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A invenção do torcedor de futebol: imprensa esportiva, profissionalismo e a formação das torcidas organizadas no Rio de Janeiro (1936-1968)

The making of the soccer supporter: sports press, professionalism, and the formation of the supporters’ organizations in Rio de Janeiro (1936-1968)

Resumo

O artigo objetiva reunir evidências sobre a constituição de formas associativas de pertencimento clubístico com a conformação de identidades coletivas de torcer ao redor do futebol profissional do Rio de Janeiro no decurso dos anos 1930 a 1960. Para tanto, mobilizam-se fontes jornalísticas capazes de informar um conjunto de agentes, espaços e acontecimentos que estruturaram a história, a memória e a sociogênese de agrupamentos torcedores na cidade do Rio em meados do século XX. Sustenta-se que o cotidiano de notícias da crônica esportiva, uma vez sistematizadas, ainda que coligidas e expostas de maneira não exaustiva, permite reconstituir aspectos da construção de tal subcampo, nucleado, por sua vez, em torno do profissionalismo futebolístico e dos equipamentos esportivos da então capital da República. Dirigentes de entidades e de clubes, jornalistas, cronistas e chefes de torcidas são partícipes construtores dos sentidos sociais e dos significados culturais associados à performance musical nos estádios dessa forma inusitada de associativismo, surgida na esteira da estruturação de uma cultura de massas urbana, voltada ao lazer e ao entretenimento nas metrópoles, por meio de um calendário desportivo rotinizado. Destarte, o artigo demonstra, em chave diacrônica, o processo de reconhecimento público de determinados atores, egressos das classes populares, e de específicos grupos de torcedores aficionados, legitimados pelos meios de comunicação da época, em conformidade com a afirmação e expansão do futebol no dia a dia da cidade.

Palavras-chave:
história do futebol no Brasil; jornalismo esportivo; profissionalismo; torcidas organizadas; cidade do Rio de Janeiro

Abstract

This article aims to collect evidence about the constitution of associative means of club-belonging, with the conformation of collective identities of supporting around Rio de Janeiro professional soccer throughout the 1930s to the 1960s. To that end, we mobilized journalistic sources capable of informing a conjunction of agents, spaces, and happenings that structured the history, the memory, and the sociogenesis of supporters’ groups in the municipality of Rio de Janeiro in the middle of the 20th century. We affirm that the day-to-day news of the sports chronicle, once systematized, even if reunited and exposed in a non-exhaustive manner, makes possible reconstituting aspects of the construction of said subfield, nucleated around the soccer professionalism and the sports facilities of the then capital of the Republic. Managers of entities and clubs, journalists, chronicle writers, and head of supporters’ groups are constituting parts of the social meanings and the cultural significances associated to the musical performance in the stadiums of this unexpected form of association, born on the conveyor belt of the structuration of an urban mass culture, focused on leisure and entertainment in the metropolises by a routine sports calendar. Thus, this article demonstrates, in a diachronic way, the process of public recognition of determined actors, from popular classes, and specific groups of fanatic supporters, legitimized by the media of the time, in conformity with the affirmation and expansion of soccer in the day-to-day of the city.

Keywords:
soccer history in Brazil; sports press; professionalism; organized supporters’ fandom; Rio de Janeiro city

Este artigo versa sobre uma agenda de pesquisa dedicada à história das torcidas organizadas de futebol no Brasil, em pauta desde o meu doutorado (HOLLANDA, 2010HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.), e que se desdobra desde então em uma série de investigações complementares e correlatas. O presente texto decorre de um novo projeto, em andamento, que se debruça sobre a chamada primeira geração de torcidas uniformizadas no Brasil. Com efeito, investiga o desenvolvimento desses grupos de aficionados, seguidores de clubes de futebol profissional, em duas cidades, quais sejam, Rio de Janeiro e São Paulo.

Tais agrupamentos surgiram e se estruturaram na década de 1940. Sua primeira fase se estendeu, para fins esquemáticos de recorte da cronologia, até fins dos anos 1960, quando seu princípio constitutivo unitário - um clube, uma torcida, um chefe - é rompido, em prol de uma miríade de novos subgrupos torcedores. Estes, por sua vez, vincularam-se a novas dinâmicas associativas territoriais - as torcidas de bairro - e a novas marcas identitárias juvenis - as chamadas Torcidas Jovens -, sendo as últimas estruturadas como agremiações dissidentes em relação aos grupos previamente existentes nos estádios de futebol carioca e paulista.

Nesse projeto, após publicar sobre o caso das torcidas paulistanas (HOLLANDA; CHAIM, 2020HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; CHAIM, Aníbal Martinot. Ordem e progresso nas arquibancadas: o jornalismo esportivo e a gênese das torcidas uniformizadas de futebol durante o regime político do Estado Novo (1937-1945). Revista de História, São Paulo, n. 179, a05119, 2020.) e de articular seu etos com o regime político do Estado Novo, ocasião em que se pode sublinhar tensões e alinhamentos vis-à-vis o “enquadramento moral” das massas (TOLEDO, 2002TOLEDO, Luiz Henrique de. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec, 2002.), o presente artigo focaliza a estruturação dos agrupamentos na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de observar de que maneira os interesses comerciais de promoção do espetáculo esportivo por parte da imprensa esportiva, na esteira da adoção do profissionalismo entre 1933 e 1937, concorre para promover o surgimento dessas torcidas - vistas como uma totalidade de fãs, uma comunidade clubística, que se organiza para incentivar e apoiar coletivamente seu “clube do coração” (DAMO, 2002DAMO, Arlei. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica da rivalidade entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.).

Por via de consequência, entende-se de que maneira tal processo também legitima com o tempo a existência dos respectivos chefes de torcida. Estes são alvo de reportagens reconhecedoras do papel protagonista na liderança desses grupos e da importância desses personagens, ocupantes dos territórios das arquibancadas e constituintes de uma “topofilia”, tal como conceituada pelo geógrafo inglês John Bale (CALDAS, 2020CALDAS, Phelipe. Amor (não) se explica: torcida, topofilia e estádio de futebol. Revista FuLiA, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 52-78, maio/ago. 2020.), para o futebol profissional, massificado em função da cobertura jornalística e radiofônica daqueles decênios (RIBEIRO, 2000RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 1950. 2000. 360 f. Tese (Doutorado em Comunicação) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.)1 1 Segundo Ribeiro, em sua tese de doutorado supracitada, o campo jornalístico dos anos 1950 era constituído por ao menos treze veículos da grande impressa: Correio da Manhã, O Jornal e A Noite (Diários Associados), Jornal do Commércio, Diário de Notícias, O Globo, A Notícia, O Dia, Luta Democrática, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Última Hora e Diário Carioca. .

Parte-se do pressuposto de que os periódicos especializados, notadamente o Globo SportivoGLOBO SPORTIVO. Rio de Janeiro, 1938-1952. e o Jornal dos Sports, são a um só tempo fonte e objeto para a pesquisa de cunho historiográfico (LUCA, 2005LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meios dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 109-1520.; RIBEIRO, 2001RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A mídia e o lugar da história. Revista Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 11, p. 25-44, 2001.). Ainda que outros materiais não-jornalísticos sirvam de base para a busca por informações sobre a temática em tela - livros de jornalistas, relatos obtidos por meio de entrevistas de História Oral com fundadores e líderes de torcida, acervos pessoais de torcedores remanescentes e documentos oficiais constantes de arquivos de clubes e de instituições públicas como o Arquivo Nacional -, as notícias de imprensa continuam sendo o principal esteio factual na identificação das evidências que permitem reconstituir aspectos da vida cotidiana ao redor das competições futebolísticas, em meados do século passado.

As especificidades do conhecimento em torno desse objeto da história social são, assim, limitadas em função das circunstâncias impostas pela metodologia e pelo acesso às fontes primárias. Dessa maneira, ao abordar o significado associado a tais agremiações, é mister reconhecer que o procedimento investigativo só pode ser feito sob o filtro e sob o crivo, que nada tem de opaco ou neutro, dos meios de comunicação de massa (FORTES, 2013FORTES, Rafael. Meios de Comunicação. In: MELO, Victor Andrade de; DRUMOND, Maurício; FORTES, Rafael; SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. p. 113-127.). Conforme salienta Bourdieu (1997BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.), esses meios comunicacionais se mostram enquadradores dos assuntos e dos acontecimentos que lhes parecem relevantes na tematização do noticiário, em particular aqui, na construção da figura do torcedor e na veiculação de um “fato” associado às torcidas organizadas.

O conteúdo noticioso dos dados disponíveis articula-se assim à forma fenomênica como tal material se manifesta e atende a desígnios seletivos das corporações jornalísticas e do seu modus faciendi, cujo processo e cujos trâmites não se explicitam, permanecendo no não-dito ou nas entrelinhas do discurso. É possível, pois, compreender o fenômeno das plateias esportivas como um agregado social que se decalca dos três tipos sociológicos básicos - multidão, público e massa - e que se compõem à luz dos interesses das representações jornalísticas. Já as torcidas organizadas vão além de um “agregado”, conformando-se em grupos sociais na medida em que a cobertura diária da imprensa os legitima sob a forma de reportagens, fotografias, charges, editoriais e crônicas.

O ponto de partida metodológico explicitado acima, consensuado em âmbito internacional pelos estudiosos que operam na interface história/imprensa desde pelo menos fins dos anos 1970 (WILLIAMS, 2007WILLIAMS, Raymond. Imprensa e cultura popular: uma perspectiva histórica. Revista Projeto História, São Paulo, n. 35, p. 15-26, ago./dez. 2007.), dá condições para apresentar e circunscrever o objetivo do presente artigo. Tenciona-se nesse texto selecionar, apresentar e analisar fatos atinentes à dinâmica da vida torcedora ao longo de três décadas, em uma baliza temporal cujo arco principia em 1936, quando o jornal O Globo Sportivo lança um concurso competitivo entre as torcidas do Flamengo e do Fluminense, como forma de criar uma atração adicional na promoção da final do Campeonato Carioca daquele ano.

O recorte distende-se pelos anos 1940 e 1950 e se encerra em 1968, por ocasião do lançamento de um livro jornalístico dedicado a reverenciar “torcedores de ontem e hoje” (CARVALHO, 1968CARVALHO, João Antero. Torcedores de ontem e hoje. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968.), perfilando trajetórias de figuras, quer sejam anônimas ou conhecidas, que se identificaram na torcida por determinados clubes do Rio. Entendemos, assim, que se cristaliza em jornais e livros um imaginário operador de três elementos de tais personagens: 1. O caráter altruístico de seu clubismo, associado à devoção e ao despojamento em prol do clube de sua predileção; 2. As origens sociais modestas de onde provém a maioria dos chefes de torcida, porquanto boa parte deles, segundo as fontes compulsadas, aportam a condição de migrantes radicados na capital da República e de indivíduos pertencentes a extratos das classes populares; e 3. A saliência a aspectos pitorescos relacionados a tais personalidades, como um objeto, um adereço, uma vestimenta, um linguajar ou mesmo um hábito visto como exótico e diferenciado dos demais no espaço das arquibancadas, o que pouco a pouco catalisa as atenções em torno de uma figura carismática e delimita a circunscrição de um território “topofílico”.

A justificativa para o encerramento do texto no ano de 1968 assenta igualmente no contexto de surgimento de dissidências e de novos movimentos coletivos de torcedores em tal conjuntura histórico-política. Ante a dinâmica de consensos e de conflitos entre os agentes, isso altera o cenário até então estabelecido e implica em um corte no processo de legitimação de determinados chefes de torcida, a perder o status de autoridades exclusivas dos seguidores de um clube nas arquibancadas. Tem-se, doravante, a necessidade de coexistir seus espaços nas arquibancadas com novos grupos, com novos representantes e com novas gerações de torcedores.

O artigo a seguir constitui-se de três partes principais. A primeira é dedicada à contextualização histórica dos anos 1930 e 1940, com o relato de aspectos políticos, em especial a Era Vargas e o futebol, e de dados específicos do jornalismo esportivo que levaram à estruturação de um modo organizacional de apoiar e de incentivar um clube, estimulando em tal processo a formalização de grêmios de torcedores no cotidiano das competições esportivas do Rio de Janeiro.

