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A produção dos números escolares (1871-1931): contribuições para uma abordagem crítica das fontes estatísticas em História da Educação

The production of school numbers (1871-1931): contributions to a critical approach to statistical sources in History of Education

Resumos

O presente artigo pretende contribuir para a reflexão acerca das estatísticas educacionais como fonte para as pesquisas em História da Educação. Buscou-se aqui, principalmente, desvelar a maneira pela qual foram produzidas, no âmbito central, as estatísticas educacionais referentes ao período de 1871 a 1931. Foram analisados relatórios oficiais - da Diretoria Geral de Estatística - e repertórios estatísticos editados por aquela repartição, onde se buscou localizar as recomendações e definições para a realização dos trabalhos. Pretendeu-se, problematizando as fontes documentais de estatística educacional e suas interpretações mais comuns, diminuir o desconhecimento sobre a origem de números escolares, que, eventualmente, são utilizados em pesquisas atuais sem o conveniente exame crítico.

História da Educação; estatísticas escolares; fontes históricas


Abstract This article intends to contribute to the reflection on the Educational Statistics as being source for the researches on History of Education. The main concern was to reveal the way Educational Statistics related to the period from 1871 to 1931 were produced, in central government. Official reports - from the General Statistics Directory - and Statistics yearbooks released by that department were analyzed and, on this analysis, recommendations and definitions to perform the works were sought. By rending problematic to the documental issues on Educational Statistics and their usual interpretations, the intention was to reduce the ignorance about the origin of the school numbers, which are occasionally used in current researches without the convenient critical exam.

History of Education; school statistics; historical sources


DOSSIÊ: REPÚBLICAS

A produção dos números escolares (1871-1931): contribuições para uma abordagem crítica das fontes estatísticas em História da Educação

The production of school numbers (1871-1931): contributions to a critical approach to statistical sources in History of Education

Natália de Lacerda Gil

Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Rua Arlindo Bettio, 1000 – Ermelino Matarazzo. 03838-000 São Paulo – SP – Brasil. natalia.gil@uol.com.br

RESUMO

O presente artigo pretende contribuir para a reflexão acerca das estatísticas educacionais como fonte para as pesquisas em História da Educação. Buscou-se aqui, principalmente, desvelar a maneira pela qual foram produzidas, no âmbito central, as estatísticas educacionais referentes ao período de 1871 a 1931. Foram analisados relatórios oficiais – da Diretoria Geral de Estatística – e repertórios estatísticos editados por aquela repartição, onde se buscou localizar as recomendações e definições para a realização dos trabalhos. Pretendeu-se, problematizando as fontes documentais de estatística educacional e suas interpretações mais comuns, diminuir o desconhecimento sobre a origem de números escolares, que, eventualmente, são utilizados em pesquisas atuais sem o conveniente exame crítico.

Palavras-chave: História da Educação; estatísticas escolares; fontes históricas.

ABSTRACT

Abstract This article intends to contribute to the reflection on the Educational Statistics as being source for the researches on History of Education. The main concern was to reveal the way Educational Statistics related to the period from 1871 to 1931 were produced, in central government. Official reports – from the General Statistics Directory – and Statistics yearbooks released by that department were analyzed and, on this analysis, recommendations and definitions to perform the works were sought. By rending problematic to the documental issues on Educational Statistics and their usual interpretations, the intention was to reduce the ignorance about the origin of the school numbers, which are occasionally used in current researches without the convenient critical exam.

Keywords: History of Education; school statistics; historical sources.

O presente artigo pretende contribuir para a reflexão acerca das estatísticas educacionais como fonte para as pesquisas em História da Educação. Buscou-se aqui, principalmente, desvelar a maneira pela qual foram produzidas, no âmbito central, as estatísticas educacionais referentes ao período de 1871 – quando foi criada a Diretoria Geral de Estatística – a 1931, quando esta é substituída pelo Departamento Nacional de Estatística. Nesse sentido, foram localizadas as fontes de informação em cada momento e relatados os procedimentos para coleta dos dados, de acordo com as recomendações e definições da repartição central responsável pelos trabalhos. Pretendeu-se, por essa iniciativa, diminuir o desconhecimento sobre a origem de números escolares, que, eventualmente, são utilizados em pesquisas atuais sem o conveniente exame crítico. Essa pesquisa contou com financiamento da Capes e do CNPq.

Como fonte da investigação apresentada foram tomados relatórios oficiais – da Diretoria Geral de Estatística (DGE) – e repertórios estatísticos editados por aquela repartição. Não foram examinadas as publicações dos censos populacionais porque estas não compilam estatísticas originais sobre as escolas, que são os dados de interesse para o estudo aqui relatado. Os materiais examinados correspondem ao que se poderia chamar de uma "escrita do Estado", que, de acordo com Roger Chartier, corresponde à produção discursiva impressa "dos representantes da autoridade pública ou a eles dirigida".

POR UMA SÓCIO-HISTÓRIA DAS ESTATÍSTICAS

A informação estatística é para alguns um 'fetiche', um objeto sagrado diante do qual o espírito crítico se paralisa. Outros, que se acreditam mais bem advertidos, têm, com relação à estatística, uma atitude niilista de recusa sistemática. É verdade que o uso razoado da informação é difícil, porque ele supõe, além do conhecimento dos resultados, o das condições práticas de sua produção, que é raramente comunicado ao público.

