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Um projeto de Diplomacia Cultural para a República: a Revista Americana e a construção de uma nova visão continental

Resumos

Este artigo tem o objetivo de analisar a Revista Americana como um instrumento da estratégia do Itamaraty de pensar uma aproximação entre o Brasil e a América do Sul destacando o papel a ser exercido pela diplomacia na República recém-proclamada. É possível notar a valorização, nas páginas da Revista, de elementos de uma diplomacia cultural que deveriam servir de base para a construção de novas identidades, marcada por características próprias e específicas do continente sul-americano.

Revista Americana; Ministério das Relações Exteriores; diplomacia cultural


The aim of this article is to analyze Revista Americana as a tool of Itamaraty's new strategy of drawing Brazil and the rest of South America closer together, highlighting the role of diplomacy in the recently proclaimed Republic. This periodical illustrates how certain elements of cultural diplomacy were highly valued, elements which were crucial for the construction of a new identity for the South American continent based on its own specific characteristics.

Revista Americana; Ministry of Foreign Affairs; cultural diplomacy


ARTIGOS

Um projeto de Diplomacia Cultural para a República: a Revista Americana e a construção de uma nova visão continental

A Cultural Diplomacy Project for the Republic: Revista Americana and the building of a new continental vision

Fernando Vale Castro

Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Largo São Francisco, 1, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil, E-mail: valecastro@superig.com.br

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar a Revista Americana como um instrumento da estratégia do Itamaraty de pensar uma aproximação entre o Brasil e a América do Sul destacando o papel a ser exercido pela diplomacia na República recém-proclamada. É possível notar a valorização, nas páginas da Revista, de elementos de uma diplomacia cultural que deveriam servir de base para a construção de novas identidades, marcada por características próprias e específicas do continente sul-americano.

Palavras-chave:Revista Americana; Ministério das Relações Exteriores; diplomacia cultural.

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze Revista Americana as a tool of Itamaraty's new strategy of drawing Brazil and the rest of South America closer together, highlighting the role of diplomacy in the recently proclaimed Republic. This periodical illustrates how certain elements of cultural diplomacy were highly valued, elements which were crucial for the construction of a new identity for the South American continent based on its own specific characteristics.

Keywords: Revista Americana; Ministry of Foreign Affairs; cultural diplomacy.

Há pouco mais de cem anos entrava em circulação a Revista Americana, publicação oriunda das fileiras diplomáticas brasileiras, que circulou, de forma não contínua, entre 1909 e 1919 e que se tornou local de divulgação, de diferentes aspectos, da política, da cultura e da história da recém-inaugurada República brasileira, assim como das demais repúblicas sul-americanas. As escolhas tanto dos temas quanto dos colaboradores fornecem elementos importantes para a análise acerca dos objetivos, explícitos e implícitos da Revista.

Como toda construção cultural, a Revista pode ser entendida pela dialética entre a produção e a recepção da mensagem, em que coexistem sempre várias formas de apropriação pelos vários grupos e subgrupos que formam uma dada comunidade de leitores. Optamos, neste artigo, entretanto, por uma interpretação que valoriza a ótica dos produtores da mensagem, que no caso dos editores e colaboradores da Revista Americana eram, basicamente, intelectuais, brasileiros e sul-americanos com inserção na vida diplomática do continente.

Ao se observar uma revista como local no qual se realiza uma prática social de produção de sentido sobre a experiência coletiva, torna-se fundamental observar a questão da produção do discurso. Para uma melhor análise dos textos da Revista Americana nos aproximamos de alguns pressupostos da 'virada linguística'.1 1 Estamos pensando nos pressupostos da 'virada linguística', em especial as perspectivas desenvolvidas por Quentin Skinner e J. G. Pocock. Sobre isso ver: SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas; Motives, intentions and interpretation of texts; e Reply to my critics; todos se encontram em TULY, James. Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988; SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Ver também: FALCON, Francisco. História das idéias. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997; e Introdução: o estado da arte; o conceito de linguagem e o métier d'historien, todos encontrados em J. G. POCOCK. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. Nessa perspectiva é fundamental recuperar a identidade histórica das obras intelectuais, por meio de uma metodologia histórica e intertextual, ou seja, que apresenta como objetivo alcançar o sentido do texto em seu tempo, afastando-se, portanto, de possíveis visões anacrônicas e reducionistas.