A segunda seção parte da institucionalização e da rotinização da presença de tais agrupamentos no início dos anos 1940, a explorar elementos positivos de sua presença nas arquibancadas, a saber, uma autoridade representativa, capaz de exercer um papel contendor ante comportamentos tidos e havidos como antissociais e antidesportivos. Isso acontece, entre outros, com o reconhecimento público de certos líderes por ocasião das edições das Copas do Mundo da FIFA, como aquela realizada no Brasil no decênio 1950. Sublinha-se também a fixação das atividades e das funções inerentes ao torcer e à missão de chefiar uma torcida, com o advento do estádio público do Maracanã entre as décadas de 1950 e 1960.

Por fim, a terceira e última seção descreve e analisa crônicas e livros autorais de jornalistas sobre uma plêiade de torcedores, por meio de uma narrativa que procura fisgar algumas constantes da caracterização de tais personagens. A abnegação, a humildade e o exotismo são traços regulares, por meio dos quais os homens de letras criam estereótipos, por assim dizer, de lídimos amadores, no interior de um campo progressivamente profissionalizado, conforme delimita Bourdieu em seus apontamentos para a configuração de uma sociologia do esporte (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983., 1990BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.).

O concurso de torcidas: jornalismo, profissionalismo e a formação das plateias esportivas no Rio de Janeiro

Esta primeira seção investiga os anos de 1936 a 1944, recorte que se justifica por algumas razões. Primeiro ele coincide com a consolidação do regime profissional no futebol, em especial na cidade do Rio de Janeiro, na esteira de uma série de litígios e controvérsias entre os gestores do meio (HOLLANDA; BRAGA, 2021HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; BRAGA, Rodrigo Saturnino. Towards a political and institutional history of football in the Vargas period. In: ABREU, Luciano; VANNUCCHI, Marco Aurélio. The Brazilian Revolution of 1930: The legacy of Getúlio Vargas revisited. Brighton: Sussex Academic Press, 2021. p. 58-89. ). A coincidência diz respeito, ainda, à proximidade da periodização da história política republicana quando o golpe do Estado Novo, em 1937, perpetra o início de um ciclo autoritário dentro da Era Vargas, que se distende até 1945 e que enseja conotações ambíguas na sociedade brasileira, conforme debate uma longeva produção historiográfica, renovada de modo contínuo até os dias de hoje (ABREU; VANNUCHI, 2021ABREU, Luciano; VANNUCCHI, Marco Aurélio. The Brazilian Revolution of 1930: The legacy of Getúlio Vargas revisited. Brighton: Sussex Academic Press, 2021.).

Junto a aspectos contextuais da relação Estado-sociedade e do profissionalismo esportivo, a delimitação temporal relaciona-se, ainda, com a estruturação do campo do jornalismo esportivo, que se autonomiza e se consolida no Rio a partir de 1936, mediante aquisição do Jornal dos Sports por Mário Filho, até então parceiro de Roberto Marinho (NOSSA JUNIOR, 2019NOSSA JUNIOR, Leonêncio. Roberto Marinho - o poder está no ar: do nascimento ao Jornal Nacional. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2019.) no encarte de O Globo, intitulado Globo Sportivo. Embora desde o século XIX houvesse periódicos especializados em esportes na cidade,2 2 Para exemplificarmos apenas revistas, pode-se mencionar duas: Vida Sportiva (1917-1921) e Sport Illustrado (1920-1921). Nas décadas em exame, havia também a Esporte Ilustrado (1938-1956), a Vida do Crack (1953-1959), a Gazeta Esportiva Ilustrada (1953-1967), a Manchete Esportiva (1955-1959) e a Revista do Esporte (1959-1961). A estes, somavam-se ainda publicações como almanaques, anuários esportivos e revistas publicadas pelos clubes, tal qual a Revista Tricolor, vinculada ao São Paulo F.C. a compra do Jornal dos Sports, fundado em 1931 por Argemiro Bucão, no segundo lustro dos anos 1930, ampliará, dinamizará e fortalecerá o alcance e impacto da imprensa esportiva na estrutura competitiva e na popularização do futebol.

Assim, para tratar da realidade do Rio de Janeiro, no período que vai precisamente de 1936 a 1944, de início vamos começar com dados do Jornal dos Sports e do seu artífice Mário Filho para, em seguida, descreveremos dados a respeito dos agrupamentos torcedores, graças a informações coligidas na imprensa e em livros complementares de apoio. Se em 1936 dá-se destaque a competitividades nas arquibancadas, como forma de emular as partidas do Campeonato Carioca, entre 1942 e 1944, os grupos de aficionados, existentes anteriormente de modo informal, por meio de grupos espontâneos e de torcedores-símbolos, são instituídos e formalizados, a exemplo da Charanga do Flamengo e da Torcida Organizada do Vasco (TOV).

No tocante às fontes, convém salientar que também foram consultadas as edições de O Globo e Globo Sportivo desse período, pois Mário Filho continuou a colaborar nesses jornais durante os anos 1930 e 1940. Também foram feitas incursões pontuais a jornais não especializados, como o Jornal do BrasilJORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 1891- ., à guisa de contraponto e complemento, com a observação a incidência de eventuais referências a torcidas organizadas no noticiário mais amplo.

Ainda que esteja longe de ser o único agente transformador do meio nesse período, observação crítica já levantada por pesquisadores da área (SOARES; LOVISOLO; HELAL, 2001SOARES, Antônio Jorge; LOVISOLO, Hugo; HELAL, Ronaldo. A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.), Mário Rodrigues Filho (3/6/1908 - 17/9/1966) é um personagem que concentra atenções, na condição capital de um dos mais destacados jornalistas e editorialistas esportivos do Brasil, a encontrar paralelo na cidade de São Paulo nas atuações de Cásper Líbero e de Thomas Mazzoni, à frente dos jornais A Gazeta e A Gazeta Esportiva, respectivamente (NITRINI, 2019NITRINI, Dácio. Cásper Líbero: jornalista que fez escola. São Paulo: Terceiro Nome, 2019.). Natural do Recife, Mário foi o terceiro de uma família de 14 filhos. Levado aos oito anos pelos pais, Mário Rodrigues e Maria Esther, à capital da República, radicou-se no Rio de Janeiro, onde viveu até o seu falecimento, em 1966.

A centralidade de seu protagonismo ganhou novo impulso nas últimas décadas com o livro biográfico de Ruy Castro (1992CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.), O anjo pornográfico, dedicada ao irmão caçula, Nelson Rodrigues, com informações por tabela consagradas a Mário. Em narrativa edificante, relata-se seu casamento com Célia Rodrigues, aos 18 anos, e o precoce início dos trabalhos nas redações dos jornais de propriedade paterna, A Manhã e A Crítica, empastelados com a Revolução de 1930. A família assistiu à morte trágica de outro irmão, Roberto Rodrigues, um artista plástico promissor, assassinado na sede da redação do jornal paterno, por uma leitora da alta sociedade carioca, indignada com uma reportagem difamatória a seu respeito.

A perda do pai no mesmo ano, pouco depois da morte do filho, foi um incidente que afetou sua trajetória e que precipitou a assunção de funções diretivas, dando ensejo a investimentos estratégicos de reconversão na carreira. Mário Filho vai trabalhar em O Globo a convite de Roberto Marinho e, nesse periódico, ainda sem a projeção assumida poucas décadas depois, passou a chefiar o setor de Esportes, área jornalística vista como de somenos importância (LEITE LOPES, 1994LEITE LOPES, José Sérgio. A vitória do futebol que incorporou a pelada: Mário Filho. Revista USP, São Paulo, n. 22, p. 64-83, 1994.), a que se empenhará em dinamizar, promover e reinventar.

Desde a época de A Crítica, o autor já valorizava o futebol em sua dimensão humana e social, o que ampliava a sua potencialidade noticiosa. Sua matéria de maior destaque naquela fase ocorreu em 1926, com apenas 18 anos, quando tratou da volta do goleiro Marcos de Mendonça aos gramados, na condição de jogador-símbolo do amadorismo no Brasil. Em 1931, deu início a suas tentativas de criar um jornal dedicado exclusivamente aos esportes, com a fundação de O Mundo Esportivo.

A necessidade de preenchimento de notícias no verão, com o interregno do recesso no futebol, resultou na iniciativa de patrocinar, em 1932, um concurso entre escolas de samba da cidade, ritual carnavalesco que logo se oficializou como desfile de carnaval chancelado pela Prefeitura, na região central da Praça Onze, a partir de 1935, tornando-se pouco a pouco um ícone da identidade da cidade e do país.

Em 1936, com auxílio financeiro do presidente do Fluminense Arnaldo Guinle, do empresário Roberto Marinho e do presidente do Flamengo José Bastos Padilha, Mário Filho compra o Jornal dos Sports, conhecido popularmente como Cor-de-Rosa, cuja redação frequentou todos os dias, ainda segundo Ruy Castro, durante 30 anos, até sua morte. Chamado de forma hiperbólica por Nelson Rodrigues de “o inventor de multidões”, idealiza e implementa vários espetáculos desportivos profissionais e amadores, além de cunhar a legenda “Fla-Flu”, rivalidade local cuja história é reconstituída com acurácia por Renato Coutinho (2016COUTINHO, Renato. Um Flamengo grande, um Brasil maior: o Clube de Regatas do Flamengo e a construção do imaginário político nacionalista popular (1933-1945). Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.) entre os anos 1930 e 1960.

Grande incentivador do profissionalismo no futebol, Mário Filho foi o criador do “Concurso de Torcidas” (1936), sobre o qual nos debruçaremos a seguir, mas também dos “Jogos da Primavera” (1947), dos “Jogos Infantis” (1951), do “Torneio Rio-São Paulo” (1951) e do “Torneio de Peladas”, este último já nos anos 1960.

Após a aquisição, os interesses ambiciosos na promoção do futebol profissional tiveram continuidade na década de 1940, quando Rodrigues Filho recebeu o presidente da FIFA, Jules Rimet, no Brasil e foi ativo defensor da construção de um estádio público, o Maracanã, para a Copa do Mundo de 1950, de que foi um dos entusiastas e difusores. Por essas razões, o referido estádio leva seu nome oficial desde 1966, quando de seu falecimento, em homenagem à atuação na época para o soerguimento do “Colosso do Derby”.

Nesse mesmo decênio de 1940, dedicou-se a escrever livros de memórias sobre o futebol brasileiro: Copa Rio Branco, 32 (1943); Histórias do Flamengo (1945); O negro no futebol brasileiro (1947); e Romance do futebol (1949). Além de livros com pretensões literárias, nos anos 1960 retoma o ciclo de publicações memorialísticas sobre futebol com Viagem em torno de Pelé. No mesmo ano, retomou e ampliou a sua obra-prima, O negro no futebol brasileiro, com uma segunda edição, sob a chancela editorial da Civilização Brasileira, com prefácio do sociólogo Gilberto Freyre e apresentação do folclorista Edison Carneiro.

As iniciativas jornalísticas focaram na popularização do futebol profissional por meio de estratégias de atração dos torcedores e de formas de entreter o público nos estádios de grande porte. O Globo Sportivo concebeu o “Duelo de Torcidas”, promovido para emular a final do Campeonato Carioca de 1936, entre Flamengo e Fluminense, ocorrido no estádio da Rua Álvaro Chaves, no mês de dezembro. Ainda que outros fatos anteriores possam ter concorrido, tomamos esse concurso como um marco de um projeto jornalístico de legitimação desses atores e subgrupos nas arquibancadas, com o fito de criar elementos atrativos no estímulo à participação e aos agentes durante o espetáculo competitivo.

Tais agentes eram conhecidos até então pela linguagem letrada dos jornais sob a forma de fans, no original em inglês, de “assistência” em português, até que, pouco a pouco, passam a ser referidos como torcedor e torcida. Tais substantivos, no singular e no coletivo, são empregados para designar seja o indivíduo seguidor de um clube, seja a comunidade clubística presente no estádio, seja a coletividade inclinada por determinado time de futebol na cidade ou mesmo no país.

O concurso idealizado pelo jornal tem longevidade, a ponto de ser reeditado 15 anos depois, em 1951, na esteira da inauguração do Maracanã, conforme veremos no próximo tópico. Trata-se de uma competição entre as torcidas de cada time, que perdurou na imprensa até os idos de 1970, envolvendo o apoio da direção dos clubes, a mobilização dos chefes de torcida e a avaliação de um júri de jornalistas selecionados pelo Jornal dos Sports, à maneira dos critérios competitivos existentes entre as escolas de samba, nos moldes que o próprio Mário Filho implantara nos idos de 1930.