Essa descrição das reações mais comuns das pessoas frente à(s) estatística(s), embora se refira ao contexto francês, expressa perfeitamente o que se percebe no Brasil, como provavelmente em outros países. A polarização das posições em relação ao tema não tem contribuído para o aprofundamento do conhecimento acerca dessa área de saber e desse tipo de informação. Ao contrário, a(s) estatística(s) reina(m) desconhecida(s) da maior parte das pessoas, que se mostram 'temerosas' ou 'encantadas', mesmo que quase todo mundo já tenha ouvido falar dela(s) e, até, mencione sua importância. Mesmo nos meios intelectuais esse distanciamento é notado. Paul Starr sublinha que "cientistas sociais rotineiramente usam estatísticas de fontes oficiais como um meio de análise, mas menos frequentemente tomam as estatísticas ou suas fontes como um objeto de análise".

Como aponta Volle no trecho citado, o uso dos dados estatísticos exige a compreensão dos processos de sua produção. Nesse sentido, alguns autores têm, nas últimas décadas, advogado a necessidade de uma sociologia das estatísticas que, trabalhando sistematicamente a questão, amplie o conhecimento das instâncias de produção dos dados, da definição das categorias que informam os instrumentos de coleta, dos critérios utilizados na interpretação das cifras, das formas de divulgação desses trabalhos e das inter-relações que medeiam cada etapa, entre outros. Paul Starr menciona a existência de estudos dispersos, com abordagens variadas, mas reclama a necessidade de uma sociologia dos "sistemas estatísticos", entendendo-os como "um sistema para a produção, distribuição e uso de informação numérica" (Starr, 1987, p.8). Segundo esse autor, um sistema estatístico seria formado por dois tipos de estrutura: social e cognitiva. A primeira consistiria nas relações sociais e econômicas entre aqueles que fornecem os dados primários, as agências estatais, as empresas privadas, profissionais, agências internacionais etc. envolvidos ao longo do processo. A estrutura cognitiva seria o tratamento específico dado às informações, desde a definição dos limites do levantamento a ser feito, das pressuposições sobre a realidade social que informam o planejamento dos trabalhos, dos sistemas de classificação, até a escolha dos métodos utilizados na manipulação dos dados e o estabelecimento das regras para interpretação e divulgação das informações. Na proposta que faz de organização de uma sociologia das estatísticas oficiais, o autor distingue cinco grupos de questões:

1. Origens e desenvolvimento do sistema: O que leva ao estabelecimento de sistemas estatísticos? Por que os governos e outros atores tomam a decisão de contar ou de deixar que sejam contados? E quais processos governam a evolução histórica geral do sistema?

2. Organização social dos sistemas estatísticos: Quais são as fontes e as consequências dos diferentes padrões e formas na organização social dos sistemas estatísticos?

3. Organização cognitiva dos sistemas estatísticos: Quais são as fontes e consequências dos elementos na estrutura informacional?

4. Usos e efeitos dos sistemas: Quais efeitos têm a produção e a distribuição da informação estatística na política e na sociedade? Os sistemas estatísticos conformam o entendimento da realidade social e econômica, sendo seus efeitos devidos não ao fenômeno mensurado, mas ao sistema que o mensura?

5. Mudança nos sistemas contemporâneos: Quais processos, tais como mudanças políticas e inovações tecnológicas, estão moldando, presentemente, o desenvolvimento atual e futuro dos sistemas estatísticos? Como o primeiro grupo, estas questões são históricas e sobre desenvolvimento, mas elas concernem mais ao futuro do que ao passado. (Starr, 1987, p.9)

Alain Desrosières, por sua vez, aponta para a necessária articulação entre as abordagens sociológica e histórica quando se pretende compreender as interações entre a ciência e a ação. Segundo esse autor,

é necessário reconstituir espaços de debate, maneiras de dizer e de fazer, alternativas ou concorrentes, seguir os deslocamentos e as reinterpretações dos objetos cujo contexto muda. Mas justamente porque este domínio de estudo é um lugar de interação entre os mundos do saber e do poder, da descrição e da decisão, do 'existe' e do 'é preciso', parece já haver, anteriormente à pesquisa, uma relação particular com a história. Esta pode ser convocada para enraizar uma tradição, nutrir o relato de fundação de uma comunidade e afirmar sua identidade. Mas ela pode ser chamada também para fins polêmicos, nos momentos e nas situações de conflito e de crise, para denunciar este ou aquele aspecto oculto.

A estatística ocupa uma posição particularmente importante no que se refere às relações entre ciência e ação. A história dessa ciência e de sua interlocução com os campos social, político, econômico etc. permite melhor compreender como se definiu certa razão estatística que informa, com larga legi timidade, as ações em outros espaços. Considerando que as técnicas estatísticas são amplamente utilizadas para sustentar argumentos científicos e políticos, Desrosières ressalta que "a história de sua gestação permite esboçar, recuperando as controvérsias e os debates antigos, um espaço de articulações entre as linguagens técnicas e suas utilizações no debate social" (Desrosières, 2000, p.9). Assim, parece adequado considerar, como faz Desrosières, que há amplas vantagens em optar pela análise sócio-histórica da(s) estatística(s).

SOBRE OS ESTUDOS HISTÓRICOS DAS ESTATÍSTICAS DE EDUCAÇÃO

A história das estatísticas de educação tem sido bem pouco estudada. Não obstante, é possível localizar alguns esforços dispersos que valeria aqui – sem pretender, porém, a exaustividade – mencionar. Nas décadas de 1970 e 1980 tem-se, na França, um impulso nos estudos que buscavam recuperar essa história. O uso do computador e o desenvolvimento dos métodos de tratamento estatístico haviam favorecido a expansão de pesquisas que, pelo uso de números recolhidos no século XIX, pretendiam aferir os ritmos e as características da escolarização naquele país. Em resposta a essas pesquisas surgem trabalhos que advogam a necessidade de uma crítica das fontes estatísticas utilizadas, lembrando que – sem negar a riqueza de seu aporte à história da educação – "é preciso ter em mente as verdadeiras condições de elaboração das cifras disponíveis e os limites de sua interpretação".

