grécia antiga. Além disso, a lógica de seu argumento já se faz presente na etimologia dos termos autor e autoridade e nas relações que eles mantêm um com o outro.

Textos e dicionários da Idade Média indicam que a palavra “autoridade” deriva do termo grego autentim, que atribui ao indivíduo que escreve uma qualidade que torna suas palavras dignas de confiança e obediência, e do termo latino auctor, derivado do verbo augere que significa “aumentar”, “fazer crescer”, “acrescentar”. (ASCOLI, 2008ASCOLI, Albert Russell. The author in history. In: Dante and the making of a modern author. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 3-64., p. 5; ver também BENNETT, 2005BENNETT, Andrew. The author. New York: Routledge, 2005., p. 39-40) Todavia, tal explicação apresenta um problema importante no que tange a uma reflexão sobre o problema da autoria na Grécia antiga: autentim é um termo que simplesmente não existe em grego. (MASLOV, 2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116., p. 51) Além disso, a discussão etimológica de Benveniste (1969BENVENISTE, Émile. The censor and auctoritas. In: Indo-European language and society. 1st edition 1969. London: Faber, 1973, p. 416-423.) sobre autoria e autoridade apresenta sutilezas que passam despercebidas na tradução corrente de augere simplesmente como “aumentar”, como a questão da originalidade. O elemento originalidade presente na autoridade autoral antiga vem claramente de encontro ao sentido da autoridade autoral medieval, pois esta possui uma dimensão rigidamente hierárquica que é pouco sujeita a ser desafiada e que muitas vezes se legitima com base em um poder transcendental (ASCOLI, 2008ASCOLI, Albert Russell. The author in history. In: Dante and the making of a modern author. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 3-64., p. 5-6; cf. BENNETT, 2005BENNETT, Andrew. The author. New York: Routledge, 2005., p. 39-40).

Para Benveniste (1969BENVENISTE, Émile. The censor and auctoritas. In: Indo-European language and society. 1st edition 1969. London: Faber, 1973, p. 416-423., p. 421-423), toda palavra pronunciada com autoridade causa uma mudança no mundo criando algo a partir do que existe, mas algo novo. Esse significado remonta a um sentido mais remoto de augere o qual tem relação com uma força criadora que é apanágio dos deuses e da natureza, mas não dos homens. Nesse sentido, augere como “aumentar”, “fazer crescer”, “acrescentar”, que é o significado mais comumente utilizado pelos pesquisadores, seria um sentido secundário e enfraquecido deste vocábulo. Assim, independentemente de entendermos originalidade em um sentido romântico ou como um esforço retórico e reiterado de autopromoção, fato é que existe etimologicamente uma confluência entre os sentidos de autor e autoria. Ser autor não é simplesmente escrever um texto, mas escrever com autoridade, isto é, criando algo novo que inspira confiança e que influencia outros a reproduzirem seus argumentos, hipóteses, teorias e formas. Nas palavras de Benveniste (1969BENVENISTE, Émile. The censor and auctoritas. In: Indo-European language and society. 1st edition 1969. London: Faber, 1973, p. 416-423., p. 423), “Obscure and potente values reside in this autoritas, this gift which is reserved to a handful of men who can cause something to come into being and literally ‘to bring into existence’.” Note-se que embora essa definição se aproxime do sentido medieval mencionado acima, ela não abarca a questão da hierarquia e do não desafio da autoridade autoral. Além disso, a dimensão transcendental, ainda que presente, não entra na equação como fator legitimador, apenas como força criativa inovadora.7 7 Evidentemente que minha discussão parte do pressuposto de que o fato de não haver uma terminologia específica para autor e autoria no vocabulário helênico não nos impede de problematizar os conceitos que essas palavras representam no contexto historiográfico da Grécia antiga.

Até aqui eu discuti o processo de mudança na relação com o conhecimento entre fins do Período Arcaico e começo do Clássico, caracterizado por uma cultura argumentativa e pela prosa como principal suporte desse novo tipo de linguagem. Destaquei também as seis características principais da nova linguagem no conhecimento histórico: memorialização de fatos, eventos, pessoas e ideias; ênfase no tema político-militar; defesa da credibilidade de si para falar e ser ouvido; explicitação de senso crítico e preocupações metodológicas; busca por causalidade e responsabilização; estabelecimento de contrato textual com a audiência. Com isso, meu objetivo foi argumentar que esse processo deu origem a uma forma de se escrever a história que marcaria toda a produção subsequente desse campo do conhecimento, isto é, ele fomentou o surgimento da história como gênero literário. Nesse sentido, três conceitos chaves orientaram a discussão: autoridade, que consiste na maneira pela qual o historiador estabelece sua competência e confiabilidade na área; tradição historiográfica, que são os temas, convenções e procedimentos que possibilitam o processo de criação autoral mas também estabelecem limites à inventividade do historiador; e autoria que, dentro do contexto dessas relações, se refere ao indivíduo que escreve contribuindo com algum fator novo para o conhecimento e que muitas vezes acaba servindo de referência ou modelo para a escrita de outros autores. Levando em consideração todos os aspectos discutidos, vem a propósito agora ilustrar como esses elementos aparecem nos textos dos historiadores gregos antigos.

Estudos de caso: Tucídides e Políbio8 8 Para Tucídides, utilizo as traduções de M.G. Kury (1982) e C.F. Smith (1919-1923). Para Políbio, faço uso da tradução de B.B. Sebastiani (2016) até o Livro 5. Do Livro 5 em diante as citações são de M.G. Kury (1985). Também consultei a tradução de R. Paton revisada por F.W. Walbank & C. Habicht (2010-2012). Em algumas ocasiões, as citações podem conter alterações por conta de divergências em relação à forma pela qual o texto original foi traduzido.