Assim, o ano de 1936 pode ser considerado fundante, com a realização da “Competição de Torcidas”, também cunhada como “duelo” ou “torneio” na linguagem jornalística de então. Não havia ainda torcidas organizadas formais representantes de cada clube, mas desde os anos 1920 personagens torcedores e grupos de aficionados circulavam e se reuniam de maneira mais ou menos espontânea nos estádios e fora dele. Segundo Mário Filho, no Flamengo existia um grupo autointitulado “Os Piranhas”, que seria o responsável pela participação no referido concurso. Outro subgrupo intitulava-se “Guarda Rubro-Negra”, segmento de torcedores jovens do Flamengo que se reunia, entre outros espaços, para a promoção de bailes na época do carnaval.

O duelo é uma categoria jornalística sugestiva de como são descritas e caracterizadas as primeiras práticas do torcer na cidade e o sentido desafiador e agonístico a ele associado pelos meios de comunicação, sejam os jornais, sejam as rádios. Conforme sugerem os estudos sobre história social da linguagem desenvolvidos por Peter Burke e Roy Porter (2001BURKE, Peter; PORTER, Roy. História social da linguagem. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.), essas denominações estão longe de ser neutras e opacas, mostrando-se prenhes de sentido e de intencionalidade em sua proposição. No dia 21 de dezembro daquele ano de 1936, o jornal O Globo retrata a competição torcedora ao documentar com imagens fotográficas a performance dos agrupamentos de Flamengo e Fluminense.

Em realidade, as matérias começam a ser veiculadas já no dia 15 daquele mês e se estendem com repercussões, destaques e balanços durante toda a semana acerca da “inédita” e inusitada competição.

A competição das torcidas terá início hoje. Bastaria esse fato para dar ao Fla-Flu uma atração nova, inteiramente inédita. A iniciativa do JS promovendo o sensacional certame objetivou a arregimentação de torcedores. Não somente os dois times adversários se empenharão em um grande cotejo. Também haverá nas arquibancadas, nas gerais, nas cadeiras, o duelo das torcidas - gritos, hurras, cartazes, hinos, aleguás. Tentaremos, portanto, introduzir no Brasil o que se faz nos Estados Unidos, adotando, porém, essa Competição das torcidas ao feitio brasileiro. (JORNAL DOS SPORTS, 15 dez. 1936JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952.).

Depreende-se da passagem acima que se trata de uma influência no modelo dos espetáculos esportivos estadunidenses. Segundo testemunhos, a influência vinha de duas formas: os filmes norte-americanos difundidos nas salas de cinema no Rio de Janeiro e em São Paulo; a ida de estudantes brasileiros aos EUA e as temporadas de estudos nas prestigiadas universidades daquele país, onde se trava contato com a realidade dos esportes universitários e com as formas de apoio em sua audiência. Por outro lado, a transcrição termina com uma menção de adaptação ao “feitio brasileiro” e, nesse sentido, Mário Filho incorporava nas arquibancadas o espírito competitivo das escolas de samba, no formato dos desfiles avaliados por juris e que ele mesmo promovera no Rio de Janeiro em seu jornal.

Na sequência diária da cobertura da final, enaltece-se o colorido das bandeiras, descrevem-se os gritos coordenados e reproduzem-se as mensagens das faixas provocativas, a exemplo de “Sossega, leão”, atribuído pelos rivais rubro-negros aos tricolores. Estes recebem elogios pela mobilização e observa-se pela primeira vez o emprego do qualificativo “organizada” para a manifestação da torcida do Fluminense, liderada por seu “chefe”, conhecido tão somente por Guimarães.

As palavras superlativas do jornal O Globo ilustram a valoração positiva atribuída ao papel dos grêmios torcedores nos estádios: “O Rio presenciou ontem o mais belo espetáculo esportivo de todos os tempos na sua história” (O GLOBO, 21 dez. 1936O GLOBO. Rio de Janeiro, 1925-., p. 12). O título da reportagem junto à foto reitera o caráter espetacular e sem precedentes do concurso, que aqui mencionamos com ortografia atualizada: “Um espetáculo lindo e maravilhoso - a competição de torcidas”. Tal qual o linguajar do campo de jogo, trata-se de um “certame original” entre os torcedores, o primeiro de uma série de três partidas, a contar com a cobertura da imprensa.

As informações do noticiário sugerem a participação da direção dos clubes no torneio ao relatar que, para a segunda partida da final, a “comissão organizadora do Fluminense prepara novos números”. No dia 24 de dezembro, após a partida, a atuação é detalhada, à página 8 do mesmo jornal, com informações sobre o uso de lanternas, morteiros, bombas e foguetes (ou “fogos de salão”), seja dos adeptos rubro-negros nas arquibancadas seja na parte social do estádio das Laranjeiras, nas cores tricolores. Os relatos concernentes a tal competição “ruidosa” se estendem até 01 de janeiro de 1937 nas páginas do “Cor-de-Rosa”, o que mostra o interesse em manter em evidência a pauta.

Nesse contexto, fica claro o propósito da imprensa de constituir o etos associativo positivo que então se formava entre torcedores e que, por extensão, pode-se associar a princípios mais amplos de arregimentação de grupos sociais na Era Vargas. Se não cabe aqui um aprofundamento historiográfico em tal direção, é mister sugerir que os tentáculos do regime varguista vão moldar e exercer influência considerável sobre uma base social alargada. Esta abrangia áreas de atuação do lazer ao trabalho, a exemplo, indiretamente, das sociedades carnavalescas e, diretamente, dos sindicatos únicos corporativos, então instituídos e que se fazem presentes nos desfiles cívicos ocorridos nas dependências de equipamentos esportivos, a exemplo do estádio de São Januário entre as décadas de 1930 e 1940 (PARADA, 2009PARADA, Maurício. Educando corpos e criando a nação: cerimônias cívicas e práticas disciplinares. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.).

O esporte e a educação física participam desse processo de constituição das práticas disciplinares, a despertar especial atenção nos espaços públicos de reunião das massas urbanas, como os espaços para a prática e a exibição desportivas. Nos termos institucionais do Estado Novo, isso se concretiza com a emergência do CND - Conselho Nacional de Desportos - em 1941, idealizado nos últimos anos da década de 1930 e responsável por salvaguardar a regulação e o ordenamento jurídico dos esportes. No caso do futebol, a entidade se coloca como instância superior às ligas estaduais, tornando-se um órgão, no limite, vertical e centralizador do poder futebolístico.

Ainda em âmbito contextual, assinale-se o artigo de Freixo e Alves (2021FREIXO, Adriano de; ALVES, Vágner Camilo. O futebol em tempos de conflito: os grandes clubes do Rio de Janeiro e a Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Revista Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 13, n. 32, p. 1-39, jan./abr. 2021.), intitulado Futebol em tempos de conflito: os grandes clubes do Rio de Janeiro e a Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Conquanto se situe no bojo das relações internacionais, cujo governo se divide entre as alas “americanófilas” e “germanófilas” do Estado Novo, o texto traz informações que acentuam o crescimento da importância das agremiações clubísticas e seu posicionamento durante a Segunda Guerra. Para tanto, sublinha o protagonismo da sociedade civil junto à ênfase historiográfica nas decisões governamentais, a atuação de cada clube em meio à conjuntura bélica e salienta o seu papel como agente político, mobilizador de vínculos sociais e capaz de influenciar a opinião pública para além da esfera esportiva.

Pode-se dizer que a influência crescente dos clubes se refletia nas arquibancadas desde fins do decênio anterior, com o processo formativo de reconhecimento, ou empoderamento, de figuras emblemáticas do torcer. Se o período ainda era ausente de torcidas organizadas, a mobilização de torcedores vai ter repercussões durante a Copa do Mundo de 1938, na França, em junho daquele ano. A promoção do terceiro Mundial da FIFA pelo Jornal dos Sports dá-se de diversas formas, o que inclui o envolvimento dos torcedores, que naquela terceira edição já podiam acompanhar o torneio ao vivo pelo rádio, com a locução dos speakers Gagliano Neto. Uma alternativa curiosa de acompanhamento dos jogos era nas salas de cinema do Rio, em especial na Cinelândia, com a retransmissão das filmagens poucos dias depois da partida.

No Rio de Janeiro, a partida do Brasil contra a Polônia é seguida de uma “alegria barulhenta”, com comemorações em vários pontos da cidade, nos bairros do Centro, do Flamengo e de Botafogo. Torcedores brasileiros enviam telegramas ao chefe da delegação da Seleção, com mensagens de incentivo e apoio. Casas de apostas também assistem ao frenesi de movimentações intensas nas vésperas dos jogos. A partida decisiva da semifinal, contra a Itália, desperta tal ordem de mobilização que a Prefeitura da cidade decreta ponto facultativo nas repartições públicas, com liberação do expediente para acompanhar a transmissão pelo rádio. Uma multidão segue a locução radiofônica das ruas em pontos de irradiação próximos às sedes das emissoras e das empresas de jornais.

Nesse sentido, antes mesmo do início da Copa, o periódico de Mário Filho dá apoio, por meio de um sistema de votação de seus leitores, à eleição de dois representantes da “torcida brasileira” para viajar à Europa e apoiar a Seleção Brasileira nos jogos em cidades francesas. Um homem e uma mulher, isto é, um torcedor (Oswaldo Menezes) e uma torcedora (Leonor Silva), são escolhidos pelos leitores graças aos votos que elegem os representativos dos clubes cariocas pela comunidade futebolística seguidora das notícias esportivos. São assim eleitos para compor a “embaixada” brasileira, segundo a nomenclatura da época, a denotar certo imaginário diplomático, que coexistia na reunião de diversos selecionados do mundo em um encontro internacional.

Uma vez eleitos, os dois “embaixadores” foram enviados a presenciar o Mundial, sob o patrocínio do Jornal dos Sports. Oswaldo e Leonor constituem, aqui e ali, parte das matérias veiculadas sobre o torneio. Este, como se sabe, teve enorme apelo e galvanizou parte significativa da população brasileira, sendo visto como um momento chave da narrativa que consagrou o imaginário em torno do “país do futebol” (SOUZA, 2008SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em campo: construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008.).

Nessa esteira, um ano depois, a novembro de 1939, o Campeonato Carioca é vencido pelo Flamengo e acarreta novas ocupações do espaço público para festejos dos torcedores. Após a conquista do título pelo time rubro-negro graças à derrota do Botafogo para o América, o jornal O Globo anuncia no dia 27 um jantar comemorativo e uma “passeata triumphal” (O GLOBO, 1939O GLOBO. Rio de Janeiro, 1925-., p. 8). Três dias depois, manchete do mesmo periódico exalta a passeata “apoteótica” (O GLOBO, 1939O GLOBO. Rio de Janeiro, 1925-., p. 8) e as comemorações em toda cidade, em função da conquista do título. Fotos mostram populares a extravasar nas ruas a pé e em carreatas.

Dois anos depois do Mundial, uma faceta menos positiva do comportamento coletivo de torcedores de futebol chama a atenção da opinião pública. Trata-se do tema da disciplina, que sugere a existência de crescentes distúrbios entre os aficionados de diferentes clubes. Com efeito, a discussão sobre a diminuição da afluência de público e, ato contínuo, a queda da renda agravam ainda mais a precariedade do futebol profissional (COUTINHO, 2020COUTINHO, Renato. “O football não tem culpa”: a queda da arquibancada do São Cristóvão e os dilemas do futebol profissional do Rio de Janeiro nos anos 1940. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 18, p. 45-64, 2020.). O diagnóstico do periódico apontava problemas estruturais da profissionalização, como a organização do calendário e o desnivelamento dos clubes, o que tornava as competições pouco atraentes aos espectadores.

Ademais, em 10 de abril de 1940, O Globo repercute discussão quanto à necessidade de apoio da polícia nos estádios. O debate tem em vista uma campanha em prol da “moralização” do futebol carioca e preconiza, para tanto, a adoção de medidas de urgência pela liga responsável, a Federação Metropolitana de Futebol, presidida por Vargas Netto, sobrinho de Getúlio Vargas.

Em adição, a edição vespertina de O Globo, do dia 20 de abril de 1940, reproduz em nota apelo da diretoria do América, com o pedido para que seus torcedores e sua torcida organizada, chefiada por José, sem indicação de sobrenome ou apelido, tratem os adversários com “entusiasmo” e “cordialidade”. O intuito dos dirigentes é colaborar para o “reerguimento social do football da cidade”, em que se preza pela “disciplina e serenidade das torcidas” (O GLOBO, 1940O GLOBO. Rio de Janeiro, 1925-., p. 8).

