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Monçoeiros ou bandeirantes no rio Tietê? Representações visuais no Monumento às Monções e no brasão de Porto Feliz

Monçoeiros or bandeirantes on the Tietê River? Visual representations in the Monumento às Monções (Monsoons Monument) and in the coat of arms of Porto Feliz

Resumo

O presente artigo focaliza a representação das viagens fluviais no Monumento às Monções e nas versões do brasão de Porto Feliz, concebidos nas décadas iniciais do século XX. O artigo analisa os elementos constitutivos de tais suportes como dimensões visuais e materiais do projeto de construção do mito bandeirante, utilizado como instrumento de legitimação da hegemonia paulista no cenário nacional naquele contexto, e desenvolvido no Museu Paulista, por meio do projeto decorativo e das exposições encetados por Afonso d’Escragnolle Taunay, diretor da instituição de 1917 a 1945.

Palavras-chave:
monções; monumento; brasão; Museu Paulista

Abstract

The present article focuses on the representation of river trips in the Monumento às Monções (Monsoons Monument) and in the versions of the coat of arms of Porto Feliz, conceived in the early decades of the 20th century. The article analyzes the elements of such supports as visual and material dimensions of the construction project of the bandeirante myth, used as an instrument to legitimize the hegemony of São Paulo on Brazilian scene in that context, and developed at the Museu Paulista, through the decorative project and exhibitions initiated by Afonso d'Escragnolle Taunay, director of the institution from 1917 to 1945.

Key words:
monsoons; monument; coat of arms; Museu Paulista

Introdução

Em 1920, na cidade de Porto Feliz (SP), houve a inauguração do Monumento às Monções, esculpido pelo artista italiano Amadeu Zani e orientado por Afonso d’Escragnolle Taunay, diretor do Museu Paulista. Os recibos de pagamento aos pintores Oscar Pereira da Silva e Aurélio Zimmermann pela realização de telas encomendadas por Taunay para a instituição, baseadas em trabalhos dos desenhistas da expedição Langsdorff com cenas das viagens fluviais realizadas entre as províncias de São Paulo e de Mato Grosso no início do Oitocentos datam de 1919 e 1920. Ainda em 1921 o diretor submetia ao prefeito de Porto Feliz, Eugênio Motta, um projeto de brasão para a cidade, tendo como protagonista uma canoa no centro do escudo, o qual seria modificado em 1925 para figurar na escadaria monumental do Museu Paulista.

A iniciativa de representação visual das viagens fluviais em diversos suportes indica a produção intencional e simultânea de lugares de memória, nos anos 1910 e 1920, do fenômeno histórico das monções, que correspondeu às expedições que percorreram os rios entre Porto Feliz e Cuiabá no século XVIII e início do XIX. Regular a partir da década de 1720, com o descobrimento do ouro nos barrancos do rio Coxipó, a rota monçoeira trilhava uma rede fluvial, utilizada para o abastecimento das populações, fundação de vilas, povoamento do território e busca de metais preciosos.

Para Taunay (1953TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Relatos monçoeiros. São Paulo: Martins, 1953.), as monções correspondiam à fase derradeira das bandeiras, motivo pelo qual associava os monçoeiros aos bandeirantes. Entretanto, esses últimos eram homens que, partindo de São Paulo, chefiaram incursões temporárias pelo interior, majoritariamente por terra, cujo propósito era arrebanhar braços indígenas para o trabalho cativo nas vilas paulistas ou para sua comercialização com outras regiões da colônia. Com maior ocorrência ao longo do século XVII e início da centúria seguinte, as bandeiras de preação de mão de obra, de prospecção mineral e de criação de gado foram, a um só golpe, responsáveis tanto pelo aumento do conhecimento metropolitano sobre a América Portuguesa como pela escravização e extermínio de extensas parcelas das populações autóctones (SANTOS, 2009SANTOS, Márcio. Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734. São Paulo: Edusp, 2009.; BORREGO, 2019BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Perspetivas sobre a representação das monções no Museu Paulista e no Museu Republicano de Itu. MIDAS, v. 10, n. 10, 2019. Disponível em: https://journals.openedition.org/midas/1784 . Acesso em: 16 jun. 2019.
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).

As monções, por sua vez, não tinham esses objetivos como prioritários. Embora muitos buscassem enriquecer por meio da descoberta de metais preciosos e se valessem da força de trabalho indígena e negra escravizada, as expedições eram marcadamente fluviais, mercantis e, algumas, povoadoras (HOLANDA, 1990HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990. ; 1994HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.). Contudo, tais monções foram mobilizadas por Taunay para reforçar a construção do mito bandeirante, calcado na figura de um antepassado comum tido como audacioso e intimorato, protagonista do alargamento do território colonial e fundador da nacionalidade brasileira por meio de São Paulo.

A fabricação de uma ancestralidade vinculada aos primeiros troncos da terra, dos quais se depreendem noções de nobiliarquia, de herança constituída por laços de sangue, de heroísmo e de pioneirismo vinha sendo arquitetada pelos grupos dirigentes paulistas desde os anos finais do século XIX, com vistas ao fortalecimento do papel de São Paulo na República num contexto de conflitos interestaduais pelo controle político do governo federal (ABUD, 1986ABUD, Katia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo paulista, o bandeirante. 1986. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986.; FERREIRA, 2002FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Editora Unesp , 2002. ; FERRETTI, 2004FERRETTI, Danilo José Zioni. A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo (1856-1930). 2004. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.).

Data desse período um dos primeiros trabalhos de que se tem notícia acerca das monções, de autoria do médico e político portofelicense Cesário Nazianzeno de Azevedo Motta Magalhães Júnior. Em Porto-Feliz e as monções para Cuyabá, publicado em 1884MOTTA JR., Cesário. Porto-Feliz e as monções para Cuyabá. Almanach Litterario de São Paulo. São Paulo: José Maria Lisboa, 1884. no Almanach Litterario de São Paulo, ele exaltava sua cidade natal por meio da descrição das monções, posto que era no porto da antiga Araritaguaba que os embarques para Cuiabá eram realizados.

O autor compreendia as monções como sendo caravanas aparelhadas por particulares ou pelo Estado a fim de abastecer a região mineradora com os suprimentos necessários. Para tanto, os rios eram o caminho mais natural e econômico para se alcançar Cuiabá (MOTTA JR., 1884MOTTA JR., Cesário. Porto-Feliz e as monções para Cuyabá. Almanach Litterario de São Paulo. São Paulo: José Maria Lisboa, 1884.). Se nos anos iniciais os agentes das monções eram sertanistas, principalmente oriundos da cidade de São Paulo, a difusão das notícias concernentes às novas minas atraiu exploradores e comerciantes.

Ainda que para o autor o caráter mercantil fosse um dos aspectos definidores das monções, ele as inseria naquilo que denominava de tradição do espírito empreendedor, de coragem e de tenacidade da gente de São Paulo (MOTTA JR., 1884MOTTA JR., Cesário. Porto-Feliz e as monções para Cuyabá. Almanach Litterario de São Paulo. São Paulo: José Maria Lisboa, 1884.). Sendo assim, não era apenas a possibilidade de obtenção de lucro por meio do trato mercantil, que justificava a realização dessas viagens fluviais, mas sim a inspiração advinda do amor pelo desconhecido e do desejo de se aventurarem em excursões iguais que enchiam o peito daqueles que ouviam as histórias compartilhadas pelos que haviam retornado a Porto Feliz (MOTTA JR., 1884MOTTA JR., Cesário. Porto-Feliz e as monções para Cuyabá. Almanach Litterario de São Paulo. São Paulo: José Maria Lisboa, 1884.).