Como estudos de caso, escolhi discutir trechos das obras de dois historiadores gregos: Tucídides e Políbio. Antes de começar essa discussão propriamente, penso ser importante observar que estudos sobre a relação entre autoria e autoridade em Tucídides e Políbio, bem como sobre a relação desses autores com contextos intelectuais mais amplos através de diálogo com os sofistas, escritos médicos, filósofos, poetas, dentre outros, não é algo novo (CORCELLA, 2006CORCELLA, Aldo. The new genre and its boundaries: Poets and logographers. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 33-56.; RENGAKOS, 2006RENGAKOS, Antonios. Thucydides’ narrative: The epic and Herodotean heritage. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 279-300.; ROOD, 2006ROOD, Tim. Objectivity and authority: Thucydides’ historical method. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 225-249.; THOMAS, 2006bTHOMAS, Rosalind. Thucydides’ intellectual milieu and the plague. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill , 2006b, p. 87-108., 2017THOMAS, Rosalind. Thucydides and his intellectual milieu. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 567-586.; SEBASTIANI, 2008SEBASTIANI, Breno Battistin. Políbio contra Timeu, ou o direito de criticar. Revista Eletrônica Antiguidade Clássica, n. 2, p. 6-25, 2008., p. 21-24; LONGLEY 2013LONGLEY, Georgina. ‘I, Polybius’: self-conscious didacticism? In: MARMODORO, Anna; HILL, Jonathan (eds) The author’s voice in classical and late Antiquity. Oxford/New York: Oxford University Press, 2013, p. 175-206.; FARRINGTON, 2015FARRINGTON, Scott. A likely story: Rhetoric and the determination of truth in Polybius’ Histories. Histos, v. 9, p. 29-66, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos92015.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
; BAKKER, 2017BAKKER, Mathieu de. Authorial comments in Thucydides. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 239-256.; FORSDYKE, 2017FORSDYKE, Sara. Thucydides’ historical method. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 19-38.; BIGGS, 2018BIGGS, Thomas. Odysseus, Rome, and the First Punic War in Polybius’ Histories . In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter, 2018, p. 381-399.). Meu objetivo aqui é situar essas questões dentro de uma tradição específica, relativizando um pouco a ideia de que não havia nenhum tipo de distinção no campo intelectual antigo. Com isso, não pretendo negar o fato de que não existiam fronteiras disciplinares, tampouco o fato de que esses autores claramente partilham de procedimentos e preocupações do que para nós seriam outros campos do saber, pois isso já foi persuasivamente comprovado por pesquisadores como Fowler (1996FOWLER, Robert. Herodotos and his contemporaries. Journal of Hellenic Studies, v. 116, p. 62-87, 1996., 2001FOWLER, Robert. Early historiē and literacy. In: LURAGHI, Nino (ed.) The historian’s craft in the age of Herodotus. Oxford: Oxford University Press , 2001, p. 95-115., 2006FOWLER, Robert. Herodotus and his prose predecessors. In: DEWALD, Carolyn; MARINCOLA, John (eds) The Cambridge companion to Herodotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2006, p. 29-45.), Thomas (2000THOMAS, Rosalind. Herodotus in context: Ethnography, science and the art of persuasion. Cambridge: Cambridge University Press , 2000., 2006aTHOMAS, Rosalind. The intellectual milieu of Herodotus. In: DEWALD, Carolyn; MARINCOLA, John (eds) The Cambridge companion to Herodotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2006a, p. 60-75., 2006bTHOMAS, Rosalind. Thucydides’ intellectual milieu and the plague. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill , 2006b, p. 87-108., 2017THOMAS, Rosalind. Thucydides and his intellectual milieu. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 567-586.) e outros. O que pretendo demonstrar a seguir são os fundamentos do modelo delineado anteriormente a partir de aplicações práticas do mesmo, o qual sugere que, mesmo havendo um uso generalizado de tais ferramentas e interesses, estes eram manuseados de uma forma particular e que essa forma particular de utilizá-las é o que nós concebemos como história como gênero literário.

Outro ponto a se destacar é o motivo desses dois autores antigos terem sido selecionados. Tucídides (c. 460-395 a.C.) foi escolhido porque, tradicionalmente, é considerado o grande historiador da Antiguidade pela historiografia contemporânea. Já Políbio (c. 203-120 a.C.), um historiador do Período Helenístico, foi escolhido justamente para demonstrar que a ideia de “declínio” na escrita da história antiga depois de Tucídides, sugerida pela teoria de Jacoby, é um tanto equivocada. Em ambos os casos escolhi me centrar principalmente, mas não exclusivamente, nos proêmios dos dois autores, especialmente nos iniciais (ambos têm mais de um). Isso porque proêmios costumam apresentar um panorama compacto da visão dos historiadores antigos sobre sua própria obra, concepção histórica e papel intelectual, funcionando como uma espécie de introdução a seus métodos investigativos, à maneira como eles devem ser conduzidos e aos elementos e valores que eles julgam importantes.

Tucídides

Existe uma tensão na historiografia em torno da figura autoral de Tucídides. De um lado, há um apreço pela objetividade e abnegação com qual ele constrói sua narrativa. De outro, há ceticismo acerca dessa neutralidade com base no argumento de que essa interpretação de sua autoridade autoral é na verdade fruto de maestria retórica. Nos trabalhos mais recentes, tanto a imagem do Tucídides como pesquisador desinteressado e imparcial como a do Tucídides sofista e cientista hipocrático que experimenta seus métodos na oficina da história são conciliadas em abordagens que favorecem uma leitura literária, especialmente trágica, do autor (cf. ROOD 2006ROOD, Tim. Objectivity and authority: Thucydides’ historical method. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 225-249.; BAKKER 2017BAKKER, Mathieu de. Authorial comments in Thucydides. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 239-256.; CONNOR 2017CONNOR, W. Robert. Scale matters. Compression, expansion, and vividness in Thucydides. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 211-224., p. 223-224; FORSDYKE 2017FORSDYKE, Sara. Thucydides’ historical method. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 19-38.; MUNSON, 2017MUNSON, Rosaria Vignolo. Thucydides and myth: A complex relation to past and present. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 257-266., p. 263-264). Nessas leituras, os esforços literários de Tucídides fazem parte de sua busca pela verdade ao mesmo passo em que provocam reações emocionais que induzem a audiência a aceitar sua versão do passado. Em vários momentos, conforme observou Forsdyke (2017FORSDYKE, Sara. Thucydides’ historical method. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 19-38., p. 20), essa prática alinha Tucídides com os predecessores (especialmente Homero e Heródoto) dos quais ele tentava veementemente se distinguir, pois que sua pretensão à superioridade em relação a eles dependia dos métodos de investigação e técnicas narrativas daqueles que o antecederam.

Todavia, é sem dúvida nas passagens nas quais Tucídides faz comentários metodológicos, se posiciona perante uma situação e expressa dúvidas e incertezas que fica latente sua tentativa de construir uma figura autoral confiável e são em trechos como esses que me concentrarei a seguir. De fato, a reputação de confiabilidade de Tucídides meramente por conta da objetividade de sua escrita, embora ingênua, não é de todo sem razão de ser. São poucas as passagens nas quais ele intervém explicitamente no texto. De todo modo, uma análise qualitativa dessas evidências são reveladoras de seu engajamento com um universo intelectual mais amplo e da tentativa de deixar sua marca pessoal nele. Isso fica particularmente evidente no prefácio de sua obra (1.1-1.23).

