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Machado de Assis: o aprendizado do escritor e o esclarecimento de Mariana

Resumos

O ensaio se divide praticamente em duas partes. Na primeira, ele trata da formação de Machado de Assis como escritor, o seu modo muito próprio de se relacionar com o leitor e os controles do Estado Imperial da segunda metade do século XIX. Na última, ele analisa o conto "Capítulo dos chapéus", no qual Machado procura mostrar como, depois de cem anos, ainda continuam estranhos os valores da Revolução Francesa na vida social brasileira.

Prosa realista brasileira; Literatura e história; O conto de Machado de Assis


The essay is shared, practically, in two parts. The first one shows the Machado de Assis learning as a writer, the singular relationship which he develops to the lector and the controls of the Imperial State in the nineteenth century. The last one analyses the short story "Capítulo dos chapéus", where Machado de Assis shows as, after a century, the French Revolutions values are still stranges in the Brazilian social life.

Realistic brasilian narrative; Literature and history; The short story of Machado de Assis


ARTIGOS

Machado de Assis: o aprendizado do escritor e o esclarecimento de Mariana

Luiz Roncari

Professor da FFLCH/USP

RESUMO

O ensaio se divide praticamente em duas partes. Na primeira, ele trata da formação de Machado de Assis como escritor, o seu modo muito próprio de se relacionar com o leitor e os controles do Estado Imperial da segunda metade do século XIX. Na última, ele analisa o conto "Capítulo dos chapéus", no qual Machado procura mostrar como, depois de cem anos, ainda continuam estranhos os valores da Revolução Francesa na vida social brasileira.

Palavras-chave: Prosa realista brasileira; Literatura e história; O conto de Machado de Assis.

ABSTRACT

The essay is shared, practically, in two parts. The first one shows the Machado de Assis learning as a writer, the singular relationship which he develops to the lector and the controls of the Imperial State in the nineteenth century. The last one analyses the short story "Capítulo dos chapéus", where Machado de Assis shows as, after a century, the French Revolutions values are still stranges in the Brazilian social life.

Keywords: Realistic brasilian narrative; Literature and history; The short story of Machado de Assis.

O que me facilitou a realização da primeira parte deste estudo foi a publicação recente, pela Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, dos dois primeiros tomos dos cinco previstos dos Contos Completos de Machado de Assis, organizados por Djalma Cavalcante.1 1 As páginas indicadas entre parênteses se referem a esses dois tomos do primeiro volume de Contos Completos de Machado de Assis, Djalma Cavalcante (Org.), Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2003. Ela tem problemas sérios, principalmente de revisão, que poderia ter sido bem mais cuidada. Porém, ela tem aspectos muito positivos: tudo indica que a edição é de fato completa, traz tantos os contos de Machado, como, na dúvida, os atribuídos a ele;2 2 Sobre as dificuldades dessa distinção e outras questões que levantarei neste estudo, ver o livro muito preciso e rico em informações de Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. traz as duas versões de um conto que o autor reescreveu, com alterações, para mim, significativas e que comentarei mais adiante; estabelece os textos a partir das publicações originais, apresentando sempre a versão da última edição revista pessoalmente por Machado, isto quando ele os republicou em livros, senão seguiu o texto original do periódico, corrigindo apenas os erros tipográficos e fazendo a atualização ortográfica; e, por fim, e o que foi para mim o mais importante, apresentou-os, nas palavras do organizador, "em rigorosa seqüência cronológica da publicação original", acrescentando no final de cada conto sempre uma nota, situando em que órgão da imprensa e quando foi publicado, e, depois, em que livro foi incorporado. Foi a possibilidade de acompanhar essa seqüência, que reproduz mais ou menos a das produções dos contos, que me possibilitou ver quais os problemas literários e não-literários que o autor enfrentava e quais as soluções que lhes foi dando. Infelizmente, como disse acima, só saíram até agora dois tomos, basicamente os dos contos reunidos no primeiro livro de Machado, Contos Fluminenses, e nos organizados postumamente, como o Histórias Românticas, da W. M. Jackson Editora, e as várias coletâneas reunidas, em 1956 e 1958, por R. Magalhães Jr., para a Editora Civilização Brasileira. Isto impõe limites ao trabalho, que pretendo continuar um dia.

Quase tudo o que Machado escrevia passava primeiro pela imprensa: artigos, crônicas, críticas, poesias, contos e romances-folhetins; antes de ganharem a forma de livros, eles eram publicados em jornais e revistas. Este fato, se devia estimular a produção do autor, pela publicação imediata, e contribuía para ampliar o seu público-leitor, trazia também limites, que eram dados pelo próprio leitor a quem se destinavam as publicações, principalmente as mulheres da família burguesa brasileira da segunda metade do século XIX. Porém, as restrições maiores talvez não viessem delas, pois, como tentaremos mostrar, o ponto de vista crítico de boa parte dos contos lhes era mais favorável do que aos homens. Sobre a visão aguda que Machado tinha da condição feminina, John Gledson já nos chamou a atenção, na apresentação da sua antologia de contos do autor.3 3 John Gledson, "Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo", in Contos/uma antologia Machado de Assis, 2v. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Todo o esforço de Machado, já nesses seus primeiros contos, parece se dar no sentido de apreender a mulher na sua integralidade, dotada igualmente de corpo e alma, quer dizer: não mais a mulher romântica altamente idealizada, etérea e espiritualizada; nem a Eva dominada pela densidade corporal, por isso mesmo mais sujeita às tentações demoníacas ou aos impulsos fisiológicos. Dessa maneira, integrando no seu ser corpo e alma, Machado procurava fugir dos dois estereótipos da época, o romântico e o naturalista, que estão simbolicamente representados nos ícones da casa de Conceição, personagem do conto "Missa do Galo": os quadros da sala, do espaço entre o público e o privado, "Um representava 'Cleópatra'; não me recordo do assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos", os quais presidem a forte atração erótica entre Conceição e Nogueira; e, outro, a escultura que deveria estar no quarto, "Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório".4 4 Machado de Assis, Obra completa, v.II. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1974, p.610. Era para esta que Conceição deveria orar na solidão, como naquela noite de Natal, festa familiar por excelência, mas na qual o marido estava na casa da outra. Entre a puta cultuada no espaço mais visível da casa, na sala, e a santa parideira (como a própria Conceição era chamada, "a santa", além do seu nome), escondida no recôndito do oratório, a mulher de Machado parece procurar um lugar impossível, que está fora, pelo menos da visão e da cabeça dos homens. Por essa razão, a vigilância censória maior das suas publicações talvez viesse dos pais e maridos, atentos quanto à forma de tratamento não só dos assuntos da moralidade familiar, como também de qualquer tema mais sério, principalmente os da vida política e institucional, campos exclusivos das preocupações masculinas, e objeto igualmente da crítica do autor.5 5 Esta observação é feita por Jean-Michel Massa, mas ele restringe o seu alcance aos aspectos da moralidade familiar: " O Jornal das Famílias, submetido à constante vigilância dos maridos e dos pais, que fiscalizavam as leituras de suas esposas e de suas filhas, devia além disso agradar às leitoras e alimentar as suas fantasias". Op. cit., p.541. Quem escrevia às revistas reclamando dos assuntos e da forma da sua abordagem eram homens, como um que se assinava como "Caturra" e acusava de imoralidade o conto "Confissões de uma viúva moça".