Como já mencionado, a associação entre paulistas e amor pelo desconhecido e a vinculação dessa personagem a palavras como empreendedor, coragem e tenacidade são ideias basilares do passado mítico de São Paulo, do qual o bandeirante é o principal expoente. Esse discurso teve como um de seus principais centros de irradiação o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), fundado em 1894, e que teve como seu primeiro presidente ninguém menos que Cesário Motta Jr.

Nesse artigo, buscamos analisar a representação das viagens fluviais no Monumento às Monções e nas versões do brasão de Porto Feliz e compreender os elementos constitutivos do conjunto escultórico e dos exemplares da heráldica como dimensões visuais e materiais1 1 Ancoramos tal proposta nas considerações de Ulpiano Bezerra de Meneses, para quem cultura visual e cultura material merecem ser estudadas como “a dimensão física, empírica, sensorial, corporal, da produção/reprodução social” (MENESES, 2003, p. 25). Para o historiador, as fontes iconográficas “não devem constituir objetos de investigação em si, mas vetores para a investigação de aspectos relevantes na organização, funcionamento e transformação de uma sociedade” (MENESES, 2003, p. 28), essa sim, o objeto de estudo, por excelência, da história. do projeto de construção do mito bandeirante, utilizado como instrumento de legitimação da hegemonia paulista no cenário nacional, e desenvolvido, no Museu Paulista, por meio do programa decorativo e das exposições orquestrados por Taunay, à frente da instituição de 1917 a 1945 (MATTOS, 2003MATTOS, Cláudia Valladão de. Da palavra à imagem. Sobre o programa decorativo de Affonso de Taunay para o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista , v. 6/7, n. 1, p. 123-145, 2003.; BREFE, 2005BREFE, Ana Cláudia. Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional 1917-1945. São Paulo: Editora Unesp, 2005. ).

Monumento às monções ou aos bandeirantes?

Encomendado por Cândido Nazianzeno Nogueira da Mota,2 2 Cândido Nazianzeno Nogueira da Mota também nascera em Porto Feliz e era primo de Cesário Nazianzeno de Azevedo Motta Magalhães Júnior. Secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Governo do Estado de São Paulo, presidido por Altino Arantes, o Monumento às Monções foi inaugurado em 26 de abril de 1920 (Figura 1). Nesse mesmo dia foram entregues oficialmente à população o ramal férreo Boituva-Porto Feliz, a estação ferroviária de Porto Feliz e o Parque das Monções, onde o conjunto escultórico se localiza próximo ao porto de embarque das antigas expedições fluviais.

Figura 1:
Monumento às Monções, Amadeu Zani, 1920, Porto Feliz.

A obra conta com uma coluna rostral de granito sobre uma êxedra em sólido suporte de cantaria, cujo acesso se dá por meio de três degraus. De acordo com Valéria Salgueiro, a coluna triunfal era uma forma de propaganda política nas cidades romanas e “foi de central importância para forjar o patriotismo e orgulho nacional nos estados modernos” (SALGUEIRO, 2008SALGUEIRO, Valéria. De pedra e bronze: um estudo sobre monumentos. O monumento a Benjamin Constant. Niterói: EdUFF, 2008. , p. 30).

Na face interna do encosto do banco de pedra semicircular, o escultor Amadeu Zani moldou três baixos-relevos em bronze com representações visuais de monções. No alto, a coluna é ornada com cornijas, em estilo dórico, sustentando uma esfera armilar, guarnecida pela cruz da Ordem de Cristo. Antigo instrumento de astronomia, empregado durante as grandes navegações da época moderna, se assemelha ao cosmo em miniatura. A esfera armilar é composta por um conjunto de anéis concêntricos articulados - as armilas - representando os corpos celestes que se movem ao redor da esfera central, o globo terrestre (SILVA, 2004SILVA, Valderez Antonio da. Fantasmas do rio: um estudo sobre a memória das monções no Vale do Médio Tietê. 2004. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.; HESSEL, 2006HESSEL, Rodolfo. Iconografia monçoeira: imagens e ideologia. 2006. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.).

No Monumento, a esfera armilar representa um elo entre os descobrimentos portugueses do século XV e as grandes expedições fluviais que, a partir do Setecentos, partiam de Porto Feliz com a intenção de explorar e povoar o extremo oeste do território americano, grande parte localizado além da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (SOUZA, 2006SOUZA, Jonas Soares de. A representação visual das monções. Itu, set. 2006. Disponível em: http://www.itu.com.br/artigo/a-representacao-visual-das-moncoes-20100202 . Acesso em: 10 jun. 2020.
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). Essa ideia de continuidade consolida-se por meio dos rostros que emergem da coluna central em quatro direções, simbolizando as proas das canoas dos paulistas que navegavam pelos rios a partir do Tietê, cujo curso se volta para o interior do continente.

Convidado a pronunciar a oração oficial de inauguração do monumento que contou com a presença da comitiva oficial e de cerca de 1500 pessoas, Afonso Taunay confirmou tal alegoria em seu discurso, “À glória das monções”. Ao enfatizar, em tom épico, que “os paulistas acostumados a fazer mais do que promete a força humana, hão de descobrir novos Eldorados” (TAUNAY, 1979TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. À glória das monções. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. LXXV, p. 126-141, 1979. Disponível em: http://ihgsp.org.br/revista-ihgsp-vol-75/ . Acesso em: 23 mar. 2020.
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, p. 131), estabeleceu laços diretos entre os destemidos navegantes paulistas e os heróis da expansão lusa glorificados nos versos d’Os Lusíadas: “As armas e os Barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana, / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram” (CAMÕES, s.d.CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. [S.l.: s.n.], [s.d.]. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000162.pdf . Acesso em: 16 out. 2022.
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, p. 1).

As ações do embarque, da partida e da navegação e os atos de coragem e desbravamento são também veiculados no Monumento pelos baixos-relevos em bronze no mural reproduzindo tanto os desenhos de Hercule Florence, Partida de uma expedição mercantil de Porto Feliz para Cuiabá, de 1826, e de Aimé-Adrien Taunay, A partida da expedição Langsdorff, no rio Tietê, de 1825, como a pintura Partida da monção, de autoria do pintor ituano José Ferraz de Almeida Júnior, de 1897.

Os desenhos de Taunay e Florence foram produzidos durante a expedição Langsdorff, da qual eram, respectivamente, o primeiro e o segundo desenhistas. Patrocinada pelo governo russo, percorrera extensos territórios no interior do Brasil, entre 1825 a 1829, do Tietê até o Amazonas. Entre os trechos de Porto Feliz e Cuiabá, a equipe de cientistas e artistas refez a rota das monções setecentistas por vontade deliberada de seu comandante, o que evidencia que as três imagens escolhidas como matrizes para os relevos em bronze foram produzidas em contextos de construção de memória das monções no início e no final do Oitocentos. Embora a Langsdorff guardasse traços materiais e práticas de navegação similares às monções do século XVIII porque percorreram o mesmo trajeto, usaram embarcações semelhantes e despenderam o mesmo tempo de viagem, elas não se confundem, pois não tinham os mesmos objetivos nem os mesmos personagens.

Entretanto, ao idealizar o Monumento com essas três representações, Afonso Taunay acabou por associar diretamente uma viagem científica do século XIX com as monções comerciais e de povoamento anteriores, e estas com as viagens da expansão marítima portuguesa no alvorecer da modernidade para a conquista e posse de territórios, dialogando com os elementos constitutivos da coluna rostral.

Mas as associações não se encerram no nível imagético; outras foram forjadas por meio das epígrafes presentes no Monumento. Imediatamente ao pé da coluna, no topo do mural, figura a inscrição “Aos Bandeirantes - Daqui partiu a primeira monção para o interior do Brasil no século XVII” (Figura 2). Por meio destas escrituras expostas (PETRUCCI, 1993PETRUCCI, Armando. Public lettering: script, power and culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. ) automaticamente se vincularam bandeiras e monções, e monçoeiros passaram a ser confundidos com bandeirantes.