Jean-Noël Luc alertava para o fato de que

no século XIX, a estatística escolar é antes de tudo, aquela do ensino primário. Pela sua precocidade, sua amplitude e sua regularidade, ela ultrapassa as estatísticas de outros tipos de ensino aos quais ela serve, às vezes, de modelo. Apesar dessa primazia, ela utiliza durante muito tempo um sistema de enquête bastante defeituoso, sobretudo para mensurar a população escolarizada. (Luc, 1986, p.889)

Ressaltava-se, na oportunidade, também o fato de que a maior parte das informações compiladas sobre a escola francesa no século XIX tinham sido originalmente produzidas para fins administrativos. Briand, Chapoulie e Peretz apontavam, quanto a isso, a necessidade de

antes de as utilizar para outros fins que aqueles, essencialmente práticos, aos quais elas são institucionalmente destinadas, examinar em detalhe suas condições de produção e as interpretações que são a elas vinculadas: é apenas nessas condições que um estudo sócio-histórico pode evitar assumir, fora de qualquer exame crítico, as representações constituídas pela instituição e implicadas pelas estatísticas, que são tanto mais impositivas em função de serem sempre, em parte, fundadas na prática.

Razões semelhantes impulsionaram também na Espanha a produção de uma história crítica das estatísticas educacionais. De acordo com Guereña, o recurso a métodos quantitativos em pesquisas históricas sobre alfabetização e escolarização espanholas frequentemente se dava "sem uma análise prévia dos dados estatísticos manejados, de seu processo de elaboração e modo de apresentação".

No Brasil, a perspectiva de estudo da História da Educação em que as estatísticas são tomadas como fonte privilegiada não teve grande repercussão e, menos ainda, o estudo crítico dessas fontes. Assim, poucos foram os esforços empreendidos até o presente no sentido de recuperar a história dos sistemas de produção, das formas de interpretação e do uso das estatísticas educacionais brasileiras e, mesmo atualmente, pouco se tem realizado. Faria Filho, Neves e Caldeira

É verdade que vários estudos históricos utilizam-se de estatísticas de educação, e outros tantos têm investigado a produção das estatísticas censitárias e populacionais em geral; no entanto, poucos têm se detido em investigar como os números sobre o ensino foram produzidos. Em que pese a situação descrita, algum empenho tem sido notado nos últimos anos no sentido de minimizar a lacuna de pesquisas sobre história das estatísticas de educação no Brasil. Um exemplo disso está no livro organizado por António Candeias intitulado Modernidade, educação e estatística na Ibero-América dos séculos XIX e XX

Articulando-se a esse conjunto de estudos que, nos últimos anos, têm buscado minimizar as lacunas evidentes quanto à história das estatísticas de educação no Brasil, o presente artigo sistematiza informações acerca da produção desses elementos quantitativos entre 1871 e 1931. Inicialmente, entre 1871 e 1907, os esforços do poder central no sentido de organizar e publicar os números do ensino resultaram em parcos resultados efetivos. Restritos à circulação interna à burocracia de Estado, já que figuravam apenas em relatórios oficiais, os números coligidos organizavam-se em categorias muito simples: alunos e escolas. Após 1907, assiste-se a um renovado empenho quanto a esse aspecto, resultando na publicação dos primeiros volumes de divulgação de estatísticas oficiais onde figuram informações sobre educação. Nesse período, percebe-se ainda uma crescente elaboração e ramificação das categorias que, ao se multiplicarem, pretendem oferecer uma imagem da escola brasileira reputada – por isso – supostamente mais precisa.

AS ESTATÍSTICAS DA INSTRUÇÃO NO BRASIL (1871-1907)

Em 1871 foi criada, no governo imperial, a Diretoria Geral de Estatística (DGE). Ainda que sua principal tarefa fosse a execução dos censos decenais, mencionava-se em seu regulamento explicitamente sua responsabilidade para com as estatísticas da instrução. A crescente importância dada pelas elites brasileiras à difusão da escola, associada à circunstância de terem os primeiros dirigentes da DGE especial apreço pelo assunto, favoreceram a inclusão das estatísticas do ensino entre as tarefas prioritárias da repartição. Embora se possa considerar, pelo olhar retrospectivo, que pouco se tenha feito naquele momento acerca do tema, fato é que as estatísticas da instrução estavam entre as atribuições da Diretoria e foram efetivamente organizadas – mesmo que em bases simples – durante os primeiros anos de funcionamento do órgão.

Nesse período, os dados divulgados sobre a instrução no conjunto do país restringiam-se aos relatórios que os responsáveis pela DGE encaminhavam ao ministro ao qual estavam subordinados os trabalhos. Desde o início foram incluídos, pelo menos, os totais de escolas e alunos dos níveis primário e secundário. O procedimento de coleta das informações sobre a instrução consistia no envio, pela Diretoria Geral de Estatística, de modelos às províncias, que deveriam, por seu turno, preenchê-los com os dados e esclarecimentos demandados. Até a data da elaboração do relatório acerca do primeiro ano de funcionamento da repartição, haviam sido devolvidos preenchidos os quadros referentes a 16 das vinte províncias que formavam o país. Semelhante situação é mencionada também nos relatórios subsequentes. Era recorrente a reclamação acerca da lentidão, inexatidão ou omissão por parte das fontes informantes – e não apenas no tocante aos dados sobre a instrução. Os pedidos eram repetidos, e nem sempre os quadros devolvidos estavam completos. As informações sobre os números de 1876, por exemplo, haviam sido pedidas às autoridades locais em abril de 1877. Em novembro do mesmo ano a demanda foi reencaminhada e, ainda assim, só foi possível contar com as informações de 15 províncias. Algumas não mandavam os papéis preenchidos e nem ao menos explicavam as razões da omissão, como é o caso, em 1872, de São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul e Maranhão.