O elemento da vida política e institucional que deve ser levado em conta, era a vigilância censória do poder Imperial e a dependência dos intelectuais da sua proteção e tutela, o que tornava sempre conveniente a manutenção do seu agrado (infelizmente, isto não se restringiu ao Império; quem viveu aqui nos anos recentes, sabe de quanta maldade o Estado é capaz aos desafetos e de quantos benefícios aos afetos). Sobre isso é muito interessante apreciar uma alegoria que Machado fez do Segundo Império, bastante explícita e com um fundo crítico e irônico muito forte; tanto, que ele não a reeditou em livro. Ela está no conto "A vida eterna", de 1870, onde ele procura também contextualizar o tema fáustico, com Mefistófeles se encarnando num Estado e num regente caricatos.6 6 É interessante notar que esse conto foi publicado justamente num momento em que Machado começava a ser agraciado (e, com isso, aparentemente cooptado) pelo Estado Imperial, o que deveria serenar o seu espírito liberal e combativo, em prol de uma atitude mais conciliatória. Era assim que Jean-Michel Massa interpretava a mudança da sua ação jornalística e literária nesses anos, e tentarei mostrar que a sua atitude era outra: "Na verdade, o pacto de reconciliação com o poder estava assinado. Algumas semanas antes da sua nomeação para o Diário Oficial, em 16 de março de 1867, Machado de Assis foi agraciado com o título de cavaleiro da Ordem da Rosa. Pudemos consultar, no Arquivo Nacional, os documentos que se vinculam a essa ordem. Desde 1865, os que se distinguiam no campo de batalha recebiam a Ordem do Cruzeiro, que recompensava os feitos da guerra, enquanto que a Ordem da Rosa era de preferência atribuída aos civis", op. cit., p.568. A alegoria é tão explícita, que, à certa altura, um personagem se corrige e se refere ao próprio Estado ali representado: "— O Tobias não podia encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por toda a cidade, que digo? por todo império" (grifo meu). Ele é alegorizado como um palacete de velhos, "eram todos velhos, como o mordomo e o lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também", regido por um tal de Tobias. Este aparece como uma figura ridícula e demoníaca, como um monarca fantasiado com as cores da nacionalidade, em cujo retrato o autor dissemina uma série de indicativos do Império brasileiro, que vale a pena apreciarmos:

Já disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e vi que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo e um colete verde, cores estas que se estão bem numa bandeira, não se pode com justiça dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.

As feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos. As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando tudo uns cabelos grisalhos e em desordem. (p.716)

Esse reduto para onde eram conduzidos os escolhidos, tinha no seu portal, como guardiães, justamente as figuras de Mercúrio e Minerva, simbolizando explicitamente a união do comércio com a inteligência, estando esta subordinada ao primeiro:

Subimos eu e ele, por uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam duas pequenas estátuas representando Mercúrio e Minerva. Quando chegamos ali o meu companheiro disse-me apontando para as estátuas.

— São emblemas, meu caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria; Mercúrio, sou eu, porque representa o comércio.7 7 O tema da mercantilização da inteligência (e do teatro e da literatura) é mais freqüente do que parece em Machado de Assis. Num outro trabalho, já analisei como o autor o embute numa cena do "Conto de escola". Ver "O ponto de vista da mercadoria na Literatura Brasileira", in Crítica Marxista, n.17, out. 2003. Rio de Janeiro: Ed. Revan. Numa das "aquarelas" que Machado escreveu para O Espelho, que ele chama de o Fanqueiro literário, ele observa: "O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência". Cf. o mesmo livro de Jean-Michel Massa, em especial p.267.

Eusébia, filha de Tobias, era apresentada como uma jovem deslumbrante com quem o velho escolhido para fazer parte da irmandade senil deveria se casar, como uma espécie de recompensa pela adesão ao clube imperial. Porém ela era apenas um engodo usado para a atração e sacrifício da vítima. O Estado Imperial é representado como uma grande águia falsa, "uma grande águia de madeira fingindo ser bronze", que levava um espelho no bico. Ela ficava no alto e na parte central do salão do edifício, com os seus olhos agudos vigilantes, pairando acima de todos e para onde todos deveriam olhar e se reconhecer, sendo esta a função do espelho: a de que cada particular se visse representado na universalidade e esta fosse vista como a suma das particularidades. Não seria demasiado dizer que se tratava de um simulacro do Estado hegeliano-napoleônico, pois ele não era representado como o Estado de um senhor dos senhores (como tinha sido o de Frederico, o Grande, e que, segundo se diz, Bonaparte o relegara ao museu), mas um "hieróglifo da razão" que realizava a síntese do particular com o universal, na medida em que ele espelhava o conjunto das particularidades e cada indivíduo se identificava na universalidade.8 8 "Na medida em que o Estado é que é o Espírito objetivo, o indivíduo propriamente dito somente tem objetividade, verdade ética e social, Sittlichkeit, enquanto membro do Estado. A união enquanto tal é ela própria o conteúdo e o fim verdadeiros, e a destinação dos indivíduos é levarem uma vida universal. Todas suas outras satisfações particulares, suas atividades, seus tipos de comportamento, etc., têm essa realidade substancial e universal ao mesmo tempo como ponto de partida e como resultado." Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, in Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey, Hegel e a Sociedade. São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.129. A falsidade da águia deveria se dar por conta dela imitar uma universalidade apenas para alguns poucos anciãos eleitos, os velhos, portanto, uma universalidade muito singular:

Nunca me há de esquecer a vista da ala apenas se me abriram as portas. Tudo ali era estranho e magnífico. No fundo, em frente da porta de entrada, havia uma grande águia de madeira fingindo bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e preparando-se como para voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às garras, conservando assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de parede.9 9 Não era a primeira vez que Machado se utilizava do símbolo da águia para representar o império napoleônico. Ele o usa nesta sua poesia da juventude, consagrada ao "Grand" Napoleão, para contrastá-lo com "le Petit", Napoleão III, nas mãos de quem tanto havia sofrido o seu amigo proscrito por ter participado das barricadas de 48, em Paris, Charles Ribeyrolles: "Sobre a escarpada rocha — levantada/ Na vaga — como um túmulo marinho,/ sob eterno luar,/ César — desce como águia derrubada!/ No seio agora desse estéril ninho/ É força repousar!" Cit. in Jean-Michel Massa, op. cit., p.230.

A singularidade da realidade política gerada por essa falha é, em vez do homem integral realizado pelo Estado universal homogêneo, justamente o seu oposto, um sujeito mutilado. E assim é descrito o fim daqueles que eram selecionados e atraídos para participar da irmandade, atravessando o portal da união da inteligência com o comércio. Ela não poderia ser mais explícita:

As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato.

— Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo; venham facas.

Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis; o coronel cortar-me ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de cabidela.

A exposição imediata pela imprensa e a vigilância, tanto da sociedade senhorial-patriarcal como do poder imperial tutelar, fizeram com que o autor, para não se render às expectativas dominantes, buscasse uma forma de narrar indireta, que, além de ocultar os juízos tirados dos fatos, lhe permitisse incubar nos elementos simbólicos das narrativas a possibilidade de uma outra leitura, mais profunda, crítica do seu tempo, que está longe ainda de ser inteiramente decifrada. O que deverá distinguir esta minha leitura de outras, em particular da psicanalítica, é que procurarei apreciar o desenvolvimento dessa estratégia como uma busca consciente do autor. Depois da crítica de Machado procurar na sua biografia os segredos da obra, e, num outro momento, de investigar nas dobras dos traços estilísticos o latente a ser revelado, tentarei dar uma outra volta no parafuso, visando a integrar vida e obra, tempo do autor e elaboração literária. É este o objetivo da leitura, entender o método de composição de Machado como um trabalho de escritor, de um sujeito crítico e reflexivo interessado em dar uma resposta literária às inquietações do seu tempo, no caso, de fazer ver com toda a veemência, o que não poderia nem deveria ser mostrado, embora estivesse no campo disseminado da ética social e à vista de todos.