Tal como Hecateu e Heródoto antes dele, Tucídides arroga a si próprio a autoridade sobre seu relato. Isso transparece na identificação daquele que escreve, “o ateniense Tucídides escreveu”, e o discurso em 1ª pessoa ao dizer, por exemplo, “eu mesmo ouvi” (αὐτὸς ἤκουσα) ou “eu penso” (νοµίζω). Autorreferências em 1ª e 3ª pessoas surgem alternadamente em outras passagens da narrativa. Por exemplo, a autoalusão em 3ª pessoa ocorre na maior parte das conclusões dos anos de guerra, conforme apontou Rood (2006ROOD, Tim. Objectivity and authority: Thucydides’ historical method. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 225-249., p. 228-229): “Esses acontecimentos ocorreram durante o inverno e assim terminou o segundo ano desta guerra cuja história Tucídides escreveu (ξυνέγραψεν).” (2.70) Um ponto interessante é que, embora Tucídides não repita o fato de ser um ateniense nessa fórmula de declaração em 3ª pessoa, ela parece ecoar a abertura de sua História: “O ateniense Tucídides escreveu (ξυνέγραψε) a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os primeiros sinais...”. Essa lembrança ocorre por meio da autoidentificação, do sentido da declaração em ambos os casos (signposting), mas também através do uso do verbo ξυνέγραψε (“escreveu”). Já as autoalusões em 1ª pessoa, tanto no singular como no plural, são mais abundantes e variadas do que as que ocorrem em 3ª pessoa. Elas aparecem nos momentos em que Tucídides raciocina e tira conclusões ou oferece sua opinião a partir da análise de evidências (δηλοῖ/δοκεῖ…µοι, “me mostra”/“me parece”, 1.3), faz especulações ou inferências (εἰ ... οἶµαι, “se ... eu penso”, 1.10), realiza declarações (ἀκοῇ ἴσµεν, “nós sabemos por ouvir dizer”, 1.4), indica escolhas ou procedimentos metodológicos (“As razões pelas quais eles a romperam [a trégua] e os fundamentos de sua disputa eu exporei primeiro...”, 1.24), aponta limites cronológicos (“Nos primeiros tempos (πρῶτον χρόνον) desse período os atenienses parecem ter sido melhor governados do que em qualquer outra época, pelo menos no meu tempo (ἐπί γε ἐµοῦ)”, 8.97), bem como para abordar qualquer aspecto que diga respeito ao seu trabalho investigativo e à escrita do mesmo.

Dentre esses, há que se destacar os usos em que tais referências expressam sua insegurança ou incapacidade de dizer algo. Por exemplo, no seu relato da Batalha de Mantinéia (418 a.C.), ocasião na qual Esparta conseguiu derrotar um exército liderado por Argos e Atenas, Tucídides (5.68) nos informa que o exército lacedemônio parecia maior, mas que ele não poderia fornecer números exatos (οὐκ ἂν ἐδυνάμην ἀκριβῶς) pois eles eram desconhecidos. Do lado dos lacedemônios, isso se devia à confidencialidade característica da sua forma de governo. Já por parte de seus adversários, os números eram duvidosos por conta da tendência dos homens de exagerar a própria força. Existe nesse tipo de passagem uma tensão entre o anseio por precisão e a impossibilidade de saber informações confiáveis. Esse conflito de expectativa com realidade não raro é contornado através da utilização de declarações que expressam o sentido de “tão próximo quanto possível”: “A batalha, descrita da maneira mais fiel possível (ἐγγύτατα τούτων ἐγένετο), foi a maior das travadas entre forças helênicas durante um longo período...” (5.74). A transparência do autor em reconhecer tal dificuldade não denota apenas raciocínio crítico, mas também sua tentativa de chegar à verdade, mesmo que de forma aproximada.

No proêmio, esse aspecto fica evidente quando Tucídides informa que “foi difícil recordar com precisão rigorosa os [discursos] que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, ... embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito (ἐχομένῳ ὅτι ἐγγύτατα τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων)”. Sobre esse ponto, Rood (2006ROOD, Tim. Objectivity and authority: Thucydides’ historical method. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 225-249., p. 244, 248) apresenta uma extensa lista de ocorrências que mostra que tais momentos são mais comuns do que se esperaria, observando que tais manifestações de incerteza não podem ser reduzidas a ferramentas de persuasão para convencer a audiência de autoridade e objetividade. Nesse sentido, eu diria que esse uso específico de declaração em 1ª pessoa não está apenas relacionado com a busca por autoridade, mas por uma autoridade que é própria da condição humana. Uma vez que autores como Tucídides não gozavam da onisciência divina, havia limites para onde seus esforços intelectuais podiam conduzi-los.

Destaca-se também no prefácio a questão da memorialização e de sua justificativa através da ênfase na grandiosidade da guerra e do anseio de que seu registro tenha alguma utilidade no futuro. Note-se que Tucídides apresenta um grande esforço em justificar por que ele está fazendo o que está fazendo. Para ele, a Guerra do Peloponeso foi a maior e mais importante guerra de todos os tempos, mesmo em relação à Tróia e às Guerras Médicas: “O ateniense Tucídides escreveu a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande (µέγαν) e mais importante (ἀξιολογώτατον) que todas as anteriores...”. Tal grandeza se justifica pela ampla movimentação de pessoas e recursos, mas também em decorrência de outros aspectos, dentre os quais se incluem sua duração (µῆκός) e, especialmente, os sofrimentos (παθήματά) causados, ao ponto de alguns autores proporem que a grandiosidade a que se refere Tucídides na verdade diz respeito à magnitude das dores causadas pelo conflito (CONNOR, 2017CONNOR, W. Robert. Scale matters. Compression, expansion, and vividness in Thucydides. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 211-224., p. 223-224: “Pathos is Thucydides’ distinctive and ultimate measure of greatness.”; cf. MUNSON, 2017MUNSON, Rosaria Vignolo. Thucydides and myth: A complex relation to past and present. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 257-266., p. 263-264). De uma forma ou de outra, Tucídides enfatiza, com essa declaração, a superioridade de sua empreitada em relação a de seus predecessores e contemporâneos. Outro elemento de memorialização é a expectativa de que o registro desse evento seja útil para tomadas de decisão no futuro (κτῆμά τε ἐς αἰεὶ).