No que se refere às províncias omissas, as informações que integravam as tabelas anexas aos relatórios eram obtidas em documentos oficiais variados, conforme a disponibilidade. Recorria-se, por exemplo, a ofícios e relatórios dos presidentes de província ou dos inspetores de instrução, onde constassem "mapas de instrução", ou, ainda, repetiam-se os números do ano anterior. Em re latório sobre 1872 informa-se que, não se tendo obtido resposta de várias províncias, foram enviados novos pedidos às autoridades, recomendando-se que

os municipios deverião abranger por meio de chaves as parochias que os formão, e estas as localidades das escolas; que as datas das creações das escolas mencionadas no relatorio fossem verificadas e preenchidas as lacunas que se notavão a semelhante respeito, recommendando-se mais que esses quadros deverião conter o numero de alumnos de um e outro sexo em cada uma das escolas até 31 de Dezembro, devendo mencionar-se nas casas competentes, não o numero dos que se matricularão, mas sim dos que as frequentarão.

Como se evidenciassem algumas imperfeições nos quadros remetidos pelas autoridades locais, a DGE procedia às correções que fossem possíveis. Além disso, eram consultados os relatórios provinciais para obter dados sobre a população geral e as despesas, os quais eram confrontados aos da instrução.

Vale considerar, porém, que, a despeito da reclamação acerca da falta de colaboração das/dos províncias/estados, existisse, provavelmente, ao menos em alguns casos, a insuficiência de condições das administrações locais em atender aos pedidos da DGE. Ora, é de se supor que a escassez de funcionários se fizesse sentir nas repartições regionais, de modo a tornar difícil o preenchimento desse volume de requisições em meio a outras tantas tarefas que certamente lhes estavam atribuídas. Além disso, agravava a situação o fato de não serem obrigatórias as respostas que só seriam, portanto, dadas quando os questionários deparassem, nos órgãos regionais, com algum funcionário de boa vontade ou que, por acaso, considerasse pessoalmente importantes os trabalhos estatísticos. Manuel Timóteo da Costa (responsável pela DGE entre 1890 e 1893) ressaltava, referindo-se às autoridades e corporações que não deram retorno a nenhuma das solicitações, que "já por não serem a isso obrigados já por não terem necessidade de atender a pedidos quaesquer; compreende-se, portanto, que não teriam o menor empenho na satisfação de serviços aliás estranhos às suas funções".11 11 Citado em INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Apontamentos históricos e extratos (1890-1907). Rio de Janeiro, 1941. p.108. (Mimeogr.). Para que fosse possível eliminar as omissões, o diretor pedia a atenção do governo federal para a "conveniência" da criação de uma determinação legal que obrigasse todos os cidadãos a prestarem informações precisas com vistas à elaboração das estatísticas oficiais, o que só aconteceria em 1908.

Também a forma como era organizado o ensino no país acarretava alguns problemas específicos para o levantamento dos dados acerca da instrução. Nesse sentido, interessa notar que, tanto no Império como na República, a obtenção dos números referentes às escolas particulares trazia uma dificuldade adicional. Isso porque as províncias, e depois os estados, não tinham controle estrito sobre a iniciativa privada em educação. Eram considerados pouco eficientes os meios de que dispunham os governos para registrar informações sobre esses estabelecimentos de ensino que, por sua vez, não tinham obrigação de se reportar aos órgãos oficiais. Em relatório sobre 1902, por exemplo, afirma-se, acerca das estatísticas da instrução, que

em diversos serviços, que tem procurado realisar essa Repartição, encontra logo grandes difficuldades, porque tudo está dependendo de informações, em sua maior parte, provenientes de estabelecimentos particulares, a respeito dos quaes nenhuma disposição reguladora, quanto ao fornecimento de informações, tem-se procurado adoptar.

Além disso, a variedade de regras em cada parte do país complicava a elaboração dos materiais de coleta. Ainda naquele relatório, menciona-se a dificuldade em se coligirem dados sobre a instrução nos estados, visto que cada qual organizava o ensino à sua maneira, impedindo a elaboração de um questionário único que se mostrasse adequado a todas as regiões. Não obstante os esforços de simplificação dos questionários, o excesso de lacunas é apontado como razão a impedir a organização dos confrontos previstos inicialmente, quais sejam, o da população infantil com os totais de frequência à escola em cada estado e a organização de "tantos quadros quantos fosse possível" a partir de diversas combinações das informações coligidas sobre a instrução popular. Resulta ter sido possível apenas, segundo o relatório, apresentar as informações recebidas, discriminadas por município.

Os números do ensino (1907-1931)

Encerradas as atividades relacionadas ao Recenseamento de 1872, não foram providas condições suficientes para que a Diretoria Geral de Estatística levasse adiante suas outras responsabilidades. Em vista dessas dificuldades, em 1879 a Diretoria foi desativada, sendo restaurada apenas em 1890, pelo governo da República. Durante a Primeira República a DGE passou por várias reformas que alteraram seu quadro funcional e regulamento: em 1897, em 1907, em 1909, em 1910, em 1911 e em 1915.13 13 Em 1931, a Diretoria foi substituída pelo Departamento Nacional de Estatística. Em 1934 criou-se o Instituto Nacional de Estatística. Em 1938, integraram-se o Instituto Nacional de Estatística e o Conselho Brasileiro de Geografia em um único órgão denominado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 1907, entre as alterações instituídas pelo novo regulamento, estava a reestruturação dos trabalhos em quatro seções. A 4ª Seção era responsável pela coleta e sistematização das informações sobre a instrução pública e particular, mas também sobre as bibliotecas, os museus, as belas artes, a imprensa, os cultos religiosos, as instituições de assistência, de beneficência e de providência. Essa seção foi entregue a Oziel Bordeaux Rêgo, que, entre outras realizações, organizou a primeira publicação dedicada especificamente às estatísticas escolares no Brasil.