Um mês depois, a 10 de maio, no mesmo periódico, manchete anuncia medidas disciplinares adotadas pela liga de futebol do Rio de Janeiro, comandada pela FMF, com o pedido de ajuda ao policiamento responsável. Em entrevista, o presidente da Liga explica providências que serão tomadas dentro e fora de campo, a exemplo de expulsões para jogadores violentos e de prisões para torcedores que porventura cometerem agressões físicas.

Assim, o enquadramento moral se faz presente por meio do recrutamento e recrudescimento da vigilância policial. Em paralelo, continua-se a estimular o recurso ao “duelo” das torcidas. Este mostra a contrapartida festiva, isto é, uma outra estratégia de intervenção no espaço das arquibancadas, como sugerimos aqui. Em agosto daquele ano de 1940, o confronto entre os líderes da competição, Vasco e Fluminense, suscita a organização de mais um concurso entre suas respectivas torcidas, segundo o mesmo periódico, que institui, como de praxe, um júri a avaliar os quesitos animação, originalidade, música, entre outras notas avaliativas.

Mais do que uma relação de superposição, a promoção dos concursos de torcidas vai coexistir com os problemas cotidianos relacionados à contenção dos torcedores nos estádios - desavenças, impropérios e brigas. É necessário aludir aqui à discussão sobre a eficácia da internalização de um “autocontrole” entre os espectadores esportivos, uma terminologia adotada por Norbert Elias e Eric Dunning (2008ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Quest for excitement: Sport and leisure in the civilizing process. Dublin: University College Dublin, 2008.). Os sociólogos teorizam sobre as homologias entre a “esportivização” da política e a “parlamentarização” dos esportes modernos na Grã-Bretanha e dedicam parte de suas agendas de pesquisa a analisar o fenômeno comportamental dos torcedores britânicos e suas oscilações no “descontrole controlado” das emoções, ao longo da história do processo civilizador.

Destarte, sucessivas “competições de torcida” são promovidas nesse período, a exemplo de um Flamengo e Vasco realizado em 8 de outubro de 1943, no novo estádio do Botafogo, General Severiano. A partida válida pelo Campeonato Carioca se desenrola em campo neutro, mas mesmo um equipamento esportivo inaugurado havia cinco anos mostra-se incapaz de abrigar todos os espectadores. Fotos da reportagem flagram cenas da multidão apinhada nas dependências do estádio botafoguense, comprimidas contra o alambrado divisório, outra novidade a demarcar o espaço entre as arquibancadas e o campo.

À suposta ideia de uma situação excepcional, contrapõe-se a percepção de que o caso ocupava a atenção dos periódicos naquele ano. Meses antes, em agosto, o mesmo Globo Sportivo faz a cobertura de um América e Vasco, e diagnostica a defasagem do futebol do Rio de Janeiro ante o de São Paulo, que à época já contava com o Estádio Municipal do Pacaembu, apto a receber mais de 40 mil pessoas. A matéria “Falta apenas espaço...como ficam os campos cariocas”, do dia 13 daquele mês, avalia a existência de apenas um equipamento à altura das multidões esportivas - São Januário - e exibe foto das precárias condições dos demais, tal como o estádio do América, na Tijuca, com imagens de aficionados dependurados nas árvores e nos morros das redondezas da rua Campos Salles.

Nesse cenário, não raro invasões de campo são registradas. Decisões do juiz irritam os torcedores que, indignados, lançam-se aos gramados em busca do árbitro, tradicional bode expiatório do futebol. As soluções encontradas pelos dirigentes da Liga dizem respeito à punição mediante o fechamento dos portões, com jogos sem torcida de nenhum dos times. Outra medida aventada é a instalação de alambrados que dificultem o ingresso ao campo de jogo, medida que será adotada rapidamente no estádio do Vasco, o de maior porte até então.

A despeito dos apelos, um mês depois das reportagens, um acidente fatal acontece. Em 19 de setembro de 1943, o Flamengo joga no superlotado estádio do São Cristóvão, acanhada cancha da zona norte da cidade, dotado de arquibancadas de madeiras, como muitos pequenos e médios clubes faziam. Ocorre que parte das arquibancadas em que se situa a faixa “Avante Flamengo”, liderada por Jaime de Carvalho, desaba, sob pressão de oito mil presentes. O incidente é dramático e ocasiona oito mortos e mais de 200 feridos.

A reação das autoridades é imediata, com a interdição do estádio da Rua Figueira de Mello. Decreta-se poucos dias depois o impedimento da instalação de campos sem a contrapartida de arquibancadas erguidas exclusivamente com cimento armado. Equipamentos de madeira são interditados e de maneira progressiva tornam-se proscritos do futebol profissional.

Esse evento traumático gerou enorme comoção popular naquele ano e impeliu ao debate subsequente sobre a infraestrutura das praças esportivas. Com ele, ganha força a ideia de um estádio público municipal, de grandes proporções, em campo neutro, o que só se concretiza com o erguimento do Maracanã ao final daquela década. Nessa conjuntura, também coloca-se em questão o comportamento esperado das plateias futebolísticas. Os segmentos de torcedores organizados voltam a ser então requeridos como parte constitutiva, a contribuir para o ordenamento e para a festa promocional do espetáculo. Conforme já dito, isso se dá sob o estímulo dos meios de comunicação, na busca por formas coletivas de contenção e de organização das massas, mediante adesão e incentivo orquestrado aos seus respectivos clubes.

Nos idos de 1940, por exemplo, o compositor Lamartine Babo compõe os hinos populares dos clubes cariocas, divulgados por meio dos programas de rádio, composições que superariam as músicas tradicionais e altissonantes da época da fundação. A estratégia de popularização dos clubes surte efeito, com o delineamento e a expansão do alcance dessas comunidades clubísticas, ao redor de seus símbolos e repertórios musicais, extraídos, por sua vez, da tradição hínica preexistente nos antepassados dos clubes e pelo ambiente carnavalesco das marchinhas já existentes na cidade.

A atuação informal desses “chefes”, presentes nas arquibancadas desde os anos 1920, ganhará uma configuração mais acabada com a institucionalização das charangas e das torcidas organizadas no decurso dos anos 1940 e com sua rotinização no decênio seguinte. No tópico seguinte, selecionaremos alguns personagens e determinados eventos para descrever como se deu tal processo de autonomização e de consolidação dos agrupamentos no espaço das arquibancadas e nas páginas dos jornais.

Do surgimento das torcidas organizadas à Era Maracanã: o protagonismo de Jaime de Carvalho

Esta seção dedica-se a apresentar o desenvolvimento da participação de subgrupos torcedores nos campeonatos cariocas entre os decênios de 1940 e 1950. Uma vez consolidado o profissionalismo e erguidas praças de esportes à altura da popularidade do futebol no Brasil - o monumental Maracanã, estádio público municipal, construído para a Copa do Mundo de 1950, é o auge do engrandecimento -, a estruturação desses grêmios torna-se uma realidade.

Conforma-se de maneira paulatina a convenção em torno da existência de uma torcida por clube e de um líder por agremiação clubística. Esse processo envolve o reconhecimento mútuo entre tais lideranças inter-torcidas, com eventuais desavenças no seio de uma agremiação na assunção de seu “chefe”. Tal universo é avalizado ainda por parte dos dirigentes esportivos e da opinião pública, mediante os jornais especializados em esportes e as emissoras de rádio que transmitem as partidas.

Pode-se dizer que esse período de realização dos concursos e das eleições de performance das torcidas, mais precisamente entre 1936 e 1951, foi capaz de moldar e gestar as lideranças torcedoras nas arquibancadas, com a chancela da imprensa, dos clubes, das ligas e das autoridades policiais. Essa baliza de 15 anos é assinalada aqui porque, em 1951, pela primeira vez, o Maracanã é palco para a realização de um novo “Concurso de Torcidas”, mais uma vez sob os auspícios do Jornal dos Sports de Mário Filho e com o beneplácito dos dirigentes de Flamengo e Fluminense.

O referido jornalista se aproveita de uma nova final de campeonato carioca entre “Fla-Flu” para, por assim dizer, reinventar a tradição, instituída pela imprensa em 1936. Desta feita, ao invés das Laranjeiras, a magnitude do Maracanã potencializa a ambientação carnavalesca do espetáculo esportivo e da competição torcedora, com a mobilização de estandartes, confetes e serpentinas, entre outros adereços e materiais das torcidas no incentivo a seus clubes nas arquibancadas.

O concurso tem longevidade sobretudo em partidas finais disputadas entre Flamengo e Fluminense. A final do Campeonato Carioca de 1963, aquela que recebeu um dos maiores públicos da história do Maracanã, com mais de 170 mil pagantes, reedita a competição. Nas palavras de Mário Filho: “Há no Fla-Flu duas batalhas: uma em campo e outra das torcidas. Nós falamos da massa rubro-negra. Mas existe uma legião tricolor. Se por um lado o Flamengo é o mais querido, o Fluminense é o mais amado” (JORNAL DOS SPORTS, 12 dez. 1963JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952., p. 3).

Na esteira desses concursos, emergem e se consolidam as primeiras gerações de chefes de torcida que tiveram expressão pública para além da esfera meramente esportiva entre as décadas de 1940, 1950 e 1960. Em uma via de mão dupla, que variou de clube a clube, infere-se, pelo exame das fontes, que os representantes torcedores foram tanto expressão de uma base, em princípio, amorfa de seguidores de um clube, fruto da construção do pertencimento clubístico, quanto resultado do estímulo oferecido por dirigentes esportivos, por órgãos da imprensa e por autoridades policiais.

O exemplo mais notório de agremiação torcedora foi a Charanga do Flamengo, criada em 1942 por Jaime de Carvalho e Manuel da Silva. O nome, dado a posteriori, seria antecedido por uma faixa com a inscrição “Avante Flamengo”, forma de identificação do séquito rubro-negro nas arquibancadas nos diversos estádios da cidade, flagrados em pequenas notas de jornal ou em fotos posadas nos jogos mais importantes.

Depois dessa, seria fundada, em março de 1944, a Torcida Organizada do Vasco (TOV) - em princípio cunhada com a denominação “uniformizada” (TUV), termo mais comum em São Paulo -, por Aida de Almeida e um grupo de seguidores, amigos de arquibancada. Antes mesmo da fundação oficial, já existia um grupo de vascaínos intitulados “Legião da Vitória”. Seu lema, expresso em faixas dependuradas nas arquibancadas, era: “Com o Vasco onde ele estiver”.

Esse grupo preliminar é o embrião para a oficialização da TOV. João de Luca foi seu representante ao longo dos anos 1940, primeira fase da agremiação. Na década seguinte, esse chefe passaria o comando da torcida à Dulce Rosalina, que lideraria o grupo até meados dos anos 1970. Malgrado não haja espaço aqui para desenvolvimento de um tópico importante, a saber, o de gênero, é preciso assinalar a presença das mulheres torcedoras, como as mencionadas Aida e Dulce, na liderança e na composição das associações torcedoras, tema tratado com acurácia pela pesquisadora Daniela Araújo (2019ARAÚJO, Daniela. Lugar de mulher é no futebol: Dulce Rosalina e a representatividade feminina nas torcidas. 2019. 104 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Instituto de Artes e Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.).

O reconhecimento das torcidas organizadas de Flamengo e Vasco pode ser medido por notícia publicada no Jornal dos Sports, em 19 de setembro de 1945. Nele se anuncia participação no “Grande Show Esportivo”, programa radiofônico no auditório do Rádio Clube Brasil, que também tinha como atração o seu “Clube da Torcida”. Outra medição apropriada encontra-se na coluna de Álvaro Nascimento, também do staff do JS, que sugere à torcida organizada vascaína um toque de clarim, característico do carnaval, seguido do grito de guerra “Casaca!”. No mesmo ano, segundo a cronista Florita Costa, responsável pela coluna “Diário do Flamengo”, Jaime de Carvalho tinha projetos de criar uma nova modalidade de torcer, em que a torcida rubro-negra apoia o time de acordo com as chances criadas, aumentando e abaixando o volume, portanto, em consonância com o desempenho da equipe no gramado.

