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Testemunho, juízo político e história

Resumos

A partir de um comentário sobre as propriedades características do gênero testemunhal, descrevem-se as respectivas situações ideológicas que presidiram à recepção de depoimentos sobre os campos de concentração nazistas e comunistas quando da sua publicação no Ocidente. Ao sublinhar a dimensão moral do testemunho e mostrar que os saberes dele advindos baseiam-se em práticas de reconhecimento, aponta-se, complementarmente, para situações em que o historiador vê-se por ele interpelado. Situações em que sua arte depende unicamente do ouvido que prestar ao apelo testemunhal. Nesse momento o testemunho não é mais fonte, pode tornar-se algo como um ultimato. Permutadas, assim, as posições, não fica o historiador exposto ao testemunho, carregando a inteira responsabilidade de sua audiência? Não deve o cultor de Clio a certos endereçamentos, por lacunares e subjetivos que sejam?

Testemunho; Totalitarismo; Narrativa; Veracidade; Autenticação


We will underline the moral dimension of testimonies and try to show that the knowledge that issues of it is based on practical recognition. I will approach a peculiar type of deposition, that reconstructs repressive practices of totalitarian societies, in particular the Communists societies. Thanks to its remissive and evocative effectiveness the testimonial narratives hold a proper way to approach ethical questions that leave a sample of the totalitarian logic. Therefore the testimonial expression (and its fictional parallels) will not be used mainly in the quality of historical source, but as principle and bedding for a political judgment. It is thus the question: what owes the historian to testimony? Doesn't the servant of Clio stay exposed to it?

Testimony; Totalitarianism; Narrative; Veracity; Attestation


Testemunho, juízo político e história1 1 Professor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional da FHDSS, UNESP/Franca.

Fernando Kolleritz1 1 Professor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional da FHDSS, UNESP/Franca.

UNESP/Franca

RESUMO

A partir de um comentário sobre as propriedades características do gênero testemunhal, descrevem-se as respectivas situações ideológicas que presidiram à recepção de depoimentos sobre os campos de concentração nazistas e comunistas quando da sua publicação no Ocidente. Ao sublinhar a dimensão moral do testemunho e mostrar que os saberes dele advindos baseiam-se em práticas de reconhecimento, aponta-se, complementarmente, para situações em que o historiador vê-se por ele interpelado. Situações em que sua arte depende unicamente do ouvido que prestar ao apelo testemunhal. Nesse momento o testemunho não é mais fonte, pode tornar-se algo como um ultimato. Permutadas, assim, as posições, não fica o historiador exposto ao testemunho, carregando a inteira responsabilidade de sua audiência? Não deve o cultor de Clio a certos endereçamentos, por lacunares e subjetivos que sejam?

Palavras-chave: Testemunho; Totalitarismo; Narrativa; Veracidade; Autenticação.

ABSTRACT

We will underline the moral dimension of testimonies and try to show that the knowledge that issues of it is based on practical recognition. I will approach a peculiar type of deposition, that reconstructs repressive practices of totalitarian societies, in particular the Communists societies. Thanks to its remissive and evocative effectiveness the testimonial narratives hold a proper way to approach ethical questions that leave a sample of the totalitarian logic. Therefore the testimonial expression (and its fictional parallels) will not be used mainly in the quality of historical source, but as principle and bedding for a political judgment. It is thus the question: what owes the historian to testimony? Doesn't the servant of Clio stay exposed to it?

Keywords: Testimony; Totalitarianism; Narrative; Veracity; Attestation.

A verdade sobre os campos, estabelecida por esses que a vivenciaram, pode só ela descobrir até os seus confins a natureza real do terror stalinista. O pavor que assoma o leitor abre sua inteligência à lucidez social.

David Rousset

UM GÊNERO LITERÁRIO ÉTICO

O gênero testemunhal refere em primeiro lugar uma experiência cognitiva feita de corpo presente: viu-se, ouviu-se algo que agora se transmite sob forma escrita ou oral. Constitui uma modalidade expressiva intersubjetiva que atua em inúmeras vivências concretas. Vale, em princípio, para algo que não é, no momento, alcançável pelos circundantes. A verdade quanto a determinado fato depende precisamente das testemunhas, ninguém mais esteve presente. Explicita-se e certifica-se em suma o ato pelo qual o real se torna verdade: vi fulano vendendo a sua terra, é verdade que o vi. O testemunho não se reduz, está claro, à tradução pura do empírico e sensorial; o ponto de partida, entretanto é este: o que vi, o que senti, onde doeu. Disso os comuns dos mortais não costumam duvidar, ao contrário, é dessas experiências que nutrem suas certezas.

O ato de testemunhar tem sentido apenas porque julgamos que alguém é capaz de dizer a verdade. Confia-se em primeiro lugar na capacidade cognitiva de um outro, na sua capacidade pura e simples de presenciar, com olho, ouvido (olfato, tato e paladar) e cérebro bem conformados. O campo da confiança, aliás, amplia-se. Se a testemunha pretende enunciar a verdade, se está comprometida moralmente, também o interlocutor há de receber com confiança as palavras, há de fiar-se, abandonar-se a um tipo de boa-fé básica, acolhendo a verdade de outrem; um acontecimento intersubjetivo acabou de acontecer, indissoluvelmente moral e social. Do fato passou-se para o valor, isto é, o fato está na dependência do compromisso e da confiança.

A importância factual do testemunho é desigual, mas sua gravidade pode ser extrema: juro que o vi surrupiar um lápis, testemunho que Benjamim cometeu adultério, certifico, graças a uma experiência anterior, que os índios xavantes são de índole pacífica, assertiva que pode fazer uma diferença enorme na expedição de caça que estamos empreendendo; assevero que vi a realização de milagres e que está, portanto, em tempo de cuidar de vossas almas.

O testemunho pode ser reservado para situações mais específicas: quando, por exemplo, é necessário cercar institucionalmente a questão da verdade com "garantias". A testemunha jura pelos deuses, pela Bíblia, compromete-se a não dizer nada além da verdade, toda a verdade, fórmulas talvez mais ritualísticas do que necessariamente eficazes; por isso mesmo, não raro, ameaça-se o perjúrio com penas severas. Nesses casos, testemunhar diz respeito a litígios que perturbam a ordem social, com isso a declaração é prestada mais solenemente, acompanhada de fórmulas consagradas visando sua autenticação. Há um ponto comum neste continuum de situações. Elas remetem em primeiro lugar ao ter estado presente, ao ter ouvido, pessoalmente, falar, além do mais a testemunha mantém-se presente a si no tempo e pode jurar de si. A condição de ser confiável para os outros é ser confiável para si mesmo. (Não é outro o ponto de partida socrático nas suas interrogações.)

O testemunho explicita que a verdade depende de alguém, não se impõe necessariamente com a evidência autônoma da construção teórica. Regime de verdade, para além do mero registro. A testemunha carrega o passado para o presente, o que aconteceu num lugar geográfico para outro; sustenta assim o real, suporta-o e o garante, e, sempre, garante a si por ter sido capaz de ver com verdade e de transportar intacta aquela realidade para hoje, aqui... A testemunha fala de si no passado e no presente: dou agora por verdadeiro o que vi e afirmo que sempre fui capaz de discernir no que vivi a verdade do real, por abismal que fosse.

O testemunho carrega uma continuidade na faculdade de conhecer. Ver, verdadeiramente ver, é, ao mesmo tempo, tornar-se responsável por uma verdade. Carrega-se o passado para o presente, mantém-se viva uma realidade. A fidelidade da testemunha preserva o real, reserva-o, se quiser... enquanto puder... Filho da memória e do esquecimento, a duplo título o testemunho é subjetivo. Percepções agudas, lacunas prováveis: a subjetividade contém as duas dimensões, presenças simultâneas da consciência e da inconsciência. O impartilhável (o que não lembro, o que não posso exatamente transmitir do vivido) serve de fundo ao que é partilhado. Os mais exatos relatos da percepção destacam-se sobre o fundo de uma descrição eventualmente infindável; é o que sentimos ao ler Proust.

A passagem ou a ligação interna entre o ter estado presente e a fala testemunhal constitui momento essencial: uma testemunha incapaz de se expressar adequadamente é desclassificada. Não adianta ter visto, ouvido ou sentido se não é capaz de relatar. Completam-se com o depoimento narrativo as aquisições cognitivas, expondo-se as lembranças que se acredita fiéis, que se espera fidedignas, também porque pronunciadas com tom de autenticidade.

Protesto de veracidade, intenção de verdade, o testemunho desde o início manifesta uma dimensão moral: apela — apesar do que tem de impartilhável, ou talvez melhor, pelo que tem de não repartível — para a crença e a confiança; responde por sua vez a uma expectativa de verdade. Esboça neste sentido um modo insubstituível de sociabilidade. Através desse laço, algo de concreto pode ser ofertado transcendendo a mera comunicação imediata: em tal lugar há água, em tal direção as Índias.

Eis que o mundo é contável, eis que o mundo é rememorável, presente e presenteado. A testemunha, narrando o que ninguém viu, abarca o real e encarrega-se dele. É mais do que um signo que temos em comum, vale como promessa do mundo (lá as terras são férteis), aviso (lá existem pântanos), desmentido (não vi mulheres a cavalo, arqueiras, amputadas do seio). Graças ao testemunho o mundo ausente torna-se disponível; ele multiplica nossa existência, potencializa nossas vivências. Desde que a testemunha lembre, desde que saiba contar, experiências humanas podem dar origem a um projeto comum, à busca de uma mera evocação, o Eldorado.

Faz-se depender a verdade da capacidade de ver com objetividade, de reter organizadamente, de transmitir coerentemente; testemunhar está por conta de sucessivas operações de racionalização que devem domesticar as emoções e os sentimentos — assombro, indignação, euforia, o que for. Requer-se alguma isenção, o distanciamento possível, exatamente porque se intui e teme a presença de um fundo emotivo. Há testemunhas que não conseguem se controlar e desandam a chorar: paradoxalmente, porém, o choro e o descontrole emotivo abonam o depoimento. Muito arguto quem disser de que argamassa (subjetiva, objetiva?) é feito esse olhar tornado lúcido e perspicaz sob efeito, eventualmente, da própria indignação.2 2 No momento em que está prestes a deixar o Partido Comunista Francês, Edgar Morin escreve de modo auto-crítico: "Pela primeira vez minha consciência ousou sentar-se no tribunal supremo ... este sobressalto de consciência, esta recusa de impostura, mesmo que apenas mental, salvava minha razão". MORIN, E. Auto-Critique. Paris: Seuil, 1959. Merleau-Ponty mostrou com rigor o quão aporético é decidir entre o subjetivo e o objetivo em se tratando da percepção sensível.3 3 "Obcecado pelo ser, e esquecendo o perspectivismo de minha experiência, eu o trato doravante como objeto, eu o deduzo de uma relação entre objetos". MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.108. Não será exatamente essa perspectiva corporal e individual, prismática por necessidade, que permite o detalhamento das descrições, a sua exatidão precisa... e também o seu caráter infindável? O círculo existe: se os homens querem saber algo é preciso, por vezes, que confiem nesse alguém que lá esteve, e aceitem confiar na percepção de um, por lacunar que seja.