O que se nota desde os primeiros contos de Machado é que ele se esforça para combinar uma observação realista, crítica das práticas sociais e intelectuais, com uma trama ficcional bem urdida, romanesca, compondo-se quase sempre em torno das dificuldades e dos obstáculos do encontro e da realização amorosa. É recorrente nos contos o jogo que faz o narrador com a expectativa de "romance" do leitor, e a sua intenção de autor de dizer a realidade. Esses dois aspectos opostos, que conduziriam a narrativa para direções distintas, uma, realizando a expectativa do leitor, e outra, as intenções do narrador-autor, romance e realidade, aparecem nos contos dissociados e como difíceis de serem combinados. O resultado, sem dúvida, é de algo desconjuntado, desconexo, que se mistura, mas não se dissolvem efetivamente um no outro. Assim, os contos se iniciam com observações realistas sobre as práticas sociais, mas logo depois cedem às aspirações que seriam do leitor e desenvolve uma trama ao seu gosto de intrigas romanescas. Exemplar é o conto de 1864, publicado no Jornal das Famílias, "Virginius (narrativa de um advogado)". É a história do amor do filho de um senhor patriarcal, protetor e generoso — "Olham-no todos como se fora um Deus" e não por acaso era chamado de Pai de Todos, "Pio não tem escravos, tem amigos" —, pela filha de um agregado, Julião, "a mulatinha mais formosa". O conto é armado de modo que as distâncias e as barreiras à realização desse amor ficassem bem visíveis e realistas:

Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece desigualdades nem condições. Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário Carlos ir cursar as primeiras aulas.

Trouxe o tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa, já mulher, podia avaliar os nobres esforços de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo separava o filho do protetor da filha do protegido. (p.98)

O interessante no conto é que o impedimento à realização desse amor não vem do patriarca, que poderia não querer ver o seu filho único casar-se com a filha "mulatinha" de um pobre agregado, mas vem do próprio filho, que, apesar de bacharel, torna-se um caçador: "Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos". É o poder desmesurado do filho, de estender o seu domínio e impor a sua vontade sobre tudo e todos, herdado do pai, que faz com que ele mude a perspectiva do seu afeto, do amor por uma mulher, para a posse de uma presa. Quando Elisa relata ao pai o fato é assim que o faz: "O Sr. Carlos, em quem comecei anotar mais amizade que ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele poderia me dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras" (grifo meu). E ela continua, dizendo que, diante da sua reação adversa, ele lhe teria afirmado: "Hás de ser minha!" (grifo meu). O conto é armado desse modo, com intenso realismo, mas depois se desenvolve como "romance". Para reparar a ordem ameaçada no desenvolvimento do conto, os crimes são punidos, os maus castigados e os bons compensados na justa medida do que cabia a cada um.

Em 1866, Machado de Assis faz uma experiência que considero um passo significativo. Ele reescreve um conto que havia publicado em 1862, na revista literária O Futuro, com o título "O país das quimeras", sobre um poeta que era obrigado, para sobreviver, a vender a poesia que escrevia: "Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda no pescoço" (p.336). Era uma sátira escrita na terceira pessoa, que de certo modo alegorizava os maus costumes do país (chamado de "o reino das bagatelas") revelados ao poeta através de uma viagem maravilhosa, onde ele observa o apego às fantasias como fuga e compensação da dura realidade: o culto da aparência, a vaidade, a moda, as formalidades, as exterioridades, o fumo, a irrelevância intelectual dos filósofos etc. Ao reescrevê-lo, quatro anos depois, Machado faz no conto pelo menos três alterações importantes. Muda o título de "O país das quimeras" para "Uma excursão milagrosa", deixando com isso de chamar a atenção do leitor para o objeto alegorizado com intenções satíricas, para alertá-lo de quanto foi revelador para o herói a viagem feita. Assim, a sátira deixa de ser direta, de responsabilidade do autor-narrador para o esclarecimento do leitor. Ela passa a ser mediatizada pelo relato do próprio herói, ele é que vive o milagre da revelação e tudo o que é dito é de sua responsabilidade. É esta a segunda e mais importante mudança, no núcleo da narrativa, quando passa da terceira para a primeira pessoa, e é o herói que toma a palavra e continua o relato: "Aqui deixa de falar o autor para falar o protagonista" (p.340, grifo meu). Com isso, o autor-narrador se oculta e se isenta da responsabilidade dos exageros que a sátira se permite para as suas finalidades críticas. E a terceira alteração e decisiva se dá no final da narrativa, que é mais desenvolvido e chama a atenção para o ganho de visão que a viagem fantástica propiciou ao herói, mas ao mesmo tempo ressalta a lição maior que teve o autor no percurso narrativo, o que o levou às mudanças com a nova forma de narrar, como a de se ocultar e fugir às retaliações dos atingidos pela crueza das verdades reveladas:

Desde então [Tito, o poeta] adquiriu um olhar de lince, capaz de descobrir, à primeira vista, se um homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica.

Não há vaidade que possa com ele. Mal a vê lembra-se logo do que presenciou no reino das Bagatelas, e desfila sem preâmbulo a história da viagem.

Daqui vem que, se era pobre e infeliz, mais infeliz e pobre ficou depois disto.

É a sorte de todos quantos entendem dever dizer o que sabem; nem se compra por outro preço a liberdade de desmascarar a humanidade.

Declarar guerra à humanidade é declará-la a toda gente, atendendo-se a que ninguém há que mais ou menos deixe de ter no fundo do coração esse áspide venenoso.

Isto pode servir de exemplo aos futuros viajantes e poetas, a quem acontecer a viagem milagrosa que aconteceu ao meu poeta.

Aprendam os outros no espelho deste. Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem dizer o menos que possam as suas descobertas e opiniões. (p.348, grifo meu)10 10 Texto onde ressoam estas palavras do Fausto ao seu criado Wagner: "Quem sabe o próprio nome dar às cousas?/ Os poucos que jamais o compreenderam/ E que insensatos, descobrindo o peito,/ Pensar e sentimento ao vulgo abriram,/ Na fogueira e na cruz o têm expiado". Goethe, Fausto, trad. de Agostinho D'Ornellas. Coimbra: Atlântida, 1958, vs. 605-609, p.37.

Este final parece dizer que quem mais aprendeu não foi tanto o poeta, mas o autor, e que, se alguém tinha de ficar pobre como conseqüência das verdades reveladas, que fosse o herói-poeta, por isso mesmo herói e poeta, e não o autor, que agora aprendeu a grande lição de que deveria se ocultar. Desse modo, "a viagem milagrosa", foi muito mais do autor do que do protagonista, apesar de todas as maravilhas que este pôde observar, pois Machado encontrou uma forma de continuar revelando todas as verdades que via, sem sofrer disso as suas tristes conseqüências, principalmente as de ficar pobre e infeliz, sem poder continuar vendendo a sua mercadoria. Como resultado literário, penso eu, que a opção pela narrativa na primeira pessoa, em Machado pelo menos, não tem só a função de relativizar o peso de verdade dos fatos narrados, trocando a verdade pela versão, mas adquire também uma função específica: a de ocultamento do autor, de forma que ele possa representar e expressar os juízos sem sujeitar-se aos prejuízos decorrentes de um Estado tutelar e uma consideração social fundada num estatuto senhorial.