Em 1946, é instituída a Torcida Organizada do Fluminense (TOF), por Paulista, que chefiava informalmente os tricolores desde 1939. Seu nome era invocado em alternância com Guimarães, reconhecido também como “chefe”, cuja presença nas arquibancadas entre os tricolores era mais antiga, a encontrar em Paulista um sucessor ao longo do tempo. Como dito acima, em alguns momentos tais disputas pela chefia da torcida tricolor provocariam estremecimentos e pequenas desavenças internas.

Ainda nos anos 1940, os periódicos aludem à existência de uma “orquestra americana”. A referência, por suposto, diz respeito à banda que animava os torcedores do América e que surge com inspiração explícita na Charanga do Flamengo.

Em 1952, por seu turno, é criada a Torcida Organizada do Bangu, liderada por Juarez. Ao que tudo indica, assim como no caso do América, trata-se de um “efeito dominó”, com a imitação do exemplo da ambiência vista nas arquibancadas rivais. E, em 1957, a Torcida Organizada do Botafogo (TOB) era assumida por Tarzan, que substituía Salvador Peixoto, veterano torcedor alvinegro da década de 1940, a aglutinar grupos de bairro que aderiam ao clube de General Severiano.

Dentre esses, Jaime de Carvalho pode ser considerado o exemplo paradigmático, espécie de tipo-ideal, do que então se preconizara como chefe de torcida, com a combinação de aura, de autoridade e de exemplo para os demais torcedores, tendo em vista a reputação em âmbito não só local como nacional, na qualidade de chefe da torcida da Seleção brasileira. Nascido em Salvador, Bahia, em 1911, Jaime passou a acompanhar o Flamengo em fins dos anos de 1920, quando se radicou na cidade do Rio de Janeiro. Funcionário de baixo-escalão do Ministério da Justiça - agente de portaria −, casado com a portuguesa Dona Laura, sua acompanhante em todos os jogos, moradores do bairro do Catete, Jaime tinha prestígio perante os dirigentes do clube, o que lhe possibilitou a criação da Charanga na final do Campeonato Carioca de 1942.

As narrativas jornalísticas tendem a acentuar seu estilo dito cordial e conciliador. Jaime relata à imprensa que o surgimento das torcidas organizadas foi uma forma de conter as brigas entre torcedores de diferentes clubes que se misturavam e se desentendiam de maneira contínua nas arquibancadas. Não raro iam às vias de fato. Com a instituição dos grupos, o território era segmentado e orientava os torcedores mais inflamados para onde deveriam se dirigir nas arquibancadas para assistir às partidas, de modo a evitar o confronto com adversários.

A aura de conciliação atribuída a Jaime foi sendo construída ao longo dos anos. Na década de 1950, já sob a égide do Maracanã, o torcedor rubro-negro instituiu uma reciprocidade nos gestos amistosos de cada torcida. A tradição se iniciara em realidade no ano de 1945, antes do estádio municipal, ocasião em que a torcida do Flamengo, após jogo contra o São Cristóvão, atravessa o estádio da Rua Álvaro Chaves para saudar os sócios do Fluminense presentes ao jogo. A atitude é chamada pelo Jornal dos Sports de “ato diplomático” (JORNAL DOS SPORTS, 24 out. 1945JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952., p. 4) e seria assimilada por Jaime de Carvalho dos anos 1950 em diante.

Tal como o ato simbólico em campo de troca de flâmulas entre os jogadores capitães de cada clube, antes do início da partida, Jaime costumava oferecer uma corbelha de flores às torcidas adversárias. Para tal, o torcedor ia ao encontro dos chefes oponentes antes dos jogos, em sinal de confraternização, com uma volta da charanga no anel das arquibancadas.

Destarte, logo se tornou uma espécie de torcedor-oficial da cidade, apresentado pelos jornais com o status de “chefe da torcida brasileira”, e incumbido pelas autoridades esportivas, como a CBD, por ocasião da Copa do Mundo de 1950, da organização do incentivo à Seleção. A escolha não foi aleatória e se deveu ao fato de que, pelo menos desde 1947, Jaime comparecia às partidas de basquete da Seleção para incentivá-la, criando gritos específicos de apoio à equipe. Modalidades esportivas como o vôlei também tinham o comparecimento da Charanga de Jaime, que se torna pouco a pouco sinônimo de banda incentivadora do Brasil como um todo.

No futebol, o apoio ao selecionado nacional não se restringe a um único Mundial e tem prosseguimento no torneio seguinte, durante a Copa do Mundo da Suíça, em 1954, quando uma campanha promovida pelo Jornal dos Sports, a pedido do jogador Didi, patrocina a viagem de Jaime a Berna, capital suíça. Naquela oportunidade, o torcedor volta a exercer o tradicional cargo de embaixador da torcida brasileira, criado também em 1938 pelo jornal de Mário Filho, entrando em campo junto com os jogadores e estendendo uma faixa com o lema: Avante, Brasil.

Sua participação internacional só não acontece por motivos de saúde ou de ordem pessoal. De todo modo, as caravanas internacionais de torcedores para o seguimento da Seleção em torneios futebolísticos têm em seu exemplo um referencial central. Depois da Copa da Suíça em 1954, quatro anos depois, em 1958, na Suécia, cerca de 400 torcedores brasileiros, em sua maioria moradores na Europa, deslocam-se à semifinal da Copa do Mundo da Suécia, em Estocolmo, contra os franceses. Dada a maior proximidade, os torcedores da França, segundo o Jornal dos Sports, contam com 4 mil presentes ao estádio (JORNAL DOS SPORTS, 25 jun. 1958JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952., p. 9)

Em 1959, ano do Campeonato Sul-Americano de futebol, em Buenos Aires, o deslocamento de torcedores brasileiros ocorre ao país vizinho de avião. A tradição é aos poucos sedimentada Em 1962, o Jornal dos Sports volta a instituir a figura do “embaixador”, Alfredo Costa, que viaja para a Copa do Mundo do Chile, quando a Seleção Brasileira se sagra bicampeã mundial. Além do responsável pela “embaixada”, Mário Filho ainda sorteia Antônio Monteiro, que conquista o direito de acompanhar os jogos do Brasil em cidades chilenas.

Nesse arco temporal, a última participação representativa de Jaime na condição de chefe da torcida brasileira foi na Copa do Mundo da Alemanha, em 1974, a última antes de seu falecimento dois anos depois. Antes dela, vai ao Paraguai, em 1969, para a partida contra o selecionado daquele país, válida pelas Eliminatórias do Mundial do México, no ano seguinte.

Internamente, seu reconhecimento deu-se, em especial, no ambiente do Rio de Janeiro e do seu Campeonato Carioca. Na década de 1950, há registros também de caravanas a São Paulo para assistir aos jogos do Torneio Rio-São Paulo. Ademais, constrói-se sua figura como exemplar. Em colaboração com a Polícia Militar, instituição com a qual nutria boas relações, foi condecorado pelo chefe de polícia Nelson de Mello como “torcedor número 1” do Maracanã em 1958. A condecoração acontece dentro do próprio campo de jogo, a cunhar um caráter ritual e solene ao título e à placa outorgados.

A manutenção da ordem nos estádios era uma preocupação do Delegado de Ordens e Diversões desde meados dos anos 1930, quando forças policiais foram designadas para atuar nos estádios e coibir distúrbios e transgressões nos estádios. A mescla de torcedores de clubes rivais geravam os tais “sururus” a que se referia a imprensa da época. Em entrevistas, como dito acima, Jaime se recorda de que o papel do chefe da torcida e da torcida organizada era segmentar o estádio e estabelecer uma espécie de divisão geográfica das arquibancadas com torcidas em posições distintas. O intuito era evitar as provocações e os impropérios que, com certa frequência, terminavam em brigas (JORNAL DOS SPORTS, 23 dez. 1965JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952., p. 12).

Já sob a Era Maracanã, a territorialização das arquibancadas, demarcada pelo setor destinado às cadeiras especiais e à tribuna de imprensa, gerava uma espécie de “muro de Berlim” entre as torcidas. Desde então, e até meados dos anos 1970, quando faleceu, Jaime de Carvalho foi responsável pela coordenação de campanhas de educação esportiva nos estádios. Através do auxílio de um megafone, trazido pelo dirigente George Helal dos Estados Unidos no final dos anos 1950, Jaime abordava as inconveniências da queima de fogos de artifício, condenava as palavras de baixo-calão e chegava a expulsar componentes da torcida por mau comportamento.

Se a função social e o papel desempenhado por esse personagem no cenário esportivo coincidiam na caracterização das torcidas no Rio e em São Paulo, as condições econômico-sociais de seus integrantes pareciam destoar quando se comparavam os dois estados. Finda a marca de suposta aura de distinção do espectador da belle-époque, equivalente ao encerramento da era de ídolos aristocráticos como Marcos Carneiro de Mendonça e ao início da emergência dos atletas profissionais de extração negra e operária, como Fausto, Domingos da Guia e Leônidas da Silva, o esforço de vários especialistas do futebol se volta então para uma reelaboração da imagem do torcedor, que consistia em reintroduzir uma acepção positiva para o etos amador no futebol.

À primeira vista, a leitura dos jornais nos anos 1930 e 1940 sugere que a homologia entre os jogadores e os torcedores na etapa do futebol profissional se mostra coerente. A imagem do primeiro, conforme explora a pesquisadora Diana Mendes Machado da Silva (2019SILVA, Diana Mendes Machado da. Futebol e cultura visual: a construção da figura do craque - Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva. 2019. 255 f. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.), vai da personagem do sportman amador, personificado por Mário Filho em Marcos de Mendonça, ao ídolo negro do futebol profissional, exemplificado pelo trio de atletas negros Fausto, Domingos da Guia e Leônidas da Silva. Este último alvo de atenção não apenas da tese em cultura visual da autora acima citada como de instigantes apontamentos biográficos desenvolvidos pelo historiador Leonardo Pereira (2019PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Leônidas da Silva: um ídolo negro no Brasil de Getúlio Vargas. In: FERREIRA, Jorge; CARLONI, Karla (org.). A República no Brasil: trajetórias de vida na democracia e na ditadura. Niterói: EDUFF, 2019. p. 43-78.).

Em ambas as situações - jogadores e torcedores - se ressaltavam as origens populares homólogas dos segmentos populacionais emergentes, que se faziam presentes nos estádios, seja no campo seja nas arquibancadas. Em larga escala, depreende-se das lentes da imprensa que o chefe de torcida passava a exemplificar o percurso trilhado por inúmeros torcedores e futebolistas. Estes provinham das mais díspares regiões do país, oriundos de famílias modestas, egressos dos contingentes médios e baixos da sociedade, cujo trabalho em geral não ultrapassava o anonimato do cotidiano laboral subalterno, incapaz de alcançar a visibilidade e o prestígio das profissões liberais.

Feita assim a caracterização geral do cenário das arquibancadas dos anos 1940 e 1950, perfilando trajetórias como a de Jaime de Carvalho, passaremos à terceira e principal parte deste artigo, a mais alentada também, com a compilação de textos jornalísticos e de livros que, entre 1948 e 1968, contribuíram sobremaneira, segundo nossa argumentação, para criar determinados estereótipos e para consignar específicos valores ao imaginário dos torcedores em geral e dos chefes de torcida, em particular. Com efeito, tencionamos validar nossa hipótese relativa à “invenção” e ao processamento rotinizado de um modo de torcer no Rio de Janeiro em meados do século XX, que se desdobra, com sua dinâmica própria, nas décadas seguintes, e se prolonga, não sem ressignificações, até mesmo a contemporaneidade.

Torcedores de papel: memorialismo esportivo e livros de futebol

Esta última parte do texto pretende explorar a legitimação mais ampla dos cronistas e dos escritores quanto à figura do torcedor de futebol, em sentido lato, e ao líder de torcida, de maneira mais específica. Argumentamos que, em um contexto de progressivo profissionalismo da modalidade futebolística, os jornais especializados em esportes realçam, na descrição dos frequentadores de arquibancadas, traços narrativos determinados. Estes, por sua vez, partem de um intrínseco amadorismo da condição de afiliados clubísticos e vão até uma peculiar e pitoresca caracterização de um tipo de humildade na construção de suas personas torcedoras, com especial atenção àquela dos chefes de torcida em específico.