O homem que testemunha é considerado digno de fé a vários títulos, detentor das marcas mais positivas do humano: foi capaz de ver, ouvir, sentir, perceber com apuro, foi capaz de guardar com acerto, é capaz de contar com clareza. Ele se conservou portador da verdade para outros homens. O testemunho dos navegantes diz ou confirma que a Terra é redonda; temos, mesmo que jamais venhamos a dar a volta ao mundo, um outro planeta, esférico, quem diria. Testemunhos são capazes de constituir o real.

Está claro que quem presta testemunho depende da crença de quem ouve: uma comunidade de certeza está prestes a se formar, configurando o real, predispondo dele. Mas os testemunhos não são, todos, igualmente críveis, não são igualmente acreditados em todas as épocas, dependem da informação prévia dos ouvintes e leitores; dependem da credibilidade da própria testemunha; não à toa existem os rituais de autenticação. Tampouco estes, entretanto, asseguram uma confirmação última.

Todo testemunho recebe uma impostação, uma ênfase que serve a autenticar; vai desde a entonação da voz até fórmulas de juramento, passando pela inércia indiciária do mártir preste a ser sacrificado, sem um gesto sequer de defesa; em todos esses modos de insistência, trata-se de significar a verdade, consagrando-a pela ênfase gestual ou mímica. A passividade do mártir é retórica da interioridade: ela significa sua fé, tão grande que apenas uma força superior a poderia sustentar. A própria impostação, porém, designa um fenômeno essencial: que, através do ato testemunhal, não se decide em última instância. A assertiva testemunhal precisa de um reforço certificador na exata medida em que não é prova definitiva, jamais.

Os traços da subjetividade são tangíveis no testemunho e condicionam os laços intersubjetivos. Num tribunal, há expectativas, promessas e ameaças requeridas por necessidades sociais urgentes (não condenar um inocente). Mesmo que nessa situação jurídica nada garanta a intenção reta de quem depõe, a pequena sociedade que se formou durante o julgamento necessita do testemunho e, na verdade, toda a sociedade, em nome da qual o ritual está se processando, precisa dele. Mas pouco importa: a equivocidade do testemunhar é sem apelo. Sempre há o risco da mentira, do erro, da falsificação, sempre há a possibilidade, quando se trata de narrativa escrita, de imitação ficcional, do engodo e da mistificação jocosa ou criminosa; o testemunho jamais é probatório em última instância, até mesmo a percepção sensível é sujeita à caução (acredito ter visto uma mulher, na realidade vi um homem fantasiado); a memória, sabe-se, possui e entretém lacunas. Subjetividade insuperável do testemunho, no entanto não se prescinde dele nem mesmo nas vivências comuns: bem ou mal constitui mundo e permite agir. A partir do narrar testemunhal tecem-se laços, atam-se sociabilidades. As falhas de percepção, os lapsos de retenção, as carências de expressão, são considerados — de modo bastante inadequado, pois que não se diz qual o parâmetro idealizado — sintomas das nossas insuficiências humanas; não há outro modo, porém: só Deus, se existe, vê sem corpo.

Os relatos desdobrar-se-ão, eminentemente persuasivos por vezes, nem por isso obrigatoriamente verdadeiros. Com a crença de ouvintes ou leitores, estabelece-se uma espécie de crédito de confiança para o qual a narrativa apelou. A constituição de um mundo de verdade depende dessa anuência ao apelo do depoente, construído por vezes sobre a base de um testemunho único, propriamente inverificável. Esse modo de verdade é insubstituível em seu gênero: é um mundo a que se adere como se dele houvesse prova definitiva, configurado na reciprocidade de reconhecimentos mútuos. É preciso pensar, pois, o testemunho como obra aberta, apelando para outras subjetividades. Por isso mesmo, em algumas circunstâncias, acreditar nele — ou permanecer cético — é ato político no sentido exato do termo, isto é, ato sem fundamento último, sem necessidade absoluta; vital e constituinte para a ação, não obstante. Algo da diferença literária testemunhal, desde os Evangelhos até os escritos referidos a Kolyma e Treblinka, consiste talvez em significar que algo de incrível houve, sobre o que é preciso falar; testemunha-se uma afronta, uma Paixão individual ou coletiva, de qualquer modo um evento extraordinário, algo fora dos limites (sobre a morte de Sócrates: os Ditos e feitos memoráveis e o Fédon) que irrompeu na ordem plausível das coisas em direção ao impossível, ao maravilhoso ou vexatório para a memória humana.4 4 SELIGMANN-SILVA, M. (Org.) História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

Um naufrágio e o isolamento longo numa ilha selvagem são dignos de testemunho. A primeira vez deve ser testemunhada: o Novo Mundo, viagens extraordinárias, mares e terras nunca dantes visitados; continentes, florestas e cordilheiras, misteriosos e legendários, explorados pelos desbravadores, foram agora encontrados, palmilhados e visitados, nasceram para algumas consciências exploradoras que ampliam, com seus escritos narrativos, a dimensão da terra para os mortais mais caseiros. Alguns acontecimentos precisam ser anunciados, dignos de nota na dimensão humana, definitivamente incríveis e fora do imaginável. A vinda do Messias e dos profetas, a queda de Impérios, leigos ou religiosos. Revoluções, destacou Paul Ricoeur, estão fora do tempo em alguma medida, porque são elas próprias constituintes da temporalidade.5 5 RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: Seuil, 1985. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000. Eventos a partir dos quais datamos, inaugurais em luzes ou sombras.

Uma questão permanece, raramente posta porém, pois parece remeter a uma auto-evidência: quem põe esses acontecimentos na forma de balizas de historicidade, como se tornam, por que se tornam o próprio marco cronológico? Muito dessa faculdade de instauração histórica pode ser creditada aos testemunhos, às fibras afetivas e intelectuais que estes contribuíram para constituir na comunidade dos homens. A vinda do Cristo possui uma dimensão temporal que deve, toda ela, aos Evangelistas do Novo Testamento, sem o qual o cristianismo não seria o que é, ou, simplesmente, não seria. A este respeito, que diremos dos campos, e mais amplamente, dos regimes totalitários?

Acreditar num testemunho impede que apenas sobrevoemos, com intenção de objetividade, o mundo real: um pré-mundo de verdade solidária constitui-se, com nossa adesão a uma narrativa que pede, urgente, a nossa crença. Uma linha finíssima, então, traça-se dentro de cada um de nós, separando a irresponsabilidade canalha da vigilância crítica e humanística; e tudo não passa da sensibilidade intelectual a uma escrita. Nada de muito preciso ou cientificamente rigoroso, mas algo que faz toda a diferença perante os séculos. Bertrand Russell pôde escrever a respeito do testemunho de Gustaw Herling, Un monde à part, "que era totalmente impossível pôr em dúvida sua sinceridade sobre qualquer ponto", e que os simpatizantes comunistas (compagnons de route) "que recusam crer na verdade de livros como este são obrigatoriamente privados de humanidade...".6 6 Citado por J. Semprun no prefácio a HERLING, G. Un monde à part. p.II e III. Paris: Denoel, 1985.

O TESTEMUNHO E O SÉCULO XX

O horizonte das narrativas concentracionárias possui uma marca contemporânea própria. É um texto de Philippe Ariès, redigido no imediato pós-guerra, em 1948, que nos introduzirá esse ponto. A literatura de testemunhos desses anos, argumenta o autor de O tempo da História, é toda ela fruto de um fenômeno histórico contemporâneo global referido à paixão militante, à ideologização radical das vidas.7 7 ARIÈS, Ph. O engajamento do homem moderno na História. In: O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. As referências imediatas dizem respeito ao acerto de contas havido na França entre ex-colaboradores e os que se dizem da resistência antinazista:

Depois da libertação, é preciso contar por centenas de milhares as inculpações, as denúncias, as execuções. Tais cifras implicam uma quantidade de paixão política totalmente nova na história. No interior de uma família, não se trata mais apenas de relações privadas; a política introduziu aí os seus conflitos.8 8 Ibidem, p.71-5.

A referência diz respeito, segundo o historiador, a uma questão verdadeira de civilização, remete ao fim dos tempos da abstenção liberal em prol das épocas do militantismo político. E os testemunhos são indícios de "nosso engajamento na história", contrastam com as memórias em que o espaço privado ainda subsiste, que podem observar a vida privada ou a vida pública, mas que não são frutos da relação entre ambas. O testemunho, para Ariès, é engajamento na história; exemplificando, menciona em primeiro lugar Os condenados, de Ernst von Salomon, "Este livro magistral ... parece-me o exemplo típico do testemunho, o primeiro pela data, porque ligado ao surgimento do nazismo, e o nazismo foi, com o comunismo, a primeira manifestação retumbante dessa politização do homem que caracteriza nossa época". O historiador explora em seguida os livros de David Rousset recém-publicados:9 9 ROUSSET, D. Les jours de notre mort. 2 tomos. Paris: Hachette, 1993. L'Univers concentrationnaire. Paris: Ed. de Minuit, 1989. obra que, rememorando os campos, "descreve uma lógica interna que politiza integralmente a sensibilidade e os costumes". Os dias de nossa morte fazia menção ao tratamento privilegiado que os presos encarregados da administração do lager davam aos membros do seu partido ou aos de sua nação, designando com isso quem sucumbiria ou pereceria no imediato; assim, argúi Ariès, "nas condições contingentes dos campos, o concentracionário teve que abandonar como um enfeite inútil os antigos hábitos das consciências particulares e das moralidades privadas: teve que historicizar integralmente sua condição". Na continuidade, o autor de O tempo na História comenta Escolhi a liberdade de Kravchenko e Out of the Night de Jan Valtin, na tradução francesa Sans Patrie ni Frontiere, dois livros, hoje clássicos, em que se contam vidas esmagadas pelo engajamento partidário.10 10 KRAVCHENKO, V. A. J'ai choisi la liberté. Paris: Self, 1947. VALTIN, J. Sans Patrie ni Frontière. Paris: Dominique Wapler, 1948.

