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“ESTA RECEITA É MARAVILHOSA”: saberes e práticas curativas na literatura médica publicada em Portugal na primeira metade do século XVIII

“This recipe is wonderful”: knowledge and healing practices in medical literature published in Portugal in the first half of the 18th century

Resumo

Na primeira metade do século XVIII, os tratamentos contra enfermidades, os procedimentos cirúrgicos e os cuidados com o corpo direcionados para a saúde dos súditos seguiam sendo divulgados em obras de medicina ainda sob inspiração hipocrático-galênica. Em Portugal, nesse período, muitos dos tratados médicos foram escritos ou, então, traduzidos com o propósito de facilitar o reconhecimento de determinadas doenças, seus sintomas e a adoção das terapêuticas mais indicadas para seu tratamento, e que previam, desde receitas, cujos ingredientes incluíam plantas medicinais e alimentos, até procedimentos cirúrgicos. Nesse artigo, nos debruçamos sobre as obras Cirurgia Anatômica (1715), de Monsieur Le Clere, Âncora Medicinal (1721), de Francisco da Fonseca Henriquez, e O Practicante do Hospital convencido (1756), de Manoel Gomes de Lima, buscando evidenciar os significados dos seus discursos na configuração de determinados conhecimentos sobre os modos de lidar e tratar o corpo enfermo, antes das reformas realizadas em Portugal na segunda metade do Setecentos.

Palavras-chave:
Medicina; dietética; cura; remédios; Século XVIII

Abstract

In the first half of the 18th century, treatments for infirmities, surgical procedures and measures of care towards the body directed for the health of subjects continued to be divulged in works of Medicine still under Hippocratic-Gallenic inspiration. In Portugal, in this period, many of the medical treaties were written or, then, translated with the purpose of facilitating the identification of certain illnesses, their symptoms and the adoption of the therapeutic practices most indicated for their treatment, and which foresaw from recipes, whose ingredients included medicinal plants and food, to surgical procedures. This article detains itself over the works Cirurgia Anatômica (1715), by Monsieur Le Clere, Âncora Medicinal (1721), by Francisco da Fonseca Henriquez, and O Practicante do Hospital convencido (1756), by Manoel Gomes de Lima, seeking to highlight the meanings of their discourses in the configuration of certain knowledges about the ways of dealing with and treating the ill body, before the reformations that took place in Portugal in the second half of the 18th century.

Keywords:
Medicine; dieting; healing; remedies; XVIII century

A historiografia já abordou e problematizou amplamente o pensamento médico português e luso-brasileiro do século XVIII, especialmente através de tratados que divulgavam saberes direcionados à higiene, à conservação da saúde e aos cuidados com o corpo.1 1 Veja-se, por exemplo, os inúmeros trabalhos do historiador brasileiro Jean Neves Abreu, entre os quais destacamos o livro Nos domínios do corpo (2011), a obra Médicos, medicina popular e Inquisição, de Timothy WALKER (2013, especialmente p. 91-146) e a tese de Bruno Paulo Fernandes Barreiros (2014). Estudos sobre boticas, farmácias e herbários2 2 Ver mais em: EDLER (2006). Recomenda-se ver também os trabalhos inseridos na obra organizada por KURY (2013). e sobre a utilização de alimentos com fins curativos3 3 Dentre os inúmeros trabalhos, destacamos os de ALGRANTI (2012); ARAÚJO; ESTEVES (2015); BRAGA (2000); CARNEIRO (1994; 2003; 2010). Para Henrique Carneiro, os alimentos, além de nutrirem, têm também funções medicinais e de analgesia, atuando também como marcadores sociais hierárquicos, etários e de gênero. - com os quais este texto se propõe a dialogar - também são temas que têm merecido atenção de historiadores e pesquisadores de várias áreas do conhecimento, embora sejam relativamente recentes na historiografia.

Desde o início do século XVIII, em Portugal, as atividades de impressão e editoração de livros de medicina e cirurgia se intensificaram, promovendo divulgação e circulação do conhecimento médico que buscava, pedagogicamente, ensinar os leitores sobre aspectos tidos como relevantes para a manutenção da saúde, a higiene e os tratamentos eficazes de determinadas enfermidades. Através deles, eram divulgados não apenas os conhecimentos médicos consagrados, ainda muito associados à teoria hipocrática-galênica, mas também os preceitos religiosos do período, na medida em que os cuidados com o corpo seguiam sendo associados aos cuidados com a alma, a fim de assegurar a sua salvação.4 4 O renomado médico Bernardo Santucci (Lente da Cadeira de Anatomia no Hospital Real de Lisboa na primeira metade do século XVIII), em seu livro Anatomia do corpo humano, por exemplo, iniciava sua obra com a seguinte passagem: “O corpo humano he huma maquina composta de partes solidas, e fluidas, as quaes pela ordem, e connexão, que entre si tem, fazem diversos, e maravilhosos movimentos. Destes, huns são naturaes, outros voluntarios, dependentes da Alma imortal, que informa o mesmo corpo” (SANTUCCI, 1739, p. 01). Atualmente, médicos como François Boustani (2018, p. 157), em pesquisa de caráter histórico, reconhecem que no século XVIII se defendia “a ideia de que a alma influencia o funcionamento dos órgãos” e “o corpo obedece a leis imutáveis estabelecidas por Deus”. Nesse sentido, o saber médico ainda convivia com explicações religiosas para enfermidades e convalescimentos, de modo que as doenças também eram - em alguma medida - causadas pela ira de Deus, tanto quanto a cura era atingida por sua clemência e misericórdia (CUMSTON, 1996, p. 35).

Ao abordarmos três livros médicos do século XVIII, buscamos identificar e compreender os pressupostos teóricos adotados por seus autores, evidenciados tanto nos tratamentos indicados para a prevenção de males ou para a recuperação dos corpos doentes, quanto nos cuidados que deveriam ser tomados antes ou após a realização de cirurgias. Vale dizer que, mais do que identificar as receitas e tratamentos indicados por médicos e cirurgiões e seus efeitos sobre os doentes, nos propomos a analisar os conhecimentos médicos vigentes no período que antecedeu a reforma da Universidade de Coimbra. Nosso interesse recai, portanto, sobre os aspectos históricos e culturais destes discursos produzidos acerca das práticas médicas adotadas em Portugal na primeira metade do século XVIII, vinculando-os às teorias médicas que circulavam na Europa no mesmo período.

Para tanto, acionamos diversos livros publicados à época,5 5 São inúmeros os livros de medicina publicados em Portugal na primeira metade do século XVIII, ainda que com diferentes concepções de racionalidade científica. Dentre eles destacamos: Polyanthéa medicinal, noticias galênicas e chymicas repartidas em três tratados (1697 e 1716), de João Curvo Semedo; Desengano para a medicina, ou botica para todo pai de família (1656, 1714), de Gabriel Grisley; Cirurgia metódica e química reformada (1720), de Francisco Soares Ribeira; Portugal édico ou monarchia medico-lusitana (1726), de Brás Luis de Abreu; Matéria Médica: physico-histórico-mecânica (1735), de Jacob de Castro Sarmento; Anatomia do corpo humano, recopilada com doutrinas medicas, chimicas, filosoficas, mathematicas, com índices, e estampas, representantes de todas as partes do corpo humano (1739), de Bernardo Santucci (WALKER, 2013, p. 91-116; ABREU, 2011, p. 108). Em artigo recente, Denipoti (2017, p. 915) apresenta uma tabela, na qual aparecem indicados por décadas os “livros de medicina publicados em Portugal ou por autores portugueses no século XVIII”, e da qual pode-se depreender que, até 1749, foram publicados 68 títulos. O autor usa como fonte para a elaboração deste quadro, “Tábua bibliográfica, cronológico-médica portuguesa, século XVIII, Jornal de Coimbra, 1815. embora nossa análise esteja fundamentalmente centrada nas obras Cirurgia Anatomica, & Completa escrita pelo francês Monsieur Le Clere (Daniel Leclerc), traduzida para o português por Joam Vigier e publicada em Lisboa em 1715; Âncora medicinal para conservar a vida com saúde, escrita pelo português Francisco da Fonseca Henriquez e publicada em Lisboa em 1721; e O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação, escrita pelo português Manoel Gomes de Lima e publicada em Coimbra em 1756. A opção por analisar estas três obras se deve tanto ao fato de que elas integravam a biblioteca particular do militar português José da Silva Paes, acervo que se encontra parcialmente reconstituído e à disposição dos pesquisadores na Bibliotheca Riograndense, na cidade de Rio Grande (RS),6 6 O militar português Silva Paes foi o fundador da referida cidade no ano 1737, e, de acordo com seu inventário, possuía extensa biblioteca, que incluía as obras analisadas nesse artigo. Não podemos, no entanto, afirmar que os exemplares que se encontram no acervo custodiado por essa biblioteca sejam exatamente os mesmos de seu acervo privado, uma vez que, para alguns historiadores, a “Biblioteca Silva Paes” foi reconstituída a posteriori. A edição de Âncora medicinal utilizada neste texto, no entanto, é recente: HENRIQUEZ, 2004. quanto à compreensão de que elas permitem a discussão sobre os conhecimentos relativos aos modos de lidar e tratar o corpo enfermo vigentes antes das reformas realizadas em Portugal na segunda metade do Setecentos.

Antes de apresentarmos os autores e as obras aqui investigadas, cumpre dizer que os modos de nomear e encarar doenças, remédios e procedimentos cirúrgicos e, até mesmo, partes do próprio corpo humano estão relacionados com os entendimentos da natureza e funcionamento do organismo e com os meios tidos como mais eficazes para curar,7 7 Na Itália do final do século XVII, o médico Giorgio Baglivi (1668-1707), em sua obra De praxi medica (1696) defendia o ensino de medicina baseado na observação do próprio doente à beira do leito; não haveria “livro mais instrutivo” que “o próprio doente” (BOUSTANI, 2018, p. 141). ao menos na Europa ocidental entre finais do século XVII e início do século XVIII. Tais compreensões - sob o olhar contemporâneo - podem causar alguma estranheza ao leitor, mas denotam efetivamente as características e as mudanças pelas quais a medicina passou nestes últimos séculos.

Sobre os autores e suas obras

Monsieur Le Clere [Daniel Leclerc (1652-1728)], filho de pai médico, nasceu em Genebra, estudou medicina em Paris e em Montpellier, formando-se em 1670.8 8 Informação disponível em https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/342340. Acessado em 10/09/2019. Ganhou fama na França, ao publicar a obra Histoire de la Medicine (1696) e ao atuar como médico “d’El-Rey Christianissimo”, Luís XIV. Se, por um lado, há dúvidas sobre a data da primeira edição (francesa) de Cirurgia Anatomica - originalmente intitulada Chirurgie Complete -, pois ora aparece como tendo sido publicada em 1695, ora em 1702,9 9 IVASHCHUK et. al. (2016, p. 01) apontam para 1695 e SILVA FILHO (2017, p. 58) para 1702. A pequena alteração do título realizada pelo tradutor português, somada à ausência de referência ao nome completo do autor do original - a obra menciona apenas “Le Clere” - dificulta, inicialmente, a identificação da autoria da obra. Poderia ser tanto Daniel Le Clerc, quanto Charles Gabriel Leclerc. O catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal indica Charles Gabriel Leclerc (1644-1700?), mas dois fortes indícios nos levam a atribuir a autoria a Daniel Le Clerc. O primeiro deles se encontra no Prólogo, no qual encontramos a informação de que a obra “é puramente tradução de um livro de bom autor francês, que me veio à mão como título de Cirurgia Completa”. O segundo indício resulta da comparação entre o título na íntegra de “Cirurgia Completa” (em francês) e de “Cirurgia Anatomica” (em português). por outro, sabe-se que sua tradução e publicação em Portugal foi feita por João Vigier (1662-1723),10 10 João Vigier foi autor e tradutor de livros científicos em Portugal, mas, também, “ganhava a vida no comércio de remédios”. Foi autor de Thesouro apollineo, galenico, chimico, chirurgico (1714) e Pharmacopea Ulyssiponense, galenica e chymica (1716). Ver mais em LUNA, 2016, p. 222. em 1715. Entre fins do XVII e início do XVIII, Le Clere publicou também Bibliotheca Anatomica (1685) - em parceria com Jean-Jacques Manget - e Historia naturalis et medica Latorum lumbricorum intra hominem et alia animalia nascentium (1715) (IVASHCHUK, 2016IVASHCHUK, G. et al. Daniel Le Clerc (1652-1728) and his ‘Histoire de la Medecine’. International Journal of History and Philosophy of Medicine, 6: 10513, p. 1-6, 2016., p. 01). Cirurgia Anatomica, publicada em português, em 1715, seria já a terceira edição “na Galia”, como observou o inquisidor D. Cypriano de Pinna, ao conferir a aprovação do Paço, por ser “um manual completo tão facilmente portátil” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., Licenças). Vale mencionar que Vigier, o tradutor de Cirurgia Anatomica, não fez perceptíveis alterações e/ou esclarecimentos em notas ou no próprio texto, sendo que sua subjetividade se restringe às primeiras páginas, isto é, à dedicatória e ao prólogo. Na primeira, ressalta sua crença de que o médico desempenhava papel comparável ao de um santo, detendo-se prolixamente nos santos Cosme e Damião, por serem, segundo ele, “admiráveis práticos na Arte Hipocratica”, e alerta o leitor que, ao verter a obra para o português, não havia alterado matérias, nem pervertido o estilo, por ser “na presente obra somente um fiel tradutor”. Já no prólogo, faz forte autodefesa da sua tradução, demonstrando, assim, que poderiam ser severas as críticas às traduções de livros médicos.