Figura 2:
Detalhe das escrituras expostas no Monumento às Monções.

No discurso à frente do Monumento às Monções, a glorificação ao antepassado paulista como responsável pela posse do território e construção da nação para todos os brasileiros fica evidente:

Foram os filhos da colônia, os de S. Paulo, incomparavelmente mais que os outros, - quem o ignora? - a quem coube tornar enorme este Brasil que as bulas e tratados haviam condenado a ser mesquinho, apertado entre o Atlantico e o meridiano pouco generoso de Tordesilhas. Haveria de valer a este Brasil mutilado a arrancada paulista trazendo-lhe milhões de quilômetros quadrados, tomados ao espanhol, através da selva ignota e misteriosa, cheia de espanto e terror. (TAUNAY, 1979TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. À glória das monções. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. LXXV, p. 126-141, 1979. Disponível em: http://ihgsp.org.br/revista-ihgsp-vol-75/ . Acesso em: 23 mar. 2020.
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, p. 128).

A associação entre monções e bandeiras no monumento ainda é reforçada pelo destaque a um bandeirante imortalizado nos versos do poeta brasileiro Olavo Bilac, igualmente inscritos na pedra: “E subjugando o olvido através das idades, violador dos sertões, plantador de cidades, dentro do coração da pátria viverás”. Contudo, não podemos atribuir a Taunay a escolha dos versos, pois ele demonstrou veementemente sua insatisfação ao comentar, em 1943, em artigo de jornal sobre a iconografia monçoeira, que “As inscrições do monumentozinho é que são detestáveis e ineptíssimas” (TAUNAY, 1943TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Iconografia das monções. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 maio 1943., p. 2). O que se deduz é que devem ter sido iniciativa do escultor, ou quiçá, do próprio encomendante.

Os versos fazem parte do poema O caçador de esmeraldas, publicado em 1902, composto por quatro cantos, num total de 276 versos alexandrinos, divididos em sextilhas. Seguindo o modelo clássico de poema narrativo, conta a aventura e a morte de Fernão Dias Pais durante a “bandeira das esmeraldas” (SALES, 2012SALES, José Batista de. “O caçador de esmeraldas”, de Olavo Bilac: continuidade e rupturas na configuração de um gênero. Signótica, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 73-85, jan./jun. 2012., p. 73), ocorrida entre 1674 e 1681, no sertão de Minas Gerais, podendo ser tomado como a representação literária da ação dos bandeirantes no interior do território.

Não só a bandeira das esmeraldas e a morte de Fernão Dias Pais ocorreram em locais distantes do porto de partida das monções e das minas de Cuiabá, como distantes também estavam dos propósitos da Langsdorff. Contudo, no monumento, os três fenômenos distintos ocorridos em tempos diferentes - séculos XVII (bandeiras), XVIII (monções), XIX (expedições científicas) - são justapostos para serem lidos visualmente como um movimento único paulista de expansão que atravessou os séculos e que, no momento da inauguração, descortinava o território por meio dos trilhos da ferrovia.

Se tempo e espaço não podem ser definidos precisamente na estrutura narrativa da escultura monumental (KNAUSS, 2010KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, p. 1-12, out./dez. 2010. Disponível em: http://dezenovevinte.net/obras/pknauss.htm . Acesso em: 18 dez. 2019.
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), o sujeito da história, por outro lado, deve ser tomado como uma única personagem - o paulista - cujo produto da ação sempre fora e era, naquele momento, expandir o território, espacial ou economicamente. A chave de leitura a explicar o uso do passado no presente está na inscrição “Aos bandeirantes”. A dedicação da obra aos sertanistas implicitamente dirigia-se também aos seus sucessores, os monçoeiros e os cafeicultores.

O Monumento às Monções em diálogo com outros monumentos

Na esteira da estatuomania francesa e inglesa (HOBSBAWM; RANGER, 1997HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (ed.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. ), várias cidades brasileiras vivenciaram um processo de construção de nacionalidade e pedagogia cívica por meio da ereção de monumentos históricos a partir de meados do século XIX e durante o século XX (KNAUSS, 2009KNAUSS, Paulo. Do Academicismo ao Art Déco: arquitetura e escultura pública no Rio de Janeiro. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v. 170, n. 444, p. 379-391, jul.-set. 2009.; VIANA, 2019VIANA, Helder do Nascimento. A construção do espaço cívico: monumentos e rituais de memória na Natal republicana (1902-1922). Anais do Museu Paulista , v. 27, p. 1-44, 2019. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/138800 . Acesso em: 22 ago. 2020.
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). De acordo com Michelli Scapol Monteiro, essa vaga escultórica intensificou-se após o início do regime republicano, em 1889, cujos dirigentes “estavam ansiosos por enaltecer os personagens que elegiam como heróis da pátria em monumentos escultóricos” (MONTEIRO, 2017MONTEIRO, Michelli Scapol. São Paulo na disputa pelo passado: o monumento à Independência de Ettore Ximenes como lugar de memória. 2017. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 16). É nesse contexto de construção de uma visualidade republicana, portanto, que compreendemos, ao lado do mito bandeirante, a concepção e os elementos constitutivos do Monumento às Monções, relacionando-o com três outros monumentos erguidos na cidade de São Paulo no mesmo período.

De remota tradição, a coluna utilizada como elemento central no monumento de Porto Feliz fez parte do monumento Glória imortal aos fundadores de São Paulo, também de autoria de Amadeu Zani, inaugurado em São Paulo em 1925, mas cujo concurso para homenagear os personagens históricos responsáveis pela fundação da cidade remonta a 1909. A maquete de Zani recebera parecer favorável da comissão julgadora justamente devido ao seu aspecto majestoso com destaque para a escolha de uma coluna porque era “encontrada na arquitetura de todos os povos” (UHLE, 2015UHLE, Ana. Operários da memória: artistas escultores do início do século XX e o concurso do monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo. Anais do Museu Paulista , v. 23, n. 2, p. 139-163, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0101-47142015000200139&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 22 ago. 2020.
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, p. 154). É de supor, portanto, que Zani tenha optado por repetir a coluna, dessa vez rostral, no Monumento às Monções, em razão do sucesso no concurso da outra obra.

Quanto aos três baixos-relevos alusivos à partida de expedições fluviais presentes no Monumento às Monções, vale a pena mencionar que esta forma escultórica além de ser utilizada por Zani em Glória imortal, era cara a Afonso Taunay.

Em primeiro lugar, ele fez parte da comissão julgadora do concurso para eleição da maquete do monumento em homenagem à independência, cujo centenário seria celebrado em 1922. O concurso se desenvolvera entre 1917 e 1920 e o conjunto estatuário vencedor foi aquele apresentado por outro escultor italiano, Ettore Ximenes. O parecer de Taunay a favor do projeto de Ximenes precisamente valorizou sua ideia de transportar para o monumento em alto-relevo o quadro de Pedro Américo, Independência ou morte!, pertencente ao Museu Paulista.

Ademais, desde o início de sua gestão no museu, Taunay já preparava a instituição para a efeméride de 1922TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. O Museu Paulista. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, ano III, n. 28, 22 dez. 1922. , criando a história da nação por intermédio de uma narrativa visual capaz de explicar o Brasil como uma unidade territorial e simbólica a partir da cidade de São Paulo e dos bandeirantes (BREFE, 2005BREFE, Ana Cláudia. Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional 1917-1945. São Paulo: Editora Unesp, 2005. ). Para tanto, o passado colonial paulista fora recriado em várias salas por meio de pinturas encomendadas por ele tendo como matrizes os desenhos de vários artistas viajantes, mas, sobretudo, de Hercule Florence, em face da escassa produção iconográfica colonial sobre São Paulo.