Teríamos ainda muito que aprender com o aprendizado do autor, mas devo dar agora um salto de quase duas décadas, o que pode ser pedagógico e em consonância com o nosso assunto, a Bildung de um escritor e de uma heroína. A pedagogia é a do contraste dos primeiros contos com este, "Capítulo dos chapéus", do livro Histórias sem Data, de 1884, de um Machado já plenamente maduro, talvez sem muito mais que aprender, mas ainda capaz do espanto diante do mistério revelado.

Uma das coisas que mais salta aos olhos do leitor em todas essas histórias de Machado são os processos de redução e mutilação, que muitas vezes se confundem, da pessoa no ambiente social em que as situa e que ele reproduz estilizadamente no texto. Dificilmente um protagonista é apresentado, homem ou mulher, sem que sejam referidos quantos contos de réis cada um tem. Ao lado do bom ou mau caráter e da mulher mais ou menos pura o número de contos de réis é sempre uma sombra que os acompanha e dá a dimensão das suas pessoas.11 11 Este é um fato interessante de se analisar: como Machado se refere à fortuna de cada um mais pela quantidade de contos que tem do que pelas propriedades, como casas, terras e escravos, no que se constituía boa parte das fortunas no tempo. Isto parece se dever não tanto ao maior desenvolvimento da economia monetária na época e à constituição de uma burguesia de rentistas no Rio de Janeiro, como ao fato de que a redução do sujeito concreto a um número abstrato de contos muda com a quantificação a qualidade também do sujeito. Se a terra e os escravos dão nobreza e aristocratizam, o dinheiro venaliza, que é a sua maior qualidade, pelo alto poder corrosivo que possui. Este processo de hipostasia revela como se tem que ter muito cuidado quando se tentar usar o texto de Machado como documento bruto e não como elaboração literária filtrada pelo ângulo de visão do autor. Nesse sentido é exemplar o conto "Luís Soares": quando o protagonista perde a sua fortuna e fica reduzido a "seis contos", torna-se não só pobre, como também perde a autonomia, pois, para trabalhar, não bastam as qualidades ou os méritos, ele tem que pedir uma recomendação ao tio para um cargo público, vai morar na sua casa como agregado e, para aspirar a sua fortuna como herdeiro, tem que comprometer mais ainda a sua independência futura, aceitando casar-se com a prima. Esta, a princípio, tem pouco atrativo (e fortuna) para ele, mas, quando herda trezentos contos, torna-se irresistível. Aos olhos dos homens mais do que das mulheres a pessoa de cada um se reduz ao número de contos que possui e é ele que dá a medida do caráter e da autonomia, que podem ser usados tanto para o bem como para o mal. Ao lado desse processo de redução, vemos Machado acrescentar um outro, o de mutilação da integridade do sujeito, reduzindo-o a uma parte, um pedaço, um fragmento, "Uns braços", os joelhos redondos de Nhã-loló, do Brás Cubas,12 12 É o que o atrai na moça: "Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie". Machado de Assis, Obra completa, v.I. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1971, Cap. XCVIII, Suprimido, p.603. ou um chapéu. Com isto o nosso salto pedagógico está dado e caímos de cabeça no "Capítulo dos chapéus".

Como já apreciei num outro conto de Machado, no "Singular ocorrência", o processo formal-estruturante de ocultamento e revelação, e de troca da posição do autor, afastando-se do narrador e deixando o leitor identificar-se consigo mesmo na pessoa do herói-narrador,13 13 V. Luiz Roncari, "Ficção e História: o espelho transparente de Machado de Assis", in Teresa, revista de literatura brasileira, n.1, 2000, São Paulo, USP/34 Letras, p.39. tentarei ver agora esse outro processo de composição de seus contos: como ele trabalha a impossibilidade de realização do indivíduo, no sentido bem hegeliano do termo, enquanto síntese do particular com o universal, na vida social brasileira, através dos dois recursos estilísticos acima referidos, com profundos resultados críticos: os de redução e mutilação. Como muitas outras coisas em Machado, eles não são fáceis de serem percebidos, justamente por estarem demasiadamente evidentes.

O título do conto escolhido, "Capítulo dos chapéus", foi tirado de uma pequena farsa de Molière, Le Médecin Malgré Lui,14 14 Cf. Molière, Oeuvres Complètes, v.II. Paris: Gallimard, 1971, p.219. cujo trecho é usado como epígrafe.15 15 Essa farsa tem muitos pontos rabelaisianos, inclusive a tirada humorística usada na epígrafe. Existe uma muito semelhante no Gargântua: "— Para que uso dizeis essas belas horas? Disse Gargântua. — Para o uso de Fecan [convento da região de Caux], disse o monge, com três salmos e três lições, ou coisa nenhuma quem não quiser. Jamais me sujeitei às horas; as horas são feitas para o homem, e não o homem para as horas. Portanto, faço com elas o que se faz com o loro do estribo, eu as encurto ou as alongo, como bem me parece. Brevis oratio penetrat coelos, longa potatio evacuat scyphos [uma prece curta entra no céu, um trago longo esvazia os copos]. Onde está escrito isso? — Bofé, disse Ponocrates, eu não sei, meu fradezinho, mas sei que vale muito. — Nisso nós nos parecemos, disse o monge. Mas venite apotemus [vinde beber]." François Rabelais, Gargântua e Pantagruel [os cinco livros], trad. de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Vila Rica, 1991, p.202. Veremos também que o conto mantém um diálogo profundo com ela. Na farsa, Sganarelle, depois de citar aleatoriamente Hipócrates, "Hippocrate dit... que nous nous couvrions tous deux", Géronte lhe pergunta: "Hippocrate dit cela?". Sganarelle lhe diz que sim e Géronte quer saber então em que capítulo, é quando o falso médico lhe responde: "Dans son chapitre des chapeaux". O tema da farsa é o mesmo do conto, o da vingança da mulher: Martine, depois de ser espancada com um bordão pelo marido beberrão, Sganarelle, para se vingar, diz a dois serviçais que procuram um médico para curar a mudez da filha do senhor para quem trabalham, Géronte, que o marido é um médico excepcional, mas que ele só o admite debaixo de bordoadas. É o que os criados fazem, espancam-no até que confesse ser esse médico excepcional, e acabam levando-o a Géronte. Este é um pai leviano que pretende casar a filha, Lucinde, por interesse e não seguindo as inclinações pessoais da moça, que ama Léandre. Como reação, Lucinde pára de falar; o pai pensa que é doença e nenhum médico conhecido consegue curá-la. Esta é a intriga que faz com que se encontrem Sganarelle e Géronte, um marido espancador e um pai prepotente, nos mostrando que tanto na camada humilde da sociedade, na dos criados, como na elevada, na senhorial, é a mulher a sua principal vítima. Como nessa farsa toda a linguagem é maliciosa e tem sempre um segundo sentido, a alusão de Sganarelle ao chapéu que os cobria, "Hippocrate dit... que nous nous couvrions tous deux" (em francês o verbo couvrir tem também, como no português, a acepção do ato da fecundação da fêmea pelo macho, assim como o de disfarçar, pois é como Sganarelle aparece diante de Géronte, por artimanha da mulher, disfarçado de médico com um chapéu pontudo) na comédia de Molière o chapéu poderia estar como sinédoque da mulher: seriam elas que estariam agora cobrindo os homens, infernizando as suas vidas ou, então, não saindo das suas cabeças, como preocupação, no caso de Géronte, ou objeto do desejo, no de Sganarelle: ele, sempre que pode, tenta apertar os peitões de uma ama de leite da casa de Géronte, a nourrice. Seja como for, o "capítulo dos chapéus" de Hipócrates, na farsa, tem uma referência fisiológica, que trata do intercâmbio físico entre os homens e deles com o mundo, o que faz um contraponto com o sentido metafísico que lhe procura atribuir no conto o marido de Mariana, Conrado Seabra. Este diz que o chapéu não é um objeto de livre-escolha do homem, mas um decreto ab eterno, que "ninguém o pode trocar sem mutilação" e que talvez "nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu...". Nessa relação determinista (ele lembra Darwin e Laplace) e sacramentada ele parece estar se referindo ao casamento e ao risco de inversão que nele se processa com a mulher, que, de objeto do desejo, procura trocar de lugar com o homem, o verdadeiro sujeito. Se foi essa a intenção de Machado, estaríamos inteiramente dentro do nosso tema, que é o da oscilação da mulher entre o corporal e o espiritual, o mundano e o santo, como já enunciei mais acima, ao falar da Conceição, hesitando entre a puta e a santa, sem encontrar a possibilidade de uma outra alternativa.