Nesse ponto, ao argumentar que para ele é o suficiente saber que sua narrativa vai ser útil para quem quer que deseje ter uma ideia clara (τὸ σαφές) desses eventos que ocorrerão de maneira similar no futuro por conta da natureza humana (κατὰ τὸ ἀνθρώπινον), Tucídides explicita seu interesse nas motivações e ações humanas em contraposição à explicações divinas e sobrenaturais. Embora haja alguns relatos de eventos miraculosos e práticas religiosas na narrativa, eles geralmente dramatizam o estado crítico de certos momentos, não sendo indicativos de causalidade. Essas passagens também são muitas vezes filtradas pelas observações e raciocínio crítico do autor. Conforme demonstram Thomas (2006bTHOMAS, Rosalind. Thucydides’ intellectual milieu and the plague. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill , 2006b, p. 87-108., 2017THOMAS, Rosalind. Thucydides and his intellectual milieu. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 567-586.) e Forsdyke (2017FORSDYKE, Sara. Thucydides’ historical method. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 19-38., p. 29-30), o interesse de Tucídides claramente se restringe à esfera humana.

Além disso, fica visível no proêmio o papel central do historiador ateniense na seleção do material pertinente para os paralelos entre passado e presente, tanto no presente como no futuro, no que diz respeito às relações entre estados. Características próprias da natureza humana como a ganância, o anseio por prestígio e poder, a busca pela satisfação de prazeres e o medo, costumam ser estímulos recorrentes para ação nas interações das pessoas com seu ambiente social e político, mas seria impossível conceder-lhes a devida importância e destaque sem um processo de seleção. Por si só, fatos e fontes nada dizem sobre essas experiências. Portanto, Tucídides não registra tudo o que aconteceu. A partir de uma análise criteriosa com base em julgamentos de plausibilidade, ele seleciona apenas aqueles eventos que são merecedores de serem preservados para a finalidade a que almeja, como sugere seu prefácio mas também uma passagem do Livro III onde o autor declara que “somente as ações mais importantes empreendidas pelos atenienses ou contra eles, seus aliados ou seus adversários, serão relatadas” (3.90).

Para que esse relato seja confiável, ressaltar sua importância e escolhas autorais não é o suficiente. Ele precisa ser verossímil e bem fundamentado, pois Tucídides não goza da onisciência divina. A forma como o ateniense faz isso é através de uma discussão metodológica sobre suas fontes. Com isso, ele pretende ultrapassar seus oponentes intelectuais em mérito não só através da grandiosidade do tema escolhido, mas também por meio da sofisticação de seus métodos. Ainda no prefácio de sua História, Tucídides recrimina indivíduos que “aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, negligenciando pô-los à prova” (ἀβασανίστως ... δέχονται) e a “aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade” (ἀταλαίπωρος τοῖς πολλοῖς ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας). Em seguida, ele faz uma crítica acerca da preferência das pessoas pelas coisas fáceis e prazerosas, o fabuloso (τὸ μυθῶδες), e nos fala sobre os desafios postos pela fugacidade da memória - sua própria, inclusive - e pela parcialidade das testemunhas quando aborda a dificuldade de relembrar com precisão os discursos proferidos e a variação nos relatos de acordo com a preferência de seus informantes. Isso sem contar as dificuldades impostas pelo tempo e o embelezamento literário dos poetas e logógrafos no que toca aos fatos sobre o passado remoto. Como resultado, o autor declara que não havia outra escolha que não uma análise criteriosa e crítica das evidências: “Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível (ὅσον δυνατὸν ἀκριβείᾳ), seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa...”. A marcação explícita dessas questões no texto denota domínio e autoconsciência do processo de escrita, além de grande comprometimento com o processo investigativo e objetividade analítica.

Por fim, vale destacar um último aspecto do prólogo: a busca por causalidade (aitia). Tucídides deixa claro em sua introdução que seu objetivo não é apenas relatar os fatos ocorridos, mas também explicar o porquê eles ocorreram: “As razões (τὰς αἰτίας) pelas quais eles a romperam [trégua] e os fundamentos de sua disputa eu exporei primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar (ζητῆσαί) como os helenos chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. A explicação mais verídica (ἀληθεστάτην πρόφασιν), apesar de menos frequentemente alegada, é, em minha opinião (ἡγοῦμαι), que os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os lacedemônios, compelindo-os a recorrerem à guerra. As razões (αἰτίαι) publicamente alegadas pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua e entrar em guerra, foram as seguintes.” (1.23) Um aspecto importante a se destacar no que diz respeito à questão da causalidade é que Tucídides tenta estabelecer uma diferença entre o que são as razões declaradas (acusações e reclamações) para a guerra e o que ele considera suas causas reais: “os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os lacedemônios”. Há, portanto, um descompasso entre discurso e realidade no que concerne às motivações para a guerra.

O historiador, então, faz um relato para ilustrar as razões declaradas da guerra (as disputas em torno de Epidamos e Potideia), o qual é seguido pela narrativa de uma assembleia entre espartanos e seus aliados. Nesse momento, é listada uma série de queixas contra os atenienses. Como conclusão da exposição, Tucídides reitera o que, em sua opinião, seria a causa real da colisão: “O voto dos lacedemônios considerando o acordo rompido e determinando, portanto, que deveriam ir à guerra, foi motivado não tanto pela influência dos discursos de seus aliados quanto por temor dos atenienses, para evitar que eles se tornassem excessivamente poderosos, pois viam que a maior parte da Hélade já estava em suas mãos” (1.88). Na sequência, Tucídides inicia o famoso relato do período dos 50 anos (πεντηκονταετία, 1.89-1.118), no qual descreve os acontecimentos que vão desde a Batalha de Plateia em 479 a.C. até o começo da Guerra do Peloponeso em 431 a.C. Nessa parte de sua História, Tucídides mostra como os atenienses se tornaram poderosos ao mesmo tempo em que enfatiza eventos que alarmaram os espartanos ao ponto de levá-los a optar pela guerra. Dessa forma, ele justifica sua divergência em relação ao argumento oficial motivador do conflito e confirma o que, para ele, era a verdadeira causa da guerra: o medo do crescimento do poderio ateniense por parte dos espartanos.

Todas as características mencionadas se articulam constituindo o pacto textual que Tucídides estabelece com seus leitores, isto é, a forma como ele espera que a audiência vá ler e avaliar sua performance como autor. Nesse ponto, é importante ressaltar que, embora Tucídides seja bastante ilustrativo dos seis aspectos da historiografia antiga que elenquei anteriormente, tais características não necessariamente aparecem de forma completa em todos os historiadores greco-romanos da Antiguidade, tampouco são trabalhadas em suas obras da mesma forma e com o mesmo grau de explicitação e intensidade. Vejamos, então, como Políbio maneja essas ferramentas em sua oficina da história.