Tão logo teve em mãos os desenhos facultados pelos filhos de Florence - Paulo e Guilherme - Taunay mandara “reproduzir os desenhos do ilustre naturalista em quadros a óleo, ampliando-os para os tornar mais comprehensiveis, embora conservando-lhes todos os característicos de documento que os torna tão preciosos” (TAUNAY, 1922TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. O Museu Paulista. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, ano III, n. 28, 22 dez. 1922. , p. XI-XII).

Os desenhos originais, muitos deles não coloridos e de tamanhos reduzidos, não permitiriam a eficácia na sua função pedagógica, e não possuíam o grau de enobrecimento, respeitabilidade e prestígio que detinha a pintura; daí Taunay solicitar que os artistas os ampliassem (LIMA; CARVALHO, 1993LIMA, Solange; CARVALHO, Vânia. São Paulo Antigo, uma encomenda da modernidade: as fotografias de Militão nas pinturas do Museu Paulista. Anais do Museu Paulista, São Paulo, n. 1, p. 147-178, 1993.; LIMA JÚNIOR, 2018LIMA Jr., Carlos. Da pena ao pincel: o passado paulista (re)criado nas encomendadas de Afonso Taunay a Oscar Pereira da Silva. Anais do Museu Paulista, v. 26, p. e34, 29 nov. 2018. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/140262 . Acesso em: 19 mar. 2020.
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), e, no caso do Monumento às Monções, que os moldassem em bronze em maiores dimensões.

Como decorrência dessa determinação, foram pintadas as telas Partida de Porto Feliz, por Oscar Pereira da Silva, em 1920, com base na aquarela de Aimé-Adrien Taunay, A partida da expedição Langsdorff, no rio Tietê (TAUNAY, 1920TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Ofício] Destinatário: Secretário do Interior do Estado de São Paulo. São Paulo (SP), 17 jul. 1920. APESP.), e Benção das canoas, de Aurélio Zimmermann, em 1919, com base no desenho de Hercule Florence, Partida de uma expedição mercantil de Porto Feliz para Cuiabá (TAUNAY, 1919aTAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Ofício] Destinatário: Secretário do Interior do Estado de São Paulo. São Paulo, jun. 1919a. Museu Paulista da USP.).

Ora, tais pinturas tiveram como matrizes os mesmos desenhos dos artistas da expedição Langsdorff reproduzidos em bronze no Monumento às Monções (Figuras 3, 4, 5, 6). O ofício enviado por Afonso Taunay ao secretário dos negócios do interior do Estado de São Paulo, Oscar Rodrigues Alves, confirma ter sido ele próprio o idealizador dos baixos-relevos, na medida em que comunica a seu superior que havia entregado pessoalmente, em 9 de julho de 1919, ao Secretário da Agricultura, Candido Motta,

dous desenhos reproduzindo scenas do antigo Porto Feliz, de que conta utilizar-se para o monumento projectado naquela cidade; estes desenhos como tive a ocasião de informar a V. Excia. da lavra do desenhista do Museu, e outrora expostos, estão hoje substituídos pelas copias que deles mandei fazer em pintura a oleo. (TAUNAY, 1919bTAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Candido Motta. São Paulo, 9 jul. 1919b. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). ).

Já para o terceiro baixo-relevo, o diretor do Museu Paulista não teve a necessidade de enviar um desenho para o encomendante do monumento, pois a matriz fora a própria tela de Almeida Júnior, finalizada em 18973 3 A pintura de Almeida Júnior pertenceu ao acervo do Museu Paulista entre 1902 e 1905, quando foi transferida para compor o acervo inicial da Pinacoteca do Estado. A tela retornaria ao Museu Paulista em 1929 após reiterados pedidos de Taunay, que preparou uma sala especialmente para recebê-la, onde foi concebida uma exposição consagrada às monções e a Almeida Júnior, que ficaria montada até 1939. (Figuras 7 e 8). Para Taunay, Partida da monção fazia parte do mesmo processo de construção da memória das monções nas artes plásticas a partir do referencial de Hercule Florence; daí estarem as três imagens lado a lado no conjunto escultórico.4 4 Em vários escritos, Taunay (1937, p. 71; 1943, p. 2) apontou a Partida de uma expedição mercantil de Porto Feliz para Cuiabá, de Hercule Florence, como matriz visual de Partida da Monção, de Almeida Júnior, intitulando-a, por vezes, de Benção das canoas, curiosamente o nome da tela de Aurélio Zimmerman, encomendada por ele para o Museu Paulista. Mais recentemente, Carlos Lima Júnior (2018, p. 17-18) questionou a associação entre as obras de Almeida Júnior e Florence em face de uma correspondência de Benedito Calixto, que colocava em dúvida o prévio conhecimento do desenho de Florence pelo pintor.

Figura 3:
Baixo-relevo em bronze baseado na aquarela de Hercule Florence, Partida de uma expedição mercantil de Porto Feliz para Cuiabá, 1826. Fotografia: Marcos Steiner

Figura 4:
Benção das canoas, Aurélio Zimmermann, 1920, óleo sobre tela, 100 x 135 cm. Museu Paulista - USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael

Figura 5:
Baixo-relevo em bronze baseado na aquarela de Aimé-Adrien Taunay, A partida da Expedição Langsdorff, no Rio Tietê, 1825. Fotografia: Marcos Steiner

Figura 6:
Partida de Porto Feliz, Oscar Pereira da Silva, 1919, óleo sobre tela, 140 x 170 cm. Museu Paulista - USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael

Figura 7:
Baixo-relevo em bronze baseado na tela de Almeida Júnior, Partida da monção, 1897. Fotografia: Marcos Steiner

Figura 8:
Partida da monção, José Ferraz de Almeida Júnior, 1897, óleo sobre tela, 390 x 640 cm. Museu Paulista - USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael

Esse processo correlato indica que vários lugares de memória (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.) estavam sendo simultaneamente construídos com a participação de círculos convergentes de artistas, intelectuais e políticos. O próprio Amadeu Zani seria responsável, nos anos 1920, pela execução de duas esculturas de bandeirantes em bronze - Paschoal Moreira Cabral e Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera - para figurarem na escadaria principal do Museu Paulista (MATTOS, 2003MATTOS, Cláudia Valladão de. Da palavra à imagem. Sobre o programa decorativo de Affonso de Taunay para o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista , v. 6/7, n. 1, p. 123-145, 2003.).

Por fim, é digno de nota que a escolha dos versos de Olavo Bilac não foi fortuita. Embora não mais tivesse se dedicado aos bandeirantes em sua obra, o próprio poeta os considerava como inspiradores do papel dos escritores e dos artistas em geral na formação da nacionalidade da nascente República (FRANCHETTI, 2009FRANCHETTI, Paulo. Olavo Bilac e a unidade do Brasil republicano. Sibila - Revista de poesia e crítica literária, São Paulo, ano 18, 2009. Disponível em: https://sibila.com.br/mapa-da-lingua/olavo-bilac/2736 . Acesso em: 10 jun. 2019.
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).

Segundo Lúcia Lippi de Oliveira, no início do período republicano havia duas linhas principais de interpretação sobre o Brasil, assentadas na trajetória política do país: a vertente conservadora do nacionalismo, encabeçada por Eduardo Prado, e a vertente do nacionalismo republicano, representada por Raul Pompéia. Entretanto, havia ainda uma outra perspectiva, a ufanista, preconizada por Olavo Bilac, que via a nacionalidade como fruto das condições naturais da terra aliadas aos valores das três raças fundantes da nação (OLIVEIRA, 1990OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense , 1990.).