Em síntese, consideramos a Revista Americana como espaço de elaboração de determinadas questões em discussão no período. Nesse sentido os autores que fizeram parte da Revista contribuíram para a criação de uma determinada 'comunidade argumentativa', elaborando e emitindo 'lances' 2 2 POCOCK, 2003. A perspectiva do lance nos remete, segundo Pocock, a um processo no qual um ato de fala é enunciado e de certa forma busca inovar o contexto linguístico, permitindo ao historiador observar o que um autor (ou grupo de autores) estava fazendo no momento de elaboração de seu discurso. específicos. Para se compreender tal construção, cabe investigar a historicidade da sua produção associada à intencionalidade da sua escrita.

Assim, entender os atos de fala presentes na Revista Americana a fim de percebê-la como uma comunidade argumentativa de uma determinada época e referida a um determinado locus social, político e cultural, nos remete à reflexão sobre a visão diplomática do Ministério das Relações Exteriores, ou seja, do Estado brasileiro que havia proclamado a República havia duas décadas. Cabe salientar que tal projeto diplomático foi construído a partir da estratégia riobranquiana, para a elaboração de uma diplomacia continental. Evidentemente que este artigo não ambiciona esgotar a análise do periódico. O objetivo do texto é apontar possíveis chaves interpretativas, em especial, a de pensá-la como um instrumento de aproximação cultural entre as nações sul-americanas.

O contexto

A época na qual surgiu a Revista foi caracterizada, tanto no plano nacional quanto no internacional, por uma perspectiva de mudança e afirmação fruto das transformações ocorridas no seio do mundo capitalista. Nas artes, na técnica, nas ciências e nas relações de trabalho observava-se a aceleração do tempo e a diminuição das distâncias, marcas de uma nova era.

Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX viveu-se um efetivo crescimento na base geográfica da produção industrial que chegou a regiões como a Rússia e o Japão. Tal fato reforçou a perversa lógica da Divisão Internacional do Trabalho, em perfeita sintonia com os avanços imperialistas a dividir o mundo em grandes áreas de influências e de possessões coloniais. Essas transformações estiveram diretamente ligadas ao extremo avanço tecnológico marcado, entre outros, pelo telefone, o telégrafo sem fio, o fonógrafo, o cinematógrafo, ferrovias que cortavam a Europa e os Estados Unidos, automóveis etc., bem como o grande desenvolvimento na área médica que representou um aumento claro na expectativa de vida. Nesse sentido, podemos afirmar que surgia uma nova era que mexeu no imaginário popular de forma inequívoca.

o que mais forte impacto causava nas pessoas do mundo desenvolvido e industrial à época era, mais até que a evidente transformação de suas economias, seu ainda mais que evidente êxito. Vivia-se, obviamente num tempo de prosperidade ... no caso dos europeus ricos ou mesmo da mais modesta classe média. Para estes, a belle époque foi de fato o paraíso que seria perdido após 1914.3 3 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.85.

A intelectualidade americana de então não ficou imune a tais transformações. O período no qual a Revista Americana circulou foi extremamente fecundo no debate intelectual brasileiro e sul-americano, tendo marcado profundas modificações nos campos político e cultural, o que faz a época ser uma das mais privilegiadas pela historiografia nas análises acerca dos inúmeros projetos desenvolvidos pela intelectualidade do continente. No Brasil, desde a segunda metade do século XIX, houve o surgimento de vários grupos de intelectuais preocupados em construir uma nova identidade nacional.

Essa geração4 4 Estamos considerando 'geração' compreendendo-a com base na fusão entre memória e história, ou seja, na existência de uma memória comum, um testemunho de como um conjunto de homens viveu determinada época. Nesse sentido, devemos ligar gerações aos marcos, aos eventos fundadores, mas com o cuidado de não nos determos somente neles, pois não devemos datar uma geração apenas pelos fenômenos sociais ocorridos, na medida em que estes podem ser apreendidos de várias maneiras. Sobre isto ver: ATTIAS-DONFUT, Cleudine. La notion de génération: usages sociaux et concept sociologique. In: L'Homme et la Societé, Paris, ané XXII, v.90, 1988 ; SIRINELLI Jean-François. La g énération: la construction du temps historique. Paris: Histoire au Present, 1991. de intelectuais brasileiros da virada do século XIX para o XX, independente das interpretações diversas, que consequentemente levavam à disputa entre os vários grupos intelectuais formados, tinha um ponto em comum, o de pensar a realidade brasileira como parte integrante do concerto cultural estrangeiro, vinculando o Brasil a esse projeto civilizador para, a partir daí, estabelecer a construção de uma identidade nacional.