Conforme já se mencionou, no período compreendido entre 1907 e 1931, além das informações presentes nos relatórios oficiais, aparecem obras especificamente destinadas à divulgação dos números, em geral, e das estatísticas de educação, especificamente. No primeiro caso tem-se a publicação do Boletim Commemorativo da Exposição Nacional de 1908 e do Annuario Estatistico do Brazil. Em ambos os repertórios, a instrução está pautada e é descrita – ao lado de outras cifras de interesse nacional – em categorias mais detalhadas do que as utilizadas no período precedente. Já no que se refere particularmente à instrução tem-se, em 1916, a publicação do volume Estatistica da instrucção e, em 1927, o trabalho intitulado Ensino primario – que tem por subtítulo "Resultados provisorios do inquerito sobre a instrucção primaria no Brazil em 1926, divulgados por ocasião do centenário da lei de 15 de Outubro de 1827, referente ao mesmo ensino". Aquele, apresentando dados de 1907, corresponde à primeira iniciativa de organização, no país, de uma publicação exclusivamente destinada à divulgação das estatísticas do ensino. O segundo, como o subtítulo indica, atrelava-se à comemoração do centenário da lei imperial que mandava criar escolas em todas as localidades mais populosas e trazia informações semelhantes às do trabalho de 1916, embora fosse um empreendimento menor e menos completo.

Nesse período, a coleta dos dados estatísticos sobre a educação nacional mostrou-se bem mais minuciosa do que nos levantamentos anteriores. Para exemplificar, valeria mencionar que a DGE empenhou-se em separar os números do ensino primário daqueles do secundário, que, no caso dos estabelecimentos particulares, apareciam até então frequentemente confundidos. Também se buscou, conforme recomendação do Instituto Internacional de Estatística, distinguir as escolas primárias comuns daquelas de ensino especial ou noturno, especificando, neste último caso, se destinadas apenas a adultos ou a todas as idades. Foram contabilizados os estabelecimentos que funcionavam em regime de internato, externato ou em ambos. Procurou-se saber em quantas escolas o ensino era ministrado em idioma diferente do nacional. Foram incluídos dados acerca da frequência às aulas e as conclusões de curso e, ainda, informações sobre os docentes.

A inclusão dos índices de frequência, em especial, é apontada posteriormente como um aperfeiçoamento importante. Esses dados, reputados fundamentais para a correta aferição do alcance da escola elementar, não tinham sido até então coligidos. Rêgo sublinhava, a esse respeito, que "a frequencia ou assiduidade, que é o que mais importa apurar quanto á educação intellectual do primeiro gráo, póde-se dizer que nunca figurou nos trabalhos da Repartição de Estatistica".

mediante uma synonymia inadmissivel, embora ainda hoje, uma vez por outra, perpetrada em documentos officiais, consideravam, invariavelmente, como representativos do comparecimento, numeros que, em verdade, apenas exprimiam a inscripção. (DGE, 1916, p.LXXVI)

É preciso considerar que houvesse, também, acentuada discrepância quanto à compreensão do que devesse ser contado como frequência. Isso porque não existia uma definição unívoca plenamente estabelecida, de modo que ficava a critério dos professores e/ou das autoridades municipais ou estaduais o entendimento que orientava o registro numérico. Sendo assim, alertava-se que

essas indicações devem ser acceitas com alguma reserva, pois não póde haver absoluta segurança de que os dados obtidos sôbre a frequencia exprimam, uniformemente, o mesmo facto. Apezar de ter a Directoria Geral de Estatistica frisado que o que lhe importava conhecer era a média do comparecimento, com relação a todo o periodo lectivo, é muito possivel que, numa ou noutra unidade da Republica, as instituições informantes hajam seguido outro criterio na avaliação da assiduidade. (DGE, 1916, p.CCV)

Havia em 1907 instituições de ensino sob responsabilidade do poder central, outras subordinadas aos estados, algumas mantidas pelos municípios e, ainda, aquelas sob direção de particulares. Os estabelecimentos federais não se reportavam todos a um mesmo órgão – alguns eram vinculados ao Ministério do Interior, outros ao da Agricultura, da Guerra ou da Marinha. Quanto aos estados, apenas três organizavam sua própria estatística escolar e, mesmo assim, apenas do nível primário. Por fim, vinham os estabelecimentos particulares que, por não estarem sujeitos à fiscalização, eram, por vezes, desconhecidos das autoridades oficiais. Faltava, assim, uma mínima padronização que permitisse a elaboração de quadros sintéticos, onde se pudessem agregar as infor mações de todo o país. Cada estabelecimento ou órgão recolhia os dados pautando-se nos critérios que considerasse convenientes e havia, também, situações em que as informações não chegavam a ser coligidas.