As matérias dos periódicos do Rio de Janeiro passam não apenas pelo registro da presença e da performance dos agrupamentos nos estádios, mas também pela cobertura de suas atividades cotidianas nos preparativos das partidas, em publicações que atravessam os anos 1940 e de 1950 e chegam até os idos de 1960. Conforme o grau de importância e o caráter decisivo dos jogos, os esforços despendidos pelos líderes nos preparativos para a partida ocupam a pauta e são alvos de divulgação durante toda a semana.

As reportagens compreendem, ainda, um sentido retrospectivo de reconstituição do passado e das origens exemplares desses torcedores, caracterizados como altruístas. Os textos buscam os exemplos extremos de abnegação dessas figuras ao longo do tempo. Para além do registro jornalístico diário, os torcedores ganham também uma expressão mais acabada graças à publicação de obras em que nomes de outrora das arquibancadas vêm a ser relembrados e homenageados. Vejamos ainda como isso não só pontificava nas páginas dos jornais, mas também se prolongava em passagens de livros devotados às memórias do futebol.

Mário Rodrigues Filho (2014RODRIGUES FILHO, Mário. Histórias do Flamengo. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.), em 1945, com seu Histórias do Flamengo, por ocasião da comemoração dos 50 anos do clube rubro-negro, consagra várias páginas à atuação de Jaime de Carvalho à frente da Charanga, durante a conquista do seu primeiro tricampeonato carioca de 1942-19430-1944. É sabido que o jornalista tinha preferências veladas pelo clube da Gávea e atribui-lhe características identificadas no processo de popularização do futebol. Não obstante, seu tino empresarial procurava cultivar a pluralidade representativa das agremiações e praticava uma espécie de “ecumenismo” inter-clubístico a todos torcedores nos seus escritos.

Nesse sentido, em julho de 1948, um ano após publicar seu livro de maior impacto, O negro no futebol brasileiro, Mário Rodrigues Filho (2003RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2003.) dedica uma série de crônicas de sua coluna “Da Primeira Fila”, em O Globo Sportivo, a perfilar João de Luca, a liderança vascaína da TOV. O jornalista emprega o seu mesmo método memorialístico dedicado aos jogadores, às ligas e aos clubes cariocas da primeira metade do século XX para relatar aspectos anedóticos da vida privada e das relações familiares do líder da torcida do Vasco. Esses traços são capazes de denotar facetas de seu clubismo e de suas origens sociais, marcando sua condição de indivíduos anônimos e humildes, pertencente às classes populares e às classes médias baixas dos subúrbios do Rio.

Por seu turno, o escritor Paulo Coelho Neto, cujo pai beletrista havia cunhado o termo torcedor nos anos de 1920 - categoria que circulava ao lado da designação de “fans”, de adeptos, de assistentes, entre outros -, em seu livro História do Fluminense, de 1952, lançado também por ocasião da celebração do cinquentenário de fundação do clube, inclui o capítulo “O 12.º jogador do Fluminense”. À maneira de Mário Filho, embora com estilo de escrita distinto, Coelho Neto compilava uma extensa listagem daqueles que mais haviam se destacado no apoio ao time no decorrer de sua existência.

Abstraída a variedade das idiossincrasias e dos semblantes de cada torcedor, nas quais se acentuavam suas colorações exóticas mais superficiais, todos eram equacionados em um mesmo patamar, vistos à luz do “estoicismo”, das provas de abdicação de suas próprias vidas em favor do clube e da capacidade positiva de interferir no resultado dos jogos. O escritor Paulo Coelho Netto assim discorre:

Chico Guanabara, Barriga, Batista e Peitão simbolizam a evolução da torcida tricolor, hoje - sem sombra de dúvida - uma das maiores e mais entusiastas do Brasil. Na atualidade, os tipos representativos da evolução do torcedor do Fluminense podem ser retratados através de dezenas de figuras populares, verdadeiramente fanáticas pelo campeão de 1951, como entre outras: Guimarães, sempre reivindicando o título de torcedor n.º 1 do Fluminense; Alemão, o velho jornaleiro dos iu-rá-rés desesperados, quando a sombra de uma derrota começa a pairar sobre o quadro tricolor; Paulista, o regente - nas arquibancadas do Maracanã - do formidável corpo coral do supercampeão; Pastel, escoteiro do Fluminense, indo ao extremo de cortar relações com amigos que criticam o seu clube, e Gélson Ceciliano, o homem da gaitinha nos jogos de juvenis, a correr de ponta a ponta as arquibancadas dos estádios das Laranjeiras e do Bangu, sempre reclamando contra os companheiros retardatários, são células do gigantesco corpo do 12.º jogador do Fluminense que, não raro, com seu estímulo desinteressado, contribui para que uma derrota iminente se transforme em uma vitória consagradora; que suporta estoicamente o sol abrasador ou a chuva diluviana; que passa o dia inteiro fora de casa, privando-se de alimentação substancial e suportando todas as dificuldades de trens, bondes e ônibus superlotados; enfim, que vibra, exulta ou sofre com a vitória ou derrota dos quadros tricolores. (COELHO NETTO, 2002COELHO NETTO, Paulo. História do Fluminense. Rio de Janeiro: Interciência, 2002., p. 400-401).

Seria, entretanto, uma alentada obra publicada em fins dos anos de 1960, de autoria do jurista e jornalista João Antero de Carvalho, cuja família também era ligada ao mundo do futebol, que se dedicaria de modo integral a fixar a imagem desse ator condicionado por tais pressupostos. Em Torcedores de ontem e de hoje, livro com mais de 350 páginas, coligidas de crônicas publicadas em O Dia, em que se perfilavam 50 torcedores dos clubes mais tradicionais da cidade, escolhidos entre figuras ilustres e ignotas, seguindo critérios de seleção que pareciam atender mais ao bel-prazer das simpatias pessoais do autor do que a uma distribuição equitativa ou representativa de cada clube, procurava-se reverenciar o multifacetado universo de aficionados do futebol através da exposição do que chama seus “flashes biográficos” (1968).

Evocação memorialística, somada a depoimentos coletados diretamente por João Antero, com caricaturas de Humberto Marinho, desenhos de Mário Agostinelli, poemas de Mário Peixoto e prefácio de Nelson Rodrigues, este último um exímio artífice de imagens consagradas ao torcedor − “aquele que acompanha o clube na glória e no infortúnio, mais neste que naquele”, conforme prefaciava −, os principais chefes de torcida da cidade tinham suas desconhecidas trajetórias narradas lado a lado com o radialista Ari Barroso, o compositor Lamartine Babo, o escritor Marques Rebelo, o ex-goleiro Marcos de Mendonça e o cronista Jota Efegê, entre outros expoentes da vida social carioca.

A primeira geração de líderes de torcida mencionada acima figurava em sua quase integralidade no livro - Paulista do Fluminense, Dulce Rosalina do Vasco, Tarzan do Botafogo e Juarez do Bangu - à exceção do popularíssimo (adjetivo do Jornal dos Sports) chefe dos rubro-negros, Jaime de Carvalho, ausência lamentada na apresentação da obra, que fazia o autor justificar a necessidade de prosseguimento do trabalho em um segundo volume.

Eis alguns excertos, repletos de adjetivos, em que se enaltecem as provações altruísticas, o não-esmorecimento ante as situações adversas e a entrega absoluta de cada um deles:

‘Paulista’, que em 1951, ano de uma competição de torcidas, entrou em campo vestido de casaca e cartola, acompanhando enorme caixa de pó-de-arroz, em cujo interior se encontrava bela jovem, segue seu clube por toda a parte. Tem tido, por motivos partidários, repetidos desforços pessoais. Aquele que mais o impressionou foi a luta travada com integrantes da torcida do Flamengo, desde o campo da Gávea até o hipódromo do ‘Jockey Club’, num ano em que seu time venceu o rubro-negro e os jogadores do Fluminense, após garantirem um escore favorável, para ‘fazer cera’ arremessaram inúmeras vezes a bola na Lagoa.

Atualmente, é a única mulher que comanda uma torcida de futebol. E o coração feminino torna-se desmedidamente grande na devoção. Oferece muito e, não raro, em troca de nada. Dulce Rosalina confirma essa verdade. Sua paixão pelo Vasco da Gama encerra algo de belo, idolátrico, imorredouro. Vê-la nos instantes de arrebatamento esportivo ou quando vibra de emoção ao referir-se ao clube predileto é passar a crer na virtude de certos seres. Bendigamos-lhe o sentimento, a intensa e admirável veneração ao grêmio a que de todo se entregou.

Desde 1953 acompanha o Botafogo. Sua presença é infalível em toda e qualquer atividade de seu clube, principalmente nas partidas de futebol. Foi, porém, em 1957 que começou a comparecer munido de bandeira e fogos de estampido. E tal foi sua atuação que em pouco o proclamaram chefe da torcida do ‘Glorioso’, tendo até sido homenageado pelas torcidas do Vasco, em 1957, ao receber um escudo de outro de seu clube; do América, em 1959, ao ser agraciado com uma flâmula representativa dos dois grêmios; e, finalmente, do Flamengo, em 1962, ocasião em que lhe deram belo quadro de seu time.

Assim como os nazistas saudavam-se na Alemanha, de uma forma toda peculiar − ‘Heil Hitler’ −, e os integralistas se cumprimentavam com o ‘Anauê’, na casa de Juarez Oliveira Silva há, também, um modo próprio de saudação: − ‘Viva o Bangu’. Tal como os assírios adoravam o Touro Alado, os egípcios a Amon-Ra e Uhr e os antigos gregos a Júpiter e Têmis, para Juarez o Bangu Atlético Clube é objeto de divina veneração. [...] Visitá-lo em seu lar é pôr-se em contato permanente com as coisas do Bangu: emblemas, bandeirolas, fotografias, flâmulas, frases de exaltação ao clube, a imagem de São Jorge sob o signo dos leões britânicos e, até, a pintura do apartamento, toda de vermelho e branco. À semelhança do saudoso Carlos Melo, já pediu fosse a sua bandeira do grêmio exposta no dia de sua morte. [...] Pode ser, portanto, considerado um complexo de torcedores, sem exclusão daqueles que, por atos e palavras, se avizinham do desatino. Mas, quando age, fá-lo com absoluta convicção. [...] O retrato espiritual de Juarez é mais ou menos este: pau-de-arara, destemido, paciente, brigão, descocado, pacificador, inconveniente, desvelado, intransigente, insólito; mas, na essência, é, apenas, ‘bangüense’. [...] Torcedor incomum, eis o que ele é, tanto o caracterizam a um só tempo os números plural e singular: cem homens contidos em um. (CARVALHO, 1968CARVALHO, João Antero. Torcedores de ontem e hoje. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968., p. 209, 228, 284 e 161-166, respectivamente).

Paulista era o pseudônimo de Carlos Guilherme Krüger, filho de alemão com índia, nascido em 1914 na cidade de Bebedouro, no interior de São Paulo. Depois de uma carreira militar frustrada, radicou-se de início em Niterói, no ano de 1937, empregando-se como escriturário e almoxarife da Prolar, em Vigário Geral, graças ao auxílio de Benício Ferreira Filho, benemérito e vice-presidente de futebol do Fluminense, diretor da empresa, embora seu trabalho não chegasse a dois salários-mínimos. Depois de Niterói, passou a residir em Nova Iguaçu, o que não o impedia de frequentar os estádios da zona sul e do centro da cidade, mediante a organização de “excursões” para os jogos.

Com simpatia inicial pelo América, Paulista acabou por inclinar-se pelo Fluminense, clube que à época possuía um plantel com vários jogadores oriundos do Estado de São Paulo. Em 1941, assistiu à decisão do campeonato carioca, o lendário Fla-Flu da Lagoa, jogo que muito impressionou Paulista, em razão da briga travada por ele e demais integrantes da torcida tricolor contra a torcida rubro-negra, confusão estendida do campo da Gávea até o hipódromo do Jockey Club.

Em 1951, foi um dos responsáveis pela vitória tricolor no “Concurso de Torcidas” do Jornal dos Sports ao entrar em campo fantasiado de casaca, cartola e portando uma caixa de pó-de-arroz, ladeado por Teresinha Del Panta, jovem tenista do clube. Além do futebol, apreciava os festejos do carnaval carioca, nos quais participava do bloco Pierrôs da Caverna. Sua ascendência na torcida do Fluminense perdurou até final dos anos de 1960, sempre a estimular os tricolores a tremular bandeiras, soltar confete, serpentina e nuvens de pó-de-arroz. A TOF tinha um patrimônio de cerca de 400 bandeiras.