Philippe Ariès procede identificando o gênero testemunhal com esses relatos contemporâneos inteiramente invadidos pela História. Pode-se argüir que não haveria como incluir no gênero somente as obras referidas à "grande história": a rigor, Meu nome é Rigoberta Menchú é testemunho, enunciado perante Elizabeth Burgos e para o mundo. Mas somos tentados, sim, a relacionar as obras testemunhais à urgência política. De qualquer modo, parece-me que os depoimentos sobre os campos têm de fato como condição de possibilidade a politização radical dos tempos e a militarização das sociedades totalitárias; abriu estes tempos, amplamente ideologizados, o processo chamado de nacionalização das massas, dinâmica deflagrada com a Primeira Guerra Mundial. A ideologia mudou de face quando se endereçou às grandes massas: virou dinamite. São tempos em que a politização terrorista da vida cotidiana causou danos irreparáveis, são épocas em que cataclismos ideológicos comeram as vísceras dos homens, em que a violência militante absorveu e anulou todo e qualquer significado. Os alambrados são o símbolo deste cerco pela política: um apocalipse em que Lúcifer proclamasse o bem e a justiça das sevícias que impõe.

A interpelação ideológica dirigida às massas, que em princípio seria inclusiva, desemboca sobre o seu contrário; é que a conformação totalitária do Um (da unidade social) exige a liquidação dos muitos.11 11 LEFORT, C. Éléments d'une critique de la bureaucratie. Paris: Gallimard, 1979.

CIRCUNSTÂNCIAS I

Os depoimentos sobre os campos de concentração nazistas foram divulgados para a opinião pública mundial após o término da guerra e a vitória dos aliados. O nazismo fora vencido em sua perversidade: a evocação literária da morte concentracionária só confirma o bem fundado das razoes democráticas, a legitimidade dessa vitória. Um dos raros momentos em que as práticas da nação e da democracia, da potência e da justiça, reforçam-se incontestes uma à outra.

Sobre a dificuldade de testemunhar para os sobreviventes, judeus ou não, sobre a falta de disponibilidade, alento, paciência ou curiosidade em escutarem aqueles que se dispunham a falar, possuímos alguns relatos.12 12 LEVI, P. Les naufragés et les rescapés. Paris: Gallimard, Arcades, 1989. Resta que os depoentes incluem-se no sentimento de repúdio ao nazismo, origem da guerra e de sofrimentos físicos e psíquicos infindáveis: as coisas estão claras, os aliados venceram em nome de uma causa justa — em razão da justeza de sua causa — um inimigo cujas abominações são palpáveis, cujas responsabilidades são totais. O testemunho não apenas informa e denuncia, conforta ao mesmo tempo a causa da democracia; cada livro escrito, cada depoimento oferecido ilustra o acerto do lado dos Aliados, reforça o sentimento de abominação antinazista. A historiografia revisionista (a que nega a amplitude do genocídio judeu) atreve-se mais tardiamente.13 13 VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória. Campinas: Papirus, 1988.

Aqueles livros existem para revelar o abismo, para revelar o oculto. São livros cerimoniais: valem para honrar a memória das vítimas, para satisfazer o pedido que muitas vezes as vítimas explicitaram: que se dissesse tudo, a ignomínia, o ilimitado da afronta. Testemunhar era devolver algo, cumprindo uma promessa. Narrar ressarce. Repõe, recompõe a textura ética. Os testemunhos redimem. São evocações até certo ponto expiatórias. São gestos de dedicação. Restituição do mundo moral: a única compensação possível, não apenas póstuma, antes a-histórica, no sentido em que repõe uma dimensão raptada nos abismos da humilhação, no sentido em que volta a preencher um lapso de humanidade, a recobrir, talvez a abolir, a abjeção. Para que a lembrança de cada um, de cada suplício, permaneça reposta na devida esfera: onde a diferença entre a Justiça e a Injustiça existe, independentemente da força, ambiente que esta peculiar narrativa testemunhal por si só recria. "Para que não aconteça nunca mais", diziam essas obras (e eram otimistas em demasia, pois já com o fim da guerra, na URSS, o número de pessoas canalizadas em direção à deportação e aos campos de trabalho recrudesceu).

Esta citação, extraída do livro de uma resistente francesa antinazista, Lise Lesèvre, relata primeiro a solidariedade entre os presos, o aprendizado de uma sabedoria do necessário e do supérfluo, o dever de memória:

Nossa experiência, esta experiência adquirida por trás do arame farpado, única e incomunicável ... Estes meses, estes anos no mundo do horror amadureceram-nos estranhamente. Despojaram-nos de algumas exigências. Deram-nos um padrão ouro para julgar do valor das coisas. Legaram-nos uma aptidão a estabelecer com os outros contatos calorosos: a amizade, a solidariedade não foram vãs palavras atrás das cercas nem depois da volta ... A prescrição no que tange aos crimes nazistas é impensável para nós. Não se trata de vingança mas de justiça. Devemo-lo à memória dos que não voltaram. Juramos não permitir que se apagasse a lembrança de seu sacrifício.14 14 LESÈVRE, L. Face à Barbie .Souvenirs-cauchemars: de Montluc à Ravensbruck. Paris: Nouvelles Editions du Pavillon, 1987, p.2.

Reinvenção do sacramento, válido até para ateus, para crimes que um juízo definitivo, assegurado de si, afirma imprescritíveis: aquelas sentenças advêm de uma vitória e de uma supremacia efetivas. A resistente combateu o bom combate. Convicção absoluta que fala em nome da justiça restabelecida, afirma-se um poder normativo assegurado pela vitória dos Aliados. Dever de rememoração do sacrifício, devolução do mundo ético. Aprendizado antropológico essencial, "um padrão ouro", o que de fato conta, o relevo dos laços humanos, a amizade. Os cárceres, qual doença grave, trazem uma sabedoria.

CIRCUNSTÂNCIAS II

Em situações bem outras foi escrita e publicada a maioria dos testemunhos sobre os sistemas punitivos comunistas desde o início da década de 1920. Surgiram, em primeiro lugar, num momento em que o Estado soviético tinha poder para encobrir a verdade. Em que pôde fazer, progressivamente, do engodo um modo de ser. Surgiram, em segundo lugar, em situação de litígio ideológico intenso em que boa parte da opinião pública, européia e mundial, não estava disposta a aceitar a existência dos campos em países socialistas, nem antes nem depois da Segunda Guerra Mundial. (No imediato pós-guerra, a URSS reivindica para si, não nos esqueçamos, a liderança das forças antifascistas.)15 15 FURET, F. Le Passé d'une illusion. Essai sur l'idée communiste au XXème siècle. Paris: Robert Laffont, Calmann-Lévy, 1995. Assimilar, em algo, a Nação aliada, vitoriosa e exangue, ao país de Hitler, tornou-se inconcebível. Difícil imaginar, inconfortável e inconveniente, a vigência plena da instituição concentracionária na URSS quando se reúne o tribunal de Nuremberg no qual o país dos soviets tem assento. A justeza una da causa aliada impediria que se desse espaço aos modos concentracionários russos de assassinar que parecem ter ditado os do nazismo, aos crimes (crimes de guerra, crimes contra a Humanidade) cuja escala não deixa nada a invejar às façanhas hitlerianas.16 16 Ainda assim os campos, propriamente ditos de extermínio, reservados aos judeus, distinguem-se por inegável singularidade.

Estas duas diferenças são essenciais: a) o Estado stalinista fez mais do que mentir, criou com o terror e a propaganda algo como um "supra-real, um substituto da utopia, uma diabólica fantasmagoria do socialismo que O Mestre e Margarida de Mikhail Boulgakov ilustrou na ficção";17 17 BOULGAKOV, M. Le Maître et Marguerite. Paris: Laffont, 1968. b) há suportes e ambientes ideológicos no mundo (movimentos, tendências, partidos) para ecoar a mentira ou, no mínimo, para reduzir a enormidade dos fatos incriminadores, para negar o seu caráter sistêmico. É enfrentando outras versões, apresentando-se essencialmente como desmentidos, que os testemunhos sobre a Rússia, sobre a China Popular e sobre o restante dos países socialistas (Cuba inclusive) empenharam-se em persuadir da sua veracidade, da verdade que declaravam. Fazem-se nominalistas indicando o lugar, a data, os nomes e os números, responsabilizando sob duplo aspecto, sem muita parada, o regime enquanto tal: pelo caráter maciço e perverso do sistema punitivo, pela evidente responsabilidade dos dirigentes. Para muitos, entre as esquerdas, o que os testemunhos trazem é considerado impossível: mentiroso e difamatório, exagerado e parcial, insuficientemente dialético (desconsiderando a situação e a totalidade).

A urgência desses testemunhos é, em algumas oportunidades, premente de um modo todo particular: enquanto são postos sob exame, há gente — conforme a época e o país, milhões — sofrendo agonias, morrendo sem que saibam por quê, nos países que alguns supõem fraternos, felizes, que se diz terem ultrapassado a etapa capitalista, países necessariamente melhores, os que estariam conquistando o futuro. Urgência de solidariedade: no momento da publicação há homens e mulheres, centenas de milhares, às vezes milhões, que sobrevivem nas exatas condições encontráveis nas obras, mortos vivos, zumbis.

Veja-se no Livro negro do comunismo o capítulo referente ao Camboja comunista, no momento em que lembra a figura de Pin Yathay vagando por um mês na selva, só, esfomeado:

para testemunhar do genocídio cambojano, para descrever o que suportamos, para contar como se havia friamente programado a morte de vários milhões de homens, idosos, mulheres e crianças ... como o país fora arrasado, mergulhado novamente na era pré-histórica e seus habitantes torturados ... queria viver para suplicar ao mundo que ajudasse os sobreviventes a escapar à exterminação total.18 18 YATHAY, P. L' Utopie meurtrière: un rescapé du génocide cambodgien témoigne. Bruxelles: Complexe, 1989, cit. in Le Livre Noir du Communisme, p.381. Traducao nossa.