Essas circunstâncias obrigavam a operar a coleta dos dados recorrendo-se a procedimentos diferenciados em função da variedade de situações. Assim, quanto aos institutos federais, determinou-se que os números seriam apontados individualmente para cada estabelecimento, sendo as demandas feitas diretamente a eles ou por intermédio do órgão que os congregasse. Aos governos estaduais requisitou-se que enviassem, acerca dos estabelecimentos por eles mantidos, os registros do ensino primário em conjunto, por município, e, para os cursos secundário, profissional e superior, que fossem discriminados os algarismos particularmente para cada instituição. Já às municipalidades pediu-se que, além de informarem sobre as escolas a seu encargo, colaborassem na coleta de elementos acerca das instituições privadas. Oziel Bordeaux Rêgo ressalta que, acerca dos registros sobre o ensino particular, "não parecia difficil conseguirem-n'os as autoridades locaes, ou compulsoriamente, quando lhes assistisse o direito de exigil-os, ou com appellos rogatorios aos donos desses estabelecimentos" (DGE, 1916, p.C). Como alguns estados não respondessem aos pedidos da DGE, solicitou-se aos municípios que fornecessem também elementos sobre as escolas subordinadas àquela instância administrativa. Nas circunstâncias em que as autoridades municipais se recusavam a recolher informações acerca das escolas estaduais e/ou particulares, restava à Diretoria a alternativa de solicitar diretamente a cada instituição os números desejados. A tarefa tornava-se, contudo, mais difícil quando os municípios não apenas se recusavam a recolher aqueles dados, como também se abstinham de prover a lista das escolas localizadas em sua circunscrição. Nesse caso era preciso arrolar previamente os estabelecimentos particulares para que fosse possível, em seguida, enviar-lhes os questionários. O autor informa que

para esse trabalho valeo o subsídio de relatórios, almanacks, jornaes e outras publicações de caracter regional, e, sobretudo, o de notas benevolamente fornecidas por auctoridades e por particulares, que, ás vezes, não só proporcionaram os nomes e as sédes dos institutos, mas até se prestaram a obter de alguns os dados que a Directoria de Estatistica não conseguira alcançar. (DGE, 1916, p.CI)

Porém, em certos casos, as municipalidades, para além de se recusarem a colaborar no fornecimento de elementos sobre o ensino estadual e particular, deixavam de informar a própria situação das escolas sob sua administração. Nessas ocasiões, a Diretoria valia-se do

concurso directo do pessoal da fiscalização pedagogica estadual, bem assim o de varios membros da magistratura, que acceitam, por simples civismo, o onus dum mister que, na maioria dos Estados, nem sequer accessoriamente entra nas attribuições daquella classe. Emfim, quando falha esse tentamen, fica a Repartição na contingencia de recorrer a pessôas que só dispõem de auctoridade espiritual, por fôrça de sua funcção, como os representantes do clero, ou de prestígio individual, como alguns cavalheiros, que, obsequiosamente, têm empenhado o seo esfôrço para o exito deste serviço pelo reconhecerem prestadio á causa do progresso nacional. (DGE, 1916, p.CII-CIII)

O procedimento de coleta das estatísticas escolares consistia, de modo geral, em primeiro lugar, no envio de questionários abrangentes às Municipalidades, compreendendo perguntas sobre as escolas municipais, estaduais (a menos que já tivessem sido recebidas diretamente das autoridades estaduais essas informações) e particulares. Enviar os questionários diretamente aos municípios assentava-se na convicção de que, pela proximidade física, as administrações locais pudessem prover informações mais corretas, completas e atualizadas. As demandas aos órgãos estaduais e aos estabelecimentos de ensino buscavam, portanto, apenas completar as informações recebidas dos municípios, sanando as lacunas existentes. Ou seja, nesse caso eram solicitados tão-somente aqueles elementos não conseguidos pelo recurso inicial, qual seja, o questionário enviado aos municípios. Esgotados esses procedimentos, por fim, se fosse necessário, a repartição central recorria, como já mencionado, a alternativas variadas que pudessem resultar na obtenção dos elementos faltantes. A par do notável empenho na obtenção das informações necessárias para a organização de estatísticas escolares mais completas, chama atenção a maneira precária, assistemática e pouco impessoal como eram feitos os trabalhos. Assim, embora se buscasse estabelecer um procedimento sistemático de coleta dos dados, que funcionasse tendencialmente com rapidez e constância, o que se percebe, nesse momento, é justamente sua ausência, expressa na necessidade de encaminhar, frequentemente, as requisições a cada estabelecimento de ensino individualmente, ou no expediente de recorrer à colaboração espontânea de pessoas que não tinham vínculo nem com a repartição de estatística nem com o sistema de ensino.

Valeria, ainda, citar a função prevista para o levantamento desse período como recurso ao aperfeiçoamento dos próprios procedimentos de coleta, tratamento e divulgação dos dados. A estatística da instrução era mencionada nos relatórios examinados como o mais difícil, complexo e oneroso dos encargos entregues à 4ª Seção da Diretoria Geral de Estatística. Essa era a principal razão evocada para explicar por que não se tinha antes tentado, no país, organizar uma descrição quantitativa abrangente acerca do ensino. Apesar da notória e alardeada dificuldade de execução de um projeto dessa natureza, Oziel Bordeaux Rêgo tinha se proposto a recolher dados completos e detalhados correspondentes à educação brasileira no ano de 1907. Os valores preliminares – e incompletos – foram divulgados na publicação organizada para a exposição comemorativa dos cem anos de abertura dos portos brasileiros. Uma vez apresentados esses números, cabia à Diretoria decidir se valeria a pena completar o levantamento daquele ano ou, contentando-se com a descrição parcial já feita, se seria melhor passar ao próximo exercício. A opção feita aponta para o aperfeiçoamento do trabalho iniciado. Assim, sem deixar de recolher os números mais recentes, a Diretoria empenhou-se em suprir as falhas existentes na estatística de 1907. Rêgo defendia a continuidade desse empreendimento porque considerava que de outra forma não seria possível encontrar solução definitiva para os entraves que impediam a pronta e perfeita realização das estatísticas do ensino. Avaliava que, no Império, a falta de melhores resultados tinha se dado pelo erro em restringir as demandas às mesmas fontes respondentes, sem buscar suprir por outros meios as lacunas existentes. Assim, ponderava, repetir-se-iam os mesmos problemas se não fosse feito um esforço no sentido de ultrapassar os obstáculos percebidos.15 15 Vale informar que nas décadas de 1930 e 1940 as preocupações são outras. Como se considerava que os procedimentos de coleta já estavam satisfatoriamente estabelecidos, é clara a preferência em publicar dados incompletos, mas atualizados, em lugar de proceder inversamente. Segundo ele, interromper as coletas de um ano, por terem sido iniciadas as de outro,

importaria condemnar a estatistica da instrucção, ainda por largo espaço, a não passar dum conjuncto de quadros falhos, imperfeitos, de prestimo duvidosissimo, antes proprios a mostrarem a actividade da Secção incumbida da tarefa do que a traduzirem, com razoavel relativismo, o estado do nosso paiz, pelo grave indício da cultura mental de seos habitantes. (DGE, 1916, p.CXI)