Para Bilac, no processo de construção da identidade nacional a grande imprensa tinha um papel a ser considerado, pois era o veículo privilegiado por meio do qual os literatos podiam difundir suas ideias e se comunicar com o público (OLIVEIRA, 1990OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense , 1990.). No discurso “Minha geração literária”, proferido no banquete a ele oferecido pela sociedade do Rio de Janeiro no Palace-Théatre, em 1907, Bilac afirmou que:

De certo ponto de vista, podemos dizer que representamos, para o progresso intelectual do Brasil, na última metade do século XIX, o mesmo papel que para o seu progresso material representaram no século XVII os heróis das ‘bandeiras’: nós também varamos léguas e léguas de desertos morais, nós também desbravamos sertões, nós também fundamos cidades. (BILAC, 1924BILAC, Olavo. Últimas conferências e discursos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1924. 382 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4552. Acesso em: 23 mar. 2020.
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, p. 79).

Bilac era considerado o príncipe dos poetas brasileiros. Adorado em vida, foi venerado no período subsequente à sua morte, em 1918, tanto que estudantes e professores da Faculdade de Direito de São Paulo decidiram erguer um monumento em sua memória, que viria a público em 7 de setembro de 1922. De autoria do artista sueco William Zadig, o conjunto escultórico era enorme, encimado pela figura do poeta e trazia à sua esquerda o bandeirante Fernão Dias Paes, o principal personagem do poema O caçador de esmeraldas (SCHNEIDER, 2019SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de História Intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil. São Paulo: Alameda, 2019. ), cujos versos foram reproduzidos no Monumento às Monções.

No dia do lançamento da pedra inaugural, 25 de abril de 1920, o discurso do estudante Alcides Sampaio parece sintetizar o espírito público e político que conduzia a vaga escultórica daquele momento. Dizia ele:

Os monumentos e as comemorações são, sem dúvida, os meios mais proveitosos, práticos e seguros, para gravar no espírito do povo as proezas de um herói, a grandeza de um nome ou a importância e significação de um acontecimento. Os monumentos marcam indelevelmente as tradições de glória e honra de uma raça. Assim sendo, edifiquemos este, porque sem tradição não há nem alma nacional nem civilização possível. (O ESTADO DE S. PAULO, 1920O MONUMENTO a Olavo Bilac. Lançamento da primeira pedra. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1920, n. 15.085, p. 3., p. 3).

Tais palavras coadunam-se com aquelas proferidas por Afonso Taunay no discurso pronunciado em frente ao Monumento às Monções, que procurava ali criar um lugar de memória ao rememorar o passado paulista pelos feitos dos bandeirantes. Se entre os monçoeiros não havia heróis de destaque em razão da própria natureza comercial das expedições fluviais, o poema de Bilac oferecia um, o bandeirante Fernão Dias Paes, ainda que deslocado espacial e temporalmente do movimento das monções e ainda mais das expedições científicas. Como o personagem do poema não era evidente, requerendo conhecimento para sua identificação, era fundamental que fosse explicitado ao povo. A inscrição na pedra “Aos bandeirantes” cumpriu esse objetivo.

As monções no Museu Paulista e o brasão de Porto Feliz

Se os bandeirantes adentraram o Museu Paulista pela iniciativa de Afonso Taunay, ele também foi o responsável por levar os monçoeiros para a instituição, ainda que, por vezes, uns fossem tomados pelos outros, tal qual como ocorrera na composição do Monumento às Monções.

Em 1922 foi inaugurada a sala consagrada à antiga iconografia paulista e lá estavam expostas não só as telas mencionadas anteriormente - de Oscar Pereira da Silva e Aurélio Zimmermann -, mas um conjunto de cinco pinturas dedicadas ao tema das monções, quatro tendo por base desenhos de Florence. Em 1924, depois de sete anos de tratativas, Afonso Taunay conseguiu levar para a instituição o beque de proa de um canoão de peroba, com cerca de 3,5 m de comprimento, encontrado no rio Tietê (BORREGO et al., 2019BORREGO, Maria Aparecida et al. Trajetória e reconstituição digital de uma canoa do Museu Paulista - USP. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 27, p. 1-41, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-02672019v27e18d1 . Acesso em: 23 mar. 2020.
https://doi.org/10.1590/1982-02672019v27...
).

Finalmente, em 1929, como mencionado, Taunay destinou uma sala consagrada às monções e a Almeida Júnior. Em face da pintura, dispôs o cavalete e a caixa de tintas do pintor e “um belo vaso de bronze, de De Giusto, suportando uma amphora com água do Tietê, colhida em Porto Feliz” (TAUNAY, 1937TAUNAY, Afonso d’Escargnolle. Guia da Secção Histórica do Museu Paulista: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1937., p. 71), cumprindo a promessa feita no discurso proferido na inauguração do Monumento às Monções:

no dia em que um monumento nacional como este que se vai erigir aos homens da nossa Independência se erguer a estes filhos de S. Paulo, portadores das quinas ao coração do continente e doadores ao Brasil, de milhões de quilômetros quadrados de territórios admiráveis, fiquemos certos de que a tal monumento não pode faltar o lugar para a ânfora d’água do rio das bandeiras paulistas! (TAUNAY, 1979TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. À glória das monções. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. LXXV, p. 126-141, 1979. Disponível em: http://ihgsp.org.br/revista-ihgsp-vol-75/ . Acesso em: 23 mar. 2020.
http://ihgsp.org.br/revista-ihgsp-vol-75...
, p. 140).

Mas as monções e Porto Feliz igualmente tiveram lugar no eixo monumental por meio do escudo da cidade, integrante da galeria dos brasões, inaugurada no início de 1926 como um conjunto de elementos celebrativos, tendo a princípio como mote a inserção naquele espaço privilegiado de representações das mais antigas cidades do Estado, as “cidades bandeirantes” (RELATÓRIO, 1926RELATÓRIO referente ao ano de 1925, apresentado a 28 de janeiro de 1926, ao Excelentíssimo Senhor Secretário do Interior, Doutor José Manoel Lobo, pelo diretor do Museu Paulista Afonso d’Escragnole Taunay. Museu Paulista da USP., p. 23). Tal galeria, ao que tudo indica, não parece ter feito parte do projeto expositivo de Taunay para as comemorações do Centenário da Independência, mas planejada como acréscimo ao bloco de componentes simbólicos a reforçar o plano estruturado para a efeméride havia pouco celebrada.5 5 Até o momento, nada foi localizado em relação ao projeto dos brasões como já constituinte da proposta de decoração para 1922. Importante ressaltar que tal programa só passa a ser comentado quando do contato com as prefeituras para aprovação dos escudos como armas oficiais e posterior confecção dos painéis para o Museu Paulista. As primeiras referências despontam na troca de correspondência entre Taunay e políticos das municipalidades a partir de meados de 1924 e em menção no relatório de atividades do Museu Paulista referente às atividades de 1925. Foram inaugurados nove painéis com os brasões de São Paulo, Parnaíba, São Vicente, Sorocaba, Porto Feliz, Itu, Taubaté, Santos e Itanhaém, parte deles concebida por Taunay a partir de 1924.6 6 O brasão da cidade de São Paulo foi elaborado por José Wasth Rodrigues e Guilherme de Almeida a partir de concurso para o qual Taunay foi convidado a compor o júri de seleção. Benedito Calixto idealizou os de Itanhaém e São Vicente, além de ter adaptado o de Santos.