A Proclamação da República, porém, não representou uma possibilidade concreta de construção de uma nação moderna e civilizada como desejavam os intelectuais da chamada Geração de 1870. Nessa época, vários pensadores se engajaram na discussão sobre o passado e o futuro do Brasil e por extensão da América do Sul que passou a ganhar relevo nesse momento histórico.

Como o objetivo principal seria entrar no círculo da modernidade, as elites e os intelectuais da 'República das Letras' procuraram construir imagens do país que ora o diferenciasse, ora o aproximasse, das demais repúblicas sul-americanas ao mesmo tempo em que procuravam a gênese da nação. Em última análise a intelectualidade desse período desejava inscrevê-la na tradição do progresso e da civilização, herdadas do Iluminismo.

Destacou-se, durante a Primeira República, a participação do Ministério das Relações Exteriores, instituição de relevo do Estado brasileiro com ampla participação no contexto político e cultural do país, com seus membros assumindo, desde a época Imperial, papéis de destaque no cenário nacional e internacional. Cabe salientar que naturalmente os diplomatas se notabilizaram, necessariamente, pela construção de um projeto de nação ligada ao aparelho de Estado, portanto tinham como função buscar mecanismos de elaboração de um afinamento ideológico com os outros setores da elite brasileira.

Devemos ter em mente que o Ministério das Relações Exteriores acabou por assumir um papel relevante nesse momento de elaboração de um determinado projeto nacional, fato que justifica a importância de se estudar os intelectuais em torno da Revista Americana, na medida em que sua publicação partiu da alta cúpula do Ministério. Logo, para se refletir sobre esses intelectuais é condição sine qua non lançar luz sobre a atuação do corpo diplomático no debate intelectual da época, questões pouco trabalhadas na historiografia sobre a intelectualidade nacional.

O Ministério e a visão do barão do Rio Branco

Uma rápida observação do Ministério das Relações Exteriores, nos permite afirmar que ele se tornou uma instituição privilegiada nas primeiras décadas da República, apesar da presença de uma certa herança imperial entre os diplomatas que, no entanto, não representou um afastamento da ordem republicana. A diplomacia assumiu uma função de agente do Estado Republicano tanto interna quanto externamente.

Ao se refletir sobre a ação diplomática desta ou de qualquer outra época histórica, faz-se necessário ter em mente que a política externa de uma nação corresponde aos interesses, às aspirações da facção política representante dos grupos sociais, políticos e econômicos dominantes ao nível nacional. Com as oligarquias no poder, o fomento da agroexportação e a 'promoção' da imigração tornaram-se dois dos pilares da diplomacia brasileira, aproximando esta dos interesses da elite dominante.

O novo regime, porém, não se preocupou apenas com as relações comerciais agroexportadoras, fato que permite observar que a Chancelaria brasileira se voltou também para uma conjuntura mundial que perpassava entre o Imperialismo e a luta entre imperialismos. Pensar essa questão conjuntural é premissa básica para a compreensão do projeto do Itamaraty, na medida em que o Brasil, no quadro geral do sistema capitalista, desfrutava de pouca autonomia, apresentando, nos primeiros anos republicanos, grande fragilidade econômica diante da Europa (principalmente a Inglaterra). Esse contexto gerava uma clara dependência em relação ao centro do capitalismo mundial.5 5 Sobre isso ver, entre outros: BUENO, Clodoaldo; CERVO, Amado Luiz. História da política exterior no Brasil. Brasília: Ed.UnB, 2002; RODRIGUES, José Honório. Interesse nacional e política externa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; RODRIGUES, José Honório; SEITENFUS, Ricardo. Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1995; MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria. São Paulo: Moderna; Ed. Unesp, 1997.

Diante dessa situação ficava claro para os vários segmentos da elite brasileira que a ação diplomática do Brasil não apresentava, naquele momento, primeira década do período republicano, um projeto definido e, por conseguinte, o país não conseguia estabelecer uma diretriz consciente na sua política externa, fato que auxilia na compreensão das constantes mudanças na chancelaria, o que agravava, ainda mais, a ausência de uma política externa coerente e continuada.