Cirurgia Anatomica conta com dezesseis capítulos teóricos que tratam sobre o corpo e sete que tratam sobre doenças. Na primeira parte, Le Clere apresenta a “arte da cirurgia” e, detalhadamente, as partes do corpo humano, descrevendo os seus ossos e os órgãos. Na segunda parte, o autor apresenta as doenças que podiam, segundo ele, ser curadas através de procedimentos cirúrgicos. Por fim, há uma seção dedicada exclusivamente aos remédios “necessários a um cirurgião”, no qual menciona, entre outros, o Bálsamo verde, que “he muyto bom para toda a casta de chagas, & feridas” e o “Bálsamo Hispanico, ou óleo de aparicio composto’, que era “uma mistura de trigo verde, raiz de cardo santo, vinho, cinzas, hypericão e trementina, excelente para toda a carta de feridas, e para os nervos”, os quais, na opinião do autor, faziam grande sucesso (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 329-330).

Além da obra Âncora medicinal (1721), o médico Francisco da Fonseca Henriquez (1665-1731) foi também o autor de Medicina Lusitana (1710)11 11 Medicina Lusitana e socorro délfico aos clamores da natureza humana para total profligação de seus males foi, segundo Timothy Walker, publicada em uma oficina de impressão lusófona em Amsterdã em 1710 e, depois, enviada clandestinamente para Portugal (WALKER, 2013, p. 108). A Biblioteca Nacional de Portugal guarda edições de 1710, 1731 e de 1750. Neste artigo, estamos utilizando a edição de 1731. e Aquilégio medicinal12 12 Aquilégio medicinal em que se dá notícia das águas de caldas, fontes, rios... refletia o entusiasmo que a filosofia natural exercia sobre a medicina na década de 1720, dedicando-se à exposição “das propriedades terapêuticas das termas de água quente e de outras águas naturais” (WALKER, 2013, p. 108). (1726). Âncora medicinal, obra que analisamos nesse artigo, está fundamentalmente baseada em pressupostos de Hipócrates e Galeno13 13 Ver análises desenvolvidas por ABREU, 2011, especialmente, p. 90-91. e direcionada não para os doentes ou para a cura de enfermidades, mas para os “sãos”, que deveriam observar certos procedimentos a fim de “não achacar nem adoecer” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 25). No prólogo de sua obra, dirigindo-se “ao leitor”, Henriquez (2014HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 25-26) apontava que a obra pretendia preservar o sujeito saudável dos males “para não vir a experimentar as tormentas e assaltos das enfermidades”. Para tanto, o autor recorre a “um tratado de alimentos”, tido como “muito necessário para os que não são médicos”, uma vez que “é razoável que saiba cada qual que alimentos usa sem mendigar de notícias alheias (que às vezes não são muito certas) o conhecimento de suas qualidades quando o pode alcançar com certeza e sem mais diligência que a de abrir este livro”. Os capítulos da obra foram divididos em cinco sessões: Do ar ambiente; Dos alimentos em comum; Dos alimentos em particular; Da água, do vinho e de outras bebidas alimentares e medicamentosas que no presente século se frequentam; Do sono e vigília: do movimento e descanso; Dos excretos e retentos e das paixões da alma. Cabe mencionar que Francisco da Fonseca Henriquez foi médico de D. João V e, tal como outros - a exemplo de Gabriel Grisley, autor de Desengano para a medicina, ou botica para todo o pai de família (1714) - estava atento às mudanças que ocorriam fora de Portugal, publicando “obras inovadoras” em oficinas estrangeiras (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 108).

Manoel Gomes de Lima (1727-1806), natural de Ponte de Lima, uma vila portuguesa do distrito de Viana do Castelo, foi médico cirurgião e atuou profissionalmente em Portugal e na Espanha. Gomes de Lima foi membro da Régia Academia Médica de Madri, da Academia Real das Ciências de Lisboa, do Colégio Real, sócio da Sociedade Real das Ciências de Sevilha e fundador da Academia Médica Portopolitana (cidade do Porto, 1749).14 14 Mais informações sobre a biografia de Manoel Gomes de Lima podem ser consultadas em BORRALHO, 2003, p. 403. A obra O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação (1756) de Gomes de Lima fundamentava-se, predominantemente, nas teorias médicas de Hermann Boerhaave (nas “doutrinas do incomparável Boerhaave”)15 15 O autor traz, no próprio texto, uma nota biográfica: “Hermano Boerhaave natural de Voorhaut lugar vesinho de Leyden, e Cathedratico de Medicina (...) e naquela Cidade, mereceo neste seculo o titulo de INCOMPARAVEL, que (...), já ninguem lhe disputa a Europa. Naceo em 31 de Dezembro de 1668, e morreu em 23 de Setembro de 1738 com quase setenta annos de idade. Foi tão excellente medico, que muitos Principes o consultarão com a Oraculo” (LIMA, 1756, p. 22). Segundo Walker (2013, p. 112), Hermann Boerhaave “introduziu uma síntese sistemática dos conhecimentos médicos empíricos vigentes na Europa do século XVIII, ajudou a estruturar o moderno currículo da medicina ocidental e ensinou a uma geração de médicos europeus o seu método de observação do doente como meio de diagnóstico (...). Boerhaave recomendava que os estudantes adquirissem bases sólidas em ciências naturais, anatomia, fisiologia, patologia e, sobretudo, uma formação prolongada em prática clínica”. e buscava estar “adornado de algumas observações chirurgicas”.16 16 Para o autor de O Praticante do Hospital convencido, “a cirurgia não é couza de moda, he couza de methodo; e methodo, que todos os dias se aperfeiçoa” (LIMA, 1756, Prólogo). Segundo Walker (2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 112), ela se caracteriza por apresentar “novas técnicas cirúrgicas e sua utilização, em combinação com outros remédios, no tratamento de doenças comuns em Portugal”.17 17 Inúmeras enfermidades tidas como “mais comuns” estavam divulgadas em obras como Aviso ao Povo sobre Sua Saúde, do médico suíço Samuel-André Tissot, que foi traduzida para o português (com muitas interferências e adaptações às doenças do reino) pelo médico Manuel Joaquim Henriques de Paiva. Entre elas, estavam doenças venéreas, febres, bexigas, inflamações, achaques, pleurisias, doenças da garganta, dores de dentes, reumatismo, bexigas e disenteria. Vale lembrar que Portugal enfrentou diversos momentos de epidemias entre o final do século XVII e as primeiras décadas do XVIII, dentre as quais destacamos, para Lisboa, o tifo, em 1717, e a febre amarela, em 1723 (BARBOSA, 2001, p. 16-19).

Por meio do recurso narrativo de perguntas e respostas, o autor deixa claro que suas intenções eram de: “só pretendo estabelecer os meus escritos, e a boa Cirurgia, que dezejo introduzir neste Reyno para confuzão de tantos professores idiotas como nelle hà, espero que me alcancem o perdão de alguns descuidos dos Cirurgioens doutos deste Paiz, e dos estranhos” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 208).18 18 O tom agressivo adotado por Gomes de Lima nas referências que faz a outros cirurgiões pode ser atribuído a situações por ele vivenciadas alguns anos antes da publicação do livro O Practicante. Segundo Borralho (2003, p. 403), em 1748, apesar de seu grande envolvimento no projeto de criação de uma Academia Chirurgica, Lima teria sido dela expulso e considerado “inapto”, “num processo pouco claro que passará pelas intrigas” com dois académicos, Alberto Sylva Freyre e Loureço Joze de Mello. Gomes Lima, no texto do prólogo de outra obra (Receptuario Lusitano), afirmou que os dois cirurgiões “fizerão todo o possivel por sepultallo no pelago do esquecimento”, pois “querem com [isso] eclipsar meu nome” (BORRALHO, 2003, p. 403). É preciso, contudo, considerar que este período se caracterizava por uma justaposição de concepções médicas clássicas e contemporâneas, de modo que Lima não deixa de referir-se ao “grande Hippocrates” e “doutíssimo Mestre Grego”, que, juntamente com Galeno, são por ele reconhecidos como os “dous Principes da Medicina”.19 19 “Diz o grande Hippocrates, e consta das nossas quotidianas observaçoens, que he rara a Dor que não venha acompanhada de Febre” (LIMA, 1756, p. 51-52, 176). O médico português foi também autor de Receptuario Lusitano Chymico-Pharmaceutico, Medico-Chirurgico ou Formulario de Ensinar a receitar em todas as enfermidades, que assaltão ao corpo humano (1749); Reflexoens Criticas sobre os Escritores Chirurgicos de Portugal (1752); Os Estrangeiros no Lima (2 tomos, 1785 e 1791) (BORRALHO, 2003BORRALHO, M. L. O mito do legislador numa academia luso-espanhola. Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 0, p. 401-412, 2003., p. 402) e Memorias chronológicas e críticas para a história da cirurgia moderna (1762) (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 112).

Como já dissemos, em Portugal, as obras que analisamos foram produzidas e divulgadas em um período em que a prática médica estava ainda fortemente vinculada às teorias hipocrático-galênicas, o que, entre outros aspectos, implicava na percepção “da ingestão de alimentos [como] ponto alto do processo de cura” (ALGRANTI, 2012ALGRANTI, L. M. Saberes culinários e a botica doméstica: beberagens, elixires e mezinhas no Império português (séculos XVI-XVIII). Saeculum - Revista de História. João Pessoa, n. 27, p. 13-28, jul./dez., 2012., p. 17). Os três autores cujas obras analisamos aludem a estes referenciais, como pode ser evidenciado nas passagens nas quais remetem aos humores presentes no corpo e no sangue e, também, aos temperamentos.20 20 Sobre a medicina tradicional e o equilíbrio humoral, ver PORTER; VIGARELLO, 2008, p. 441-446. Le Clere, por exemplo, define “tumor” como “uma eminência ou um inchaço que se forma sobre alguma parte do corpo, por um depósito de humores” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 147). Para ele, os diferentes tumores (naturais, encerrados, críticos, malignos) estariam relacionados com os vários humores (naturais, simples, misturados e alterados) que agiam na massa do sangue, pois seriam “o sangue, a coléra, a fleuma e a melancolia os quais produzem em particular sua espécie de tumor” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 106-107), enquanto que os diferentes humores “andão misturados com o sangue” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 68).

Também na obra de Francisco da Fonseca Henriquez encontramos evidências da aplicação dos pressupostos da teoria dos humores, na medida o autor observa que “não há alimento tão bom que para algumas naturezas não possa ser mau, nem alimento tão mau que para outras não possa ser bom” (2014 [1721], p. 48).21 21 A “correção alimentar permitia, antes de mais, facilitar a digestão e a absorção dos alimentos, tornando-os mais saudáveis”. Dentre os alimentos, as especiarias também eram utilizadas “como preventivos e curativos das mais diversas doenças, mas acima de tudo, tinham a capacidade, por serem quentes e secos, de transformarem os alimentos nocivos para a saúde, de que é exemplo o peixe, em alimentos equilibrados e saudáveis. (RAMOS In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015, p. 19; p. 30). Amparado em Hipócrates, o autor considerava que, apesar de alguns alimentos serem considerados “maus” pela medicina, eram o estômago e as características individuais que, em última instância, definiam as qualidades (melhores ou piores) de sua nutrição, prevenção e/ou cura.

Nós conhecemos pessoas que cozem com mais facilidade a vaca dura que a galinha tenra, e outras que acham maior refeição em ervas e mariscos que em pombos e perdizes, oque, como temos dito, nasce da proporção e analogia que há entre os estômagos e certos alimentos, por razão da qual preferem, na doutrina de Hipócrates, os alimentos que, por suas qualidades, reputamos por menos bons, quando a natureza os apetece com ânsia e os recebe com gosto (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 47).