Rêgo dizia que mesmo as inquirições custosas e que não chegavam a ter um êxito completo importavam porque, a longo prazo, podiam levar a resultados inéditos. Assim, referindo-se à extensão do questionário proposto em 1908, argumentava:

De certo, nem todas as informações, que devia comprehender o inquerito, têm a mesma importancia, ou interessam por egual, ao Brasil inteiro. Quanto a algumas, era aliás de prever o extremo custo de alcançal-as. Isto, porêm, de modo nenhum, dispensava a Repartição de se esforçar pelas reunir. Improficuas, talvez, presentemente, no sentido da utilização immediata de seos resultados, as diligências emprehendidas com aquelle proposito poderiam servir ao futuro; pois, á custa de insistentemente renovadas, logram, ás vezes, completo successo tentativas que antes haviam sido feitas, annos a fio, sem resultado apreciavel. (DGE, 1916, p.LXXXIX)

Fica evidente, portanto, a preocupação preponderante com o aperfeiçoamento dos procedimentos de coleta dos números do ensino. Acreditava-se que, no Brasil, a consolidação de uma sistemática de pronto fornecimento de completos números do ensino exigiria vários anos de esforços contínuos. Por essa razão, defendia-se a necessidade de

começarmos, tão cedo quanto possivel, os tentamens de que porventura resultará, para os que nos succederem na penosa e obscura tarefa que herdámos, uma situação menos desfavoravel do que esta, em que nos debatemos. (DGE, 1916, p.LXXXIX)

Essa questão era, também, o que impulsionava a observação dos trabalhos precedentes. Embora Rêgo considerasse os algarismos provenientes dos levantamentos antigos inúteis em si – pelas muitas lacunas e pela pouquíssima exatidão que os caracterizavam –, não deixava de se referir aos esforços precursores, por acreditar que a experimentação daí resultante pudesse orientar novas iniciativas, facilitando a atividade presente e minimizando suas imperfeições. Assim, no volume sobre as estatísticas de 1907, procedendo a um esforço de sistematização dos números do ensino recolhidos até aquele momento, apresentava tabelas onde figuravam os totais de escolas e alunos, por província/estado, de 1871 a 1876, de 1882 a 1884 e de 1901 a 1905. Ainda que afirmasse serem esses dados inaproveitáveis para o estudo acerca do desenvolvimento da instrução elementar no Brasil, não deixava de os considerar. Se os apresentava era, como já sublinhado, menos por seu valor intrínseco, mas sobretudo porque eram o que se tinha de oficial sobre o assunto e porque a análise desses resultados podia colaborar na organização de novos levantamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conhecer as categorias utilizadas nos levantamentos estatísticos sobre a educação, os procedimentos seguidos na realização desses trabalhos e as intenções declaradas que orientaram tais esforços é fundamental, ao menos na perspectiva aqui assumida, para um aprofundamento da compreensão sobre a história da escola brasileira. Investigar a imagem de escola expressa nas estatísticas educacionais obriga a assumir que estas não constituem um instrumento objetivo de apreensão da realidade. Permitem ver, no entanto, a disputa de representações sobre a instituição escolar travada entre diferentes segmentos da elite intelectual e política. É preciso colocar em questão até mesmo a existência de uma realidade externa aos recursos que permitem percebêla e a ela se referir, cuja melhor compreensão dependeria do aperfeiçoamento dos recursos capazes de lhe 'traduzir', 'mostrar', 'revelar' a imagem. Assumindo-se a representação do real como elemento intrínseco à sua construção, as estatísticas são tomadas, não como ferramenta a permitir sua adequada visualização, mas sim como elemento participante de sua composição. Interessa, nesse sentido, notar que as estatísticas de educação começam a ser produzidas mesmo antes que a escola tenha uma existência marcante na sociedade brasileira. Havia o interesse em conhecer/prescrever a abrangência dessa escola antes que sua existência física fosse notável. Nessas circunstâncias, as categorias estatísticas definidas a partir das concepções de uma elite intelectual-dirigente sobre as características constitutivas da instituição de ensino cristalizam uma determinada representação de escola, que vai, em alguma medida, informar sua construção social e física.

NOTAS

Artigo recebido em julho de 2009.

Aprovado em outubro de 2009.