Em 1902 observamos o principal divisor de águas da História diplomática brasileira com a nomeação para Chanceler de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, que alcançou inquestionável legitimidade junto às elites brasileiras. Essa legitimidade esteve diretamente relacionada, entre outros fatores, com a questão das fronteiras. De acordo com Demétrio Magnoli, a figura do barão do Rio Branco está indissociavelmente vinculada à produção de uma imagem geográfica e cartográfica da pátria. A sua ação na questão das fronteiras "colocou-o no cume do discurso ideológico nacional" (Magnoli, 1997, p.261). Convém salientar que esse período, que se estendeu até a morte do Chanceler em 1912, ficou conhecido como o da 'diplomacia do barão' coincidiu com o apogeu da Primeira República.

Ao se analisar, ainda que bastante brevemente, a trajetória política de Rio Branco, desde o período imperial, fica clara a importância dada à questão das fronteiras, tanto no que tange as dimensões continentais brasileiras, quanto à centralização alcançada durante o Império, fatos que por si só, na concepção do barão, demonstravam a distinção do Brasil do restante do 'continente' sul-americano. Na compreensão de Rio Branco, a Monarquia fizera do Brasil um país "unido, grande, próspero e livre, alvo da inveja dos súditos de Gusmão Blanco e Porfírios Dias". Rio Branco não escondia o orgulho de observar o Brasil como uma exceção na América do Sul, considerando que a ação imperial brasileira representou uma verdadeira 'missão civilizadora'.6 6 Sobre essa perspectiva de uma 'missão civilizadora' ver: LINS, Álvaro. Rio Branco. São Paulo: Alfa-Ômega; Brasília: Funag, 1996; CARVALHO, Carlos Delgado de . História diplomática do Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1959; CARVALHO, Affonso de. Rio Branco: sua vida e obra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 1995. Tal perspectiva ajuda a compreender o temor de Rio Branco de que, com a República, o Brasil deixasse de ser a exceção igualando-se aos demais países da América do Sul.

Um aspecto do pensamento de Rio Branco ligado à questão das fronteiras relaciona-se com o receio de eventuais agressões europeias à América do Sul, provocadas pela, já citada, ação imperialista. Essa lógica passava pela necessidade, não apenas do Brasil, mas de todo 'continente' sul-americano buscar um equilíbrio político, melhor maneira de evitar atentados às soberanias nacionais. Nesse sentido Rio Branco compreendia que deveriam ser buscadas soluções para as constantes crises políticas que assolavam a região.

Há que se ter em mente a dupla perspectiva – diferenciação/aproximação – assumida pelo barão em relação aos países sul-americanos. De um lado ele procurava diferenciar o Brasil dos demais países da região, porém tal diferenciação não significava isolamento. Ao contrário. O período do barão foi marcado pelo aumento considerável da presença diplomática brasileira na América do Sul. Soma-se a isso a ampliação do número de diplomatas estrangeiros no Rio de Janeiro, com o objetivo de transformar a Capital Federal no local com mais numeroso corpo diplomático do continente sul-americano.

Essa política adotada por Rio Branco buscava elevar o prestígio do Brasil a partir de uma lógica na qual o país ocuparia uma posição diferenciada no contexto continental fato que o levaria a exercer, obrigatoriamente, um papel de liderança. Tal posição só poderia ser confirmada a partir da demarcação e delimitação das fronteiras nacionais.

Com o êxito da ação política/diplomática na questão dos limites e a busca de uma nova posição brasileira no cenário internacional, Rio Branco tornou-se ícone de um país, ao menos em tese, unido, estável e com visibilidade externa. Essa união passava fundamentalmente pela defesa da soberania nacional e esta, em sintonia com a própria construção mitológica criada desde a época colonial, passava pela defesa do território brasileiro articulada a partir de então à uma aproximação com os países vizinhos.

O novo regime republicano abria as portas para um melhor entendimento diplomático do país com as repúblicas americanas. Tal fato significava que o Brasil abandonava, mesmo que gradativamente, o monarquismo europeísta – simbolizado pelos Bragança – e aderia à "vocação republicana e liberal das Américas". Não foi sem motivo que o novo regime brasileiro foi reconhecido inicialmente pelos países americanos e, só num segundo momento, obteve o reconhecimento dos governos europeus.7 7 Uruguai, Argentina e Chile foram os primeiros a reconhecer o novo governo brasileiro, já em 1889. Em janeiro de 1890, foi a vez de Bolívia, Venezuela, México e Estados Unidos. Na Europa, a França republicana foi a primeira, em julho de 1890, seguida por Grã-Bretanha, Itália e Espanha, em 1891.