Por fim, o cirurgião Manoel Gomes de Lima, que dividiu sua obra em duas partes, “dialogo chirurgico sobre a inflamação” e “apêndix de observaçoens chirurgicas”, dizia não compreender porque “a nação portugueza” estimava “tão pouco huma arte tão necessária como a Cirurgia” e indicava “dietas” para a cura de inflamações. Sua fonte de inspiração estava na cirurgia francesa, uma vez que, segundo o autor, os franceses estavam “inventando todos os dias novos remedios, operaçoens, e instrumentos” que salvavam “inumeráveis vidas das maons da morte” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., s/p). Para os enfermos de inflamação, o médico português indicava uma dieta que previa o “bom e reto” uso das coisas “não naturais”, como “Ar, Comer, Beber, Movimento, Quietação, Sono, Vigilia, Excrementos, Retentos, e Paixoens do Animo”. Mas os pressupostos da teoria hipocrático-galênica se fazem ainda bastante presentes, como se pode perceber nessa passagem: “para todas as inflammaçoens, (...) havemos de olhar para a idade, e temperamento do sogeito”, indicando diferenças, no tratamento, entre moços e robustos e velhos, frios e melancólicos (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 147).

Apesar de valorizar os avanços observáveis na Medicina praticada na França e, em especial, os pressupostos defendidos por Boerhaave, Lima recomendava que as enfermidades deveriam ser combatidas “com remédios contrários”, como a busca pelo “ar frio, e seco temperadamente”, e indicava comidas e bebidas, como “os Caldos de Avea, o Soro de Leyte, ou tambem Leyte com duas, ou tres partes de Agoa”, pois os “Caldos de Galinha gordos chamados de Substancia, usados frequentemente neste Reyno, são alimento impróprio (senão perjudicial) nas inflammaçoens”. O “comer gordo” seria responsável pelo aumento do “movimento da circulação”, “o que he muito contrario ao que nas inflammaçoens se pertende”. Já as bebidas recomendadas poderiam ser “Agoa com algum çumo de Cidra, ou Cerejas pretas, ou Ginjas, Ribes, ou Laranja, e quando faltarem estes frutos sirvão os seus Xaropes” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 133-134). Para o cirurgião, a recuperação dos enfermos se dava com “bons alimentos, & bom vinho, para tomar outra vez forças” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 190).

Mas, se no Setecentos a divulgação dos conhecimentos médicos, visando à prevenção, ao tratamento e à efetiva cura de enfermos, se debruçou sobre os (bons e maus) efeitos dos alimentos no corpo humano doente, também se ocupou da exposição e discussão sobre a formação e os papeis a serem desempenhados por um cirurgião e sobre a conveniência de procedimentos cirúrgicos no tratamento de certas enfermidades. Convém mencionar que embora, no período moderno, médicos e cirurgiões desempenhassem papeis distintos e ocupassem posições hierárquicas diferenciadas em termos de reconhecimento social e prestígio da profissão - a cirurgia era percebida como uma arte mecânica pouco honrada e a medicina como uma arte liberal bastante distinta - a partir do século XVII, mudanças começam a ocorrer, e já nas primeiras décadas do século XVIII, na França, novos estatutos passam a valorizar o ofício da cirurgia, equiparando-o aos fazeres e conhecimentos da ciência médica (FIGUEIREDO, 2002FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002., p. 69-71). Essa (necessidade de) valorização do cirurgião e da cirurgia teve efeitos em Portugal, como veremos na sequência.

Sobre cirurgiões e cirurgias

Apesar de os avanços nos estudos de medicina em Portugal terem ganhado destaque na segunda metade do século XVIII, durante o reinado de D. João V houve a fundação de uma escola de cirurgia no Hospital Real de Todos os Santos, no ano de 1731, e a aprovação dos estatutos de uma Academia cirúrgica, na cidade do Porto, em 1746. A criação do curso destinado a formar novos cirurgiões teve apoio da Coroa e esteve diretamente relacionada às dificuldades enfrentadas um ano antes, em 1730, em decorrência da carência de profissionais para atender aos doentes - vítimas de febre amarela - que chegavam ao Hospital Real em busca de tratamento (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 107). Quem primeiro ensinou anatomia e cirurgia no Hospital foi o cirurgião inglês Isaac Elliot e, logo depois, o médico italiano Bernardo Santucci, que, contratado pelo poder régio em 1732, permaneceu no cargo até 1747. Note-se que o médico formava o cirurgião, cuja função consistia em tratar e realizar os procedimentos e as intervenções necessárias através de um contato efetivo com os pacientes (FLECK; POLETTO; STEIN, 2014FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto; STEIN, Tarcila. “Con más buena voluntad que ciência adecuada, acudían al alivio de los enfermos”: a Companhia de Jesus e as práticas curativas na América Meridional (séculos XVII-XVIII). Revista História e Cultura, Franca-SP, v. 3, n. 2, p. 149-167, 2014., p. 158). E era, justamente, de bem formados e capacitados cirurgiões que o Reino necessitava naquele momento, sendo que os contratados pelo Hospital deviam “apresentar as suas experiências clínicas em seminários” descrevendo “as suas curas mais eficazes” (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 107).

O médico francês Monsieur Le Clere faz poucas referências diretas a hospitais, sendo que menciona três vezes o “hospital de Paris” e uma vez o “hospital dos inválidos”, vinculando-os a práticas cirúrgicas bem-sucedidas ou a certos “costumes” nos modos de proceder (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 150, 234, 252, 268). Do mesmo modo, a obra Âncora medicinal faz poucas menções a hospitais e cirurgias, não deixando, no entanto, de mencionar as práticas daqueles “cirurgiões”, que, procurados para curar os enfermos, cometiam “delitos anatômicos” graves.22 22 O autor refere o caso de um homem tísico, que, após ter consumido agrião e ter sido dado como curado, teve seu peito aberto com um punhal, sendo que a “mulher do pobre” o encontrou “defunto anatomizado”. O cirurgião, no entanto, teria sido “absolvido da pena que merecia aquele delito” (HENRIQUEZ, 2004 [1721], p. 170). Já o médico Manoel Gomes de Lima menciona o “Hospital Real de Versailhes”[sic] e o “Hospital da Caridade”, geralmente em tom muito elogioso, mencionando, ainda, que “obrei (...) em muitos Hospitais, e tenho á dezasseis annos estudado tanto”) (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 03). Em nota de rodapé, na qual compara os cirurgiões de hospitais de Portugal e da França, Lima faz uma crítica à designação “cirurgião-mor” utilizada no reino português:

Há neste Reyno hum custume ridículo de chamar Cirurgioens mores aos dos Hospitais. Em França aonde há Hospitais que tem muitos Cirurgioens como o Hotel Dieu, a Charitè, o dos Invalidos &c. não usão semelhante fanfarronada. O primeiro se chama Chefe, o segundo Substituto, e os outros Ajudantes. Vejão agora se em hum Hospital aonde só há hum Cirurgião lhe compete o título de mor? Salvo o for dos rapazes que ensina (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 02).

As obras analisadas permitem perceber aproximações e distanciamentos na compreensão do papel do cirurgião e dos significados da cirurgia. O cirurgião era aquele que sabia “curar as doenças do corpo humano por uma aplicação de mão com método” e a cirurgia era entendida como a “arte que ensina a curar os achaques do corpo humano” por meio desse método (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 01) e que guardavam alguns segredos (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 159). Assim, para esse autor, a cirurgia era encarada como portadora de três fundamentos: o conhecimento do corpo humano através do estudo da anatomia, o conhecimento das doenças que necessitavam de cirurgia, como os tumores, apostemas, feridas, fraturas, deslocações, e o conhecimento dos remédios e socorros convenientes a cada situação, como veremos na sequência. Em alguns casos, cirurgiões necessitavam de auxílios e “ajudas”, o que fica evidenciado nesta passagem: “nestas occasioens he necessario absterse de ajudas” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 168), sem que Le Clere forneça maiores explicações sobre como se davam e quem estava encarregado dessas “ajudas”.

Para o médico Manoel Gomes de Lima, além de necessariamente conhecer as “noticias da Anatomia, da Phisiologia” e da “Pathologia” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 15), o ofício de cirurgião requeria outros domínios, incluindo um amplo estudo das principais publicações do ramo nos últimos séculos, citando obras e autores dos séculos XVI e XVII, além dos “clássicos” da Antiguidade.23 23 O autor cita inúmeras obras e autores, dentre os quais destacamos “Liçoens Chirurgicas sobre os Tumores”, de Alexandre Read, publicada em Londres, em 1635; “Chirurgo Svegliato, Desperto, ou Advertido”, de Sebastião Melli; além de fazer referência a outros “autores de fama”, como os médicos João Maria Lancisio, Fernando Carlos Weinhart e Friderico Hoffmanno (LIMA, 1756, p. 29 e 13). No prólogo, o autor anunciava: “Deves saber Latim, Historia Natural, e a Economia do Corpo Humano se queres ser verdadeiro Cirurgião”. Ao longo da obra, essa condição volta a ser destacada: “sem Latim, sem Physica, sem Anatomia, e sem Bellas Letras não póde ninguém saber Cirurgia” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 152). A ideia defendida pelo autor não estava centrada apenas na necessidade de dominar saberes médico-cirúrgicos produzidos até então, mas na centralidade do estudo e da prática contínua e permanente. A noção do conhecimento prático acompanhado de saberes teóricos - daí o título “O Practicante...” - ganham relevância no texto de Lima, pois um único procedimento cirúrgico requeria domínio de diversas campos do saber: “para huma só materia practica necessita o Cirurgião de ter conhecimento do Corpo humano, das suas funcçoens todas, e até da Historia Natural” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 152). Para instruir-se nos casos raros da arte cirúrgica não bastava os cirurgiões portugueses recorrerem aos saberes produzidos na língua francesa, pois “como saberá (...) o que dicerão Celso, Hippocrates, Paulo Egineta, Hildano, Falopio, e outros, não sabendo latim?” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 10).

O autor de O Practicante do Hospital alertava, ainda, para o fato de que a ciência de um cirurgião não estava vinculada exclusivamente à amputação de membros, mas, sim, ao conhecimento dos motivos para a realização destes procedimentos considerados “extremos”. A realização de cirurgias desse tipo era considerada pelo autor como busca por “fama” e “status” por parte daqueles cirurgiões que, cheios de vaidades e caprichos e em busca de singularidade e reconhecimento, optavam por esse procedimento (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 188):

Não consiste a sciencia de hum Cirurgião, em saber cortar hum membro, mas em conhecer quando està obrigado a semelhante extremo, por ser na verdade esta materia digna de hum juízo prudente, e não de hum necio confiado. Mas ah! e quantos pertendem adquirir fama, por hum modo tão perjudicial a Sociedade humana, como he o de querer privar os homens daquelles membros, que a natureza lhes deu para sua comodidade, e formosura? Na verdade, que esta he huma concideração, em que muito se demorarão os mais famosos Cirurgioens (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 150).

Em outra passagem, o autor reforça o argumento de que o tratamento cirúrgico através de procedimentos que exigissem “ferro” estaria mais voltado ao engano dos homens pelo apreço à distinção que os cirurgiões carregavam ao realizarem tais ações:

Nem a Cirurgia he arte de enganar os homens. As suas regras são todas humas, e se differem das boas alguns Escritores, deve culpar-se a vaidade, e capricho com que a torto, e a direito se querem fazer singulares, e conhecidos. Haverà Cirurgioens, que se disculpem com a repugnancia, que quasi todos os Enfermos tem ao ferro, mas eu que conheço muito bem o que hà na materia digo, que os mesmos Cirurgioens são os culpados (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 188-189).

Havia, portanto, segundo Lima, um “gênero” de cirurgiões carregados “de ignorancia, de crueldade, e de huma faceta audácia”, que tratariam “todas as queixas” com rigor e inumanidade (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 151), visto que desconheciam as enfermidades e carregavam presunções de reconhecimento simbólico ao prometerem saúde “com ferro” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 189). O autor-cirurgião, no último parágrafo da obra, reclama das atitudes dos portugueses - da gente “do nosso Reyno” - e da “politica do Paiz”, apontando-as como causas das mazelas das curas cirúrgicas, uma vez que o “exercício de curar (...) fadiga muito, e rende bem pouco neste Paiz” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 154):

Sey sim, que não hà gente, que estime menos a sua vida, que a do nosso Reyno, visto que se entrega com precipitada confiança nas mãos de qualquer Idiota, que se vende curador sendo na verdade curante. A nossa mizeravel situação, a politica do Paiz, e não sey se algumas cousas mais, que são os motivos de tanto mal, tem hum remedio não difficultoso, que alguns tem dezesperado delle. Mas deixemos isto para a Historia da Cirurgia, que he o lugar competente, para metermos em parallelo a Cirurgia de Portugal com a dos mais Reynos (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 151-152).