  • 1 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2.ed. Lisboa: Di fel, 2002. p.218.
  • 2 VOLLE, Michel. Statistique fétichisée et statistique réelle. Le mouvement social, n.104, p.43, jul.-set. 1978. (Tradução nossa).
  • 3 STARR, Paul. The sociology of official statistics. In: ALONSO, William; STARR, Paul (Ed.). The politics of numbers New York: Russel Sage Foundation, 1987. p.7. (Tradução nossa).
  • 4 DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: Découverte, 2000, p.10. (Tradução e grifo nossos).
  • 5 LUC, Jean-Noël. L'ilusion statistique. Annales: économies, sociétés, civilisations, Paris, n.4, p.889, jul.-ago. 1986. (Tradução nossa).
  • 6 BRIAND, Jean-Pierre; CHAPOULIE, Jean-Michel; PERETZ, Henri. Les estatistiques scolaires comme représentation et comme activité. Revue Française de Sociologie, Paris, v.XX, p.670, 1979. (Tradução nossa).
  • 7 GUEREÑA, Jean-Louis. La estadística escolar. Historia de la educatión en la España contemporánea Madrid: Cide, 1994. p.52. (Tradução nossa).
  • 8 FARIA FILHO, Luciano Mendes de; NEVES, Leonardo Santos; CALDEIRA, Sandra Maria. A estatística educacional e a instrução pública no Brasil: aproximações. In: CANDEIAS, 2005, p.219-238.
  • 9 CANDEIAS, António (Coord.). Modernidade, educação e estatística na Ibero-América dos séculos XIX e XX: estudos sobre Portugal, Brasil e Galiza. Lisboa: Educa, 2005.
  • 10 DIRECTORIA GERAL DE ESTATISTICA. Relatorio e trabalhos estatisticos apresentados ao Illm. e Exm. Sr. Conselheiro Dr. João Alfredo Corrêa de Oliveira, Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio, pelo Diretor Geral interino Dr. José Maria do Coutto. Rio de Janeiro: Typographia do Hyppolito José Pinto, 1873. p.25.
  • 12 DIRECTORIA GERAL DE ESTATISTICA. Relatório apresentado ao Ministro da Industria, Viação e Obras Publicas pelo Director Geral (1902 – XV da República) Rio de Janeiro: Officina da Estatistica, 1903. p.135.
  • 14 DIRECTORIA GERAL DE ESTATISTICA (DGE). Estatistica da instrucção – estatística escolar. Rio de Janeiro: Typographia da Estatistica, 1916. p.LXXVI.
  • 1
    Claro está que certamente houve distâncias, mais ou menos acentuadas, entre aquilo que está expresso nos documentos consultados e os procedimentos efetivamente realizados em cada órgão regional, em cada repartição municipal, ou ainda, em cada escola. Importa, de qualquer modo, ao menos notar o que se concebia como possível e/ou desejável quanto à elaboração de informações supostamente objetivas acerca do movimento escolar no país.
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  • 3 Na área educacional, a situação não difere muito. Frequentemente evocados para justificar uma nova política, apresentar os resultados de uma avaliação ou simplesmente descrever a educação nacional, os números do ensino permanecem mal conhecidos e prevalece uma atitude desconfiada e medrosa frente a esses elementos quantitativos.
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    Em função disso, empreende-se então um esforço no sentido de recuperar informações acerca dos critérios utilizados na formulação dos dados quantitativos antigos, os conceitos que estruturavam a busca e interpretação das informações, os limites geográficos dessas
    enquêtes etc. Com esse objetivo foram publicados os volumes
    La statistique de l'enseignement primaire aux XIXe et XXe siècles e
    Statistiques de l'enseignement préélémentaire (1833-1985).
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    O autor lamentava, na oportunidade, a falta de trabalhos amplos – a exemplo daqueles produzidos na França e na Bélgica – onde fossem sistematizadas as fontes estatísticas, sobretudo do século XIX, apontados os procedimentos pelos quais tais números foram produzidos, e discutidos os limites de sua confiabilidade. Em consonância com essas preocupações e buscando suprir parte das lacunas mencionadas, aparece, em 1996, o volume intitulado
    Estadística escolar, proceso de escolarización y sistema educativo nacional en España (1750-1850).
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    analisam que três razões podem estar na origem do desinteresse, no país, por estudos dessa natureza. Em primeiro lugar estaria o próprio percurso da historiografia da educação brasileira, cujas pesquisas, pela sua forte filiação filosófica, dispensam informações estatísticas. Em seguida, os autores mencionam o afastamento desses pesquisadores com relação à história quantitativa. Por fim, consideram que as opções de pesquisa prevalecentes na área, pela escolha que fazem dos objetos e fontes, não têm trazido a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre a estatística escolar.
  • 9
    e que, embora tenha sido publicado em Portugal, traz estudos também de pesquisadores brasileiros. Vale relembrar, ainda, a mesa-redonda "Alfabetização, escolarização e processos de contagem e ordenação de populações na construção do Estado moderno: os casos do Brasil e de Portugal", que se realizou no IV Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação em 2002 (Porto Alegre) e da qual participaram Denice Barbara Catani, Cynthia Pereira de Sousa e Luciano Mendes de Faria Filho. Além disso, há alguns trabalhos dispersos em periódicos e eventos da área, notadamente de autoria de Luciano Mendes de Faria Filho, que tem insistido sobre a necessidade de ampliar tais estudos.
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    Explicava que isso não significava que os responsáveis pelas estatísticas desconsiderassem a importância desse elemento, mas antes, que o tomavam como correspondente ao registro de inscritos:
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    Citado em INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
    Apontamentos históricos e extratos (1890-1907). Rio de Janeiro, 1941. p.108. (Mimeogr.).
  • 13
    Em 1931, a Diretoria foi substituída pelo Departamento Nacional de Estatística. Em 1934 criou-se o Instituto Nacional de Estatística. Em 1938, integraram-se o Instituto Nacional de Estatística e o Conselho Brasileiro de Geografia em um único órgão denominado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
  • 15
    Vale informar que nas décadas de 1930 e 1940 as preocupações são outras. Como se considerava que os procedimentos de coleta já estavam satisfatoriamente estabelecidos, é clara a preferência em publicar dados incompletos, mas atualizados, em lugar de proceder inversamente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      Out 2009
    • Recebido
      Jul 2009
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