No conto de Machado se processa mais uma inversão com relação à farsa maliciosa: o chapéu deixa de ser sinédoque da mulher para ser do homem. Se, num primeiro momento, o chapéu significaria aquilo que ocupa obsessivamente a cabeça dos homens, como a do Conrado, que usa sempre o mesmo chapéu desde que se casou, "desde cinco ou seis anos, que tantos eram os do casamento", e representaria a que estariam reduzidas as mulheres na sociedade patriarcal, objeto de posse; num segundo momento do conto isto se inverte e ele readquire a sua conotação convencional, de símbolo masculino. A uma certa altura, as duas amigas, Mariana e Sofia, passam a se referir aos homens, metonimicamente, como chapéus:

Da janela podia gozar a rua, sem atropelo. Recostou-se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus masculinos, parados, começaram a fitá-las; outros, passando, faziam a mesma cousa. Mariana aborreceu-se da insistência; mas, notando que fitavam principalmente a amiga, dissolveu-se-lhe o tédio numa espécie de inveja. Sofia, entretanto, contava-lhe a história de alguns chapéus, — ou, mais corretamente, as aventuras. Um deles merecia os pensamentos de Fulana; outro andava derretido por Sicrana, e ela por ele, tanto que eram certos na Rua do Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e três horas. Mariana ouvia aturdida. Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma gravata, e possuía um ar entre elegante e pelintra, mas...

— Não juro, ouviu? Replicava a outra, mas é o que se diz.

Mariana fitou pensativa o chapéu denunciado. Havia agora mais três, de igual porte e graça, e provavelmente os quatro falavam delas, e falavam bem. Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeça para o outro lado, tornou logo à primeira atitude, e afinal entrou. (p.406-7) 16 16 As páginas indicadas entre parênteses se referem a Machado de Assis, Obra completa, v.II.

A naturalidade da expressão é dada pelo fato das amigas estarem olhando de cima para baixo, da janela, assim, elas só poderiam mesmo ver os chapéus dos homens; mas, sutilmente, na freqüência da repetição do uso da palavra chapéu, ela vai se transformando numa sinédoque com intenção redutora, de modo a resumir os sujeitos aos seus objetos de uso, ou seja, elas fazem com eles o que costumeiramente eles faziam com elas: as duas revoltosas os reduzem também a objetos. Estamos portanto num conto que nos fala de uma luta de vingança ou de libertação entre homens e mulheres, entre senhores e escravos, "restituir-lhe a posse de si mesma", diz Sofia. No mundo Antigo pagão, segundo Hegel, na Fenomenologia do Espírito, o conflito se dava entre homens e mulheres, consideradas tão irresponsáveis (idiótes) quanto as crianças e os escravos. Nesse mundo, elas encarnariam essencialmente a particularidade (a família, a casa, note-se o apego que tinha Mariana à ordem caseira e a aversão ao "tumulto", "confusão das gentes" do mundo da rua) e os homens a universalidade (a política e a coisa pública, a ordem geral, Conrado Seabra pertencia ao "Instituto da Ordem dos Advogados").17 17 Cf. Hegel, La Phénoménologie de l'Esprit, v.I, trad. de Jean Hyppolite. Paris: Aubier, 1983, cap. IV, p.145. O fato de Conrado Seabra pertencer ao "Instituto da Ordem dos Advogados" não é um detalhe de menor importância, ao contrário. Para Hegel, é justamente a corporação que faz a mediação entre a família e o Estado, o que afirma o seu caráter de homem público e torna-o de fato um cidadão. É, portanto, mais um traço significativo de diferenciação, para distinguir o marido da domesticidade da mulher. É este o comentário de Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey sobre a corporação: "É por intermédio do seu pertencimento à corporação que o indivíduo particular, sujeito econômico da sociedade civil, torna-se cidadão do Estado, sujeito político no sentido estrito". E, numa observação ao Parágrafo 254 do Princípios da Filosofia do Direito, ele diz: "O caráter sagrado do casamento e a honra inerente à corporação são os dois elementos em torno dos quais gira a desorganização da sociedade civil burguesa". Hegel e a Sociedade. São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.60 e 127. Alexandre Kojéve, comentando a Fenomenologia, diz o seguinte: "A razão última do caráter criminoso de toda ação na sociedade antiga é a separação absoluta entre os sexos, e é a causa última da ruína do mundo pagão (mulher = particularidade das universalidades; homem = universalidade das particularidades)".18 18 Alexandre Kojève, Introdução à Leitura de Hegel, trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 2002, p.100. Tínhamos, portanto, uma ordem fundada na inteira desigualdade: a mulher, como a face doméstica dos homens, e estes, como a face pública delas. Quanto a isso, apesar das fundas diferenças, esse universo guarda similaridades com aquele que observamos no conto de Machado, talvez dadas pela vigência em ambos da escravidão. No mundo machadiano, a fuga das perspectivas diferentes e desiguais traçadas pela ordem para cada sexo, nos planos do privado e do público, adquire também um caráter criminoso. Porém, a intenção do autor, parece ser a de enunciá-la como a de um mundo pré-Revolução Francesa (o que lhe permite o diálogo com a farsa de Molière, um autor do século XVII, e não com um romance de Balzac), que não a incorporou ainda um mínimo na vida dos seus homens, e, a meu ver, não por acaso ela é evocada nos seus três momentos mais significativos (assim como a nossa revolucionária Mariana recorda a Marianne com o barrete frígio no alto das barricadas), que é o que veremos a seguir.

Quando Mariana decide reagir ao fato do marido não aceitar um pedido seu, que vinha de uma observação do pai, um tradicionalista "aferrado aos hábitos", de trocar o chapéu velho, que, segundo o sogro, parecia "torpe" em comparação "com outros chapéus altos de homens públicos" (p.402-3, grifo meu), a sua primeira atitude é a de sair e procurar uma amiga, Sofia. Esta, sábia como o próprio nome e a ave de Minerva (e por duas vezes ela é comparada não à coruja, mas ao gavião, portanto, também selvagem), faz a sua primeira observação dizendo que "a culpa não era do marido" (p.404). Obviamente, querendo dizer-lhe que era dela, por aceitar voluntariamente a servidão e não lutar para pôr fim àquela relação entre senhor e escravo. Sofia, em sua casa, já havia invertido a relação e era a sua vontade que imperava: "Não lhe peço uma cousa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo" (p.404). Era essa a "harmonia" nova que Sofia havia estabelecido em casa, e "Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. A rebelião de Eva embocava nela os seus clarins" (p.404, grifo meu). Nós veremos que essa simples inversão da ordem, com a mulher passando a freqüentar a rua e a Câmara dos Deputados, os lugares do público e da política, portanto, da universalidade, acabava tornando os dois, marido e mulher, criminosos aos olhos do outro (da consideração social), ela "mulher pública" (a prostituta) e ele doméstico (o corno manso), o que não resolvia o problema.