Os casos que demandavam cirurgia, de acordo com Le Clere, eram aos tumores, dentre os quais estavam o bubão, os cravos, o furúnculo, as queimaduras, as gangrenas, as frieiras, entre outros (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 120). Manoel Gomes de Lima, por sua vez, dedica sua obra a analisar causas, efeitos e tratamentos de inflamações, especialmente de tumores inflamatórios, para os quais o cirurgião devia “saber tudo quanto tem acontecido de extraordinario na cura delles, para o não sobresaltar qualquer acontecimento” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 116). Assim, a cirurgia deveria ser adotada em alguns casos, a depender da ineficácia ou inutilidade dos remédios indicados. Para a gangrena, por exemplo, diante de efeitos negativos dos remédios, “será necessário valer-se do fogo ou ferro, ou da amputação” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 124). A obra, portanto, não se restringia a instruir sobre procedimentos cirúrgicos, trazendo exemplificações do uso bem sucedido de ventosas, esfregações, banhos e fomentos, bem como da aplicação de ventosas nas mamas para “revelir o sangue”, um remédio “tão usual” e recomendado pelo “grande pay da experiência”, Hipócrates, e do qual “será raro o professor, que não tenha feito uzo dele com fruto como eu” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 126). Ao final, a obra traz um “Tratado dos remédios necessários a um cirurgião”, no qual podem ser encontradas receitas para a cura de queimaduras, coceiras, doenças de pele, comichões, arranhaduras, contusões, sarna, dor de ouvido, coceiras, feridas leves, ou mesmo “mazelas que succedem nos bicos dos peytos às mulheres” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 333).

O médico Fonseca Henriquez não estava interessado em especificar motivos, efeitos ou características das práticas cirúrgicas, embora mencione, especialmente em Medicina Lusitana, algumas ações de cirurgiões no Reino de Portugal. Quando desejava reforçar as qualidades dos profissionais que julgava apresentarem competência, empregava termos como “médicos doutos” e “cirurgiões peritos”.24 24 Na obra Âncora Medicinal também há referências à “cirurgiões peritos” (HENRIQUEZ, 2004 [1721], p. 160). Esta avaliação positiva pode ser observada quando narra o caso de um homem jovem tísico chamado Antonio Váz, que teve “leytes, xaropes de frangões, e de outros muytos remédios aplicados por Medicos doutos” e, ainda assim, caiu em fraqueza até que, dois anos depois, quando “se entregava á morte”, o cirurgião Antonio Francisco de Oliveyra lhe teria restituído a vida com “unturas de Azougue”25 25 Azougue, segundo Bluteau (1728, p. 697-698), era um metal ou semi-metal pesado, volátil e penetrante. “O Azougue he veneno de todas as cousas”. Citando João Curvo, na obra “Polyanth. Medic.”, Bluteau continua: “tomado em substancia, não só não tem efeyto mas tem livrado a muytas pessoas de graves doenças, & achaques” (...) “Chamão-lhe Mercúrio”. (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUES, F. F. Medicina Lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 818). O autor estava muito mais empenhado em criticar os “intrépidos” e “imperitos” nas artes de curar, como se pode constatar na última página da obra e na qual faz uma “advertência” aos “ignorantes” que arruinavam a saúde e estragavam vidas: “Pela insolência, & depravaçam, com que os Barbeyros intrepidos, & os Cirurgioens imperitos se intrometem a curar, como se fossem os Medicos mays famigerados, nos pareceu advertir que toda a pessoa, que uzar de Azougue, ou seja pela boca, ou em fumos, ou em unturas, nam faça outro gênero de cura em quanto durarem as operaçoens do Azougue” (HENRIQUEZ, 1710, p. 832).

Sobre os ingredientes que compõem as receitas para curar o corpo

A cura dos corpos doentes passava por uma série de práticas que evidenciavam os saberes acionados na preparação e aplicação dos remédios. Nesse sentido, destacam-se as sangrias, os regimentos, os purgantes, os licores espirituosos, as fomentações, os cataplasmas, as ataduras, os bálsamos, os emplastros, as lavagens, os supositórios, os laxativos, a aplicação de panos molhados (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 115; LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 157-160).

Merece especial menção a sangria, uma prática muito utilizada na medicina da época moderna,26 26 Embora fosse muito usada “na medicina lusitana, a sangria não era uma prática indiscriminada, havendo um esforço por parte de médicos e cirurgiões” em regulamentá-la (ABREU, 2011, p. 91-92). O médico Fonseca Henriquez, em Medicina Lusitana (1731, p. 313), criticava os “médicos imperitos” que sangravam “em todo o froxo de sangue”. Seria “digna de correção a facilidade com que se chega a sangrar só porque apontou o sangue ao nariz, ou porque veyo hum escarro com sangue (...) e por outras muytas causas que não obrigão a este remédio, culpando sempre o sangue, e castigando as veas”. que se valia, entre outros recursos, de sanguessugas, definida como “huma evacuação de sangue procurada pela incisão artificial de huma vea com intenção de dar saúde” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 221) e tida como “huma practica obervada de todos os médicos sábios, desde Hippocrates até agora” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 121). A adesão do cirurgião português ao procedimento fica evidenciada nessa passagem: “Eu tenho visto muitas fatalidades, por se omitir a Sangria do braço em tempo” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 159), sendo que recomendava o emprego da sangria “alta” ou “larga” no braço em casos de doenças venéreas ou de inflamações nos testículos.

Segundo Le Clere a “sanguexuga he hum animal semelhante a huma pequena lombriga que chupa o sangue; ordinariamente se applicão aos meninos, & as pessoas fracas para ter lugar de sangria; tambem se applicão em partes carregadas de fluxões para as descarregar, como nas hemorrhoidas demasiadamente cheyas, nas varizes, & em differentes partes do rosto” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 220-221). Mas não era qualquer sanguessuga que servia para esses fins, uma vez que havia a recomendação de que: “Tomarão as que são por cima verdoengas, & tem o ventre vermelho, hão de ser pescadas em agua clara, corrente, & no meyo dia, & se regeytarão as que são negras, & cabeludas” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 221). As melhores sanguessugas eram as compridas, delgadas e com cabeça pequena e verdes “por cima”. Antes de sua aplicação, deveriam “ser guardadas em agua limpa, para nella se purgarem, & tenhão jejuado hum dia em huma caxinha sem agua” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 283). A parte do corpo que haveria de receber sua aplicação havia de ser “esfregada levemente com agua quente, leyte, ou sangue de frangão, gallinha, ou de pombo”. Sobre a aplicação e a retirada das sanguessugas, que previam o uso de cinzas, sal, água salgada ou elementos “acres”, a instrução era a seguinte:

applica-se a abertura da caxinha sobe a parte, porque pegando-lhe com os dedos, não obrão com facilidade. Cortase-lhe a ponta do rabo com as tizouras, para escorrer o sangue, para se determinar melhor a quantidade, & tambem para que chupem melhor. Quando se querem tirar, se lhe deyta em cima cinza, ou sal, ou alguma cousa acre. Não se hão de arrancar por força, porque deyxarião o seu ferrão na ferida. Quando estão tiradas, se deyxa correr hum pouco o sangue, & lavão-se as picadas com agua salgada (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 283-284).

Entre os ingredientes utilizados nas misturas preparadas como antídoto para a cura de diversos males do organismo estavam aqueles de origem vegetal e os de origem animal e humana, sendo que muitos deles podem ser considerados “curiosos” ao olhar contemporâneo. Dentre os ingredientes de origem vegetal, estão o açafrão, o enxofre, o sal, o açúcar, a canela, os cravos da Índia, a noz moscada, a erva doce, o funcho, alhos, cebolas, figos, maçãs e bagaço de uvas. Também são mencionadas uma gama variada de plantas, como folhas de carvalho, “murta em pó”, flor de centáurea, tanchagem, macela, sabugo, engos, cidreira, malvas, losna, arruda, mirra, alfavaca-de-cobra, hipericão, funcho, alecrim, salva, calêndula, coroa de rei (lírio), papoulas, ópio, linhaça, trigo, flores de meimendro e rosas. Também sementes (de cominho, entre outras), raízes (de norça, entre outras), pós (de cogumelos e de cominho, por exemplo), farinhas (de cevada, de ervilhaca e de tremoços, de lentilhas), óleos vegetais (óleo de amêndoas, de tabaco, de linhaça, de louro, de alfazema e de erva doce).27 27 Se os azeites eram muito utilizados, tal como a manteiga e a água ardente, em emplastros e unguentos, aplicados no tratamento de doenças cutâneas, o tabaco, costumeiramente, era fumado, injetado ou aplicado em clisteres, sendo tido como muito eficaz para as dores de cabeça, estômago e asma. (EDLER, 2006, p. 26).

De origem animal aparecem relacionados o leite, o soro de leite, o “leite de burras”, o “leite de cabra”, o “esperma de rãs”, gorduras (“gordura de porco”), “sebo de carneyro que se tira dos rins”, ovos, gemas de ovos, claras de ovos, cascas de ovos, mel, carne de vaca, “água de língua de vaca”, mandíbulas de peixe, “esterco de vaca”, “esterco recente de cavalo”, “esterco de jumento”, óleo de minhoca, oléo de caracóis, “caranguejos pisados vivos”, pós (“pós de víboras”, de sapos, de toupeiras, de rãs, de caranguejos), “sal volátil de víboras”, “ponta de veado” e teias de aranha.28 28 De acordo com Jean Neves Abreu (2011, p. 95-96), em Medicina Lusitana (1731), encontramos uma receita de Henriquez “para curar sarnas na cabeça, que consistia em tomar ‘partes iguais de esterco de gado, de pombos, e de patos’, colocando-se tudo em uma panela vidrada, ‘com manteiga de porco velha’”. Também n a obra Âncora Medicinal, encontramos a indicação de excrementos de animais em receitas.

A combinação de ingredientes animais e vegetais na composição de fórmulas também eram acionadas, como se pode constatar nos emolientes indicados no combate de inflamações e que eram feitos a partir de uma mistura de folhas de malva, alface, leite, água balsâmica, vinho canforado, cebola, amêndoas doces e tomilho (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 141). Outras fórmulas eram compostas por misturas apresentadas como “prontas” ou por preparados à base de ingredientes disponíveis nas cozinhas de então, especialmente aqueles vinculados à dieta alimentar, tais como pão, miolo de pão, sabão, óleos, manteiga, fermento, vinagre, sal amoníaco, vinho tinto, vinho branco, aguardente, licor e farinhas de trigo, de centeio, de cevada.29 29 Cirurgia Anatomica traz o vinho como parte da composição de várias receitas indicadas pelo autor. Veja-se, por exemplo, o caso do fleimão, para o qual, caso se tornasse uma inflação ou gangrena, eram indicados tanto o vinagre quanto o vinho (LE CLERE, 1715, p. 117).

Urina e fezes humanas também eram utilizadas em receitas indicadas pelos médicos à época, sendo que Le Clere aponta situações em que a urina, “urina quente” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 115, 141), e “ossos humanos” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 340) deveriam ser empregados. Para o tratamento de um “cancro do peyto”, um pequeno tumor “duro denegrido”, quando em estágio de não ulceração (chamado de cancro oculto), a recomendação era a seguinte: “As materias fecaes humanas, ou a ourina destillada, & applicada sobre o cancro occulto, he muyto bom remédio”30 30 No tratamento de câncer de mama, o autor indicou: “Deytarse-ha a doente sobre a cama (...) Pega-se & se tira a mama com estas tenazes, & se corta de hum só golpe com huma faca muyto chata, curva, & bem afiada” (LE CLERE, 1715, p. 244). (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 242). Havia, ainda, ingredientes apresentados como “Inusitados”, tais como a ferrugem de chaminé (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 119; p. 141), cinzas, lodo ou lama fresca, incenso e cal viva, que podiam ser utilizados em estado natural ou cozidos, fervidos (vinho quente), assados, batidos (ovos batidos), em essência ou em óleos.

Já o médico Fonseca Henriquez (2014HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 215-260) dedicou um capítulo inteiro de sua obra às “bebidas medicamentosas” que eram utilizadas no século XVIII, dentre as quais estavam a água (de fonte, da chuva, da cisterna, de poço, de rio, de lagoa e glacial), o vinho (brando, forte, doce, azedo, branco, negro, louros, vermelhos, cheirosos, novos, velhos, de meia idade), a aguardente, a cerveja, o chocolate, o chá, o café, o licor (sidra). O café, para citar apenas um dos exemplos, era por si só um remédio eficaz para a digestão, a memória, o ânimo, as vertigens, as paralisias, as palpitações do coração, as flatulências, entre outros.

As receitas podiam ganhar feições quase “caseiras”, como nesta em que é recomendado: “Tomai uma romã cortada bocados, coza-se em meio quartilho de vinagre forte, com uma oitava de sal, & deste cozimento com uma esponja se aplique sobre a variz, & se ate com ligadura” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 119). O cirurgião português também indicava “medicamentos tênues” e facilmente manipuláveis, além dos simplesmente “líquidos” de “alguma cousa estimulante” com “addição de algum aromático” que deveriam ser “bebidos sempre quentes” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 144). Em outro caso, para a cura da podridão das gengivas, o médico recomendava o uso de lavatórios com aguardente ou vinho como o “grande remédio” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 149).