Políbio

Ao contrário da parcimônia de intervenções textuais explícitas em Tucídides, abundam as ocasiões de presença autoral na superfície narrativa da História de Políbio. A historiografia parece unânime em apontar que Políbio comenta mais sobre sua atividade intelectual e visão sobre a história do que qualquer outro historiador grego (BONCQUET, 1982/1983BONCQUET, Jan. Polybius on the critical evaluation of historians. Ancient Society, vol. 13/14, p. 277-291, 1982/1983.; LONGLEY, 2013LONGLEY, Georgina. ‘I, Polybius’: self-conscious didacticism? In: MARMODORO, Anna; HILL, Jonathan (eds) The author’s voice in classical and late Antiquity. Oxford/New York: Oxford University Press, 2013, p. 175-206.; FARRINGTON, 2015FARRINGTON, Scott. A likely story: Rhetoric and the determination of truth in Polybius’ Histories. Histos, v. 9, p. 29-66, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos92015.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
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; SCARDINO, 2018SCARDINO, Carlo. Polybius and fifth-century historiography: Continuity and diversity in the presentation of historical deeds. In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter , 2018, p. 299-321., p. 314-315). Dentro desse universo de possibilidades, o prefácio da narrativa (1.1-1.5) é especialmente ilustrativo para discutir as questões que me concernem neste artigo. Nele, salta aos olhos o fato de Políbio não se identificar com o nome e local de origem como Hecateu, Heródoto e Tucídides fizeram antes. Todavia, ele está repleto de marcações autoritativas na forma de declarações polêmicas e do uso da 1ª pessoa autoral.

Isso fica evidente quando Políbio raciocina, tira conclusões ou faz inferências a partir da análise de fatos e fontes (“Parece-me (ἔμοιγε δοκοῦσιν) que padece de algo semelhante quem acredita que por meio de uma história parcial terá adequada visão de conjunto...”), realiza declarações (“é óbvio que a ninguém conviria repetir o que foi dito belamente por muitos, e menos ainda a nós”), indica escolhas ou procedimentos metodológicos (“Estabeleceremos por começo deste livro a primeira incursão dos romanos para fora da Itália...”), bem como em outros momentos nos quais busca explicar aspectos da escrita de sua História tanto no proêmio como além, uma vez que declarações do gênero pululam ao longo da narrativa. Dentre as declarações polêmicas e o uso da 1ª pessoa autoral, dois aspectos merecem destaque: discussões sobre a natureza das fontes e a ênfase no caráter pedagógico da obra.

A construção da confiabilidade do relato de Políbio se fundamenta no uso de fontes e na crítica que faz delas. Discussões sobre os limites e possibilidades da documentação e a ênfase na importância da veracidade ou realidade dos fatos são recorrentes no texto, inclusive no que diz respeito à utilização de “poetas e mitógrafos como testemunhas sobre aquilo que se ignora, como fizeram nossos antepassados sobre muita coisa, ‘apresentando confirmações incríveis para assuntos duvidosos’, como afirma Heráclito” (4.40; cf. 1.14, 12.12, 13.5, 34.4, 36.1, 38.4). Um dos exemplos mais significativos disso é uma das críticas a Timeu (12.27-12.28), o autor mais citado (68 vezes de acordo com SCARDINO, 2018SCARDINO, Carlo. Polybius and fifth-century historiography: Continuity and diversity in the presentation of historical deeds. In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter , 2018, p. 299-321., p. 306) e também o mais censurado por Políbio. Nessa passagem, o historiador megalopolitano argumenta que audição e visão (ἀκοῆς καὶ ὁράσεως) são as principais ferramentas de investigação de um pesquisador e que visão se sobrepõe a audição em termos de maior credibilidade. Fontes escritas, em sua perspectiva, fazem parte da categoria relatos orais. Como Timeu usa precipuamente fontes escritas, Políbio questiona a seriedade de seu trabalho. Sobre esse ponto, existe um debate acerca do entendimento de Políbio em torno de audição e visão como formas de obtenção de informações, bem como sobre em que medida ele próprio põe em prática as críticas que destina a Timeu, mas não adentrarei essa discussão (BONCQUET, 1982/1983BONCQUET, Jan. Polybius on the critical evaluation of historians. Ancient Society, vol. 13/14, p. 277-291, 1982/1983.; WALBANK, 2002WALBANK, Frank W. Polybian studies, c. 1975-2000; Polybius and the past; The idea of decline in Polybius; Supernatural paraphernalia in Polybius’ Histories . In: Polybius, Rome and the Hellenistic world. Essays and Reflections. Cambridge: Cambridge University Press , 2002, p. 1-27, 178-192, 193-211, 245-257., p. 10-11; LEVENE, 2005LEVENE, D.S. Polybius on ‘seeing’ and ‘hearing’: 12.27. Classical Quarterly, v. 55, n. 2, p. 627-629, 2005.; SEBASTIANI, 2008SEBASTIANI, Breno Battistin. Políbio contra Timeu, ou o direito de criticar. Revista Eletrônica Antiguidade Clássica, n. 2, p. 6-25, 2008., 2016SEBASTIANI, Breno Battistin. Verdade, narrativa e retórica em Políbio. In: ANTIQUEIRA, Moisés (org.) A escrita da história na Antiguidade greco-romana. Curitiba: Prismas, 2016, p. 105-141.; BARON 2009BARON, Christopher. The use and abuse of historians: Polybios’ Book XII and our evidence for Timaios. Ancient Society, v. 39, p. 1-34, 2009.; LONGLEY, 2013LONGLEY, Georgina. ‘I, Polybius’: self-conscious didacticism? In: MARMODORO, Anna; HILL, Jonathan (eds) The author’s voice in classical and late Antiquity. Oxford/New York: Oxford University Press, 2013, p. 175-206.; FARRINGTON, 2015FARRINGTON, Scott. A likely story: Rhetoric and the determination of truth in Polybius’ Histories. Histos, v. 9, p. 29-66, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos92015.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
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, p. 40-43; PAUSCH, 2018). O importante a ser destacado nesse trecho é o tratamento sério que os historiadores, na visão do autor, devem dispensar a suas fontes na busca pela verdade e que isso se associa em grande medida com a vivência de experiências.