Um pouco adiante, Sofia, pelo fascínio que exerciam as suas palavras e atitudes, é comparada ao mesmo tempo ao demônio e a Bonaparte, aquele que, aos olhos de Hegel, teria promovido a síntese entre o particular e o universal, na figura do cidadão, o trabalhador-soldado: "Mariana aceitou; um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar, virtude de Bonaparte, e não lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava cansada de viver cativa. Também queria gozar um pouco, etc., etc." (p.405, grifo meu).19 19 Sobre o significado de Napoleão, tanto como ponto de referência para a estruturação do juízo crítico de Machado sobre a vida social e institucional brasileira, como para se apreciar a ojeriza que a nossa camada dominante escravista tinha dele, seria interessante analisar o Capítulo XII, "Um episódio de 1814", do Memórias Póstumas de Brás Cubas, que se passa num banquete organizado pela família do herói para celebrar a sua derrota. E quando Mariana acompanha Sofia para a rua e a Câmara dos Deputados, os lugares do público e dos homens por excelência, Sofia convida-a ainda a ir também tirar retrato, e ela lhe responde:

— Já tenho muitos. E para quê? Para dá-lo "aquele senhor"?

Sofia compreendeu que o ressentimento da amiga persistia, e, durante o caminho, tratou de lhe pôr um ou dous bagos mais de pimenta. Disse-lhe que, embora fosse difícil, ainda era tempo de libertar-se. E ensinava-lhe um método para substrair-se à tirania. Não convinha ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de maneira que ele desse por si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de algumas semanas, três a quatro, não mais. Ela, Sofia, estava pronta a ajudá-la. E repetia-lhe que não fosse mole, que não era escrava de ninguém, etc. Mariana ia cantando dentro do coração a marselhesa do matrimônio. (p.406, grifos meus)

Sem dúvida, estamos aqui nos primórdios da dialética hegeliana do senhor e escravo, quando ainda o escravo, para libertar-se, pretendia destruir e não suprassumir o seu "senhor", tornando-se por sua vez senhor do senhor, reduzindo-o a seu escravo, como havia feito Sofia com o marido: "Sofia tinha consciência da sua superioridade"; o que também não satisfaria, se era a igualdade que se procurava. Foi essa talvez a lúcida percepção de Mariana, "a rola estava livre do gavião", a de que esse caminho a conduziria ao crime naquela ordem patriarcal, pois, os dois, ela e o marido, se tornariam criminosos e não cidadãos: "Achou que, bem pesadas as cousas, a principal culpa era dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara há tantos anos [desde que se casara com ela]? Também o pai era exigente demais..." (p.410, grifo meu).

Era esta a aporia, a mesma da Conceição, da "Missa do Galo": a solução pessoal não deixava a ela outro papel que os de puta ou santa, e é a este último que Mariana retorna, quando volta para casa, um ninho de aconchego e ordem, ironicamente saudado assim pelo autor: "Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regaço eterno" (p.410, grifo meu).

Quando ela chega em casa, convencida da sua aventura irresponsável, a única coisa que estava fora da ordem doméstica era um vaso, como se ele simbolizasse a ela e a sua saída para a rua e a assembléia, tentando ocupar o lugar do homem. Assim, o vaso, como ela, também deveria retornar ao seu lugar, e a ordem expressa que dá ao jardineiro é esta: "— João, bota este vaso onde estava antes". É assim que ela se dirige ao jardineiro, sem nenhum "por favor" ou "tenha a gentileza", mas no mesmo tom imperativo com que, talvez, o seu marido "autoritário e voluntarioso", segundo o narrador, se dirigisse também a ela. Machado, como grande leitor dos clássicos, sabia que a representação da mulher na sociedade patriarcal grega era a do vaso, onde o homem plantava a semente que iria perpetuar a linhagem masculina. E foi dos lábios do vaso (Pitos, piqos, ou: jarra para o vinho) de Pandora ("a boceta de Pandora", como Machado escreve algumas vezes20 20 Como aqui, na sua fase liberal-combativa, num artigo no Paraíba (de 26/06/1858) atacando um projeto do ministro Sales Torres Homem: "O projeto do Sr. Sales Torres Homem, o nosso Epimeteo moderno, será pois para nós o que foi para a Antigüidade mitológica, a boceta de Pandora". Ele usa o termo possivelmente derivado do francês bosse, "vasilha", que formou os diminutivos dialetais bosset, bousset e boussette. V. José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 2v. Lisboa: Ed. Confluência, 1956, p.377. ) que escapou o presente de grego que Zeus mandou aos homens, para desgraçar a vida deles, como vingança por ter sido enganado por Prometeu: "un mal, en qui tous, au fond du coeur, se complairont à entourer d'amour leur propre malheur [um mal, em que todos, no fundo do coração, se comprazerão em cercar de amor, a suas própria desgraça]".21 21 "La race humaine vivait auparavant sur la terre à l'écart et à l'abri des peines, de la dure fatigue, des maladies douloureuses, qui apportent le trépas aux hommes. Mais la femme, enlevant de ses mains le large couvercle de la jarre, les dispersa par le monde et prépara aux hommes de tristes soucis. Seul, l'Espoir restait là, à l'interieur de son infrangible prison, sans passer les lèvres de la jarre, et ne s'envola pas au dehors, car Pandore déjà avait replacé le couvercle, par le vouloir de Zeus, assembleur de nuées, que porte l'égide." Hésiode, Théogonie, Les Travaux et les Jours, Le Boucler, ed. bilíngüe, trad. de Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1951, p.89. Desse modo, ela aprendeu e se conformou em vez de se sacrificar, como se tivesse adquirido a lucidez de que o tempo do reconhecimento ainda não havia chegado para ela; tanto, que, no final, para a sua surpresa, quando o marido chega com um outro chapéu que não o de costume, ela o sente como se tivesse havido uma subversão promovida pelos ideais revolucionários da Ilustração: o seu reconhecimento como um sujeito com vontade e a sua aceitação pelo outro:

O espírito de Mariana recebeu um choque violento, igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe daria uma lauda de Voltaire entre as folhas da Moreninha [que já havia lido sete vezes] ou de Ivanhoe [dez vezes]... Era a nota desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. (p.410-1, grifo meu)

Isso acontecia justamente ao entardecer, com o crepúsculo, quando levanta vôo a ave de Minerva, e completava, numa seqüência invertida, os três momentos cruciais da Revolução Francesa: Voltaire, como o representante maior da formulação do seu ideário; a marselhesa, como o hino do momento da ruptura revolucionária com o Antigo Regime; e Bonaparte, como a encarnação do Estado que iria consolidá-la e universalizá-la. Mas nada soava mais estranho, no mundo social em que se passava a nossa história dos chapéus, escrita quase um século depois da Revolução, do que esses três passos fundamentais da nossa modernidade histórica. Assim, penso que o conto "Capítulo dos chapéus" também poderia se chamar "O caminho do triste esclarecimento de Mariana".