Para as esfregações que tinham como objetivo causar irritação nas “partes em que se applicão”, Gomes de Lima (1756, p. 128) indicava cebola e alho para induzir vermelhidão, mostarda para excitar calor, água forte para levantar ampolas e cal e sabão para, além de queimar, fazer escara. No tratamento de feridas decorrentes de armas de fogo deveriam ser empregados, segundo LE CLERE (1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 170), “remedios muyto brandos”, como a aplicação de cataplasmas feitos com “miolo de pão, leyte, açafrão, huma gema de ovo, & oleo rosado quente” bem feito e cheiroso. Já para feridas simples, “principalmente as recentes”, o autor indicava um bálsamo, que poderia ser feito “em todo o tempo” e que era composto por “Azeyte commum do melhor, & vinho bom, de cada um partes iguaes, se cozão em vazo vidrado atè se gastar o vinho, & o balsamo ficarà feyto” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 330).

Os acometidos de uma inflamação qualquer deveriam incorporar o uso dos “remédios contrários”, evitando-se, por exemplo, movimentos impetuosos e calor no corpo. Nesse caso, o principal “ingrediente” indicado não era nada a ser consumido/ingerido, mas, sim, experimentado: “busque primeiramente hum Ar frio, e seco temperadamente”, pois o “humido faz mais sensíveis as impressoens” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 132). Além disso, o doente deveria evitar os alimentos com partículas oleosas, baseados em azeites e manteiga, preferindo água da fonte, a fim de diluir os humores com “energia” e “prontidão” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 134). Comprovando que não existiam receitas únicas ou consensos médicos para o tratamento de inflamações, dores de cabeça, delírios e provocação do sono, Le Clere indicava um “unguento” e um “óleo rosado” formados basicamente por manteiga de “porco macho limpa & lavada” ou azeite misturados com botões de rosas vermelhas, que, depois de ficar por quatro dias ao sol e em “leves fervuras”, estariam prontos para utilização, apresentando aspecto “cheyroso, vermelho, & de singulares virtudes” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 332).

Sobre saberes farmacopeicos e dietéticos

As receitas para o tratamento de certas doenças e para o alívio das dores decorrentes de procedimentos cirúrgicos incluíam inúmeros saberes - acadêmicos e populares - e uma série de modos de fazer, que consideravam desde as adequadas combinações de ingredientes, as relações causa-efeito no organismo humano e práticas tidas como científicas e/ou “maravilhosas”. Os conhecimentos divulgados em obras médicas, como as que este texto analisa, circulavam e eram apropriados por leitores/autores/tradutores/editores, aspecto que fica evidenciado na recorrência, em diferentes obras, de fórmulas muito similares ou até mesmo idênticas empregadas como remédios no tratamento de determinadas enfermidades. Muitas delas, como já demonstrado no tópico anterior, recomendavam a ingestão de certos alimentos por aqueles indivíduos que buscavam a plena saúde ou o seu restabelecimento. Em Portugal do Setecentos, havia a “estreita relação” entre “a cozinha e a botica, uma vez que os produtos consumidos nas refeições do dia-a-dia, transformavam-se em medicamentos em função de necessidades e situações específicas, devido às suas propriedades”. Importantes para assegurar a conservação da saúde, os alimentos eram também largamente empregados como medicamentos (ALGRANTI, 2012ALGRANTI, L. M. Saberes culinários e a botica doméstica: beberagens, elixires e mezinhas no Império português (séculos XVI-XVIII). Saeculum - Revista de História. João Pessoa, n. 27, p. 13-28, jul./dez., 2012., p. 18, 29).

As indicações dietéticas dependiam do tipo de doença, da intensidade, da estação do ano e do estado e condição física do sujeito enfermo. Nesse sentido, por exemplo, a doença venérea chamada “gallico” poderia ser curada, segundo Le Clere (1715, p. 187), de preferência, nos “tempos idôneos” da primavera ou do verão,31 31 A referência às estações mais propícias para a realização de determinadas cirurgias aparece com alguma frequência na obra Cirurgia Anatomica. Para a “operação de catarata”, por exemplo, indicava-se a primavera e o outono como “os tempos mais convenientes” (LE CLERE, 1715, p. 233). incluindo uma dieta específica, como se percebe no excerto abaixo:

Começarse-ha por huma dieta, ou regimento, o doente estará em lugar quente, darse-lhe-hão por bebida cozimentos sudorificos feytos com pão goyaco, raiz da China, salsa parrilha; & não comerà cousas de adubos: darse-lhe-hão ajudas para dispor sempre o ventre livre, darse-lhe-hão algumas sangrias, & se purgara com meya oytava de jalapa, & quinze grãos de mercurio sublimado doce; repetirse-hão as purgas as vezes que parerecer melhor: tomarà banhos nove, ou dez dias, de manhã, & de tarde; emquanto tomar os banhos se lhe darà o sal volátil de viboras, a dose he de seis atè dezaseis grãos; ou da enxudia de viboras meya oytava, em cozimento de rosas (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 187-188).

Percebe-se que, além da ingestão de determinados ingredientes em detrimento de outros, o procedimento curativo exigia certos comportamentos associados à sua ingestão. Além da indicação de banhos duas vezes ao dia, o médico orientava que “depois de haver tomado hum bom caldo”, o “doente vestirá siroulas, & porse-ha na cama” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 188). Na sequência, destaca que “darse-ha ao doente para se alimentar ovos frescos molles, ou escaldados, bons caldos, & substancias”, ocasião em que o “doente estará de cama em lugar agasalhado” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 188). O “bom alimento” estava associado à recuperação e ao fortalecimento do organismo: “Quando o doente se ouver de levantar, ha de mudar de roupa, de cama, & de aposento, & se purgarà; ao depois darse-lhe-hão bons alimentos, & bom vinho, para tomar outra vez forças. Se o doente estiver muyto enfraquecido, tomarà leyte de vaca com açucar rosado” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 188).

Se os alimentos eram uma recorrência nas receitas indicadas no tratamento de certas doenças, não deve ser descartada a percepção de que sua utilização inadequada podia comprometer a saúde, o que pode ser observado na obra Âncora Medicinal, na qual o autor faz referência a “inúmeras histórias entre os autores” e acrescenta:

Estando um enfermo em um hospital e já bem próximo da morte, lhe perguntou o médico que o curava com que alimentos vivia e como se tratava no tempo da saúde; e respondendo que nunca dormia em cama macia, nem se despia de noite e que costumava comer alimentos rústicos e grosseiros, o médico lhe mandou que dormisse uma noite sobre um estrado e fez com que comesse cebola com sal e água fria, e, desta sorte, livrou-se do perigo da enfermidade (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 50).32 32 É preciso considerar que “Se as elites até o século XVIII se alimentavam segundo as prescrições e aconselhamentos dos seus médicos, no que diz respeito à escolha dos alimentos, à maneira de os cozinhar, de os condimentar e de os comer, os pobres comiam o que possuíam e o estritamente necessário para conseguirem trabalhar e sobreviver (...)” (FERNANDES In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015, p. 78-79). De acordo com Ricardo Pessa de Oliveira, a alimentação do povo baseava-se “essencialmente, nos cerais e no vinho, alguma hortaliça e legumes, entrando alguma carne, peixe ou fruta” (OLIVEIRA, 2010, p. 332-333).

Como se pode observar, a orientação dada por Henriquez não previa o abandono dos alimentos costumeiros, e que se encontravam, certamente, à disposição nas cozinhas - como as cebolas -, mas a forma mais adequada de seu consumo. Já Le Clere empenhou-se em apontar quais os alimentos que deveriam ser consumidos para cada diferente tipo de enfermidade. Para a recuperação do paciente após uma cirurgia no ventre e nos intestinos, o autor recomendava que o “doente comerá pouco em quanto não estiver curado de todo, sustentarse-ha de geleas, & caldo fortes” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 250). Havia casos em que o recomendado era “uma dieta exata”, como proposto para a cura do escorbuto: “se há de alimentar de bons caldos de galinha ou franga, comerá frangões, e ovos frescos, e nos caldos lhe porão ervas (...) como agriões, espinafres, raízes da salsa, aipo” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 146). Deveria ainda “beber bom vinho vermelho com moderação” e evitar as “coisas azedas”. Chama, ainda, a atenção para a necessidade de “observar uma exata dieta” no tratamento de feridas no baixo ventre - que, geralmente, atingiam o intestino -, embora não mencione qual seria a alimentação mais adequada.

As indicações sobre o que comer e beber estavam fundamentalmente relacionadas com o tipo de doenças e/ou procedimentos médicos adotados. Em caso de fratura da “espinela” (sic), por exemplo, Le Clere alertava sobre alimentos que não deveriam ser ingeridos: “se deve ordenar ao doente regimento de se não alimentar de cousas, que facilmente se azedão nas primeyras vias, como leyte, queijo, frutas verdes, azedas, salgado” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 296).33 33 Ao longo do século XVIII, os médicos vinculam as diarreias ao “abuso de frutas mal sazonadas”. “Apesar de a medicina galênica associar as ervas e frutas à confecção de medicamentos para tratar de afecções, febres e doenças, a ingestão de legumes, vegetais e frutas cruas era vista com receios, pois julgava-se que provocavam interferências negativas nos humores e na qualidade do sangue, devendo, por isso, serem evitados” (FERNANDES In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015, p. 99). Para o tratamento de queimaduras, recomenda a aplicação - repetidas vezes - de “lodo ou lama fresca”, assim como o uso de “manteiga crua” com “uma folha de couve aplicada moderadamente quente” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 126), e, ainda, a aplicação de um “unguento de cal viva, óleo rosado e gemas de ovo” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 126). A obra traz ainda receitas mais elaboradas para essas situações, que previam ingredientes como “cebolas pisadas, do unguento rosado, & de populeão misturados com uma gema de ovo, da cal viva, dos caranguejos pisados vivos, em almofariz de chumbo”.

Por fim, o autor exalta um remédio, que, ao que parece, era altamente eficaz pelo tom elogioso com que se refere à “receita maravilhosa”: “Se a queimadura está no rosto, se usa particularmente das mucilagens de pevides de marmelos, & de zaragatoa, & da esperma de rãs do que se tomam partes iguais, & a quatro onças se lhes ajuntam vinte grãos de açúcar de chumbo, estende-se este remédio com uma pena, & se põem por cima um papel pardo, esta receita é maravilhosa” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 126). Caso a queimadura fosse causada por pólvora e superficial, o indicado seria aplicação de “cebolas pizadas com mel comum”, que seria “hum bom remédio”.

Entretanto, se a pele estivesse rasgada, tal remédio poderia causar dor e, então, o “bom remédio” indicado seria óleo de tártaro (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 174). Outro remédio, tido como eficaz, apesar de “simplez & singular”, era o composto de “huma parte de azeyte, & duas de claras de ovos bem batidos, & misturados”. Para queimaduras com feridas pustulentas, a indicação era a aplicação de unguento composto de esterco de galinha frito com manteiga (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 176), sendo que o autor acrescenta que as folhas de salva, “tanchagem” e esterco de galinha recente “& o mais branco que achar” deveriam ser fritos por “hum quarto de hora” e que sua aplicação deveria ser feita com “panos dobrados molhados” ou mediante o uso de uma pena (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 176).

Para doenças venéreas que causavam “dor picante” ao urinar - provavelmente gonorreia - o autor de Cirurgia Anatômica (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 184) recomendava que o doente bebesse água com sal “quantas mais vezes melhor”. De modo menos genérico, o médico Manoel Gomes de Lima, que, em sua obra O praticante do hospital convencido, trata exclusivamente da cura de inflamações, refere o tratamento que um morador da cidade do Porto, Domingos Fernandes, recebeu. Este indivíduo, que sofria, pelos menos há quinze dias, de uma grande inflamação em seu escroto, evidenciada pelo inchaço, “dor intolerável”, vermelhidão, quentura e febre, teve seus testículos “curados felizmente” (LIMA, 1756, p. 157), após várias visitas médicas, acompanhadas de inúmeras receitas. Além da indicação de sangria, o médico recomendou que “se alimentasse com caldos de galinha e ameixas” e que “bebesse quanta água quisesse”. Por apresentar um mau funcionamento intestinal, o médico ordenou “um clister emoliente de cozimento de malvas, mercuriais e folhas de violas, por estar adstrito de ventre”, ervas que, uma vez cozidas, deveriam funcionar como uma forma de abrandar a constipação através de injeção por via retal (LIMALIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 160).34 34 Soluções de água com algum outro elemento natural tomado por clister eram práticas comumente recomendadas à época. O médico Fonseca Henriquez, por exemplo, recomendava clister de caldo de cabeça de carneiro cozido em água para curar cólicas flatulentas (HENRIQUEZ, 2004 [1721], p. 97).