Há, portanto, um primeiro aspecto comum aos depoimentos sobre ambos os sistemas concentracionários. Com ele resgata-se a memória dos que morreram indefesos, testemunha-se por eles. E testemunhar adquire um significado que dimensão literária alguma possui: testemunha-se por alguém, ato simbólico por excelência que, com isso, ganha imediatamente redobrada dimensão moral. Apelo em ato, promessa cumprida, o testemunho, ao evocar a memória dos fatos e das pessoas, falando por elas, resgata-as da esfera do inumano. Alguém, o autor, nominalmente identificado, responsabiliza-se pela memória de uma fraternidade de sofrimento.

Nesta ordem de idéia, mostrando como "a imaginação do semelhante" desaparece nos campos, Myriam Revault D'Allonnes apontou para aquilo que a literatura concentracionária expressa de mais fatalmente simbólico: surge entre os arames farpados uma dúvida sobre a humanidade dos homens.19 19 REVAULT D'ALLONNES, M. À L'épreuve des Camps: l'imagination du semblable. In: Fragile Humanité. Paris: Aubier, 2002, p.147. (Não à toa o título de Primo Levi, desde logo problematizante: Se questo è um homo, "se for um homem"). A autora de Fragile Humanité cunha uma temível "crise de identificação" antropológica: "As personagens deste relato não são homens. Sua humanidade está morta, ou eles próprios a sepultaram, sob a ofensa suportada ou infligida a outrem". Ora, a imaginação do semelhante seria o laço que estabelece o comum, sustento de humanidade e de comunidade política; a filosofia ética e política apoiou-se quase sempre sobre essa ligadura mínima, "referente normativo último". Em suma: "fazendo desaparecer o reconhecimento imaginativo do semelhante, a experiência concentracionária ultrapassou efetivamente o limite extremo do que torna possível uma humanidade".20 20 Ibidem, p.151.

Segundo aspecto, válido apenas para o totalitarismo de confissão marxista e neste caso imediatamente pragmático, quando a obra pretende resgatar seres vivos, antes que seja tarde. Essa situação acompanhou praticamente toda a interpelação testemunhal própria aos países socialistas: para a Coréia, aliás, cujas características totalitárias parecem até hoje plenamente realizadas, ainda é tempo. Deixemos ao leitor a prerrogativa de ajuizar Cuba e a China Popular atuais.

Que se pode agir eficazmente, eis outra marca dos nossos horizontes contemporâneos, perfilada pelos testemunhos. A ação testemunhal vale para um coletivo — aqueles com quem se compartilhou a maldição dos campos, aqueles que, sabe-se, estiveram ou estão presos, a não ser que tenham morrido. A primeira pessoa fala por um todo; algumas vezes o pedido foi feito expressamente: que escrevesse pelos companheiros de infortúnio, que dissesse a verdade, que revelasse o real, que não se perdesse a memória dos sofrimentos e da inocência, tampouco a irracionalidade perversa dessas mortes, as suas justificativas insanas (nem mais ideológicas são), nem a espoliação, niilista e cínica, da linguagem política. Devolver à existência, em sua verdade, em sua realidade, os que lá ficaram. A quem se deve, a quem um laço solidário (laço de verdade também) ata; uma promessa que a escrita tenta cumprir.

A missão testemunhal a respeito dos campos comunistas tem sido um labor de desmentido e de dissuasão através de suas meras evocações. Foi verdade descritiva contra verdade ideológica, quando aquele que escrevia e aquele que acreditava no que lia podiam ser chamados de reacionários vendidos ou de inocentes úteis: não foi só a verdade de alguns Estados e dos partidos comunistas pelo mundo que esteve em jogo, foi a verdade do futuro, a proposta do amanhã, a identidade ideológica de muitos.

A QUEM SE ENDEREÇAM?

Usualmente o leitor idealizado representa, pode-se dizer, o Ocidente ilustrado, incluindo aí a mente de quem, eventualmente, apóia o regime incriminado, quiçá por falta de informação fidedigna; a escrita vale como denúncia e como apelo a quem poderá indignar-se, solicitando uma sensibilidade firmada desde, digamos, a revolta moral de Voltaire diante do suplício de Damiens; os muitos, tomados em alguma medida como exemplares, cuja sensibilidade cunha os Direitos Humanos, que se preocupam com aquilo que não lhes concerne pessoalmente, enxeridos até certo ponto, que falam e sentem pelo universal. Os pedidos de socorro podem constituir uma advertência, formalizar uma quase inculpação. Veja-se o documento intitulado Testamento dos prisioneiros patriotas do Vietnã, encabeçado no seu exórdio por "Nós, operários, camponeses e proletários" e "Nós, religiosos, artistas, escritores e intelectuais patriotas atualmente detidos nas diferentes prisões no Vietnã"; após descrever as condições carcerárias em que se encontram os interpelantes, lança como pedido de socorro este desafio, misto de sarcasmo insultante e suplicante:

Se for verdade que a humanidade atual recua com temor diante do desenvolvimento do comunismo e sobremodo diante da pretensa "invencibilidade" dos comunistas vietnamitas que "venceram o todo-poderoso imperialismo americano", então, nós prisioneiros do Vietnã, pedimos à Cruz-Vermelha internacional, às organizações humanitárias do mundo, aos homens de boa vontade que mandem urgente a cada um de nós um comprimido de cianureto: ajudem-nos a morrer logo. Conservaremos a vocês por isso uma imensa gratidão.21 21 Documento parcialmente reproduzido in Le Livre Noir du Communisme, op. cit., p.381.

Afinal, é o Ocidente que, fecundado por certas aspirações morais, inventou a teoria; afinal são ocidentais, e democratas de todo o mundo que, com entusiasmo, respaldaram este regime, que lhe deram assento em fóruns civilizados, que continuaram falando dele com cuidado diplomático e benevolente, e que, perdendo a medida, tornaram-se complacentes e cúmplices.

Não podia existir teste mais certeiro para a consciência ocidental comunizante; houve de escolher entre a presença do testemunho e o fundo político cultural que nutrira e defendera a ideologia; houve de optar entre o conforto de sua identidade partidária fetiche e a interpelação desafiadora do manifesto aqui citado. Quem sabe, graças a narrativas, o mundo desolador e ressequido do partidarismo científico acabe por se dissolver?

Nas circunstâncias soviéticas, tratava-se de convencer — contra os desmentidos dos partidos comunistas, contra a má vontade dos descrentes, contra a ingenuidade irresponsável da boa vontade — que o irreparável seguia acontecendo, que o século das catástrofes continuava em marcha. Insta-se por uma completa conversão da parte do leitor (se socialista) no modo de pensar e de sentir. Para pôr de lado as súplicas denunciadoras testemunhais é preciso desacreditá-las, negá-las de maneira consciente e sistemática pondo em questão a sua boa-fé ou, mais simplesmente, evacuá-las no limbo da consciência. Descrever o caráter infernal de vivências comunistas sugere perguntas humilhantes para o saber sobre o mundo do século XX. Como se passa afinal — passagem abrupta — do anseio emancipante, da concepção libertária e fraterna para as formas mais inegáveis e maciças da crueldade? O nonsense da deportação de etnias e populações inteiras em nome da emancipação humana definitiva, como dar conta disso? Quem é então atualmente aquele que mantém as mesmas concepções leninistas e similares: teria sido vítima ou carrasco? Os testemunhos exigem que se trate o universo stalinista, maoísta e os demais assemelhados como se tratou o nazista; denunciando uma enorme capacidade de mentir do regime, remete-se à responsabilidade de elaborar o próprio conhecimento, de reconstruir a medida do verdadeiro, uma ilustração não menos significativa do que a das Luzes, um aude sapere, perante o qual o século XX inteiro hesitou e, deste ponto de vista, em alguma medida, não acabou por completo.

QUESTÕES DE AUTENTICAÇÃO

Há narrativas testemunhais que sobrevivem como verdade há mais de dois mil anos; sua autenticação dependeu de séculos de institucionalização eclesiástica, forjando-se a noção de que sua resistente durabilidade no tempo avaliza a verdade dos Evangelhos: sacralização das Escrituras para a qual a própria escrita — em parábolas — contribui. Mas as formas mudam e a subjetividade se auto-afirma: cada vez mais durante o século XX os testemunhos se escrevem na primeira pessoa do singular. O gênero testemunhal tem, assim, sua própria história literária; uma historicidade que acompanha a facilidade sempre mais ampla de dizer "eu" perante o mundo. Para os modernos e contemporâneos que laicizamos o testemunho, remissões à primeira pessoa tornaram-se praxe — cada vez mais desde o romantismo —, prenhes que se encontram de densidade perceptiva interior, hauridas nos sentidos da percepção, nos sentimentos e nas reações afetivas. São, hoje, formas padrão da narrativa, além do mais democratizadas. Que a experiência sensitiva e afetiva de um homem comum entre os homens se escreva na primeira pessoa para a opinião pública consagra a ordem democrática.

Atestar os depoimentos referidos ao comunismo real tornou-se contorno importante das obras em pauta; em razão disso, apresentam-se freqüentemente afiançadas por declarações prévias que firmam a sua veracidade e valem como assinatura, quando o próprio autor declara-se personagem principal.22 22 Na edição do livro de V. A. Kravchenko, em 1947, op.cit., reproduz-se o fac-símile de sua assinatura, p.638. O primeiro instrumento de atestação consiste nesta declaração de autenticidade, em que o escritor reconhece que pode ter omitido, falseado, involuntariamente, algum ponto, mas que sua intenção foi reta, não inventou, não exagerou, tudo o que escreve segue fielmente o que lembra. A boa-fé protestada apela para a fé do leitor.

Vivências são referências fortíssimas e obrigatórias em alguns dos registros da verdade, nem por isso o testemunho deixa de admitir sua perspectiva enviesada e lacunar, em algum sentido faltosa. Forçoso então pactuar com o leitor, tal como na autobiografia, e prometer a absoluta sinceridade, a total autenticidade. Raros os depoimentos sobre o comunismo vivido que não começam com a promessa de boa-fé: é um modo de atestação, um tipo de garantia em direção à verdade.