NOTAS

Artigo recebido em 03/2004. Aprovado em 10/2005

  • 1 As páginas indicadas entre parênteses se referem a esses dois tomos do primeiro volume de Contos Completos de Machado de Assis, Djalma Cavalcante (Org.), Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2003.
  • 2 Sobre as dificuldades dessa distinção e outras questões que levantarei neste estudo, ver o livro muito preciso e rico em informações de Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
  • 3 John Gledson, "Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo", in Contos/uma antologia Machado de Assis, 2v. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 4 Machado de Assis, Obra completa, v.II. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1974, p.610.
  • 7 O tema da mercantilização da inteligência (e do teatro e da literatura) é mais freqüente do que parece em Machado de Assis. Num outro trabalho, já analisei como o autor o embute numa cena do "Conto de escola". Ver "O ponto de vista da mercadoria na Literatura Brasileira", in Crítica Marxista, n.17, out. 2003. Rio de Janeiro: Ed. Revan.
  • 8 "Na medida em que o Estado é que é o Espírito objetivo, o indivíduo propriamente dito somente tem objetividade, verdade ética e social, Sittlichkeit, enquanto membro do Estado. A união enquanto tal é ela própria o conteúdo e o fim verdadeiros, e a destinação dos indivíduos é levarem uma vida universal. Todas suas outras satisfações particulares, suas atividades, seus tipos de comportamento, etc., têm essa realidade substancial e universal ao mesmo tempo como ponto de partida e como resultado." Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, in Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey, Hegel e a Sociedade São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.129.
  • 10 Texto onde ressoam estas palavras do Fausto ao seu criado Wagner: "Quem sabe o próprio nome dar às cousas?/ Os poucos que jamais o compreenderam/ E que insensatos, descobrindo o peito,/ Pensar e sentimento ao vulgo abriram,/ Na fogueira e na cruz o têm expiado". Goethe, Fausto, trad. de Agostinho D'Ornellas. Coimbra: Atlântida, 1958, vs. 605-609, p.37.
  • 12 É o que o atrai na moça: "Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie". Machado de Assis, Obra completa, v.I. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1971, Cap. XCVIII, Suprimido, p.603.
  • 13 V. Luiz Roncari, "Ficção e História: o espelho transparente de Machado de Assis", in Teresa, revista de literatura brasileira, n.1, 2000, São Paulo, USP/34 Letras, p.39.
  • 14 Cf. Molière, Oeuvres Complètes, v.II. Paris: Gallimard, 1971, p.219.
  • 15 Essa farsa tem muitos pontos rabelaisianos, inclusive a tirada humorística usada na epígrafe. Existe uma muito semelhante no Gargântua: " Para que uso dizeis essas belas horas? Disse Gargântua. Para o uso de Fecan [convento da região de Caux], disse o monge, com três salmos e três lições, ou coisa nenhuma quem não quiser. Jamais me sujeitei às horas; as horas são feitas para o homem, e não o homem para as horas. Portanto, faço com elas o que se faz com o loro do estribo, eu as encurto ou as alongo, como bem me parece. Brevis oratio penetrat coelos, longa potatio evacuat scyphos [uma prece curta entra no céu, um trago longo esvazia os copos]. Onde está escrito isso? Bofé, disse Ponocrates, eu não sei, meu fradezinho, mas sei que vale muito. Nisso nós nos parecemos, disse o monge. Mas venite apotemus [vinde beber]." François Rabelais, Gargântua e Pantagruel [os cinco livros], trad. de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Vila Rica, 1991, p.202.
  • 17 Cf. Hegel, La Phénoménologie de l'Esprit, v.I, trad. de Jean Hyppolite. Paris: Aubier, 1983, cap. IV, p.145.
  • O fato de Conrado Seabra pertencer ao "Instituto da Ordem dos Advogados" não é um detalhe de menor importância, ao contrário. Para Hegel, é justamente a corporação que faz a mediação entre a família e o Estado, o que afirma o seu caráter de homem público e torna-o de fato um cidadão. É, portanto, mais um traço significativo de diferenciação, para distinguir o marido da domesticidade da mulher. É este o comentário de Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey sobre a corporação: "É por intermédio do seu pertencimento à corporação que o indivíduo particular, sujeito econômico da sociedade civil, torna-se cidadão do Estado, sujeito político no sentido estrito". E, numa observação ao Parágrafo 254 do Princípios da Filosofia do Direito, ele diz: "O caráter sagrado do casamento e a honra inerente à corporação são os dois elementos em torno dos quais gira a desorganização da sociedade civil burguesa". Hegel e a Sociedade São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.60 e 127.
  • 18 Alexandre Kojève, Introdução à Leitura de Hegel, trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 2002, p.100.
  • 20 Como aqui, na sua fase liberal-combativa, num artigo no Paraíba (de 26/06/1858) atacando um projeto do ministro Sales Torres Homem: "O projeto do Sr. Sales Torres Homem, o nosso Epimeteo moderno, será pois para nós o que foi para a Antigüidade mitológica, a boceta de Pandora". Ele usa o termo possivelmente derivado do francês bosse, "vasilha", que formou os diminutivos dialetais bosset, bousset e boussette V. José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 2v. Lisboa: Ed. Confluência, 1956, p.377.
  • 21 "La race humaine vivait auparavant sur la terre à l'écart et à l'abri des peines, de la dure fatigue, des maladies douloureuses, qui apportent le trépas aux hommes. Mais la femme, enlevant de ses mains le large couvercle de la jarre, les dispersa par le monde et prépara aux hommes de tristes soucis. Seul, l'Espoir restait là, à l'interieur de son infrangible prison, sans passer les lèvres de la jarre, et ne s'envola pas au dehors, car Pandore déjà avait replacé le couvercle, par le vouloir de Zeus, assembleur de nuées, que porte l'égide." Hésiode, Théogonie, Les Travaux et les Jours, Le Boucler, ed. bilíngüe, trad. de Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1951, p.89.
  • 1
    As páginas indicadas entre parênteses se referem a esses dois tomos do primeiro volume de
    Contos Completos de Machado de Assis, Djalma Cavalcante (Org.), Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2003.
  • 2
    Sobre as dificuldades dessa distinção e outras questões que levantarei neste estudo, ver o livro muito preciso e rico em informações de Jean-Michel Massa,
    A juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
  • 3
    John Gledson, "Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo", in
    Contos/uma antologia Machado de Assis, 2v. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 4
    Machado de Assis,
    Obra completa, v.II. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1974, p.610.
  • 5
    Esta observação é feita por Jean-Michel Massa, mas ele restringe o seu alcance aos aspectos da moralidade familiar: "
    O Jornal das Famílias, submetido à constante vigilância dos maridos e dos pais, que fiscalizavam as leituras de suas esposas e de suas filhas, devia além disso agradar às leitoras e alimentar as suas fantasias". Op. cit., p.541.
  • 6
    É interessante notar que esse conto foi publicado justamente num momento em que Machado começava a ser agraciado (e, com isso, aparentemente cooptado) pelo Estado Imperial, o que deveria serenar o seu espírito liberal e combativo, em prol de uma atitude mais conciliatória. Era assim que Jean-Michel Massa interpretava a mudança da sua ação jornalística e literária nesses anos, e tentarei mostrar que a sua atitude era outra: "Na verdade, o pacto de reconciliação com o poder estava assinado. Algumas semanas antes da sua nomeação para o
    Diário Oficial, em 16 de março de 1867, Machado de Assis foi agraciado com o título de cavaleiro da Ordem da Rosa. Pudemos consultar, no Arquivo Nacional, os documentos que se vinculam a essa ordem. Desde 1865, os que se distinguiam no campo de batalha recebiam a Ordem do Cruzeiro, que recompensava os feitos da guerra, enquanto que a Ordem da Rosa era de preferência atribuída aos civis", op. cit., p.568.