Sua torcida organizava passeatas nas ruas antes de partidas decisivas e marcava pontos de encontro para a ida coletiva do grupo a Niterói para ver jogos de outras modalidades. Em meados da década de 1960, passou a ser questionado por um companheiro da TOF, Bolinha, criador da Torcida Dissidente, que se distinguia musicalmente por portar um sino nas arquibancadas. Além do sineiro, outros torcedores símbolos da torcida se destacavam, a exemplo de Alemão e Guilhermino dos Santos.

Dulce Rosalina era carioca, filha de um português do bairro da Saúde, praticante do jogo do bicho e frequentador assíduo dos ranchos carnavalescos da localidade. A inclinação paterna pelo Vasco da Gama motivou sua adesão ao clube. A presença constante nas arquibancadas a fez ser escolhida para a direção da TOV na década de 1950, de onde saiu após 20 anos para fundar a Renovascão, em 1976.

Casada com o atleta Ponce de Leon, dedicava-se em tempo exclusivo à vida do Vasco. Participava de maneira ativa da política interna do clube e tomava partido nas eleições. Dizia-se introdutora da tradição dos papéis picados entre as torcidas e acompanhava o time nos jogos fora do Rio, razão pela qual foi vítima de um acidente de ônibus na via Dutra em fins dos anos de 1960, o que provocou seu afastamento temporário dos estádios. No início daquele mesmo decênio, contudo, já havia sido vencedora do concurso de “melhor torcedora do Brasil” e costumava ser cognominada a primeira dama das arquibancadas.

Tarzan, codinome de Octacílio Baptista do Nascimento, nasceu em 1927, em Grão-Mogol, interior de Minas Gerais. Percorreu várias cidades de Minas e São Paulo antes de fixar pouso no Rio de Janeiro, para onde veio trabalhar como pedreiro na construção do Hospital dos Servidores do Estado. Em Belo Horizonte, integrou a torcida atleticana, que chegou a chefiar, uma mostra de que a bifiliação clubística não era um fenômeno tão estranho a esse universo à época. A semelhança das cores alvinegras fez despertar sua simpatia pelo Botafogo durante a década de 1950, quando se radicou na cidade. Mas sempre que podia voltava à capital mineira e exercia suas funções de liderança entre os alvinegros locais.

A força muscular e o porte físico avantajado valeram-lhe o apelido do lendário herói cinematográfico de Hollywood, sendo conhecido nas arquibancadas por promover um ruidoso foguetório na entrada de seu time. Esse é mais um exemplo da influência do cinema no imaginário da época, ao lado do apelido de Gilda, atribuído ao intempestivo jogador do Botafogo, Heleno de Freitas. Em ensaio memorialístico, o historiador Boris Fausto (2010FAUSTO, Boris. Memórias de um historiador de domingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.) destaca a porosidade das relações entre cinema e futebol à época, duas atrações proporcionadas pela cultura urbana de massas no período.

De volta ao personagem, após exercer atividades iniciais de vendedor ambulante, Tarzan tornou-se proprietário de uma loja de perucas em um sobrado no Centro do Rio. Independente e polêmico, não poupava dirigentes nem jogadores, ficando célebres suas críticas à falta de profissionalismo de Garrincha nos anos de 1960 (PEPE; MIRANDA, 1996PEPE, Braz Francisco Winkler; MIRANDA, Luiz Felipe Carneiro. Botafogo, o glorioso: uma história em preto e branco. Rio de Janeiro: Gráfica Jornal do Brasil, 1996., p. 123).

Na torcida do Botafogo, Tarzan assumiu o lugar de Tolito, comandante da charanga botafoguense entre 1944 e 1949. Em função dos constantes aborrecimentos e das frequentes brigas ocasionadas por torcedores que se infiltravam no grupo com propósitos diversos ao do mero incentivo ao clube, Tolito dissolveu a banda, cujo início foi marcado pela ajuda direta de Carlito Rocha, presidente do clube, mediante a compra de painéis, bandeiras e serpentinas. Depois de aderir ao grupo que o sucedeu, o jornaleiro Herlito Machado Fonseca, vulgo Tolito, criaria ainda a torcida organizada Fogolito, contração do nome do clube com o seu apelido. Mas ficaria mais conhecido nas décadas seguintes por sua banca de jornal, onde tremulava uma bandeira alvinegra no centro da cidade, na Rua Sete de Setembro, que se tornou referência e ponto de aglutinação dos botafoguenses.

Assim como os grandes clubes, os times de porte médio e pequeno também possuíam seus torcedores-símbolos: Elias Bauman, do América; Hamilton de Oliveira, do Bonsucesso; Gama, do Campo Grande; Júlio, da Portuguesa; e Juarez, do Bangu.

Juarez Oliveira da Silva era natural de Acarape, interior do Ceará, onde passou a infância, mudando-se para o Rio de Janeiro ainda adolescente. Aos 15 anos, assistiu a uma partida do Bangu contra o Fluminense e, mesmo ante a goleada sofrida pelos banguenses, tornou-se defensor contumaz do clube de origem operária. Nos anos 1950, criou o movimento de torcedores intitulado “Eternamente Bangu”, para o qual mobilizava toda a família e a casa.

Com quase dois metros de altura, bigodes negros, olhos claros e tez morena, trabalhava como técnico em contabilidade e na chefia de produção em uma empresa de seguros. Sócio do clube, Juarez participava da vida clubística como membro do Conselho Deliberativo, além de exercer cargos nas federações esportivas cariocas, por meio dos quais chegou a conhecer certa feita o presidente Juscelino Kubitschek, que observou o uso indefectível de sua camisa banguense. Dado a superstições e a rituais, tinha o hábito de ir aos sábados, na véspera dos jogos, à capela de São Jorge, onde costumava rezar e solicitar a vitória de seu time.

A despeito da variedade biográfica e das diferenças de temperamento descritas por João Antero, que frisavam a extravagância e a exaltação - observe-se o reverso da sobriedade e do equilíbrio atribuído a Jaime de Carvalho -, esses quatro principais torcedores pertenciam à mesma linhagem “amadora” de chefes de torcida, junto aos quais outros torcedores, tidos como pitorescos e excêntricos pelo autor, também eram alinhados, dentre eles os vascaínos Cartola e Domingos Ramalho, os botafoguenses Tolito e Salvador Peixoto, o tricolor Bolinha e o americano Fontainha. A função de mando outorgada aos chefes de torcida era diluída assim nas páginas do livro por uma tipificação paralela: os exóticos torcedores-símbolos. Estes se distinguiam por portarem instrumentos sonoros − um sino, uma sirene, uma corneta, um apito, um megafone −, artefatos diferenciadores de cada personalidade, capazes de proporcionar uma ambiência carnavalesca aos jogos.

Além dos objetos, a excentricidade, expressa também no linguajar e na vestimenta, constituía um outro requisito crucial na definição desses indivíduos, aquilo que os tornava ilustrativos, representativos e dignos de curiosidade para boa parte da imprensa. Ao lado do despojamento, da origem humilde e do amadorismo, a caricatura dos chefes de torcida esboçada por esses cronistas tinha como ingrediente determinados aspectos anedóticos que propiciavam àquelas personalidades um colorido especial no interior da massa indiferenciada e niveladora.

Junto a Antero de Carvalho, em fins dos anos 1960, ainda no intuito de recordar e acentuar a imagem sui generis desses torcedores de tempos passados, um veterano colunista do Jornal dos Sports destacou-se nesse quesito: Geraldo Romualdo da Silva. A sua presença na crônica esportiva quase se confundia com a própria existência do periódico de Mário Filho, recorria às suas memórias, às suas anotações e às suas antigas entrevistas a fim de identificar quais seriam os pioneiros das arquibancadas na história do futebol carioca desde a década de 1920, antes do advento do profissionalismo e da criação das torcidas organizadas. Uma espécie de hagiografia anedótico-popular emergia de suas recordações sobre as figuras mais proeminentes do passado.

De acordo com seus apontamentos, Paradantas havia sido o primeiro, no ano de 1922, um “desinibido”, de acordo com o Jornal dos Sports, caixa do Banco Ultramarino, responsável por fabricar uma bandeira gigante, carregada por ele e sua “grei” aonde quer que o Vasco fosse. O segundo líder vascaíno, Afonso Silva, o Polar, assim apelidado em alusão a uma marca de sorvete por ele mesmo lançada, era um “mulato sestroso e bem vestido”, que se postava à frente das cadeiras sociais de São Januário, com sua bengala de junco empunhada à maneira dos jogos de rúgbi e baseball norte-americanos, tal como exibiam as fitas das salas de cinema na época.

A seguir, foi sucedido por João Ferreira da Silva, o Cartola, “o homem que ri e acorda com o Vasco na boca...” (JORNAL DOS SPORTS, 8 maio 1976JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952., p. 5) - alusão ao símbolo do clube colado em um dos dentes -, um pobre alagoano, indicado para a Marinha pelo embaixador e ministro Oswaldo Aranha, fuzileiro naval que viajara por 33 países do mundo; e por João de Luca, um torcedor “alto e de voz mansa”, que representou a Torcida Organizada do Vasco na década de 1940, conforme vimos acima.

Já Domingos Ramalho, natural de Ilhéus, Bahia, mencionado também por João Antero de Carvalho, chegou ao Rio de Janeiro em 1942 como estivador. Pertencente ao sindicato da estiva, iria se notabilizar nos estádios do Rio de Janeiro por seu rústico instrumento de sopro, feito de um talo de mamoeiro, com um toque especial aprendido por imitação àquele ecoado nos quartéis. Este produzia um som agudo e estridente que chamaria a atenção não só do presidente do Vasco, Ciro Aranha, como de sucessivos presidentes da República - Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart -, o que lhe valeu um convite para apresentar-se na Rádio Marink Veiga.

No Fluminense, a personagem relembrada por Geraldo Romualdo da Silva era Peitão, supracitado por Coelho Neto, um boxeur que pertencia à Fuzilaria Naval da Armada e que em 1927 assumiu a chefia da torcida tricolor. Dentre suas estratégias de incentivo, tinha por hábito entoar o coro “É Flu” e aguardar a repetida resposta coletiva de seus comandados. Tentou obter o título de sócio contribuinte nas Laranjeiras, mas em razão de suas origens negras o máximo que conseguiu de um clube então conhecido pelas restrições raciais e sociais foi a carteira de sócio atleta.

Em 1948, apareceria Guilhermino dos Santos, o Careca, que após 20 anos de frequência às arquibancadas começaria a se notabilizar por suas fantasias tricolores. Segundo o jornalista, o Botafogo não teve chefe de torcida naquele tempo, mas um bloco do bairro − o Bloco da Bambina −, apesar de João Saldanha se referir na crônica “A arte de argumentar”, de sua coluna Contra-ataque, a um lendário torcedor alvinegro, que atendia pela alcunha de Marinheiro, entre os idos de 1945 a 1948, e era reconhecido por uma voz metálica, semelhante à de locutores esportivos do rádio da época, como Oduvaldo Cozzi.

Já o Flamengo, antes de Jaime de Carvalho, possuiu como torcedores característicos Baiano e Alfredo Pinto, o vulgo Vai-na-Bola. Este, igualmente mencionado por Mário Filho em suas reminiscências de Histórias do Flamengo, era assim chamado por se posicionar atrás do gol nos treinos e por pronunciar sempre essa mesma interjeição para os jogadores, com o auxílio de dois pratos de metal.

Ainda que intermitentes, essas matérias atinentes à vida dos chefes de torcida repetiam-se de tempos em tempos no Jornal dos Sports e, com menos ênfase, em outros periódicos. Embora variassem seus redatores com a passagem dos anos, os textos costumavam enfocar os mesmos aspectos - a abnegação romântica, o tipo folclórico, as origens modestas, o ritual emulativo de preparação para os clássicos −, em um tom quase sempre laudatório.

Para fechar essa derradeira seção, mencione-se uma reportagem de página inteira e de grande destaque publicada no ano de 1966, a 31 de dezembro, na página 12 - baliza final de nosso levantamento das fontes jornalísticas. A matéria é intitulada “Amor dos chefes de torcida só não vale título que cartola usa” e nela o jornalista Élcio Castro biografa mais uma vez os seis principais representantes das arquibancadas. Discorria, para tanto, acerca de suas atividades cotidianas extradesportivas, e inclui entre os perfilados, além dos cinco chefes já arrolados até aqui, Elias Bauman, um novato líder, vendedor do ramo de tecidos e medicamentos, que então despontava na torcida do América.