Todavia, em relação ao brasão de Porto Feliz, Taunay elaborara um primeiro projeto no final de 1921TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Eugênio Motta. São Paulo, 16 dez. 1921. Arquivo Público e Histórico Municipal “Sérgio Buarque de Holanda”., pouco depois da inauguração do Monumento às Monções, a partir de solicitação daquela municipalidade ainda imbuída pelos acontecimentos próximos. Em 16 de dezembro daquele ano encaminhara carta ao então prefeito de Porto Feliz, coronel Eugênio Motta, para submeter o brasão por ele esboçado à Câmara Municipal a fim de ser aprovado o uso como símbolo oficial. Na missiva, descreveu o projeto, adicionando uma aquarela para melhor visualização:

[…] num escudo portuguez de campo azul colloco um canoão, do typo dos que navegavão, nas monções, armado de seus remos, côr de ouro, e supportado por uma banda verde que simulará o Rio Tietê. Ao escudo encima a corôa mural das cidades, também côr de ouro, e onde inscrevo o nome Araraytaguaba, denominação antiga de Porto Feliz, como V. Ex. tanto sabe, mais tarde contrahida em Ararytaguaba. Como timbre colloco uma arara de azas abertas e bicando uma das ameias da torre central da corôa mural, gesto que traduz como V. Ex. sabe a etymologia da palavra Araraytaguaba: pedra onde as araras pousam para comer, segundo uns, pedras que as araras bicam, segundo outros. Como supportes colloco ramos de canna e de algodão symbolizando as duas grandes culturas do municipio de Porto Feliz. Como divisa escolhi a seguinte: “Muito ao longe levei as fronteiras do Brasil”: Perlonge tuli Brasiliae fines. (TAUNAY, 1921TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Eugênio Motta. São Paulo, 16 dez. 1921. Arquivo Público e Histórico Municipal “Sérgio Buarque de Holanda”., p. 1-2).7 7 A correspondência foi recentemente doada ao Arquivo Público e Histórico Municipal Sérgio Buarque de Holanda, em Porto Feliz, e nos cedida uma cópia por Janaína Soares de Souza Piva Mancio de Camargo, a quem agradecemos.

Os brasões são distintivos de uma nação, cidade ou família, possuindo regras específicas para elaboração (TOSTES, 1983TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. Princípios de heráldica. Rio de Janeiro: Fundação Mudes, 1983. ; LUZ, 1999LUZ, Milton. A história dos símbolos nacionais: a bandeira, o brasão, o selo, o hino. Brasília: Senado Federal, 1999. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1099 . Acesso em: 17 ago. 2019.
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). Podem traduzir, a partir de atributos rigorosos, episódios históricos; questões ligadas à ocupação territorial; elementos tradicionais; situação topográfica; principais produtos agrícolas, comerciais e industriais; monumentos; crenças religiosas ou personalidades.

A explicação de Taunay, bastante didática, esclarece o que compõe o brasão: o formato do escudo, o timbre utilizado, o uso da coroa mural, os suportes e a divisa. O escudo é a parte central do brasão. O formato português foi o mais utilizado na Península Ibérica, tendo como principal característica a borda inferior arredondada em semicírculo. Na América, o uso relembra os colonizadores. Na heráldica8 8 A heráldica refere-se simultaneamente à arte e à ciência que determina, produz e estuda os brasões de armas ou escudos; interpreta as origens e o significado simbólico utilizados (TOSTES, 1983, p. 13). , a cor é também denominada esmalte. O azul (blau) representa a justiça, a lealdade e, igualmente, remete ao céu. Há os metais, como o dourado, que da mesma forma exprime a justiça, e ainda a bondade, o poder e a constância. Por cima do escudo, a coroa mural - formada por muralha e torre - utilizada nas armas das cidades, com ameias - as reentrâncias retangulares alternadas com as saliências -, rematando a coroa. O timbre - no caso, a arara - é a figura assentada sobre a coroa mural. Ladeiam o escudo os suportes, representações de animais ou figuras inanimadas, ou os tenentes, quando tais elementos se relacionam com figuras humanas, anjos ou entidades mitológicas. Como divisa entende-se uma sentença, escrita sobre listel, com poucas palavras e expressa como mote, síntese, lema, - ornato em forma de faixa larga com dobras. O rio é figurado por faixa ondulada próxima ao centro (Figura 9).

Figura 9:
Reprodução da primeira versão do brasão de Porto Feliz, 1921. Caderno de recortes de Afonso Taunay XVI -1920TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Ofício] Destinatário: Secretário do Interior do Estado de São Paulo. São Paulo (SP), 17 jul. 1920. APESP.-1921. Coleção Afonso Taunay. Museu Paulista USP. Reprodução: Ana Paula Nascimento.

Na mesma correspondência acrescenta que mostrara o projeto a Washington Luis, dando destaque para o fato de reunir no escudo diversos elementos que referenciavam a denominação indígena de Porto Feliz e o papel da cidade na expansão do território nacional, sem contudo relacionar a denominação com a população primeira da região. Por fim, diz que escolhera o dourado para o canoão para evocar as expedições que traziam ouro do Mato Grosso a partir daquela localidade. Finaliza indicando que ficaria grato se o brasão fosse aprovado pelos poderes municipais, tornando-se símbolo oficial “dessa illustre e tradicional cidade, ponto de partida das gloriosas monções” (TAUNAY, 1921TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Eugênio Motta. São Paulo, 16 dez. 1921. Arquivo Público e Histórico Municipal “Sérgio Buarque de Holanda”., p. 2), como um desdobramento das ações efetivadas para relacionar atividade econômica, cidade, rio, monumento, território.

A resposta não tarda. Ofício enviado pela Câmara Municipal de Porto Feliz para TaunayTAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Eugênio Motta. São Paulo, 16 dez. 1921. Arquivo Público e Histórico Municipal “Sérgio Buarque de Holanda”.,9 9 Parcialmente reproduzido, assim como a carta enviada por Taunay para as autoridades de Porto Feliz, datada de 16 de dezembro de 1921, em: O BRASÃO da cidade. O Novo Porto, Porto Feliz, 1o janeiro de 1922. Caderno de recortes de Afonso Taunay XVI - 1920-1921. Coleção Afonso Taunay. Museu Paulista da USP. em 30 de dezembro de 1921 (ALBUQUERQUE et al., 1921ALBUQUERQUE, Boanerges; VERCELLINO, Mario Pedro; MOTTA, Eugênio; SILVINO, José; CASTRO, Antonio Luiz de; VICENTE, (ilegível); ALVES, Deoclecio Deocleciano. [Correspondência]. Destinatário: Afonso d’Escragnolle Taunay. São Porto Feliz, 30 dez. 1921, 3 p. Museu Paulista da USP.), relata a aprovação do escudo e adoção oficial, e que este fora exposto no Paço Municipal antes da votação. Em tom elogioso, são ressaltados o conjunto e a concepção de símbolos evocativos do passado daquela cidade. Destaca a ampla divulgação pela imprensa e que a ligação do historiador àquela cidade existe desde o discurso proferido quando da inauguração do Monumento às Monções. Por fim, acrescenta: “[…] V. Ex. tem exaltado a conquista do Brasil pelos brasileiros, com as preciosas pesquisas do bandeirantismo, assunto sobremodo caro a todos os que prezamos a tradição nacional” (ALBUQUERQUE et al., 1921ALBUQUERQUE, Boanerges; VERCELLINO, Mario Pedro; MOTTA, Eugênio; SILVINO, José; CASTRO, Antonio Luiz de; VICENTE, (ilegível); ALVES, Deoclecio Deocleciano. [Correspondência]. Destinatário: Afonso d’Escragnolle Taunay. São Porto Feliz, 30 dez. 1921, 3 p. Museu Paulista da USP., p. 2, grifos nossos). Novamente, monções e bandeiras são relacionadas tendo como aspecto agregador a ampliação do território nacional, mas não estão explicitamente amalgamadas no escudo.