No relato publicado, ocorre freqüentemente uma garantia emprestada por outra pessoa; alguém que através de sua apresentação, por sua vez, dê confiabilidade ao texto; por ser quem é (pessoa notória, moralmente abalizada, historiador especialista) fia o texto.23 23 O livro de HERLING, G., Un monde à part (Paris: Denoel, 1985) foi apresentado, como já mencionei, na edição francesa por Jorge Semprun; a inglesa, de 1951, havia sido apresentada por Bertrand Russell. Estará também escrito na contracapa, nas orelhas da publicação tratar-se de testemunho, isto é, referido a um real experimentado, inconfundível com a ficção, cuja intenção é relatar acontecimentos efetivos. E a palavra real virá sem aspas. Porque importam mais os efeitos práticos da narrativa (como influenciam a ação) do que comentários teóricos (possivelmente historiográficos) sobre a relatividade do real e as ambigüidades do verdadeiro.

De modo menos evidente, a superposição de identidade do escritor e do ator/personagem — uma modalidade de composição narrativa — não deixa de representar um primeiro e poderoso instrumento de persuasão, um tipo de autenticação retórica, o mesmo empregado na autobiografia, nas memórias ou confissões: o autor escreve a respeito de si, da sua presença no local, da sua experiência enquanto personagem-ator. O escritor evidencia, entretanto, a proximidade aos fatos levando a personagem a contar ela própria de si, na primeira pessoa do singular: escritor, narrador e ator/personagem confundem-se.

Implicação, pois, tríplice, remetendo à presença no local da personagem feita narradora por arte de quem escreve, afiançando situações, significando-as como vivências, trazidas do passado pela narrativa. Deparamo-nos com o nó expressivo e retórico central do testemunho: o uso da primeira pessoa, atualizando e configurando o vivido, uma dimensão evidentemente incontornável em alguns dos registros da verdade. Este modo de narrar abriga, por si, poderosos efeitos de convencimento.

A premissa literária testemunhal baseia-se numa atitude realista, configurando-se como remissão imediata ao mundo tal qual é: não tem dúvida de que existe um mundo efetivo, adequadamente descritível. É como se a situação testemunhal autorizasse esta opção. Normalmente, a proximidade ao real percebido é máxima; falam os narradores da experiência genérica dos sentidos, das sensações e dos sentimentos. O mártir quando testemunha da fé traduz uma imensa proximidade ao que interiormente vivencia. Os testemunhos apresentam-se como mergulhos no real, realçam que há algo de absoluto e incomparável na presença; dizem o mais genérico (o que os sentidos de cada um e de todos podem apreender), e o mais imediato. A escrita é pormenorizada, detalhista, nada escapa à descrição, nem o escatológico.

Tudo se narra exaustivamente: a qualidade e os graus da fome, as cotas de produção e as correspondentes cotas de alimentos, uma proporção matemática quase sempre fatal; se o prisioneiro não alcança derrubar a quantidade fixada (superdimensionada) de árvores, diminui-se a quantidade de comida a que ele tem direito. Mais fraco produzirá menos, até o fim, muito rápido. Repisam-se as causas variadas da extenuação medidas com as escalas as mais sensíveis, as que separam a vida e a morte, alguns gramas de cascas de batata no que deveria ser uma sopa.

Aliás, os testemunhos tendem à exatidão aritmética: quantas pessoas enfurnadas no vagão, quantos corpos em quantos metros quadrados, quantos dias transportados colados uns aos outros e sem banheiro, o peso exato do pedaço de peixe salgado e, depois, as horas sem beber torturados pela sede. Quantos dias, quantas noites sem dormir para os interrogatórios, onde exatamente os chutes do policial, quantas vezes acertaram, onde. De que exato tamanho a cela, quantos passos em largura, quantos em comprimento, a insuficiência do ar, a insuficiência da luz ou sua demasia, a demasia do calor, a demasia do frio, tão extremos que a asfixia para alguns chega, advém a sufocação ou o enregelamento. Quantos homens apinhados no chão nu, os que permanecem em pé no rodízio para dormir, encaixe dos presos uns nos outros para caberem como sardinhas em lata, aprender a virar juntos para continuar cabendo, dez, vinte homens. Tiritando de frio, suando em bica, morrendo por falta de respiro. Os piolhos, os percevejos, como são mortos com as unhas, o barulho que então fazem, o sangue que expelem, o deles, o seu.

A fome, a fome, a fome: as mil maneiras de descrever o desespero da fome, a agonia da fome, a obsessão da fome. Os exatos minúsculos gramas de pão, como comê-los, de uma vez, aos poucos durante o dia, qual a sua concreta substância em percentagem de farinha e de papelão. No universo da cela e do barraco concentracionário, como tossem, como andam, como respiram, como expiram, sujos, fedidos, desgrenhados, dignos, indignos, rastejantes, solidários, espiões, os comparsas sem crime, os cúmplices em inocência.

Quarenta graus abaixo de zero, quatro horas de espera no frio gélido a cada manhã na área de concentração e novamente à noite para contagem, vestidos com que falta de roupa, calçados com que arremedo de sapatos, os corpos que caem de exaustão, sem barulho, na neve. Quatro ou cinco horas de sono, as intermináveis vigílias siberianas no catre sem cobertor. Que tipo de liquido escorre do catre de cima?

Servir-se de um pedaço de pau para cavar a terra dura de gelo, a lâmina sem fio do machado tentando em desespero cumprir a cota sem o que não haverá pão, sem o que a morte virá, já pressentida, já determinada nos escalões administrativos. Podemos prolongar as longas reflexões já havidas sobre o trabalho nos campos: produtivo ou meramente assassino? Os dentes perdidos em razão do escorbuto, os cancros, as purulentas feridas expostas, a cor do osso dos mutilados. Os zumbis, vagando trôpegos, um feixe de ossos, os olhos vazios, já além. Os dias de nossa morte, quando tudo é possível, tintim por tintim. O homem concentracionário tem medidas escatológicas, as entranhas estão a descoberto, as chagas abrem-se fundo na carne podre, e fedem, as disenterias coletivas transbordam, pisa-se nos excrementos e no mijo, dos catres para o balde, respingando.24 24 No conto "Noites atenienses", Varlam Chalamov relembra as necessidades fundamentais do homem tais como as referira Thomas More na Utopia: "Dei-me conta que a fórmula de Thomas More enriquecia-se de um conteúdo novo. Na Utopia, fixou em quatro o número das necessidades do homem (alimentar-se, fazer sexo...) ... A terceira, a necessidade de urinar, e a quarta, de defecar". O contista russo ajunta a elas uma nova necessidade — a de recitar poesia — e descreve com penosos pormenores as quatro primeiras funções, as quais a quinta sublimaria. Autodafe n.2, 23/4/02, disponível em www.autade.org/fr/autodafe/journal.htm.

Minúcia comunicativa da escrita; o relato apruma-se com detalhes cotidianos, esparsos, múltiplos, com orgia de causos, infinitamente diversos, anedotas ao léu, surpresas dos círculos infernais, sobre fundo de repetição, dia após dia, durante décadas. Situações e circunstâncias explicitadas, numerosas, onde cabem sempre novas personagens, pormenorizadas; a evocação criteriosa faz ver, perceber, sentir o desespero através da exatidão. O extraordinário (dos corpos trancados, truncados) é digressivo: um preso joga o membro amputado aos pés de uma autoridade feminina em visita. Como pode pagar a pena, que significado pode ter?

Mas não sejamos ingênuos: o estilo não é aleatório, a descrição a mais exaustiva possível também é modo de atestação, intrínseca ao gênero. Esse realismo tem dupla função, ou melhor, a função literária evocativa e remissiva possui, neste caso, papel autenticatório. A descrição pormenorizada visa asseverar a presença, visa certificar a autenticidade: é ela que tornará real, é ela que produzirá verdade. Não se estranhe assim que, nos seus escritos, o autor lembre até mesmo entonações de vozes, a exata claridade daquele dia que passou, há mais de vinte anos. Pareceria mais uma ficção, mas é regra do gênero. A autenticação da experiência passa pelo esmiuçamento da sensação; a palpabilidade do real traduz a presença; só a presença pode evocar a densidade concreta, e este círculo instiga a empatia do leitor. Somos receptivos, em termos de aprendizado, a quem nos diz ter estado lá, pois que usa a autoridade da linguagem dos sentidos, uma linguagem que universalmente fala em nós. Dupla função da descrição, circunstanciada e nominalista, significando de um lado a experiência vivida, atestando-a do outro. Retrata, no mesmo lance escritural em que firma sua verdade.

O TESTEMUNHO E OUTROS GÊNEROS NARRATIVOS

Mas, dirão, o testemunho não é certamente o único gênero literário a ater-se à descrição, à concretude do universo evocado, através da exatidão circunstanciada: a ficção, sobretudo a realista, o faz; assim tendem a proceder memórias, biografias e autobiografias, sem esquecer a narrativa histórica. O que possui o testemunho para distinguir-se de outros gêneros literários? Alfredo Bosi, tratando da literatura testemunhal e comentando Memórias do cárcere, salientou o subjetivismo assumido por Graciliano Ramos e louvou na postura do escritor a sua franqueza lúcida em admitir a abordagem unilateral, a parcialidade de seu depoimento; Bosi aproxima nesse momento o texto de memória da ficção. De fato, Graciliano, cônscio de sua arte, reivindicava para si o direito da digressão, dos caprichos da percepção e da memória.

Qualquer que seja a veia estilística, porém, a subjetividade é marca do testemunho. Como nomear esse espaço entre o querer ser veraz e a insegurança em ser verídico senão como subjetividade? Graciliano permite-se liberdades literárias; a ficção, porém, mesmo que sempre remissiva, não contém, por definição, compromisso algum de realidade. Mesmo que pretenda enviar ao real e mesmo que a intenção autoral almeje designar algo existente, o leitor não espera encontrar o Fabiano de Vidas secas na próxima esquina; e não precisa saber minimamente que Madame Bovary tem muito de autobiográfico para fruir o romance, sem lembrar o homem Flaubert. Haveria antes, na ficção, uma convenção que nos impede de tratá-la como narrativa do real. O livro do Arthur Koestler, O zero e o infinito, está bastante perto da vida de Bukharin e de outros bolcheviques, forçados a confessar crimes de que eram inocentes; mesmo 1984, o famoso romance de Orwell, não está tão longe assim da realidade totalitária, todavia podemos bastar-nos em fruí-lo já que a pura imaginação admitidamente integra essas obras. O que firma a convenção? Toda a vasta tradição romanesca, alguns procedimentos de escrita, e as marcas externas apostas à obra editada.