O médico Gomes de Lima receitou ainda que o paciente tomasse “uma tizana composta de duas libras de cozimento de raízes de Althea, e Golfaons, folhas de parietaria e alface com duas oitavas de cristal mineral” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 161).35 35 Entre as referências que, possivelmente, inspiraram o médico Gomes de Lima nos conhecimentos das farmacopeias e dos reinos animal, vegetal e mineral estava a obra de Manoel Rodrigues Coelho, Pharmacopea Tubalense Chimico-Galenica, Parte Primeira. Oficina de Antonio de Sousa da Sylva, Lisboa, 1735. O médico recomendava “fomentar todo aquele dia com um cozimento de Flores de Sabugo, Arros do Telhado, Tanchagem, Pero Camoez, e Alfavaca de Cobra em Leyte” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., 162) e, caso persistissem os sintomas ou se agravasse a condição do paciente, orientava que o clister fosse repetido e que à “tizana” fossem adicionadas outras drogas de botica, como a “confeição de Jacintos, Olhos de Caranguejos e Aljofre preparados” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 162-163). Le Clere também menciona tratamentos para “todas as espécies” de tumores,36 36 Tumores poderiam ser de várias ordens, entre eles os “pestilenciais”, que acompanhavam os tempos de peste e os “venéreos” que apareceriam “depois do ato (...) com mulheres impuras” (LE CLERE, 1715, p. 143). que previam a ingestão de alimentos” e a aplicação de “formentações, cataplasmas, emplastros”, além de “remédios internos”, tais como “diaforéticos, sudoríficos, & purgativos”, acompanhado de “dieta exata”. Por fim, recomendava o cozimento de “raiz de norça com canela, & alcaçuz” para fazer “urinar muito” e também o cozimento “de rabãos, & cenouras, & a infusão de salva em vinho branco” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., 134).

Como se pode observar nas receitas indicadas pelos autores das obras analisadas, os ingredientes que as compunham, tais como óleos, xaropes e bebidas, incluíam elementos da natureza (folhas, flores, raízes, sementes), que podiam ser encontrados nas cozinhas portuguesas (gemas de ovos, sal, vinagre, açúcar, leite, manteiga, etc.).37 37 Entre muitos exemplos possíveis, recomenda-se ver as orientações para a cura de “pedra dos rins” dadas por Francisco da Fonseca Henriquez na obra Medicina Lusitana, dentre as quais está o consumo de leite de vaca com açúcar e gema de ovo, ou caldo de frangão cozido com malvas, entre outros (HENRIQUEZ, 1731, p. 677-678). Para além da sangria e das evacuações, era indicada a ingestão de sopas, de carnes, de entranhas de animais, de frutas e de bebidas, seguindo a recomendação de que os doentes deveriam fazer “uso do bom vinho, dos alimentos leves e de fácil digestão” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 136). Nesse sentido, o médico Francisco da Fonseca Henriquez menciona casos de tratamento - e cura - mediante o emprego de “alimento medicinal”, destacando a orientação dada a um enfermo, que, hospitalizado e “já bem próximo da morte”, “comesse cebola com sal e água fria” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 50).38 38 Algumas de suas recomendações são - ao olhar contemporâneo - aparentemente supersticiosas, como aquela que aponta para a cura de nódoas do rosto com o “sangue de galinha toda negra” (HENRIQUEZ, 2004 [1721], p. 116). Outras parecem dialogar com os conhecimentos populares vigentes à época, como aquela que informa que atar ao braço esquerdo a cabeça do pássaro Melro ou os pés de uma lebre, os “homens atrevidos” tornar-se-iam “aptos para tratarem” de “negócios gravíssimos” (HENRIQUEZ, 2004 [1721], p. 123).

Havia, também, alimentos e bebidas que deveriam ser consumidos para evitar e prevenir determinadas doenças.39 39 Sobre a dietética na obra de Fonseca Henriquez, ver PALMESI, 2014. Em Âncora Medicinal, o autor traz as características dos alimentos mais comuns à época, apontando para suas naturezas e seus humores (frios, quentes, secos, úmidos), os meios ideais de os preparar e os consumir, bem como os efeitos medicinais para o corpo humano, considerando diferenças de sexo e de idade.40 40 Em relação a isso, ver ABREU, 2011, p. 157-159. É preciso, contudo, apontar para outra relação entre alimentação e doenças, a partir das diferenças observáveis entre a alimentação dos grupos economicamente mais favorecidos e a dos grupos mais pobres. Para Gonçalves Ferreira, a nobreza, o clero superior e a alta burguesia eram afetadas por doenças que estavam relacionadas com o consumo excessivo de alimentos muito cozidos e gordurosos, tais como a diabetes, a gota, a hipertensão, a arteriosclerose, a litíase, as doenças digestivas e as renais. No caso dos grupos populares as doenças decorriam, sobretudo, de uma alimentação deficiente, que provocava a carência de vitaminas minerais ou de proteínas (FERREIRA, 1990, p. 185).

Para a senilidade - que atingia pessoas acima de 50 anos, segundo Henriquez -, os alimentos consumidos deveriam ser preferencialmente quentes e úmidos para refazer “as forças”. Como era considerado um estágio de idades “frias e secas”, dever-se-ia consumir comidas e bebidas que vigorassem o calor, com destaque para o vinho, o “leite dos velhos”, cujos efeitos alegravam “o coração” e rebatiam “as forças da melancolia” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 78). Outro exemplo seria a prevenção do “tremor de cabeça dos velhos”, para o qual indicava-se o consumo de miolos de lebres (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 104). Apesar da indicação de alimentos específicos, o autor ressaltava que a garantia da longevidade estava no comer com moderação (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUES, F. F. Medicina Lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 129).

O autor de O Practicante do Hospital... também relacionava o tratamento de doenças próprias de cada idade ao “temperamento do sujeito”, o que pode ser observado nas indicações para a cura de inflamações:

Não seremos como alguns, que tem hum remedio suppurante para todas as inflammaçoens, mas havemos de olhar para a idade, e temperamento do sogeito. Sendo moço, robusto, e bem acompleicionado, servirá hum suppurativo de Farinha de Avea com Leyte, e Manteiga em forma de cataplasma, porque obra brandamente. Sendo velho, frio, ou melancolico, faremos uzo do Emplasto Benedicto de Musitano, das Cebollas assadas, do Galbano, Ammoniaco, e outros, que quando senão madure o tumor, estimulão as glândulas para senão endurecerem, e terminar em Scirro (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 147).

As receitas indicadas pelo médico português continham ingredientes que podiam ser encontrados nas cozinhas, tais como a aveia, o leite, a manteiga e cebolas, e seguiam os pressupostos humoralistas, adequando-os às diferentes idades. Também na obra Cirurgia Anatômica encontramos a afirmação de que o “caldo de caranguejo adoça o sangue” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 148), aproximando-se, portanto, das orientações dadas por Lima, em sua obra O praticante do hospital convencido.

Entre as inúmeras virtudes medicinais das carnes destacadas por Fonseca Henriquez, ressaltamos algumas daquelas que poderiam promover a cura através de um tratamento baseado na sua ingestão moderada ou frequente. Vejamos alguns exemplos: a cinza da bexiga do carneiro “tomada pela boca” seria “útil para as incontinências de urina”; pelo mesmo motivo, poder-se-ia consumir “bexiga de ovelha torrada no forno, feita em pó e bebida em vinho” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 97-98); já as pedras nos rins poderiam ser quebradas a partir do consumo de urina de bode “bebida com o calor próprio” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 99); para diarreias/disenteria, a indicação - baseada em Galeno - seria consumir fígado de cabra assado (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 99), ou natas, a espuma do leite (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 114); para os estados tísicos, o remédio indicado era sangue de leitão destilado “em banho-maria” ou convertido em licor e sal.

Como se pode constatar, as publicações médicas de Portugal da primeira metade do século XVIII estavam fortemente inspiradas na dietética proposta pelos antigos, de tal modo que acreditava-se que uma alimentação adequada podia evitar doenças, tratá-las, eliminar humores indesejados ou favorecer a recuperação após a realização de cirurgias (MAZZINI, 1998MAZZINI, I. A alimentação e a medicina no mundo antigo. In: FLANDRIN, J.; MONTANARI, M. História da Alimentação. Trad. Luciano Machado e Guilherme Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 254-265., p. 262). Ao descrevê-las e indicá-las, os autores não descuidavam de ressaltar os supostos efeitos dessas dietas sobre os corpos enfermos, qualificando-as como maravilhosas, excelentes, muito boas, infalíveis ou singulares, por promoverem a “perfeyta cura” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 332). Não deixam, também, de mencionar os sucessos obtidos com a aplicação de suas receitas. Assim, havia aquele ingrediente que só “faz maravilhas” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 157); outros são considerados “excelentes”, como “o açafrão que ‘excita estímulos libidinosos e é excelente nas tosses” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 211); outro é tido como “maravilhoso”, como “O priapo (pénis) do touro [que] é maravilhoso para curar dores de cólica e de estomago”41 41 COELHO, Manuel Rodrigues. Pharmacopea Tubalense Chimico-galenica, p. 133, Apud SANTOS, 2014, p. 196. ; outro é descrito como “admirável”, como “O esterco de rato em pó [que] é admirável para as dores de cólica”,42 42 Idem, p. 457, Apud SANTOS, 1984, p. 196. e havia, ainda, aqueles que eram “infalíveis” e “admiráveis” para a boca inflamada, como o “óleo de nabos (...) que curão admiravelmente”.43 43 Em relação a esse óleo de nabos, o autor afirma que “Nós temos uzado do dito óleo muytas vezes com bom sucesso” (HENRIQUEZ, 1731, p. 322).

Considerações finais

Uma análise que realizamos dos três livros médicos publicados em Portugal na primeira metade do século XVIII permitiu-nos identificar alguns aspectos que consideramos relevantes para o estabelecimento de aproximações e distinções entre as teorias que os fundamentaram. Francisco Henriquez e Manoel de Lima eram portugueses, enquanto que Le Clere era suíço, com formação e atuação na França. Os três reconhecidos autores tiveram suas obras publicadas em Portugal em um período relativamente próximo, isto é, 1715, 1721 e 1756, todavia, podemos dizer que apenas o português Henriquez e o suíço Le Clere foram contemporâneos e tiveram suas abordagens médicas mais marcadas pelos conhecimentos populares e pela recorrência aos saberes dos antigos.

Em Practicante do Hospital convencido, Lima refere os felizes sucessos farmacopeicos obtidos com a utilização da água de cal ou água de bálsamo, que, por suas virtudes, atestadas por “authores de boa notta” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 204) eram indicadas no tratamento de reumatismo, asma, diabete e pedra na bexiga. Mas se alguns alimentos eram tidos como fundamentais na prevenção ou na cura de certas enfermidades, eles também poderiam vir a ser a sua causa. De acordo com Lima, se as pessoas que salivavam e “cuspiam frequentemente” podiam se recuperar com “bons e proprios alimentos” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 204), o adoecimento poderia se dar pela mudança de ares e pelo consumo de alimentos com os quais os indivíduos não estivessem acostumados (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 191).

A obra de Le Clere, por sua vez, se detém nos efeitos “maravilhosos” que resultavam, por exemplo, da utilização de flores “vermelhas aveludadas” e cheirosas e de ovos frescos, batidos, misturados ou duros, que, segundo ele, apresentavam reconhecidas virtudes medicinais (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 338). O autor de Âncora Medicinal também não descuidou de destacar as virtudes medicinais e nutricionais de certas plantas e de ingredientes de origem animal. A carne de carneiro, por exemplo, além de nutrir “maravilhosamente”, era utilizada, assim como os pulmões, a cabeça, os testículos, os ossos, os chifres, a pele, e, eventualmente, o sangue e o esterco, para compor receitas tidas como muito eficientes (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 97).

Foi possível, ainda, observar que tanto a preservação da saúde, quanto os tratamentos dos corpos doentes e daqueles submetidos a cirurgias estavam muito relacionados com os pressupostos humoralistas e com a dietética proposta e defendida por Hipócrates e Galeno, representantes de um conhecimento médico “clássico” e tradicional para a época. Quanto aos procedimentos terapêuticos, esses transitavam entre a tradicional sangria e a ingestão de ingredientes de origem animal, vegetal e, por vezes, humana, facilmente encontrados nas casas dos homens e mulheres - de todos os segmentos sociais - do Portugal do Setecentos e tidos como muito eficazes na prevenção ou no tratamento de certas doenças. Orientações que previam o comer e o beber determinados alimentos ou substâncias encaradas como “maravilhosas” para o tratamento de enfermidades ou para a manutenção da saúde do corpo ocupavam boa parte das páginas das obras médicas do período, apontando não apenas para as experimentações realizadas por boticários e médicos, como também para a crença popular em suas potencialidades na promoção da cura e do bem-estar.