Tal percepção tem uma relação significativa com a introdução da obra. No proêmio (1.1-1.5), Políbio ressalta inúmeras vezes o propósito didático de seu trabalho, declarações essas acompanhadas de indicadores do próprio ato pedagógico, como educar, tirar dúvidas e demonstrar: “os homens não dispõem de corretivo mais à mão do que a ciência dos fatos passados.”; “a recordação das peripécias alheias é mestra única e a mais eficaz para se poder suportar nobremente as oscilações do acaso”; “o método da história pragmática favorece quem deseja instruir-se”; “Mas como nem a potência pretérita dos romanos nem a dos cartagineses é conhecida pela maioria dos gregos, nem seus feitos, supusemos necessário redigir este livro e o seguinte antes da história, para que ninguém, depois de se deter sobre a explicação desses fatos, fique em dúvida...”. Afirmações de teor parecido são retomadas posteriormente, com a importante ressalva de que trata-se do relato de alguém que não está meramente narrando fatos e eventos: “...porque da maioria [dos acontecimentos] fui não somente testemunha mas também colaborador de uns e diretor de outros (διὰ τὸ τῶν πλείστων μὴ μόνον αὐτόπτης, ἀλλ᾽ ὧν μὲν συνεργὸς ὧν δὲ καὶ χειριστὴς γεγονέναι)...” (3.1-3.4, cf. 36.11-36.12, 38.4). Políbio não está indicando que viu/testemunhou (αὐτοψία) os eventos que descreve, mas o fato mesmo de tê-los vivido ou experimentado (αὐτοπάθεια e εμπειρία). Sua narrativa, portanto, deriva de conhecimento de causa e é justamente essa experiência pessoal que chancela a validade de seus relatos como lições úteis para quem deseja aprendê-las. Evidentemente, esse aspecto está diretamente articulado com uma tentativa de afirmar sua autoridade através de declarações que ressaltem sua credibilidade como historiador e sua competência em realizar julgamentos críticos, mas é inegável que essas intromissões textuais também ressaltam o caráter pedagógico da obra. Conforme observou Longley (2013LONGLEY, Georgina. ‘I, Polybius’: self-conscious didacticism? In: MARMODORO, Anna; HILL, Jonathan (eds) The author’s voice in classical and late Antiquity. Oxford/New York: Oxford University Press, 2013, p. 175-206., p. 176). “Polybius is not only teaching us how to do history, but he is teaching us how to read, appreciate, and derive full benefit from his own work.”9 9 Sobre a dimensão retórica da pedagogia de Políbio ver FARRINGTON, 2015.

A proposta pedagógica e a ênfase no conhecimento prático têm implicações para a maneira como Políbio expressa seu posicionamento em relação àquilo que rege o motor da história. Ele não registra fatos e eventos simplesmente, mas os explica recorrentemente sublinhando momentos críticos, significativos ou apenas interessantes a partir dos quais possa ser retirada uma lição. Nesse processo, uma vez que a tentativa de oferecer insights sobre a natureza humana parte da própria experiência vivida, causalidade histórica não poderia ser atribuída a nenhum outro fator que não a agência humana. Exemplos disso são suas discussões em torno do caráter de personagens e da complexidade da natureza humana perante o desenrolar de situações igualmente complexas, como no caso de Aníbal (9.22-9.29, 11.19). Todavia, é em 36.17 que Políbio elabora explicitamente o argumento da natureza humana como motivação histórica, ao observar que, excetuando circunstâncias extraordinárias como desastres naturais, são as próprias ações dos homens que os levaram às situações em que se encontram: “...fatos cujas causas uma criatura não pode de forma alguma ou somente pode com muita dificuldade perceber, devemos talvez ter razões quando procuramos sair da dificuldade atribuindo-os à interveniência de um deus ou da sorte... Mas, em situações cujas causas eficiente e final podemos descobrir... qualquer homem comum nos diria que a cura mais eficiente estaria na própria ação humana...”.

Ainda no que diz respeito à causalidade, há que se considerar, para além da agência humana, o tema da narrativa polibiana propriamente: a ascensão e consolidação do poderio romano sobre o mundo. No proêmio, isso fica particularmente explícito quando Políbio discute a questão da τύχη (tyche) e a convergência de eventos em uma única direção. Para ele, a maneira pela qual a sorte teceu o fio dos acontecimentos, dando-lhe forma, seria reveladora dos caminhos que teriam levado Roma a se tornar a potência que foi. A tyche em Políbio apresenta uma vasta gama de significados como acaso, fortuna, acontecimento, irracionalidade, justiça ressarcidora, dentre as quais se inclui a ideia de destino. Nesse sentido, o sucesso de Roma estaria relacionado com a manifestação de um desígnio sobrenatural. Por questões de espaço, não poderei expandir essa discussão. Todavia, independentemente de se abarcar a tyche no sentido de providência como parte da explicação de Políbio sobre a razão histórica ou não, nada impede que esse fator se articule com outras motivações.10 10 Para os muitos significados de tyche e a tyche dos romanos na história polibiana, WALBANK, 2002, p. 13-14, 181-184, 194-195, 209-210, 245-257. De fato, a maneira como o autor discorre sobre essa trajetória para comprovar seu argumento é complexa. Políbio entrelaça as (des)venturas de histórias particulares em tempos e lugares diferentes com vistas a estabelecer uma visão de conjunto que ofereça uma perspectiva abrangente da história, elemento este que constitui sua contribuição original para o campo tanto no que diz respeito à temática como no que tange à metodologia.

A fim de garantir a coesão entre partes e todo em sua proposta de história universal, Políbio repete, expande e elabora temas do proêmio em outros momentos do texto. Esse é o caso de 3.1-3.12, onde novamente aparece a questão da causalidade. Nesse trecho, o megalopolitano faz mais uma de suas elaboradas manifestações autorais sobre a escrita da história e reage às análises de predecessores e contemporâneos intelectuais em torno das razões que levaram ao sucesso de Roma, tentando corrigi-las. Políbio aponta a natureza da constituição romana como um fator relevante para tal êxito, mas ela constitui apenas um elemento da sofisticada explicação do autor sobre a questão, a qual abrange causalidades múltiplas que se articulam de forma cumulativa. Nesse processo, ele ressalta a importância de uma avaliação judiciosa que diferencie entre pretextos para ação e suas motivações reais: “Alguns dos que relataram as ações de Aníbal, desejando demonstrar-nos as causas (τὰς αἰτίας) devido às quais se deu a dita guerra entre romanos e cartagineses, primeiro indicaram o cerco de Sagunto pelos cartagineses, em segundo lugar a travessia deles, contra os tratados, do rio chamado Ebro pelos nativos. Eu diria que esses são os inícios da guerra, mas de forma alguma concordaria que são as causas (αἰτίας γε μὴν οὐδαμῶς ἂν συγχωρήσαιμι)...”.