O narrador de O zero e o infinito conta o que se passa na mente de Robachov, a quem se refere sempre na terceira pessoa; o mesmo tratamento recebe Winston, personagem central de 1984. O Nós outros de Zamiatine é, mais evidentemente ainda, fantasioso. Fazendo de conta que tem acesso a tudo o que a personagem pensa interiormente, Koestler consagra seu livro como ficção, por mais que ele a quisesse, ao mesmo tempo, politicamente compromissada.25 25 KOESTLER, A. Le zéro et l'infini. Paris: Calmann-Lévy, 1945. ZAMIATINE, E. Nous autres. Paris: Gallimard, 1929.

Tudo isso não impede que o imaginário possa alcançar verdade evocativa maior do que qualquer relato plenamente comprometido com a realidade; mesmo fantasiosa, pode a ficção criar um tipo de realidade, no sentido em que inventa mundos, ressoando na comunidade dos leitores, através dos tempos, como algo que, sem existir, passou a ser, consagrando dimensões que nos habitam tanto quanto as habitamos. Existências fantasmas, talvez sejam o mais importante de nossa cultura.

A verdade é que alguns autores hesitam quanto à forma e quanto ao gênero: David Rousset escreve Les Jours de notre Mort, um relato sobre Buchenwald, afirmando no prólogo:

Este livro é construído com a técnica do romance, por falta de confiança nas palavras ... Todavia, a fabulação não tem a ver com este trabalho ... Algumas das personagens por vezes falam. Os homens que eles são não podem de modo algum carregar a responsabilidade de tais dizeres. Não se pode tratar aqui de depoimentos estenográficos.

A escrita (composição e estilo) é romanceada, mas, escreve ainda Rousset, "os fatos, os eventos, as personagens são todas autênticas." A indistinção é uma escolha de não escolher.

Desde A grande viagem, Um belo domingo e A montanha branca, Jorge Semprun relutou em usar a forma testemunhal para expressar-se, preferiu a alusão ficcional; só em 1994, em L'écriture ou la Vie, ainda que de modo sutil e de construção complexa, concede o testemunho. Nesse livro, comentando a experiência concentracionária, do mesmo campo em que Rousset estivera, volta a afirmar que só dariam conta de relatar a densidade de suas vivências aqueles que

souberem fazer de seu testemunho um objeto artístico, um espaço de criação. Ou de re-criação. Somente o artifício de um relato com pleno domínio chegará a transmitir parcialmente a verdade do testemunho.

E, de fato, entre o que assumiu como ficção e L'écriture ou la Vie, nem sempre a diferença literária aparece.26 26 SEMPRUN, J. A grande viagem. Rio de Janeiro: Bloch, s.d. Um belo domingo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. A montanha branca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

A arte, escrevem pessoas tão díspares como Marta Nussbaum e Gilles Deleuze, não pensa menos que a filosofia, pensa por "affects" e por "percepts", "pentimentos" onde se mesclam e suportam reciprocamente a sensação emotiva e a afetividade perceptiva.27 27 VERNAULT D'ALLONES, op. cit. Da mesma maneira, as narrativas em três volumes intitulada Kolyma, de Varlam Chalamov, constituem uma literatura na qual o artifício resplandece de "densidade transparente", em que, nem por isso, situação alguma é inventada. Os editores não ousam pronunciar-se, isto é, não anunciam nem "memórias" nem "ficção", indicam "relatos".28 28 CHALAMOV, V. La quatrième Vologda aparece, sim, mas é exceção, como "relato autobiográfico" na edição de La Découverte, Fayard, 1986.

MEMÓRIAS, AUTOBIOGRAFIAS

Com maior propriedade talvez, o testemunho aproximar-se-ia dos gêneros autobiográfico e memorialista. À diferença, entretanto, do que marca a autobiografia cujo cerne, segundo Philippe Lejeune, concerniria mudanças na personalidade do escritor e narrador, os testemunhos aqui referidos iniciam tão-somente no tocante à vida dos autores, com o episódio do encarceramento; a obra costuma terminar com a libertação da personagem.29 29 LEJEUNE, Ph. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996. Com certeza a personalidade do autor foi vitimada e modificada (tal qual na autobiografia), mas não parece ser este o nexo do testemunho. Ou melhor: se houve mudança pessoal, aconteceu juntamente com a transfiguração da ordem do mundo para a ordem do inominável. Mesmo textos que não mergulham efetivamente nas práticas de repressão física, que se bastam com descrever o terror e a farsa nas repartições, nas oficinas, nas ruas do cotidiano, como os de V. A. Kravchenko, Boris Iampolsky, Nadejda Mandelstam e Enrique Castro Delgado, depõem para que haja julgamento, constituem peças de um processo, informações sobre a sociedade para o juízo político; malgrado a forma personalizada, não são os autores que contam individualmente em seus arrazoados descritivo-narrativos sobre sociedades doentes de ideologia, insanas de política.30 30 KRAVCHENKO, V. A., op. cit. IAMPOLSKY, B., Présence Obligatoire. Lausanne: L'Age d'Homme, 1990.

Do mesmo modo, a veia livre do memorialista (com propósito de descrever e contar a sua época a partir das vivências pessoais) que encontra gente variada e diferenciada de onde surgem anedotas ao léu, não se aproxima da perspectiva dos depoimentos em pauta. Nestes, como foi dito, tudo remete à mesma centralidade política, sob regime de asfixia; encontros, amizades e amores inscrevem-se dentro do cerco perdendo-se, com isso, a própria dimensão da interioridade.31 31 ARENDT, H. O sistema totalitário, cap. XIII, 3ª parte. Lisboa: Dom Quixote, 1978. O âmbito do terror político define-se avesso à nonchalance, aos abandonos fantasiosos e aos caprichos digressivos, favorecidos pelos acasos da vida, do memorialista. Entretanto, quando mais estritamente o tema concerne aos acontecimentos por trás dos arames farpados, a referência, obrigatória e central, aos corpos exaustos e martirizados consome as páginas: impõe-se uma economia própria, a da necessidade física junto ao desespero. Literatura sem folga nem folguedo.

TESTEMUNHO E HISTÓRIA

Para a escrita da História o testemunho tem sido fonte crucial: por certo, o testemunho parece possuir um registro adequado à disciplina histórica. Têm ambos, como pressuposto fundador, a atitude natural, por onde se reza que fatos, acontecimentos e eventos servindo de suporte à narrativa.32 32 "uma das características da 'cultura' contemporânea é taxar de repente de inexistentes as realidades sociais, políticas, ideais, culturais, biológicas que se acreditava serem as mais bem estabelecidas. Desta forma são taxados de inexistentes as relações sexuais, a mulher, a dominação, a opressão, a submissão, a História, o real, o indivíduo, a natureza, o Estado, o proletariado, a ideologia, a política, a loucura, as árvores. Esses joguinhos entristecem e podem também distrair, mas são forçosamente perigosos. O fato de a sexualidade e as relações sociais não existirem não perturba os amantes, e a inexistência das árvores nunca tirou o pão do lenhador ou do fabricante de papel. Por vezes, porém, o jogo deixa de ser inocente. Isso acontece quando se questiona ... um determinado momento doloroso de sua história". VIDAL-NAQUET, P., op. cit., p.16. O historiador questiona ao mesmo tempo concepções estruturalistas e historicistas — podemos pensar em As palavras e as coisas — e a incidência eventual destes vieses teóricos sobre os historiadores "revisionistas", que questionam a realidade do Holocausto.

O pressuposto é realista: os existentes são instituintes, por isso mesmo precisam ser assegurados, designam pontos de referência para o ofício de historiador, vetores da concretude para as interpretações, sem o que a proposta de aproximar-se deles com objetividade e maior grau de racionalidade interpretativa não faria sentido. Que, em maior ou menor escala, fatos precisem ser constituídos remete à premissa de sua existência, pólo da densidade para a consciência. Testemunhos afirmam ou negam certa realidade: enquanto o historiador não resolver o dilema, consagrando o acontecimento (ou negando-o), o dizer histórico titubeia, o juiz se sente em dificuldade para dar a sentença.

O existir de um acontecimento: um núcleo que atrai a intenção de verdade, em torno do qual se gira, mas que simultaneamente, o tempo todo, respalda a intencionalidade da consciência; condição transcendental para decidir do gênero da narrativa, assim estão no mesmo campo o testemunho, a história, o diário íntimo, o gênero memorialista e a autobiografia. Estão os narradores envoltos na diferença entre o real e o imaginário, entre o acontecido em realidade e o sonhado. A mesma diferença, que para os historiadores deve e pode ser estabelecida, rege-os. Não importa se alguns insistem que o fato é constituído: é constituído em sua realidade de existente. E se alguns privilegiam o imaginário, interessa-os o imaginário em sua existência e eficácia próprias.

O núcleo duro da interpretação histórica é nucleado pela noção da existência factual, uma ontologia que obriga a disciplina e seus métodos, habitando-os. Esse ponto de partida parece constituir o horizonte para as discussões sobre objetividade. Faz-se referência a algo que existiu e que, claro, deixou registro; descrer da realidade do mundo ou suspendê-la, está reservado a algumas formas do idealismo filosófico.

Tudo indica que historiografia e testemunho já fizeram esta escolha, ao mesmo tempo ontológica e epistemológica, decisiva, que é partir do critério das existências factuais; os fatos emitem luzes cujos espectros (a questão dos seus significados) são sustentados pelo pressuposto de existência. Ambos os gêneros aceitam deixar-se guiar pelos acontecimentos. Se, conforme escreve Carlo Ginzburg, um testemunho (dois, segundo a lei judaica) pode bastar para o historiador, tal eventualidade advém dessa adequação de registros de verdade quando descrever uma cena, ambientes e personagens só é possível através da perspectiva fundante que separa real e imaginário, justamente esta que as duas modalidades narrativas se esmeram em certificar.33 33 GINZBURG, C. "Just One Witness", in FRIEDLANDER, S., Probing the Limits of Representation. Nazism and the final solution. London, Cambridge: Harvard University Press, 1992. p.82-96. A mesma ânsia de verdade alimenta testemunhos e História, cada um com seus respectivos parâmetros metodológicos, procurando ambos a respectiva adequação ao que é, ao que foi.

Houve algo chamado Shoah, houve genocídio na Armênia, na Ucrânia em 1932-1933, houve na URSS e na China comunistas campos de trabalhos forçados em grande escala: isto é, para o povo. Houve Hiroxima, houve Nagasaki. Os números falam, os documentos informam, as vozes evocam: esses acontecimentos são nossa sombra, à sombra deles pensamos e escrevemos: a própria descrição precisa traz consigo a interpretação.