Nesse sentido, cabe lembrar que muitas dessas indicações terapêuticas eram também embasadas em fundamentos religiosos, embora a racionalidade iluminista já começasse a se fazer presente em Portugal. Os autores, contudo, antes mesmo das reformas realizadas em Portugal na segunda metade do Setecentos, preocuparam-se em orientar seus leitores a lidarem e a tratarem o corpo saudável e enfermo e, sobretudo, em alertá-los em relação às condutas de maus médicos e cirurgiões. Para tanto, recorreram a vários exemplos de situações em que os pacientes haviam corrido risco de morte ou haviam falecido por terem buscado a cura com um charlatão ou curandeiro, como se pode constatar de forma mais contundente na obra Practicante do Hospital convencido (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 175).44 44 Em relação às obras que discutimos nesse artigo, constatou-se que a denúncia do charlatanismo aparece muito mais na obra de Manoel de Lima, um autor que viveu em um contexto um pouco posterior ao dos outros médicos-autores cujas obras analisamos, o que não indica, no entanto, a ausência de críticas, que se fazem também presentes nas obras de Francisco Henriquez.

Referências

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Fontes

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  • SANTUCCI, B. Anatomia do corpo humano recopilada com doutrinas medicas, chimicas, filosóficas, mathematicas, com Indices, e Estampas, representantes todas as partes do corpo humano Lisboa Ocidental: na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1739.