Políbio, então, elabora essa declaração explicando que há uma diferença entre causas (αἰτίαι), pretexto (πρόφασις) e início (ἀρχή). O início é a materialização de razões alegadas e motivos concretos, ou seja, “as primeiras incursões e ações” da guerra propriamente. A causa antecede o início e se define pelos “planejamentos, disposições e cálculos a respeito, por meios dos quais chegamos às decisões e projetos”, em outras palavras, trata-se das motivações que levaram uma pessoa a realizar o ato em questão. Todavia, essa causa explícita ou declarada nem sempre corresponde à realidade dos fatos. Nesse caso, a causa, na verdade, constitui um pretexto. Dentro desses parâmetros, Políbio estabelece como a causa real do conflito entre romanos e cartagineses - uma das guerras fundamentais para o entendimento da ascensão romana como potência imperial na visão do autor - o ódio de Amílcar aos romanos, por ocasião da derrota na 1ª Guerra Púnica (264 a 241 a.C.); a apropriação da Sardenha em 238 a.C. por parte dos romanos, que preparou um terreno fértil para o encontro entre o rancor pessoal de Aníbal com o ressentimento geral dos cartagineses; e o sucesso na Espanha, que aumentou a confiança e o poder bélico cartaginês, razões estas às quais o autor adiciona a questão da impetuosidade e ambição do jovem Aníbal (3.15) que daria continuidade ao projeto do pai. No contexto dessa explicação, é Amícal quem, de fato, teria idealizado a guerra, sendo Aníbal apenas quem a luta, seu executor. Sendo assim, poderíamos dizer que Políbio não só está preocupado com aitia, mas que chega até mesmo a construir uma espécie de teoria sobre a causalidade histórica.

Essas passagens denotam não só o espírito crítico e a consciência do autor no que diz respeito ao funcionamento e propósito de seu texto, mas se entrelaçam com duas outras características da história como gênero literário: memorialização e interesse por assuntos políticos. Políbio memorializa seu tema e estabelece sua contribuição original para o conhecimento histórico de quatro maneiras (1.1-1.5): 1) através do relato da experiência exitosa da mais proeminente das potências antigas, ou seja, Roma; 2) do ineditismo do tema, mas também por conta do método novo que utiliza uma vez que, para ele, histórias de guerras específicas não dão conta de uma explicação plausível para esse fenômeno tão singular que foi a experiência imperial romana e dado que ninguém tentou fazer história bélica de outra forma; 3) por tal abordagem oferecer um conhecimento mais preciso e verossímil em comparação a outras; 4) e pela utilidade que ela oferecesse. Sobre esse ponto, embora não seja o primeiro a sugerir que seu trabalho possa servir como referência para tomada de decisões mais acertadas no futuro (cf. discussão sobre Tucídides), Políbio realça o fato de sua obra ser proveitosa para além dos fatos e eventos descritos na narrativa em si, tratando-se de uma história que pode ser posta em prática.

A relação entre investigação diligente, utilidade e questões políticas é sugerida logo no proêmio onde o autor indica o público alvo em potencial do texto, a saber: os próprios gregos principalmente - desconhecedores que são de atores importantes de seu relato (romanos e cartagineses) e para quem Políbio vai contextualizar antes de narrar sua história -, estudantes e aspirantes a historiadores que se dedicam ao estudo do campo e estadistas e militares. Ao público principal soma-se uma audiência mais genérica composta por tipos sociais variados, como jovens ou velhos. Todavia, Políbio não deixa dúvidas de que não quer entreter, mas tratar exclusivamente dos feitos dos “povos, das cidades e dos estadistas” de maneira que, possivelmente, seu trabalho agradará uma audiência restrita e mais afeita a essas questões (9.1-9.2), notadamente políticos e oficiais do exército. Estes seriam não só o público principal do historiador, mas também os indivíduos melhor equipados para o exercício do ofício. Esse entendimento transparece na crítica a Timeu mencionada anteriormente quando, além de Éforo e Teopompo, Políbio também cita Homero e Platão para substanciar seu argumento de que as experiências vividas, especialmente as adquiridas no âmbito da vida pública e nos campos de batalha, são elementos fundamentais para a escrita de uma história útil. Como elaboração da referência a Platão, o megalopolitano ainda conclui afirmando que “...o governo dos homens irá bem quando os filósofos forem reis ou reis filósofos, e eu diria que a história irá bem quando os homens de ação passarem a escrevê-la...”. Nesse sentido, Wiater (2018WIATER, Nicolas. Documents and narrative: Reading Roman-Carthaginian treaties in Polybius’ Histories. In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter , 2018, p. 131-165., p. 160) argumenta que Políbio não só pretende educar estadistas presentes e futuros, mas é ele próprio um ἀνὴρ πραγματικός que “makes politics by writing history” (cf. BONCQUET, 1982/1983BONCQUET, Jan. Polybius on the critical evaluation of historians. Ancient Society, vol. 13/14, p. 277-291, 1982/1983., p. 277, 289-291; FARRINGTON, 2015FARRINGTON, Scott. A likely story: Rhetoric and the determination of truth in Polybius’ Histories. Histos, v. 9, p. 29-66, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos92015.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
).

Outro exemplo dessa relação fica latente na ênfase dada a certas lições. Por exemplo, Políbio interrompe repentinamente a narrativa para dizer algumas palavras sobre o início da degeneração comportamental de Filipe V da Macedônia, pois ele lhe parece ser “um exemplo muito significativo para os homens de ação (τῶν πραγματικῶν ἀνδρῶν) que desejam, mesmo que em pequena escala, aperfeiçoar o seu padrão de conduta graças ao estudo da história” (7.11) ou como quando ele alerta futuro líderes militares sobre as armadilhas da autoconfiança excessiva (1.35, cf. 3.4): “Ele, que havia tão pouco tempo se recusara a apiedar-se ou ser indulgente com os vencidos, estava sendo levado agora como prisioneiro, quase em seguida, para implorar às mesmas pessoas a salvação de sua própria vida. ... Faço menção a isso com vistas ao aprimoramento dos leitores desta obra...”.

A partir da discussão das intervenções textuais de Políbio é possível concluir que ele demonstra um alto grau de consciência autoral, da finalidade da história, de seu papel como historiador, do tipo de história que se propõe a escrever, da relevância do tema que se aventurou a investigar, enfim, da estrutura e propósito de seu trabalho como um todo. Somados, esses aspectos constituem o contrato textual que ele estabelece com sua audiência. Se, com base nesse contrato, Políbio é bem-sucedido na empreitada a que se propõe, fica a critério de cada um de seus leitores responder. De minha parte, espero, com os exemplos aqui apresentados, ter cumprido o meu.