De conto em conto, a opinião pública sabe, hoje, mais e melhor sobre a coletivização das terras no início dos anos 30 russos do que se sabia algumas décadas atrás: mais fatos foram incluídos e ventilados, não só as perspectivas dimensionaram os números, os números forneceram a perspectiva. Os números foram escondidos por quê? Mais arquivos foram abertos: o de Smolensk, o da KGB, o da Stasi. Cristopher Browning afirmava não haver "duas categorias distintas e separadas, de fatos comprováveis de um lado e pura interpretação do outro. Existe, antes, um spectrum ou continuum: a própria massa de fatos verificáveis pertencendo à "Solução Final" determina a interpretação global, e não inversamente".34 34 BROWNING, C., "German Memory, Judicial Interrogation, and Historical Reconstruction: Writing Perpetrator History from Postwar Testemony", in FRIEDLANDER, S., op. cit., p.32.

IDEOLOGIA E NARRATIVA

"A ideologia é o contrário da narração que se submete ao evento, conta-o e nos prepara à compreensão de outros eventos." 35 35 ESTIN, J. C., L'événement de penser. Número especial sobre H. Arendt, in L'Esprit, n.42, jun. 1980. Contar é conformar o real de um modo todo especial. Transformou-se com o peso sempre crescente da ideologia, nos séculos XIX e XX, em uma forma escritural alternativa.

Narra-se, e reintegra-se o imprevisível do evento singular, a pluralidade e a diversidade das existências. Narra-se, e estabelecem-se modos renovados de ligar o particular ao geral, em contraste e eventual dissonância com a teoria e a ideologia. A crítica ao capitalismo e à ficção realista/naturalista socialmente comprometida caminharam juntas, conformando uma certa eticidade crítica, uma modalidade antiburguesa da cultura. Não é arriscado demais afirmar que as esferas sociointelectuais sob influência stalinista mantiveram-se — por um tipo de fidelidade a si mesmas, mas traindo profundamente as aspirações humanitárias — fora do alcance das narrativas testemunhais e, também, da História do século XX. Narra-se evidenciando os excessos comportamentais da ideologia; originada na teoria, tornou-se interpelação para a ação das massas e transformou-se em campanhas propagandísticas exacerbadas; a ideologia totalitária no poder transfigurou-se em mentira sistemática, perdendo o significado junto com o contato com o real; perdeu também a sua capacidade de endereçamento. Castoriadis36 36 CASTORIADIS, C. Diante da guerra. São Paulo: Brasiliense, 1982. expressou-o brutalmente: a ideologia soviética, dos anos 30 até o fim, tornou-se mero biombo para o emprego da força. Em contraste, a narrativa testemunhal tira o significado de sua forma de endereçamento. Se o que Artur London, Alexandre Weissberg ou Evguenia Semionovna Guinsbourg dizem for verdade, o reino de Dinamarca apodreceu inteiro, sem ressalvas.37 37 LONDON, A. L'aveu. Paris: Gallimard, 1968 (do qual foi feito o filme de Costa-Gavras, A Confissão). WEISSBERG, A. L'accusé. Paris: Fasquelle, 1953. GUINZBOURG, E. Le vertige e Le ciel de la Kolyma. 2 tomos. Paris: Seuil, 1967.

Assim, é preciso inverter: o testemunho não é somente algo para o historiador circunscrever e confrontar. Significa também algo que o interroga e situa. O testemunho acomete, faz virar a página das existências históricas. As narrativas sobre os campos soviéticos e chineses significavam um tipo de epifania. Definiam a época. Interpelavam os homens em geral e o historiador em particular, responsável pela transmissão do passado. Cada um reage a seu modo ao testemunho, porém com ele, o evento já está presenciado. Não se trata mais das regras do ofício, trata-se de interpelação às fibras da percepção emotiva e da afetividade moral, de provocação aos hábitos ideológicos, trata-se de sentir o real através de um apelo. É comprometer-se com uma escrita. E o historiador do século XX desistindo do seu economicismo, quiçá, tivesse que começar tudo de novo pois os crimes não advêm mais do modo de produção, o abismo não é uma decorrência do capitalismo. Alguns ouvem, outros não; Rousset e Russell sim, e reagem quando sentem que são os mesmos campos, os nazistas e os comunistas. Sartre perde-se, por um longo lapso de tempo, em raciocínios tortos, em sentimentos falsos.

O apelo testemunhal se propõe e expõe os homens, e entre eles os historiadores, à sua desventura maior — a de passar ao lado do abismo de uma narrativa. Não é tolo o historiador que não saiba ler no século XX o massacre inexplicável de vários povos, o reino do terror ideológico, seguindo a uma imensa promessa de futuro, sucedendo a um gigantesco surto de esperanças? Esse enorme paradoxo — como se as massas tivessem adorado um falso ídolo — não constitui uma surpresa histórica ímpar? Eis no bojo do totalitário uma especificidade — a comunista — que precisava de "mestres de verdade" atentos. A primeira indicação, trêmula e frágil, do que seria o século bolchevique bruxuleou em alguns textos. Já traduziam em anedotas criteriosas e terríveis o evento que engolfaria na grande história homens comuns aos milhões.

O mesmo espaço de decisão estabeleceu um nexo interno entre denominar o totalitarismo e dar atenção ao testemunho. Estivemos — os homens do século XX — sempre expostos a instâncias testemunhais de verdade; constituíram um endereçamento recorrente e resultaram num desafio à integridade moral e intelectual de cada um; ficou abundantemente provado que sempre podemos passar ao lado, sempre podemos trair a humanidade.

Mas de onde vem esta capacidade do testemunho em batizar o evento? Simplesmente, o testemunho fala a linguagem que serviu de padrão à nossa sensibilidade moral (à nossa razão prática) desde Rousseau; a linguagem que, aliás, Marx prolonga magnificamente nas páginas em que denuncia a miséria dos trabalhadores, a mesquinhez filistéia dos interesses burgueses, o niilismo da venalidade universal. Os apelos em sua linguagem perceptiva, emotiva e moral que constituem o conteúdo e a forma do testemunho ecoam a mesmíssima linguagem do foro íntimo de cada um. Enquanto essa linguagem permanecer, o testemunho preso a ela continuará a nos expor e desafiar, designando o modo certo de ler a história e de desejá-la.

Narra-se, e reintegra-se a dimensão inextricável do subjetivo e do objetivo conformada pelas vivências sociais. Narra-se, e foge-se da babel semântica entronizada pelos poderes batismais da ideologia, substituindo-a pelas ressonâncias imediatas da percepção e da emoção, da sensibilidade afetiva. Narra-se, e reintegra-se a justaposição temporal irreversível dos acontecimentos nas vidas humanas: posso ser culpado hoje, por ter apoiado ontem, a Trotsky, organizador do Exército Vermelho? O decreto stalinista de hoje abole a verdade bolchevique de ontem? Narra-se e restitui-se a um homem a espessura de suas vivências e probidade: poderiam ser os revolucionários de estirpe (socialistas revolucionários, mencheviques e depois os próprios bolcheviques e, um pouco depois, também os stalinistas), assim, de repente, agentes vendidos ao imperialismo, conforme rezou a acusação incriminando centenas de milhares de homens? Poderiam ser milhões de camponeses e homens comuns inimigos do povo, inimigos de si mesmos, perguntava Soljenitsyne. A criminalização propagandista de toda sociedade liquida neste caso a própria configuração do popular. "Humanizamos o que se passa no mundo e em nós, ao falar, e, neste falar, aprendemos a ser humanos", escreve Paul Ricoeur. Depois que a seiva existencial dos homens foi eliminada, que todas as possibilidades de sociabilidade foram mutiladas, contar a sina dos presos e deportados vale por restituir-lhes a humanidade. É sabido que a narrativa tece o real incorporando o fortuito do acontecimento, transformando o acaso em destino, desmanchando esse destino em acaso com outro acontecimento. Que os regimes totalitários não gostam de narrativas (dos itinerários singulares e coletivos) é comentário comum da literatura, uma característica belamente enfatizada, em especial, por Vaclav Havel:38 38 HAVEL, V. Essais politiques. Paris: Calmann-Lévy, 1989. A destruição da capacidade de contar história, anota Havel, equivale à "destruição de um instrumento elementar de conhecimento e de conhecimento de si". todo acidente, todo evento fortuito, todo traçado particular abre perspectivas, ressalta imprevistos, dá margem a improvisos e digressões. Os testemunhos abrem-se sobre múltiplos depoimentos internos narrando episódios, quando não vidas inteiras, transmitidas por outras várias personagens "secundárias".

Com o relato, inclui-se sempre, ao que parece, uma alusão fundamental à dimensão corporal, suporte da individualização humana. A narrativa testemunhal significa a dimensão corporal como situação original, fonte dos significados, horizonte de racionalidade ética, subjetividade endereçada a outros. Com isso, retira-se à ideologia a soberba alucinada e alucinante que o poder catalisa. Ou não?

A poetisa Anna Akmatova parece acreditar que sim:

Nos anos terríveis da Iejovshtina [de Iejov, chefe da polícia secreta, lugar-tenente de Stalin], passei dezessete meses fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia, alguém me "reconheceu". Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar em meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e falando pertinho do meu ouvido (ali todos nós só falávamos sussurrando) me perguntou:

— E isso, a senhora pode descrever?

E eu respondi:

— Posso.

Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.39 39 AKMATOVA, A. Trechos escolhidos. No lugar de um prefácio. Leningrado, 1/4/1957.

NOTAS

MANDELSTAM, N., Contre tout espoir. Paris: Gallimard, 1975. CASTRO DELGADO, E. Mi fé se perdio en Moscu. Barcelona: Luis de Caralt e Ed. Barcelona, 1964.

Artigo recebido em 10/2003.

Aprovado em 09/2004.