Quando estrutura a concepção dos brasões em projeto mais global - o do conjunto a ocupar inicialmente a escadaria monumental - Taunay encaminha ofícios para políticos dos municípios dos quais pretendia inserir as armas no espaço interno do Museu, como o que remete em 7 de março de 1925 para o prefeito de Porto Feliz (TAUNAY apudHESSEL, 2006HESSEL, Rodolfo. Iconografia monçoeira: imagens e ideologia. 2006. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006., p. 85), capitão Henrique Sampaio, no qual explica que compora anteriormente um brasão aprovado pela referida cidade e que desejava naquele momento inserir o emblema de Porto Feliz na escadaria do Museu sobre a estátua do bandeirante Manoel da Borba Gato.10 10 Escultura de autoria do escultor Nicola Rollo representando a separação dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, o que parece corroborar a hipótese de não haver uma proposta anterior elaborada para o conjunto de brasões. Complementa que gostaria de aprimorar o projeto anteriormente concebido e aprovado, com a inserção de “dois bandeirantes vestidos a caráter, o que dará um grande realce ao projeto” (TAUNAY apud HESSEL, 2006HESSEL, Rodolfo. Iconografia monçoeira: imagens e ideologia. 2006. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006., p. 85, grifos nossos).11 11 A indumentária aludida por Taunay para os bandeirantes baseia-se em gravura de Jean-Baptiste Debret, Sauvages civilisés, soldats indiens de Mugi das Cruzes (Province de S. Paul) combattant des botocoudos [Selvagens civilizados, soldados índios de Mogi das Cruzes (Província de São Paulo) combatendo os botocudos], prancha no 21 do primeiro volume da publicação Voyage pittoresque. A partir desta gravura o gibão almofadado com losangos, o chapéu, a bota e o bacamarte tornaram-se parte da imagem atribuída aos bandeirantes no século XX (DEBRET, 1834). Dessa maneira, Taunay sugere encaminhar um novo projeto para aprovação pela Câmara. Diante da resposta positiva, nova missiva é encaminhada por Taunay após uma semana, agradecendo a autorização para alteração no escudo de Porto Feliz (TAUNAY, 1925TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. [Correspondência]. Destinatário: Henrique Sampaio. São Paulo, 14 mar. 1925. APESP.) e, em 10 de junho de 1925, remete o projeto para aquela cidade, possivelmente uma aquarela semelhante a que faz parte do acervo do museu (Figura 10) (SECRETÁRIO, 1925SECRETÁRIO do Museu Paulista. [Correspondência]. Destinatário: Henrique Sampaio. São Paulo, 10 jun. 1925. Museu Paulista da USP. ), trabalho aprovado em julho daquele ano.

Figura 10:
[José Wasth Rodrigues]. Brasão de Porto Feliz “Perlonge tuli brasiliae fines”, [1925], aquarela sobre papel, 23,7 x 17,7 cm. Museu Paulista USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael.

Ainda que mantenha os principais elementos (escudo português, canoa e rio, coroa mural, listel e divisa) há outras modificações perceptíveis. Além das duas figuras de bandeirantes muito semelhantes - salvo a alteração nas cores das vestimentas e dos acessórios -, outras mudanças foram efetivadas, como a troca da direção dos remos voltados para a esquerda do espectador (como devem figurar os elementos com maior importância nos brasões), o rio representado em prata, a inserção de um escudete vermelho (goles) com a flor de lis em prata sobre a coroa mural a indicar a padroeira da cidade, Nossa Senhora Mãe dos Homens. O termo “Araraytaguaba” é retirado da coroa, seguindo a prerrogativa de que palavras devem constar apenas na divisa. Sob os tenentes e o listel em outra angulação, permanecem como suportes o algodão e a cana-de-açúcar. Nas descrições de Taunay, a aldeia de índios guainases que ocupara anteriormente aquele sítio não é mencionada, nem para a primeira e, tampouco para a segunda versão.

Talvez a inserção dos tenentes em alguns dos brasões tenha relação com a necessidade de ampliar o espaço ocupado pelos escudos nas meias luas em reentrâncias existentes na ornamentação tanto do hall de entrada, como da escadaria e nas galerias do museu. A transformação de símbolos municipais adaptados para fazerem parte de uma narrativa visual de natureza retórica pode ter incitado tais alterações. Tanto a aquarela existente no museu como a tela em formato semicircular (Figura 11) são de autoria de José Wasth Rodrigues, responsável pelos paineis com brasões inaugurados em 1926.

Figura 11:
José Wasth Rodrigues. Brasão de Porto Feliz, 1925, óleo sobre tela, 160 x 160 cm. Museu Paulista USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael.

A instalação dos brasões foi financiada pelo Automóvel Club e pelo Club Commercial de São Paulo por intermédio de Henrique de Souza Queiroz (RELATÓRIO, 1926RELATÓRIO referente ao ano de 1925, apresentado a 28 de janeiro de 1926, ao Excelentíssimo Senhor Secretário do Interior, Doutor José Manoel Lobo, pelo diretor do Museu Paulista Afonso d’Escragnole Taunay. Museu Paulista da USP.),12 12 O Automóvel Club já realizara a doação de quatro medalhões de retratos de próceres da independência para as comemorações de 1922, igualmente por intermédio de Henrique de Souza Queiroz. contraparente de Taunay, sendo o brasão de Porto Feliz colocado no patamar da escadaria à direita entre o de Parnaíba e o de Taubaté.13 13 Nos dois brasões há tenentes representados como bandeirantes: o de Parnaíba dos dois lados e o de Taubaté apenas de um lado. Sobre a pintura do painel do escudo, afixada na parede em formato semicircular, está a aplicação de letras em alto-relevo com os nomes de Antonio Cardoso Pimentel e Antonio Aranha Sardinha, responsáveis, junto com outros moradores, pela ereção de uma capela sob invocação de Nossa Senhora da Penha em 1721, considerado o momento inicial do povoado portofelicense (Figura 12).

Figura 12:
Museu Paulista, escadaria nobre - lance superior à esquerda, entre 1926 e 1927, negativo de vidro, 17,9 x 23,9 cm. Museu Paulista USP. Reprodução: Helio Nobre/ José Rosael.

Para todos os brasões o seguinte esquema foi empregado: inserção dos nomes dos fundadores e datas de fundação. Texto sobre a inauguração é circulado pelo jornal Correio Paulistano, também reproduzido no relatório do Museu Paulista referente a 1926 (RELATÓRIO, 1927RELATÓRIO referente ao ano de 1926, apresentado a 28 de janeiro de 1927, ao Excelentíssimo Senhor Secretário do Interior, Doutor José Manoel Lobo, pelo diretor do Museu Paulista Afonso d’Escragnole Taunay, p. 33-34. Museu Paulista da USP.) e, igualmente em outras publicações (TAUNAY, 1931TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Heráldica municipal brasileira I. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 5 abr. 1931, p. 3.; RIBEIRO, 1933RIBEIRO, Clóvis. Brasões e bandeiras do Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1933.).

Considerações finais

Tanto as imagens como as palavras circularam em diferentes suportes - esculturas, baixos-relevos, quadros, brasões -, mesclando monções a expedições científicas e a bandeiras, no bojo do projeto engendrado pela elite paulista, de atribuir a São Paulo, por meio do movimento bandeirante, o papel de conquistador e unificador do território da nação brasileira (MATTOS, 2003MATTOS, Cláudia Valladão de. Da palavra à imagem. Sobre o programa decorativo de Affonso de Taunay para o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista , v. 6/7, n. 1, p. 123-145, 2003.), tendo no Museu Paulista um pólo articulador.