  • 7
    O tema da mercantilização da inteligência (e do teatro e da literatura) é mais freqüente do que parece em Machado de Assis. Num outro trabalho, já analisei como o autor o embute numa cena do "Conto de escola". Ver "O ponto de vista da mercadoria na Literatura Brasileira", in
    Crítica Marxista, n.17, out. 2003. Rio de Janeiro: Ed. Revan. Numa das "aquarelas" que Machado escreveu para
    O Espelho, que ele chama de o
    Fanqueiro literário, ele observa: "O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência". Cf. o mesmo livro de Jean-Michel Massa, em especial p.267.
  • 8
    "Na medida em que o Estado é que é o Espírito objetivo, o indivíduo propriamente dito somente tem objetividade, verdade ética e social,
    Sittlichkeit, enquanto membro do Estado. A união enquanto tal é ela própria o conteúdo e o fim verdadeiros, e a destinação dos indivíduos é levarem uma vida universal. Todas suas outras satisfações particulares, suas atividades, seus tipos de comportamento, etc., têm essa realidade substancial e universal ao mesmo tempo como ponto de partida e como resultado." Hegel,
    Princípios da Filosofia do Direito, in Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey,
    Hegel e a Sociedade. São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.129.
  • 9
    Não era a primeira vez que Machado se utilizava do símbolo da águia para representar o império napoleônico. Ele o usa nesta sua poesia da juventude, consagrada ao "Grand" Napoleão, para contrastá-lo com "le Petit", Napoleão III, nas mãos de quem tanto havia sofrido o seu amigo proscrito por ter participado das barricadas de 48, em Paris, Charles Ribeyrolles: "Sobre a escarpada rocha — levantada/ Na vaga — como um túmulo marinho,/ sob eterno luar,/ César — desce como águia derrubada!/ No seio agora desse estéril ninho/ É força repousar!" Cit. in Jean-Michel Massa, op. cit., p.230.
  • 10
    Texto onde ressoam estas palavras do Fausto ao seu criado Wagner: "Quem sabe o próprio nome dar às cousas?/ Os poucos que jamais o compreenderam/ E que insensatos, descobrindo o peito,/ Pensar e sentimento ao vulgo abriram,/ Na fogueira e na cruz o têm expiado". Goethe,
    Fausto, trad. de Agostinho D'Ornellas. Coimbra: Atlântida, 1958, vs. 605-609, p.37.
  • 11
    Este é um fato interessante de se analisar: como Machado se refere à fortuna de cada um mais pela quantidade de contos que tem do que pelas propriedades, como casas, terras e escravos, no que se constituía boa parte das fortunas no tempo. Isto parece se dever não tanto ao maior desenvolvimento da economia monetária na época e à constituição de uma burguesia de rentistas no Rio de Janeiro, como ao fato de que a redução do sujeito concreto a um número abstrato de contos muda com a quantificação a qualidade também do sujeito. Se a terra e os escravos dão nobreza e aristocratizam, o dinheiro venaliza, que é a sua maior qualidade, pelo alto poder corrosivo que possui. Este processo de hipostasia revela como se tem que ter muito cuidado quando se tentar usar o texto de Machado como documento bruto e não como elaboração literária filtrada pelo ângulo de visão do autor.
  • 12
    É o que o atrai na moça: "Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie". Machado de Assis,
    Obra completa, v.I. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 1971, Cap. XCVIII,
    Suprimido, p.603.
  • 13
    V. Luiz Roncari, "Ficção e História: o espelho transparente de Machado de Assis", in
    Teresa, revista de literatura brasileira, n.1, 2000, São Paulo, USP/34 Letras, p.39.
  • 14
    Cf. Molière,
    Oeuvres Complètes, v.II. Paris: Gallimard, 1971, p.219.
  • 15
    Essa farsa tem muitos pontos rabelaisianos, inclusive a tirada humorística usada na epígrafe. Existe uma muito semelhante no
    Gargântua: "— Para que uso dizeis essas belas horas? Disse Gargântua. — Para o uso de Fecan [convento da região de Caux], disse o monge, com três salmos e três lições, ou coisa nenhuma quem não quiser. Jamais me sujeitei às horas; as horas são feitas para o homem, e não o homem para as horas. Portanto, faço com elas o que se faz com o loro do estribo, eu as encurto ou as alongo, como bem me parece.
    Brevis oratio penetrat coelos, longa potatio evacuat scyphos [uma prece curta entra no céu, um trago longo esvazia os copos]. Onde está escrito isso? — Bofé, disse Ponocrates, eu não sei, meu fradezinho, mas sei que vale muito. — Nisso nós nos parecemos, disse o monge. Mas
    venite apotemus [vinde beber]." François Rabelais,
    Gargântua e Pantagruel [os cinco livros], trad. de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Vila Rica, 1991, p.202.
  • 16
    As páginas indicadas entre parênteses se referem a Machado de Assis,
    Obra completa, v.II.
  • 17
    Cf. Hegel,
    La Phénoménologie de l'Esprit, v.I, trad. de Jean Hyppolite. Paris: Aubier, 1983, cap. IV, p.145. O fato de Conrado Seabra pertencer ao "Instituto da Ordem dos Advogados" não é um detalhe de menor importância, ao contrário. Para Hegel, é justamente a corporação que faz a mediação entre a família e o Estado, o que afirma o seu caráter de homem público e torna-o de fato um cidadão. É, portanto, mais um traço significativo de diferenciação, para distinguir o marido da domesticidade da mulher. É este o comentário de Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey sobre a corporação: "É por intermédio do seu pertencimento à corporação que o indivíduo particular, sujeito econômico da sociedade civil, torna-se cidadão do Estado, sujeito político no sentido estrito". E, numa observação ao Parágrafo 254 do
    Princípios da Filosofia do Direito, ele diz: "O caráter sagrado do casamento e a honra inerente à corporação são os dois elementos em torno dos quais gira a desorganização da sociedade civil burguesa".
    Hegel e a Sociedade. São Paulo: Discurso Ed., 1999, p.60 e 127.
  • 18
    Alexandre Kojève,
    Introdução à Leitura de Hegel, trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 2002, p.100.
  • 19
    Sobre o significado de Napoleão, tanto como ponto de referência para a estruturação do juízo crítico de Machado sobre a vida social e institucional brasileira, como para se apreciar a ojeriza que a nossa camada dominante escravista tinha dele, seria interessante analisar o Capítulo XII, "Um episódio de 1814", do
    Memórias Póstumas de Brás Cubas, que se passa num banquete organizado pela família do herói para celebrar a sua derrota.
  • 20
    Como aqui, na sua fase liberal-combativa, num artigo no
    Paraíba (de 26/06/1858) atacando um projeto do ministro Sales Torres Homem: "O projeto do Sr. Sales Torres Homem, o nosso Epimeteo moderno, será pois para nós o que foi para a Antigüidade mitológica, a boceta de Pandora". Ele usa o termo possivelmente derivado do francês
    bosse, "vasilha", que formou os diminutivos dialetais
    bosset,
    bousset e
    boussette. V. José Pedro Machado,
    Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 2v. Lisboa: Ed. Confluência, 1956, p.377.
  • 21
    "La race humaine vivait auparavant sur la terre à l'écart et à l'abri des peines, de la dure fatigue, des maladies douloureuses, qui apportent le trépas aux hommes. Mais la femme, enlevant de ses mains le large couvercle de la jarre, les dispersa par le monde et prépara aux hommes de tristes soucis. Seul, l'Espoir restait là, à l'interieur de son infrangible prison, sans passer les lèvres de la jarre, et ne s'envola pas au dehors, car Pandore déjà avait replacé le couvercle, par le vouloir de Zeus, assembleur de nuées, que porte l'égide." Hésiode,
    Théogonie, Les Travaux et les Jours, Le Boucler, ed. bilíngüe, trad. de Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1951, p.89.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      Out 2005
    • Recebido
      Mar 2004
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