  • 3 "Obcecado pelo ser, e esquecendo o perspectivismo de minha experiência, eu o trato doravante como objeto, eu o deduzo de uma relação entre objetos". MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.108.
  • 4 SELIGMANN-SILVA, M. (Org.) História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
  • 5 RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: Seuil, 1985. La mémoire, l'histoire, l'oubli Paris: Seuil, 2000.
  • 7 ARIÈS, Ph. O engajamento do homem moderno na História. In: O tempo da História Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
  • 9 ROUSSET, D. Les jours de notre mort 2 tomos. Paris: Hachette, 1993. L'Univers concentrationnaire Paris: Ed. de Minuit, 1989.
  • 10 KRAVCHENKO, V. A. J'ai choisi la liberté Paris: Self, 1947.
  • VALTIN, J. Sans Patrie ni Frontière Paris: Dominique Wapler, 1948.
  • 11 LEFORT, C. Éléments d'une critique de la bureaucratie Paris: Gallimard, 1979.
  • 12 LEVI, P. Les naufragés et les rescapés Paris: Gallimard, Arcades, 1989.
  • 13 VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória Campinas: Papirus, 1988.
  • 14 LESÈVRE, L. Face à Barbie .Souvenirs-cauchemars: de Montluc à Ravensbruck Paris: Nouvelles Editions du Pavillon, 1987, p.2.
  • 15 FURET, F. Le Passé d'une illusion. Essai sur l'idée communiste au XXème siècle Paris: Robert Laffont, Calmann-Lévy, 1995.
  • 17 BOULGAKOV, M. Le Maître et Marguerite Paris: Laffont, 1968.
  • 19 REVAULT D'ALLONNES, M. À L'épreuve des Camps: l'imagination du semblable. In: Fragile Humanité Paris: Aubier, 2002, p.147.
  • 25 KOESTLER, A. Le zéro et l'infini Paris: Calmann-Lévy, 1945.
  • ZAMIATINE, E. Nous autres Paris: Gallimard, 1929.
  • 28 CHALAMOV, V. La quatrième Vologda aparece, sim, mas é exceção, como "relato autobiográfico" na edição de La Découverte, Fayard, 1986.
  • 29 LEJEUNE, Ph. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996.
  • MANDELSTAM, N., Contre tout espoir Paris: Gallimard, 1975.
  • CASTRO DELGADO, E. Mi fé se perdio en Moscu Barcelona: Luis de Caralt e Ed. Barcelona, 1964.
  • 31 ARENDT, H. O sistema totalitário, cap. XIII, 3Ş parte. Lisboa: Dom Quixote, 1978.
  • 33 GINZBURG, C. "Just One Witness", in FRIEDLANDER, S., Probing the Limits of Representation. Nazism and the final solution London, Cambridge: Harvard University Press, 1992. p.82-96.
  • 35 ESTIN, J. C., L'événement de penser. Número especial sobre H. Arendt, in L'Esprit, n.42, jun. 1980.
  • 36 CASTORIADIS, C. Diante da guerra São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • 37 LONDON, A. L'aveu. Paris: Gallimard, 1968 (do qual foi feito o filme de Costa-Gavras, A Confissão).
  • WEISSBERG, A. L'accusé. Paris: Fasquelle, 1953.
  • GUINZBOURG, E. Le vertige e Le ciel de la Kolyma 2 tomos. Paris: Seuil, 1967.
  • 38 HAVEL, V. Essais politiques Paris: Calmann-Lévy, 1989.
  • 39 AKMATOVA, A. Trechos escolhidos No lugar de um prefácio. Leningrado, 1/4/1957.
  • 1
    Professor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional da FHDSS, UNESP/Franca.
  • 2
    No momento em que está prestes a deixar o Partido Comunista Francês, Edgar Morin escreve de modo auto-crítico: "Pela primeira vez minha consciência ousou sentar-se no tribunal supremo ... este sobressalto de consciência, esta recusa de impostura, mesmo que apenas mental, salvava minha razão". MORIN, E.
    Auto-Critique. Paris: Seuil, 1959.
  • 3
    "Obcecado pelo ser, e esquecendo o perspectivismo de minha experiência, eu o trato doravante como objeto, eu o deduzo de uma relação entre objetos". MERLEAU-PONTY, M.
    Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.108.
  • 4
    SELIGMANN-SILVA, M. (Org.)
    História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
  • 5
    RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: Seuil, 1985.
    La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000.
  • 6
    Citado por J. Semprun no prefácio a HERLING, G.
    Un monde à part. p.II e III. Paris: Denoel, 1985.
  • 7
    ARIÈS, Ph. O engajamento do homem moderno na História. In:
    O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
  • 8
    Ibidem, p.71-5.
  • 9
    ROUSSET, D.
    Les jours de notre mort. 2 tomos. Paris: Hachette, 1993.
    L'Univers concentrationnaire. Paris: Ed. de Minuit, 1989.
  • 10
    KRAVCHENKO, V. A.
    J'ai choisi la liberté. Paris: Self, 1947. VALTIN, J.
    Sans Patrie ni Frontière. Paris: Dominique Wapler, 1948.
  • 11
    LEFORT, C.
    Éléments d'une critique de la bureaucratie. Paris: Gallimard, 1979.
  • 12
    LEVI, P.
    Les naufragés et les rescapés. Paris: Gallimard, Arcades, 1989.
  • 13
    VIDAL-NAQUET, P.
    Os assassinos da memória. Campinas: Papirus, 1988.
  • 14
    LESÈVRE, L.
    Face à Barbie .Souvenirs-cauchemars: de Montluc à Ravensbruck. Paris: Nouvelles Editions du Pavillon, 1987, p.2.
  • 15
    FURET, F.
    Le Passé d'une illusion. Essai sur l'idée communiste au XXème siècle. Paris: Robert Laffont, Calmann-Lévy, 1995.
  • 16
    Ainda assim os campos, propriamente ditos de extermínio, reservados aos judeus, distinguem-se por inegável singularidade.
  • 17
    BOULGAKOV, M.
    Le Maître et Marguerite. Paris: Laffont, 1968.
  • 18
    YATHAY, P.
    L' Utopie meurtrière: un rescapé du génocide cambodgien témoigne. Bruxelles: Complexe, 1989, cit. in
    Le Livre Noir du Communisme, p.381. Traducao nossa.
  • 19
    REVAULT D'ALLONNES, M. À L'épreuve des Camps: l'imagination du semblable. In:
    Fragile Humanité. Paris: Aubier, 2002, p.147.
  • 20
    Ibidem, p.151.
  • 21
    Documento parcialmente reproduzido in
    Le Livre Noir du Communisme, op. cit., p.381.
  • 22
    Na edição do livro de V. A. Kravchenko, em 1947, op.cit., reproduz-se o fac-símile de sua assinatura, p.638.
  • 23
    O livro de HERLING, G.,
    Un monde à part (Paris: Denoel, 1985) foi apresentado, como já mencionei, na edição francesa por Jorge Semprun; a inglesa, de 1951, havia sido apresentada por Bertrand Russell.
  • 24
    No conto "Noites atenienses", Varlam Chalamov relembra as necessidades fundamentais do homem tais como as referira Thomas More na
    Utopia: "Dei-me conta que a fórmula de Thomas More enriquecia-se de um conteúdo novo. Na
    Utopia, fixou em quatro o número das necessidades do homem (alimentar-se, fazer sexo...) ... A terceira, a necessidade de urinar, e a quarta, de defecar". O contista russo ajunta a elas uma nova necessidade — a de recitar poesia — e descreve com penosos pormenores as quatro primeiras funções, as quais a quinta sublimaria.
    Autodafe n.2, 23/4/02, disponível em
  • 25
    KOESTLER, A.
    Le zéro et l'infini. Paris: Calmann-Lévy, 1945. ZAMIATINE, E.
    Nous autres. Paris: Gallimard, 1929.
  • 26
    SEMPRUN, J.
    A grande viagem. Rio de Janeiro: Bloch, s.d.
    Um belo domingo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
    A montanha branca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
  • 27
    VERNAULT D'ALLONES, op. cit.
  • 28
    CHALAMOV, V.
    La quatrième Vologda aparece, sim, mas é exceção, como "relato autobiográfico" na edição de La Découverte, Fayard, 1986.
  • 29
    LEJEUNE, Ph. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996.
  • 30
    KRAVCHENKO, V. A., op. cit. IAMPOLSKY, B.,
    Présence Obligatoire. Lausanne: L'Age d'Homme, 1990.
  • 31
    ARENDT, H.
    O sistema totalitário, cap. XIII, 3ª parte. Lisboa: Dom Quixote, 1978.
  • 32
    "uma das características da 'cultura' contemporânea é taxar de repente de inexistentes as realidades sociais, políticas, ideais, culturais, biológicas que se acreditava serem as mais bem estabelecidas. Desta forma são taxados de inexistentes as relações sexuais, a mulher, a dominação, a opressão, a submissão, a História, o real, o indivíduo, a natureza, o Estado, o proletariado, a ideologia, a política, a loucura, as árvores. Esses joguinhos entristecem e podem também distrair, mas são forçosamente perigosos. O fato de a sexualidade e as relações sociais não existirem não perturba os amantes, e a inexistência das árvores nunca tirou o pão do lenhador ou do fabricante de papel. Por vezes, porém, o jogo deixa de ser inocente. Isso acontece quando se questiona ... um determinado momento doloroso de sua história". VIDAL-NAQUET, P., op. cit., p.16. O historiador questiona ao mesmo tempo concepções estruturalistas e historicistas — podemos pensar em As palavras e as coisas — e a incidência eventual destes vieses teóricos sobre os historiadores "revisionistas", que questionam a realidade do Holocausto.
  • 33
    GINZBURG, C. "Just One Witness", in FRIEDLANDER, S.,
    Probing the Limits of Representation. Nazism and the final solution. London, Cambridge: Harvard University Press, 1992. p.82-96.
  • 34
    BROWNING, C., "German Memory, Judicial Interrogation, and Historical Reconstruction: Writing Perpetrator History from Postwar Testemony", in FRIEDLANDER, S., op. cit., p.32.
  • 35
    ESTIN, J. C., L'événement de penser. Número especial sobre H. Arendt, in L'Esprit, n.42, jun. 1980.
  • 36
    CASTORIADIS, C.
    Diante da guerra. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • 37
    LONDON, A. L'aveu. Paris: Gallimard, 1968 (do qual foi feito o filme de Costa-Gavras,
    A Confissão). WEISSBERG, A. L'accusé. Paris: Fasquelle, 1953. GUINZBOURG, E.
    Le vertige e
    Le ciel de la Kolyma. 2 tomos. Paris: Seuil, 1967.
  • 38
    HAVEL, V.
    Essais politiques. Paris: Calmann-Lévy, 1989. A destruição da capacidade de contar história, anota Havel, equivale à "destruição de um instrumento elementar de conhecimento e de conhecimento de si".
  • 39
    AKMATOVA, A.
    Trechos escolhidos. No lugar de um prefácio. Leningrado, 1/4/1957.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      Set 2004
    • Recebido
      Out 2003
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