Notas

  • 1
    Veja-se, por exemplo, os inúmeros trabalhos do historiador brasileiro Jean Neves Abreu, entre os quais destacamos o livro Nos domínios do corpo (2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011.), a obra Médicos, medicina popular e Inquisição, de Timothy WALKER (2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., especialmente p. 91-146) e a tese de Bruno Paulo Fernandes Barreiros (2014BARREIROS, B. P. F. Concepções do corpo no Portugal do século XVIII: sensibilidade, higiene e saúde pública. Tese de doutorado em História, Universidade Nova de Lisboa, 2014.).
  • 2
    Ver mais em: EDLER (2006EDLER, F. C. Boticas & Pharmacias. Uma história ilustrada da Farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.). Recomenda-se ver também os trabalhos inseridos na obra organizada por KURY (2013KURY, L. Usos e circulação de plantas no Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Editora, 2013.).
  • 3
    Dentre os inúmeros trabalhos, destacamos os de ALGRANTI (2012ALGRANTI, L. M. Saberes culinários e a botica doméstica: beberagens, elixires e mezinhas no Império português (séculos XVI-XVIII). Saeculum - Revista de História. João Pessoa, n. 27, p. 13-28, jul./dez., 2012.); ARAÚJO; ESTEVES (2015ARAÚJO, M. M. L.; ESTEVES, A. Hábitos alimentares e práticas quotidianas nas instituições portuguesas. Braga: Diário do Minho, Lda., 2015.); BRAGA (2000BRAGA, I. M. D. Portugal à mesa. Alimentação, etiqueta e sociabilidade (1800-1850). Lisboa: Hugin, 2000.); CARNEIRO (1994CARNEIRO, H. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.; 2003CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2003.; 2010CARNEIRO, H. Bebida, abstinência e temperança. Editora Senac São Paulo, 2010.). Para Henrique Carneiro, os alimentos, além de nutrirem, têm também funções medicinais e de analgesia, atuando também como marcadores sociais hierárquicos, etários e de gênero.
  • 4
    O renomado médico Bernardo Santucci (Lente da Cadeira de Anatomia no Hospital Real de Lisboa na primeira metade do século XVIII), em seu livro Anatomia do corpo humano, por exemplo, iniciava sua obra com a seguinte passagem: “O corpo humano he huma maquina composta de partes solidas, e fluidas, as quaes pela ordem, e connexão, que entre si tem, fazem diversos, e maravilhosos movimentos. Destes, huns são naturaes, outros voluntarios, dependentes da Alma imortal, que informa o mesmo corpo” (SANTUCCI, 1739SANTUCCI, B. Anatomia do corpo humano recopilada com doutrinas medicas, chimicas, filosóficas, mathematicas, com Indices, e Estampas, representantes todas as partes do corpo humano. Lisboa Ocidental: na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1739., p. 01). Atualmente, médicos como François Boustani (2018BOUSTANI, F. A circulação do sangue: entre Oriente e Ocidente, a história de uma descoberta. Trad. Marcio Arnaldo da Silva Gomes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018., p. 157), em pesquisa de caráter histórico, reconhecem que no século XVIII se defendia “a ideia de que a alma influencia o funcionamento dos órgãos” e “o corpo obedece a leis imutáveis estabelecidas por Deus”. Nesse sentido, o saber médico ainda convivia com explicações religiosas para enfermidades e convalescimentos, de modo que as doenças também eram - em alguma medida - causadas pela ira de Deus, tanto quanto a cura era atingida por sua clemência e misericórdia (CUMSTON, 1996CUMSTON, C. G. The history of Medicine from the time of the Pharaohs to the end of the XVIIIth Century. London; New York: Routledge, 1996., p. 35).
  • 5
    São inúmeros os livros de medicina publicados em Portugal na primeira metade do século XVIII, ainda que com diferentes concepções de racionalidade científica. Dentre eles destacamos: Polyanthéa medicinal, noticias galênicas e chymicas repartidas em três tratados (1697 e 1716), de João Curvo Semedo; Desengano para a medicina, ou botica para todo pai de família (1656, 1714), de Gabriel Grisley; Cirurgia metódica e química reformada (1720), de Francisco Soares Ribeira; Portugal édico ou monarchia medico-lusitana (1726), de Brás Luis de Abreu; Matéria Médica: physico-histórico-mecânica (1735), de Jacob de Castro Sarmento; Anatomia do corpo humano, recopilada com doutrinas medicas, chimicas, filosoficas, mathematicas, com índices, e estampas, representantes de todas as partes do corpo humano (1739), de Bernardo Santucci (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 91-116; ABREU, 2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011., p. 108). Em artigo recente, Denipoti (2017DENIPOTI, C. Tradutores médicos e a ideia de tradução em Portugal em fins do século XVIII: o caso dos livros de medicina. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.4, p. 913-931, out.-dez 2017., p. 915) apresenta uma tabela, na qual aparecem indicados por décadas os “livros de medicina publicados em Portugal ou por autores portugueses no século XVIII”, e da qual pode-se depreender que, até 1749, foram publicados 68 títulos. O autor usa como fonte para a elaboração deste quadro, “Tábua bibliográfica, cronológico-médica portuguesa, século XVIII, Jornal de Coimbra, 1815.
  • 6
    O militar português Silva Paes foi o fundador da referida cidade no ano 1737, e, de acordo com seu inventário, possuía extensa biblioteca, que incluía as obras analisadas nesse artigo. Não podemos, no entanto, afirmar que os exemplares que se encontram no acervo custodiado por essa biblioteca sejam exatamente os mesmos de seu acervo privado, uma vez que, para alguns historiadores, a “Biblioteca Silva Paes” foi reconstituída a posteriori. A edição de Âncora medicinal utilizada neste texto, no entanto, é recente: HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]..
  • 7
    Na Itália do final do século XVII, o médico Giorgio Baglivi (1668-1707), em sua obra De praxi medica (1696) defendia o ensino de medicina baseado na observação do próprio doente à beira do leito; não haveria “livro mais instrutivo” que “o próprio doente” (BOUSTANI, 2018BOUSTANI, F. A circulação do sangue: entre Oriente e Ocidente, a história de uma descoberta. Trad. Marcio Arnaldo da Silva Gomes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018., p. 141).
  • 8
    Informação disponível em https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/342340. Acessado em 10/09/2019.
  • 9
    IVASHCHUK et. al. (2016IVASHCHUK, G. et al. Daniel Le Clerc (1652-1728) and his ‘Histoire de la Medecine’. International Journal of History and Philosophy of Medicine, 6: 10513, p. 1-6, 2016., p. 01) apontam para 1695 e SILVA FILHO (2017SILVA FILHO, W. B. Entre as mezinhas lusitanas e plantas brasileiras: iatroquímica, galenismo e flora medicinal da América portuguesa do século XVIII nas farmacopeias do frei João de Jesus Maria. Tese de doutoramento em História, Universidade de Lisboa, 2017., p. 58) para 1702. A pequena alteração do título realizada pelo tradutor português, somada à ausência de referência ao nome completo do autor do original - a obra menciona apenas “Le Clere” - dificulta, inicialmente, a identificação da autoria da obra. Poderia ser tanto Daniel Le Clerc, quanto Charles Gabriel Leclerc. O catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal indica Charles Gabriel Leclerc (1644-1700?), mas dois fortes indícios nos levam a atribuir a autoria a Daniel Le Clerc. O primeiro deles se encontra no Prólogo, no qual encontramos a informação de que a obra “é puramente tradução de um livro de bom autor francês, que me veio à mão como título de Cirurgia Completa”. O segundo indício resulta da comparação entre o título na íntegra de “Cirurgia Completa” (em francês) e de “Cirurgia Anatomica” (em português).
  • 10
    João Vigier foi autor e tradutor de livros científicos em Portugal, mas, também, “ganhava a vida no comércio de remédios”. Foi autor de Thesouro apollineo, galenico, chimico, chirurgico (1714) e Pharmacopea Ulyssiponense, galenica e chymica (1716). Ver mais em LUNA, 2016LUNA, F. Sobre um herbário ilustrado do início da Era Moderna traduzido para o português: o livro Historia das plantas, de João Vigier. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 219-234, jul. dez. 2016., p. 222.
  • 11
    Medicina Lusitana e socorro délfico aos clamores da natureza humana para total profligação de seus males foi, segundo Timothy Walker, publicada em uma oficina de impressão lusófona em Amsterdã em 1710 e, depois, enviada clandestinamente para Portugal (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 108). A Biblioteca Nacional de Portugal guarda edições de 1710, 1731 e de 1750. Neste artigo, estamos utilizando a edição de 1731.
  • 12
    Aquilégio medicinal em que se dá notícia das águas de caldas, fontes, rios... refletia o entusiasmo que a filosofia natural exercia sobre a medicina na década de 1720, dedicando-se à exposição “das propriedades terapêuticas das termas de água quente e de outras águas naturais” (WALKER, 2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 108).
  • 13
    Ver análises desenvolvidas por ABREU, 2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011., especialmente, p. 90-91.
  • 14
    Mais informações sobre a biografia de Manoel Gomes de Lima podem ser consultadas em BORRALHO, 2003BORRALHO, M. L. O mito do legislador numa academia luso-espanhola. Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 0, p. 401-412, 2003., p. 403.
  • 15
    O autor traz, no próprio texto, uma nota biográfica: “Hermano Boerhaave natural de Voorhaut lugar vesinho de Leyden, e Cathedratico de Medicina (...) e naquela Cidade, mereceo neste seculo o titulo de INCOMPARAVEL, que (...), já ninguem lhe disputa a Europa. Naceo em 31 de Dezembro de 1668, e morreu em 23 de Setembro de 1738 com quase setenta annos de idade. Foi tão excellente medico, que muitos Principes o consultarão com a Oraculo” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 22). Segundo Walker (2013WALKER, T. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Trad. Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais, 2013., p. 112), Hermann Boerhaave “introduziu uma síntese sistemática dos conhecimentos médicos empíricos vigentes na Europa do século XVIII, ajudou a estruturar o moderno currículo da medicina ocidental e ensinou a uma geração de médicos europeus o seu método de observação do doente como meio de diagnóstico (...). Boerhaave recomendava que os estudantes adquirissem bases sólidas em ciências naturais, anatomia, fisiologia, patologia e, sobretudo, uma formação prolongada em prática clínica”.
  • 16
    Para o autor de O Praticante do Hospital convencido, “a cirurgia não é couza de moda, he couza de methodo; e methodo, que todos os dias se aperfeiçoa” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., Prólogo).
  • 17
    Inúmeras enfermidades tidas como “mais comuns” estavam divulgadas em obras como Aviso ao Povo sobre Sua Saúde, do médico suíço Samuel-André Tissot, que foi traduzida para o português (com muitas interferências e adaptações às doenças do reino) pelo médico Manuel Joaquim Henriques de Paiva. Entre elas, estavam doenças venéreas, febres, bexigas, inflamações, achaques, pleurisias, doenças da garganta, dores de dentes, reumatismo, bexigas e disenteria. Vale lembrar que Portugal enfrentou diversos momentos de epidemias entre o final do século XVII e as primeiras décadas do XVIII, dentre as quais destacamos, para Lisboa, o tifo, em 1717, e a febre amarela, em 1723 (BARBOSA, 2001BARBOSA, M. H. V. Crises de mortalidade em Portugal desde meados do século XVI até o início do século XX, Cadernos neps, Núcleo de Estudos de População e Sociedade, Universidade do Minho, Guimarães, p. 01-78, 2001., p. 16-19).
  • 18
    O tom agressivo adotado por Gomes de Lima nas referências que faz a outros cirurgiões pode ser atribuído a situações por ele vivenciadas alguns anos antes da publicação do livro O Practicante. Segundo Borralho (2003BORRALHO, M. L. O mito do legislador numa academia luso-espanhola. Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 0, p. 401-412, 2003., p. 403), em 1748, apesar de seu grande envolvimento no projeto de criação de uma Academia Chirurgica, Lima teria sido dela expulso e considerado “inapto”, “num processo pouco claro que passará pelas intrigas” com dois académicos, Alberto Sylva Freyre e Loureço Joze de Mello. Gomes Lima, no texto do prólogo de outra obra (Receptuario Lusitano), afirmou que os dois cirurgiões “fizerão todo o possivel por sepultallo no pelago do esquecimento”, pois “querem com [isso] eclipsar meu nome” (BORRALHO, 2003BORRALHO, M. L. O mito do legislador numa academia luso-espanhola. Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 0, p. 401-412, 2003., p. 403).
  • 19
    “Diz o grande Hippocrates, e consta das nossas quotidianas observaçoens, que he rara a Dor que não venha acompanhada de Febre” (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 51-52, 176).
  • 20
    Sobre a medicina tradicional e o equilíbrio humoral, ver PORTER; VIGARELLO, 2008PORTER, R.; VIGARELLO, G. Corpo, saúde e doenças. In: VIGARELLO, G. (Dir.). História do corpo. V. 1: Da Renascença às Luzes. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 441-486., p. 441-446.
  • 21
    A “correção alimentar permitia, antes de mais, facilitar a digestão e a absorção dos alimentos, tornando-os mais saudáveis”. Dentre os alimentos, as especiarias também eram utilizadas “como preventivos e curativos das mais diversas doenças, mas acima de tudo, tinham a capacidade, por serem quentes e secos, de transformarem os alimentos nocivos para a saúde, de que é exemplo o peixe, em alimentos equilibrados e saudáveis. (RAMOS In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015ARAÚJO, M. M. L.; ESTEVES, A. Hábitos alimentares e práticas quotidianas nas instituições portuguesas. Braga: Diário do Minho, Lda., 2015., p. 19; p. 30).
  • 22
    O autor refere o caso de um homem tísico, que, após ter consumido agrião e ter sido dado como curado, teve seu peito aberto com um punhal, sendo que a “mulher do pobre” o encontrou “defunto anatomizado”. O cirurgião, no entanto, teria sido “absolvido da pena que merecia aquele delito” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 170).
  • 23
    O autor cita inúmeras obras e autores, dentre os quais destacamos “Liçoens Chirurgicas sobre os Tumores”, de Alexandre Read, publicada em Londres, em 1635; “Chirurgo Svegliato, Desperto, ou Advertido”, de Sebastião Melli; além de fazer referência a outros “autores de fama”, como os médicos João Maria Lancisio, Fernando Carlos Weinhart e Friderico Hoffmanno (LIMA, 1756LIMA, Manoel Gomes de. O Practicante do Hospital convencido. Dialogo chirurgico sobre a inflamação. Fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave, e adornado de algumas observações chrirurgicas. Porto: na offic. Espiscopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1756., p. 29 e 13).
  • 24
    Na obra Âncora Medicinal também há referências à “cirurgiões peritos” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 160).
  • 25
    Azougue, segundo Bluteau (1728BLUTEAU, R. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728., p. 697-698), era um metal ou semi-metal pesado, volátil e penetrante. “O Azougue he veneno de todas as cousas”. Citando João Curvo, na obra “Polyanth. Medic.”, Bluteau continua: “tomado em substancia, não só não tem efeyto mas tem livrado a muytas pessoas de graves doenças, & achaques” (...) “Chamão-lhe Mercúrio”.
  • 26
    Embora fosse muito usada “na medicina lusitana, a sangria não era uma prática indiscriminada, havendo um esforço por parte de médicos e cirurgiões” em regulamentá-la (ABREU, 2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011., p. 91-92). O médico Fonseca Henriquez, em Medicina Lusitana (1731, p. 313), criticava os “médicos imperitos” que sangravam “em todo o froxo de sangue”. Seria “digna de correção a facilidade com que se chega a sangrar só porque apontou o sangue ao nariz, ou porque veyo hum escarro com sangue (...) e por outras muytas causas que não obrigão a este remédio, culpando sempre o sangue, e castigando as veas”.
  • 27
    Se os azeites eram muito utilizados, tal como a manteiga e a água ardente, em emplastros e unguentos, aplicados no tratamento de doenças cutâneas, o tabaco, costumeiramente, era fumado, injetado ou aplicado em clisteres, sendo tido como muito eficaz para as dores de cabeça, estômago e asma. (EDLER, 2006EDLER, F. C. Boticas & Pharmacias. Uma história ilustrada da Farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006., p. 26).
  • 28
    De acordo com Jean Neves Abreu (2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011., p. 95-96), em Medicina Lusitana (1731), encontramos uma receita de Henriquez “para curar sarnas na cabeça, que consistia em tomar ‘partes iguais de esterco de gado, de pombos, e de patos’, colocando-se tudo em uma panela vidrada, ‘com manteiga de porco velha’”. Também n a obra Âncora Medicinal, encontramos a indicação de excrementos de animais em receitas.
  • 29
    Cirurgia Anatomica traz o vinho como parte da composição de várias receitas indicadas pelo autor. Veja-se, por exemplo, o caso do fleimão, para o qual, caso se tornasse uma inflação ou gangrena, eram indicados tanto o vinagre quanto o vinho (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 117).
  • 30
    No tratamento de câncer de mama, o autor indicou: “Deytarse-ha a doente sobre a cama (...) Pega-se & se tira a mama com estas tenazes, & se corta de hum só golpe com huma faca muyto chata, curva, & bem afiada” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 244).
  • 31
    A referência às estações mais propícias para a realização de determinadas cirurgias aparece com alguma frequência na obra Cirurgia Anatomica. Para a “operação de catarata”, por exemplo, indicava-se a primavera e o outono como “os tempos mais convenientes” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 233).
  • 32
    É preciso considerar que “Se as elites até o século XVIII se alimentavam segundo as prescrições e aconselhamentos dos seus médicos, no que diz respeito à escolha dos alimentos, à maneira de os cozinhar, de os condimentar e de os comer, os pobres comiam o que possuíam e o estritamente necessário para conseguirem trabalhar e sobreviver (...)” (FERNANDES In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015FERNANDES, P. S. C. O papel dos alimentos na cura dos corpos no hospital de Penafiel (séculos XVIII-XIX). In: ARAÚJO, M. M. L.; ESTEVES, A. Hábitos alimentares e práticas quotidianas nas instituições portuguesas. Braga: Diário do Minho, Lda., 2015, p. 75-104., p. 78-79). De acordo com Ricardo Pessa de Oliveira, a alimentação do povo baseava-se “essencialmente, nos cerais e no vinho, alguma hortaliça e legumes, entrando alguma carne, peixe ou fruta” (OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, R. P. Para o estudo da alimentação no século XVIII: o agasalho dos prelados no decurso das visitas pastorais. Revista de História da Sociedade e Cultura, Coimbra/Viseu, Centro de História da Sociedade e Cultura, Palimage Editores, nº 10 (2010), p. 319-333., p. 332-333).
  • 33
    Ao longo do século XVIII, os médicos vinculam as diarreias ao “abuso de frutas mal sazonadas”. “Apesar de a medicina galênica associar as ervas e frutas à confecção de medicamentos para tratar de afecções, febres e doenças, a ingestão de legumes, vegetais e frutas cruas era vista com receios, pois julgava-se que provocavam interferências negativas nos humores e na qualidade do sangue, devendo, por isso, serem evitados” (FERNANDES In: ARAÚJO; ESTEVES, 2015ARAÚJO, M. M. L.; ESTEVES, A. Hábitos alimentares e práticas quotidianas nas instituições portuguesas. Braga: Diário do Minho, Lda., 2015., p. 99).
  • 34
    Soluções de água com algum outro elemento natural tomado por clister eram práticas comumente recomendadas à época. O médico Fonseca Henriquez, por exemplo, recomendava clister de caldo de cabeça de carneiro cozido em água para curar cólicas flatulentas (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 97).
  • 35
    Entre as referências que, possivelmente, inspiraram o médico Gomes de Lima nos conhecimentos das farmacopeias e dos reinos animal, vegetal e mineral estava a obra de Manoel Rodrigues Coelho, Pharmacopea Tubalense Chimico-Galenica, Parte Primeira. Oficina de Antonio de Sousa da Sylva, Lisboa, 1735.
  • 36
    Tumores poderiam ser de várias ordens, entre eles os “pestilenciais”, que acompanhavam os tempos de peste e os “venéreos” que apareceriam “depois do ato (...) com mulheres impuras” (LE CLERE, 1715LE CLERE, Monsieur. Cirurgia Anatomica, & completa. Por perguntas, e respostas, que contemos seus princípios, A Osteologia, a Myologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices, & compostas, as de armas de fogo, o modo de curar o morbo gallico, & o escorbuto, & a aplicação das ataduras, & aparelhos, as fracturas, dislocaçoens, & todas as operçoens chirurgicas. O modo de fazer a panacea mercurial, & de compor os remédios mais usados na Cirurgia. Traduzida em Portuguez por Joam Vigier. Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715., p. 143).
  • 37
    Entre muitos exemplos possíveis, recomenda-se ver as orientações para a cura de “pedra dos rins” dadas por Francisco da Fonseca Henriquez na obra Medicina Lusitana, dentre as quais está o consumo de leite de vaca com açúcar e gema de ovo, ou caldo de frangão cozido com malvas, entre outros (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUES, F. F. Medicina Lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 677-678).
  • 38
    Algumas de suas recomendações são - ao olhar contemporâneo - aparentemente supersticiosas, como aquela que aponta para a cura de nódoas do rosto com o “sangue de galinha toda negra” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 116). Outras parecem dialogar com os conhecimentos populares vigentes à época, como aquela que informa que atar ao braço esquerdo a cabeça do pássaro Melro ou os pés de uma lebre, os “homens atrevidos” tornar-se-iam “aptos para tratarem” de “negócios gravíssimos” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, F. F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1721]. [1721], p. 123).
  • 39
    Sobre a dietética na obra de Fonseca Henriquez, ver PALMESI, 2014PALMESI, L. Saber e sabor: corpo, medicina e cozinha na obra de Francisco da Fonseca Henriquez. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014..
  • 40
    Em relação a isso, ver ABREU, 2011ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2011., p. 157-159. É preciso, contudo, apontar para outra relação entre alimentação e doenças, a partir das diferenças observáveis entre a alimentação dos grupos economicamente mais favorecidos e a dos grupos mais pobres. Para Gonçalves Ferreira, a nobreza, o clero superior e a alta burguesia eram afetadas por doenças que estavam relacionadas com o consumo excessivo de alimentos muito cozidos e gordurosos, tais como a diabetes, a gota, a hipertensão, a arteriosclerose, a litíase, as doenças digestivas e as renais. No caso dos grupos populares as doenças decorriam, sobretudo, de uma alimentação deficiente, que provocava a carência de vitaminas minerais ou de proteínas (FERREIRA, 1990FERREIRA, F. A. G. História da saúde e dos serviços de Saúde em Portugal, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990., p. 185).
  • 41
    COELHO, Manuel RodriguesCOELHO, M. R. Pharmacopea Tubalense Chimico-Galenica, Parte Primeira. Oficina de Antonio de Sousa da Sylva, Lisboa, 1735.. Pharmacopea Tubalense Chimico-galenica, p. 133, Apud SANTOS, 2014, p. 196.
  • 42
    Idem, p. 457, Apud SANTOS, 1984SANTOS, E. O homem português perante a doença no século XVIII: atitudes e receituário. Revista da Faculdade de Letras. História, 2ª série, v. 1, Porto, p. 187-201, 1984., p. 196.
  • 43
    Em relação a esse óleo de nabos, o autor afirma que “Nós temos uzado do dito óleo muytas vezes com bom sucesso” (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUES, F. F. Medicina Lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 322).
  • 44
    Em relação às obras que discutimos nesse artigo, constatou-se que a denúncia do charlatanismo aparece muito mais na obra de Manoel de Lima, um autor que viveu em um contexto um pouco posterior ao dos outros médicos-autores cujas obras analisamos, o que não indica, no entanto, a ausência de críticas, que se fazem também presentes nas obras de Francisco Henriquez.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2019
  • Aceito
    28 Jan 2020
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