O contraponto que agora se colocava não dizia respeito ao amadorismo dos torcedores versus o profissionalismo dos jogadores, mas à tensa relação entre a “promoção pessoal” e o “amor ao clube”, manifesta no contraste entre a posição do chefe de torcida e a posição do dirigente esportivo, cada qual a ocupar um dos extremos da hierarquia do futebol. Para usar a metáfora piramidal do historiador norte-americano Robert Darnton (1987DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p. 13), poder-se-ia dizer que o primeiro ocupava a “base” enquanto o segundo, o “vértice” da hierarquia social.

Se não há espaço aqui para desenvolver esse ponto, demarcador de um novo momento do futebol profissional, em fins dos anos de 1960, assinale-se que as disputas internas acionadas pelo tensionamento da díade “promoção pessoal” versus “amor clubístico” vão levar à formalização das dissidências no seio das torcidas. Quebra-se, doravante, o princípio de exclusividade da chefia das torcidas e assiste-se ao ciclo de surgimento de uma miríade de agremiações por clube.

Conclusão

Eis, pois, em linhas gerais, um panorama do que se conseguiu levantar de informações biográficas do perfil dos personagens torcedores que a imprensa e a crônica carioca do período consagraram. O diapasão cronológico da pesquisa procurou cobrir três décadas de publicações diárias, entre 1936 e 1968. Por razões de espaço, muitas notícias foram abstraídas ou sumarizadas, à medida que elas corroboravam o argumento central proposto. A narrativa optada aqui foi quase literária, uma vez que a preocupação principal foi compreender a trajetória desses atores coadjuvantes do futebol profissional e de espetáculo, à luz dos escritos cronísticos, com a descrição de tais relatos.

Procurou-se mostrar de que maneira os torcedores angariaram reconhecimento por parte dos jornalistas no universo público futebolístico, em função de sua atuação nas arquibancadas, de suas relações clubísticas e do interesse despertado entre cronistas e escritores. Esses escribas não só registraram e perfilaram como, no limite, inventaram tipos-ideais e estereótipos associados ao comportamento de líderes de torcida e torcedores-símbolos.

A abnegação e o altruísmo, por um lado, eram combinados à paixão desmedida tanto quanto ao papel de contenção das massas nos estádios. Havia, desta forma, múltiplas formas de enquadramento e um gradiente comportamental dos personagens. Os atributos socialmente esperados passavam pela manutenção da ordem junto ao policiamento, pela promoção da animação festiva nas arquibancadas, pelas provas de amor incondicional e pelo etos da humildade, manifesta na doação protagonizada e demonstrada vis-à-vis ao clube do coração.

Por outras vias, no contexto da Era Vargas e nos anos desenvolvimentistas subsequentes, tratava-se da mesma forma de fazer do torcedor o apanágio de uma visão nacional-popular, à luz do enquadramento moral das multidões, conforme as fotografias de Thomas Farkas e de José Medeiros3 3 Os acervos fotográficos de Farkas e Medeiros encontram-se depositadas no Instituto Moreira Salles e suas imagens revelam dezenas, para não dizer centenas, de fotos dedicadas ao futebol, aos seus torcedores e às suas torcidas, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. permitem flagrar. Diga-se, a propósito, que tal visão era forjada historicamente por uma gama de folcloristas, intelectuais e cronistas, a entender o povo como puro e bom em sua essência, e que deveria ser educado segundo a moral e os bons costumes. Ao invés de ser inferiorizada, a posição social desses torcedores era exaltada e tipificada pelos cronistas como expressão genuína de espíritos altruístas, abnegados e amadores, capazes de quaisquer renúncias em âmbito individual, familiar ou econômico para a sua vivência esportiva, a cultivar uma retórica em torno da autenticidade e da pureza da paixão torcedora.

Uma observação final diz respeito aos arquivos dos anos de 1963 a 1968, do Jornal dos Sports, entendido como uma fase final, antes do surgimento das Torcidas Jovens e da geração dos movimentos dissidentes de fins da década de 1960. Nesse momento, passadas duas décadas da criação das primeiras torcidas e da geração de seus primeiros líderes, grande contraste de forma e conteúdo no recorte pesquisado já se identifica no periódico, desde os temas reportados até o léxico escolhido para a representação do torcedor pelo jornal.

As práticas torcedoras que germinavam nas páginas pesquisadas n’O Globo dos anos 1930 e no Jornal dos Sports das décadas de 1940 e 1950 - comemorações de rua, passeatas, “guardas” dos torcedores de clube durante o carnaval, promoção pela imprensa de “duelos de torcida” nos estádios, foguetórios, preparativos para o dia do jogo - ,consolidam-se na condição de atividades rotineiras. Mais que uma consolidação, é possível observar um aumento na frequência e na intensidade desses hábitos que passaram a constituir um elemento cultural típico da cidade.

Uma diferença fundamental entre esses dois momentos é como se emprega o termo “torcida organizada”. Se entre 1936 e 1940 o termo aparece de modo incidental, ainda vazio de sua significação a posteriori, entre 1963 e 1966 o termo já emerge como uma categoria constante ou como uma expressão rotinizada. O surgimento de agrupamentos torcedores oficiais, com a Charanga rubro-negra e a Torcida Organizada do Vasco (TOV), foi incorporado na paisagem das arquibancadas (uniformes distintivos, faixa fixa no alambrado e banda musical para animação do espetáculo) e na maneira de sua nomeação pela imprensa esportiva carioca.

Cada um dos principais clubes do Rio de Janeiro passa a ter uma torcida organizada oficial, reconhecida pelo clube e legitimada pela cobertura do Jornal dos Sports. Clubes de menor força e popularidade também contavam com TOs que seguiam práticas semelhantes. Organizavam festas nos estádios, viagens para jogos em outros estados, preparavam comemorações nas ruas e influenciavam na política dos clubes, seja na posição de situação seja de oposição. Outro traço importante é que não se limitavam ao futebol profissional e compareciam a diversas modalidades para apoiar os atletas de seu clube - futebol de areia, campeonatos de aspirantes - hoje chamados de categorias de base -, provas de atletismo, vôlei, basquete, natação etc.

Nos anos 1960, cada torcida era representada oficialmente por um líder, a saber, os seis principais clubes cariocas, já mencionados acima: Juarez de Oliveira (Bangu), Elias Bauman (América), Tarzan (Botafogo), Jaime de Carvalho (Flamengo), Paulista (Fluminense) e Dulce Rosalina (Vasco). Tais lideranças tinham espaço dentro do jornal e algum grau de interlocução junto aos clubes, sendo muitos deles associados. Os colunistas identificados com cada clube divulgavam com constância anedotas sobre esses personagens e contribuíam de modo indireto para popularizá-los e para chancelá-los em sua legitimidade. Com frequência eram publicadas entrevistas em que se indagavam quais eram os planos para eventuais comemorações, as estratégias para o campeonato de torcidas e opiniões sobre o momento do time e as decisões das diretorias.

Em alguns casos, como o de Dulce e Jaime, seguidores de Vasco e Flamengo, respectivamente, o destaque recebido pelo jornal podia ser até maior que o dos dirigentes. Em vários momentos são discutidas as sucessões de comando e as cadeias de liderança no interior das torcidas, já que alguns deles já eram veteranos de arquibancada e chegavam à terceira idade. Um exemplo a comentar é o último mês do ano de 1966, quando concluímos a periodicidade da pesquisa. Ao invés de reportagem sobre assuntos estritamente esportivos, encontra-se uma matéria especial, em que se traça em página inteira o perfil de cada um dos seis principais líderes, como tratamos no fim da última seção.

Meados dos anos 1960 demarca igualmente a cristalização das rivalidades torcedoras. Embora elas já existissem antes, a promoção contínua de “duelos de torcidas” nos chamados jogos clássicos colocava a concorrência dos torcedores à frente do confronto esportivo em campo. Direta ou indiretamente, estimulavam-se no jornal provocações entre torcidas e clubes. Não raro, atitudes provocativas entre rivais eram promovidas pelos próprios colunistas, que dialogavam através das páginas jornalísticas.

A emulação podia ser colocada em segundo plano em duas situações: quando salientava-se a união das torcidas cariocas em prol do apoio à Seleção brasileira e quando se opunham rixas bairristas interestaduais. Essas exceções ficam evidentes durante a Copa do Mundo de 1966 na Inglaterra, com a convocação de uma torcida conjunta da Seleção brasileira, a envolvendo as TOs de cada time, durante os amistosos preparativos no Maracanã. Também nessa Copa fica evidente o papel do cronista Nelson Rodrigues, a propor uma união dos torcedores cariocas contra os paulistas.

Tal polêmica diz mais sobre rivalidades entre imprensas de cada estado e consequentemente a luta inter-jornais por hegemonia na comunicação esportiva. Estende-se tal lógica subsumida à das torcidas, com a suspensão de diferenças internas, em favor de uma identidade maior carioca, abalada desde 1960, com a transferência da capital federal para Brasília.

A relação da imprensa com as torcidas passa também pelo torcedor comum, isto é, por aquele não organizado. Seu discurso procura orientar o torcer, com o estímulo ao ambiente festivo nas arquibancadas. A resiliência do tema vem desde os anos 1930 e ganha vulto na década de 1960 por certa pretensão em instruir e “educar” o torcedor. Reforçam-se ideais morais, como o do fair play, em narrativa enquadradora resiliente que se dilata até os dias de hoje. Quanto às torcidas organizadas, há uma grande diferença na abordagem prática e na construção discursiva da época pesquisada e do que se pratica hoje. No período pesquisado no Jornal dos Sports, nota-se uma abordagem positivada das TOs, assim como espaço nas páginas para a manifestação dos seus representantes e a divulgação de suas atividades.

Dessa maneira, é possível compreender em seu painel histórico a atuação e a representação das lideranças de torcidas do Rio de Janeiro em meados do século XX, durante a formação de uma cultura de massas esportiva na cidade, capital da República até 1960, e um dos centros da projeção identitária nacional, em que o futebol e a música, dois aspectos constitutivos da identidade das torcidas organizadas, se entrosavam, numa espécie de simbiose e sincretismo.

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Periódicos citados

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  • JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 1891- .
  • JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 1931-1952.
  • O GLOBO. Rio de Janeiro, 1925-.

NOTAS

  • 1
    Segundo Ribeiro, em sua tese de doutorado supracitada, o campo jornalístico dos anos 1950 era constituído por ao menos treze veículos da grande impressa: Correio da Manhã, O Jornal e A Noite (Diários Associados), Jornal do Commércio, Diário de Notícias, O Globo, A Notícia, O Dia, Luta Democrática, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Última Hora e Diário Carioca.
  • 2
    Para exemplificarmos apenas revistas, pode-se mencionar duas: Vida Sportiva (1917-1921) e Sport Illustrado (1920-1921). Nas décadas em exame, havia também a Esporte Ilustrado (1938-1956), a Vida do Crack (1953-1959), a Gazeta Esportiva Ilustrada (1953-1967), a Manchete Esportiva (1955-1959) e a Revista do Esporte (1959-1961). A estes, somavam-se ainda publicações como almanaques, anuários esportivos e revistas publicadas pelos clubes, tal qual a Revista Tricolor, vinculada ao São Paulo F.C.
  • 3
    Os acervos fotográficos de Farkas e Medeiros encontram-se depositadas no Instituto Moreira Salles e suas imagens revelam dezenas, para não dizer centenas, de fotos dedicadas ao futebol, aos seus torcedores e às suas torcidas, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.
  • Declaração de financiamento:

    A pesquisa que resultou neste artigo é decorrente de projeto apoiado pelo CNPq e pela FAPESP, e intitulado “Jornalismo esportivo e história comparada da imprensa no Brasil: políticas editoriais, crônicas e a representação do torcedor de futebol nos periódicos de São Paulo e do Rio de Janeiro (anos 1940-1960)”. Números de processo, respectivamente, 30233/2018-1 e 2018/19558-5. A pesquisa contou, em diferentes momentos, com três bolsistas de Iniciação Científica, responsáveis pela coleta de dados, todos eles graduandos em Ciências Sociais na Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC): João Conde Kelly, Rodrigo Prieto e Tatiana Lage.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2021
  • Aceito
    13 Fev 2022
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