Conclusão

Tanto Tucídides como Políbio tentam se apresentar como autores confiáveis para suas audiências. Nesse sentido, eles lançam mão de temas e procedimentos comuns que os permitem participar de debates pertinentes para as épocas em que viviam, propondo ideias e abordagens novas em relação ao que outros historiadores já tinham feito. Ao mesmo tempo, esses procedimentos limitavam esse poder de criação na medida que eram pré-requisitos fundamentais que orientavam e regulavam o engajamento de qualquer um que desejasse participar da discussão. A dinâmica dessa relação e seus resultados sugerem que a questão da autoria e da autoridade e sua articulação com a tradição em um universo intelectual bastante competitivo configuram uma interpretação mais complexa e repleta de nuances para se pensar o surgimento e desenvolvimento da história no mundo grego antigo do que a perspectiva de uma evolução historiográfica linear e teleológica. E eu diria que refletir sobre problemas como esses deveriam ir mesmo além. Em um momento no qual há liberdade sem limites para falar de tudo e de todos através do conforto e proteção proporcionados por uma máquina virtual e sem rosto, pensar sobre a credibilidade das informações, como argumentos são construídos e a responsabilidade daquele que escreve se tornam questões urgentes.

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Notas

  • 1
    Sobre a canonicidade de Heródoto e Tucídides na historiografia do Período Helenístico, veja NICOLAI, 2006NICOLAI, Roberto. Thucydides continued. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 693-719.; GRAY, 2017GRAY, Vivienne. Thucydides and his continuators. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 621-639.; PARMEGGIANI, 2018PARMEGGIANI, Giovanni. Polybius and the legacy of fourth-century historiography. In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter , 2018, p. 277-297.; SCARDINO, 2018SCARDINO, Carlo. Polybius and fifth-century historiography: Continuity and diversity in the presentation of historical deeds. In: MILTSIOS, Nikos; TAMIOLAKI, Melina (eds) Polybius and his legacy. Berlin: De Gruyter , 2018, p. 299-321..
  • 2
    Para a discussão sobre Jacoby, utilizo Marincola (2007MARINCOLA, John. Introduction. In: MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek and Roman historiography. Volume I. Oxford: Blackwell, 2007, p. 1-9., p. 4-8) e a tradução inglesa do artigo de 1909 por Mortimer Chambers & Stefan Schorn (2015). Essa tradução tem como base a versão editada por Herbert Bloch, que inclui referências de outros escritos de Jacoby.
  • 3
    Cf. PORCIANI, 2017PORCIANI, Leone. Thucydides’ predecessors and contemporaries in historical poetry and prose. In: BALOT, Ryan K.; FORSDYKE, Sara; FOSTER, Edith (eds) The Oxford handbook of Thucydides. Oxford: Oxford University Press , 2017, p. 551-566., especialmente p. 555-556 e 560, para uma apropriação atual do modelo jacobiano.
  • 4
    Veja PALMEIRA, 2018PALMEIRA, Miguel. “A economia antiga é um campo de batalha”: História social de uma controvérsia erudita. Política e Sociedade, v. 17, n. 38, p. 340-372, 2018. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p340. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2018v17n38p340 . Acesso em: 6 nov. 2020.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/pol...
    acerca de controvérsias intelectuais, particularmente p. 362.
  • 5
    Penso ser importante ressaltar meu entendimento de que qualquer contribuição para um debate intelectual, mesmo na Antiguidade, implica a elaboração de argumentos verdadeiros. Dessa forma, uma sétima característica poderia ser acrescentada a essa lista: pretensão à verdade. “Verdade” é aqui entendida no sentido de verossimilhança (sobre este ponto ver CONDILO, 2018CONDILO, Camila. Mito e história nas Histórias de Heródoto. História da Historiografia, n. 26, p. 13-39, 2018. DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v0i26.1250. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1250 . Acesso em: 6 nov. 2020.
    https://www.historiadahistoriografia.com...
    , p. 18-24) e com a ressalva de que uma pluralidade de verdades podia coexistir harmoniosamente nesse momento sócio-histórico. Não incluí essa característica porque os procedimentos três, quatro e cinco me parecem ser indicativos claros dessa pretensão, pelo menos no plano do discurso. Por isso utilizo “pretensão à verdade” ao invés de “verdade” propriamente. Fora desse contexto específico, pretensão à verdade talvez deva entrar como um aspecto adicional. Com isso, não quero dizer que não possa existir verdade em textos ficcionais, por exemplo. Digo apenas que a história tem uma maneira própria de expressar a verdade e que este elemento é constitutivo de seu gênero literário.
  • 6
    Para a questão da autoridade literária entre poetas, NAGY, 1990NAGY, Gregory. Pindar’s Homer: The lyric possession of an epic past. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990., p. 52-81; GAGNÉ, 2013GAGNÉ, Renaud. Ancestral fault in ancient Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 206-274; MASLOV, 2015MASLOV, Boris. Authors, forms, and the creation of a literary culture. In: Pindar and the emergence of literature. Cambridge: Cambridge University Press , 2015, p. 36-116.; cf. CORCELLA, 2006CORCELLA, Aldo. The new genre and its boundaries: Poets and logographers. In: RENGAKOS, Antonios; TSAKMAKIS, Antonis (eds) Brill’s companion to Thucydides. Leiden/Boston: Brill, 2006, p. 33-56..
  • 7
    Evidentemente que minha discussão parte do pressuposto de que o fato de não haver uma terminologia específica para autor e autoria no vocabulário helênico não nos impede de problematizar os conceitos que essas palavras representam no contexto historiográfico da Grécia antiga.
  • 8
    Para Tucídides, utilizo as traduções de M.G. Kury (1982) e C.F. Smith (1919-1923). Para Políbio, faço uso da tradução de B.B. Sebastiani (2016) até o Livro 5. Do Livro 5 em diante as citações são de M.G. Kury (1985). Também consultei a tradução de R. Paton revisada por F.W. Walbank & C. Habicht (2010-2012). Em algumas ocasiões, as citações podem conter alterações por conta de divergências em relação à forma pela qual o texto original foi traduzido.
  • 9
    Sobre a dimensão retórica da pedagogia de Políbio ver FARRINGTON, 2015FARRINGTON, Scott. A likely story: Rhetoric and the determination of truth in Polybius’ Histories. Histos, v. 9, p. 29-66, 2015. Disponível em: Disponível em: https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos92015.html . Acesso em: 6 nov. 2020.
    https://research.ncl.ac.uk/histos/Histos...
    .
  • 10
    Para os muitos significados de tyche e a tyche dos romanos na história polibiana, WALBANK, 2002WALBANK, Frank W. Polybian studies, c. 1975-2000; Polybius and the past; The idea of decline in Polybius; Supernatural paraphernalia in Polybius’ Histories . In: Polybius, Rome and the Hellenistic world. Essays and Reflections. Cambridge: Cambridge University Press , 2002, p. 1-27, 178-192, 193-211, 245-257., p. 13-14, 181-184, 194-195, 209-210, 245-257.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2020
  • Aceito
    28 Abr 2020
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