Não há dúvida de que elementos distintivos do movimento monçoeiro foram representados com destaque tanto no brasão de Porto Feliz como no Monumento às Monções, que lhes dão inclusive marcas identitárias, como as canoas e remos, meios de transporte por excelência das viagens fluviais. Entretanto, acabaram por ter sua força imagética e a especificidade do fenômeno histórico diminuídos em face de outros componentes iconográficos que os ladeavam e de epigrafias que os acompanhavam.

No caso do brasão, tal fato ocorreu, como vimos, mediante a inserção de dois personagens representados com a indumentária que se forjou como típica dos bandeirantes. O reforço do mito fica ainda mais evidente quando se constata que os sertanistas trajados com o gibão de armas, o chapéu, as botas e a espingarda foram introduzidos em 10 brasões de municipalidades, e mais quatro foram criados tendo apenas o gibão pintado com metonímia visual de seu usuário (MARINS, 2020MARINS, Paulo César Garcez. Uma personagem por sua roupa: o gibão como representação do bandeirante paulista. Tempo, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 404-429, maio/ago. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042020000200404&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 24 ago. 2020.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
).

Já no que tange ao monumento, a escritura exposta se sobrepôs aos elementos escultóricos, imagéticos e epigráficos, não só obscurecendo a atuação de quaisquer outros sujeitos históricos no movimento monçoeiro, como transformando o Monumento às Monções numa obra em homenagem aos bandeirantes, mensagem consolidada ao longo do tempo e, mais recentemente, por meio de uma placa, colocada por iniciativa dos responsáveis pelo Parque das Monções, informando aos visitantes que eles se encontram em frente ao Monumento aos Bandeirantes (Figura 13).

Figura 13:
Placa informativa no Parque das Monções, Porto Feliz - SP, 2019. Fotografia: Marcos Steiner.

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  • 1
    Ancoramos tal proposta nas considerações de Ulpiano Bezerra de Meneses, para quem cultura visual e cultura material merecem ser estudadas como “a dimensão física, empírica, sensorial, corporal, da produção/reprodução social” (MENESES, 2003MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes textuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003., p. 25). Para o historiador, as fontes iconográficas “não devem constituir objetos de investigação em si, mas vetores para a investigação de aspectos relevantes na organização, funcionamento e transformação de uma sociedade” (MENESES, 2003MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes textuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003., p. 28), essa sim, o objeto de estudo, por excelência, da história.
  • 2
    Cândido Nazianzeno Nogueira da Mota também nascera em Porto Feliz e era primo de Cesário Nazianzeno de Azevedo Motta Magalhães Júnior.
  • 3
    A pintura de Almeida Júnior pertenceu ao acervo do Museu Paulista entre 1902 e 1905MUSEU Paulista. Inauguração dos escudos das principais cidades bandeirantes. Correio Paulistano, São Paulo, 5 maio 1926, p. 4. , quando foi transferida para compor o acervo inicial da Pinacoteca do Estado. A tela retornaria ao Museu Paulista em 1929 após reiterados pedidos de Taunay, que preparou uma sala especialmente para recebê-la, onde foi concebida uma exposição consagrada às monções e a Almeida Júnior, que ficaria montada até 1939.
  • 4
    Em vários escritos, Taunay (1937TAUNAY, Afonso d’Escargnolle. Guia da Secção Histórica do Museu Paulista: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1937., p. 71; 1943, p. 2) apontou a Partida de uma expedição mercantil de Porto Feliz para Cuiabá, de Hercule Florence, como matriz visual de Partida da Monção, de Almeida Júnior, intitulando-a, por vezes, de Benção das canoas, curiosamente o nome da tela de Aurélio Zimmerman, encomendada por ele para o Museu Paulista. Mais recentemente, Carlos Lima Júnior (2018LIMA Jr., Carlos. Da pena ao pincel: o passado paulista (re)criado nas encomendadas de Afonso Taunay a Oscar Pereira da Silva. Anais do Museu Paulista, v. 26, p. e34, 29 nov. 2018. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/140262 . Acesso em: 19 mar. 2020.
    http://www.revistas.usp.br/anaismp/artic...
    , p. 17-18) questionou a associação entre as obras de Almeida Júnior e Florence em face de uma correspondência de Benedito Calixto, que colocava em dúvida o prévio conhecimento do desenho de Florence pelo pintor.
  • 5
    Até o momento, nada foi localizado em relação ao projeto dos brasões como já constituinte da proposta de decoração para 1922. Importante ressaltar que tal programa só passa a ser comentado quando do contato com as prefeituras para aprovação dos escudos como armas oficiais e posterior confecção dos painéis para o Museu Paulista. As primeiras referências despontam na troca de correspondência entre Taunay e políticos das municipalidades a partir de meados de 1924 e em menção no relatório de atividades do Museu Paulista referente às atividades de 1925.
  • 6
    O brasão da cidade de São Paulo foi elaborado por José Wasth Rodrigues e Guilherme de Almeida a partir de concurso para o qual Taunay foi convidado a compor o júri de seleção. Benedito Calixto idealizou os de Itanhaém e São Vicente, além de ter adaptado o de Santos.
  • 7
    A correspondência foi recentemente doada ao Arquivo Público e Histórico Municipal Sérgio Buarque de Holanda, em Porto Feliz, e nos cedida uma cópia por Janaína Soares de Souza Piva Mancio de Camargo, a quem agradecemos.
  • 8
    A heráldica refere-se simultaneamente à arte e à ciência que determina, produz e estuda os brasões de armas ou escudos; interpreta as origens e o significado simbólico utilizados (TOSTES, 1983TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. Princípios de heráldica. Rio de Janeiro: Fundação Mudes, 1983. , p. 13).
  • 9
    Parcialmente reproduzido, assim como a carta enviada por Taunay para as autoridades de Porto Feliz, datada de 16 de dezembro de 1921, em: O BRASÃO da cidadeO BRASÃO da cidade. O Novo Porto, Porto Feliz, 1o jan. 1922. Caderno de recortes de Afonso Taunay XVI - 1920-1921. (Coleção Afonso Taunay). Museu Paulista USP.. O Novo Porto, Porto Feliz, 1o janeiro de 1922. Caderno de recortes de Afonso Taunay XVI - 1920-1921. Coleção Afonso Taunay. Museu Paulista da USP.
  • 10
    Escultura de autoria do escultor Nicola Rollo representando a separação dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, o que parece corroborar a hipótese de não haver uma proposta anterior elaborada para o conjunto de brasões.
  • 11
    A indumentária aludida por Taunay para os bandeirantes baseia-se em gravura de Jean-Baptiste Debret, Sauvages civilisés, soldats indiens de Mugi das Cruzes (Province de S. Paul) combattant des botocoudos [Selvagens civilizados, soldados índios de Mogi das Cruzes (Província de São Paulo) combatendo os botocudos], prancha no 21 do primeiro volume da publicação Voyage pittoresque. A partir desta gravura o gibão almofadado com losangos, o chapéu, a bota e o bacamarte tornaram-se parte da imagem atribuída aos bandeirantes no século XX (DEBRET, 1834DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil ou Séjour d’un artiste français au Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008515&bbm/3813#page/84/mode/2up . Acesso em: 25 mar. 2020.
    https://digital.bbm.usp.br/view/?4500000...
    ).
  • 12
    O Automóvel Club já realizara a doação de quatro medalhões de retratos de próceres da independência para as comemorações de 1922, igualmente por intermédio de Henrique de Souza Queiroz.
  • 13
    Nos dois brasões há tenentes representados como bandeirantes: o de Parnaíba dos dois lados e o de Taubaté apenas de um lado.
  • Declaração de financiamento:

    A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da FAPESP (Proc. 2018/03118-6 e Proc. 2017/07366-1).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2020
  • Aceito
    25 Jun 2021
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