As transformações pelas quais o Brasil e o mundo vinham passando no início do século XX – modernização capitalista, ascensão dos Estados Unidos no cenário internacional, conflitos na Europa decorrentes, principalmente, do Imperialismo – levaram a essa mudança de rumo na política externa brasileira, capitaneada por Rio Branco. Houve uma tentativa de abrir o leque das relações internacionais, quebrando a quase exclusividade europeia. Nesse sentido, é possível pensar que Rio Branco buscou solucionar os conflitos fronteiriços com os países vizinhos sul-americanos8 8 Durante a gestão do barão do Rio Branco à frente das negociações relativas a disputas territoriais (a partir de 1893) e depois como chanceler da República (entre 1902 e 1912), foram definidos vários litígios fronteiriços: com a Argentina, Guianas Francesa e Inglesa, Bolívia (em relação ao Acre), Peru, Venezuela, Colômbia, Uruguai, Equador (que na época limitava com o Brasil) e Holanda (em relação ao Suriname). Entre 1893 e 1912, 440 mil km 2 foram definidos favoravelmente ao Brasil. Sobre isso ver: DORATIOTO, Francisco. Espaços nacionais na América Latina: da utopia bolivariana à fragmentação. São Paulo: Brasiliense, 1994. – numa clara tentativa de aumentar a influência geopolítica do Brasil na América do Sul - e, ao mesmo tempo, aproximar-se dos Estados Unidos. Entretanto, o Ministro não aceitou uma adesão absoluta à política norte-americana, tentando uma posição estrategicamente equilibrada entre as influências britânica e norte-americana no Brasil. No discurso de abertura da III Conferência Pan-Americana – realizada no Rio de Janeiro entre julho e agosto de 1906 –, Rio Branco reafirmou sua opção de aproximação progressiva com os países americanos, mantendo, no entanto, relações favoráveis com a Europa.

Rio Branco teve clareza da importância que os Estados Unidos vinham adquirindo no século que se anunciava. Dentro desta perspectiva, uma de suas medidas como Ministro consistiu na elevação, em 1905, da legação em Washington à categoria de Embaixada (no mesmo ano, os Estados Unidos também elevaram sua legação no Rio de Janeiro ao nível de Embaixada, a primeira na América do Sul) escolhendo para ocupar o cargo Joaquim Nabuco, que aderiu intensamente à defesa do pan-americanismo.

De acordo com Demétrio Magnoli (1997) a historiografia insere a aproximação entre a política externa brasileira e a política pan-americanista como um fenômeno associado ao advento da República. Para o autor essa perspectiva é falha e superficial, na medida em que não consegue diferenciar dois processos distintos da história diplomática brasileira: de um lado a ascensão da influência norte-americana ocorrida antes mesmo da Proclamação da República e de outro a apropriação do pan-americanismo como discurso e ação diplomática, uma das principais características da política do barão. Em síntese, "o 'pai fundador' da diplomacia brasileira promoveu a ruptura dentro da continuidade, combinando a tradição realista herdada do Império com a renovação das concepções de mundo e dos paradigmas da política externa nacional" (Magnoli, 1997, p.208).

Podemos afirmar que o barão objetivou adaptar a política externa brasileira ao novo contexto internacional no qual os Estados Unidos estavam sendo alçados à condição de potência, fato que explicitava a construção de uma nova ordem internacional que estava redistribuindo o poder com a ascensão norte-americana. Para Rio Branco as grandes potências europeias já reconheciam que havia no Novo Mundo uma grande e poderosa nação com a qual deveriam contar e que necessariamente haveria de ter a sua parte de influência na política internacional do mundo inteiro.

Todavia essa aproximação deve ser observada a partir da clara proposta de conservação da autonomia nacional. Segundo Lafer e Peña, Rio Branco, ao compreender, conforme acima destacado, a relevância dos Estados Unidos, buscou aproximar os 'irmãos do norte' a 'serviço do Brasil' a partir de uma "aliança Brasil-Estados Unidos, dentro de um subsistema regional alargado para abranger às três Américas" servindo tanto para consolidar as fronteiras nacionais quanto para diminuir a influência europeia.9 9 LAFER, C.; PEÑA, F. Argentina e Brasil no sistema das relações internacionais. São Paulo: Duas Cidades, 1973.

A partir dessa perspectiva podemos começar a pensar em uma visão global do barão construída sobre os dois pilares aqui apresentados: o primeiro, sob a lógica central do pan-americanismo, estava ligado à consolidação da posição brasileira como elo entre os Estados Unidos e a América Latina, sobretudo a América do Sul; o segundo pilar estaria associado ao aprofundamento do papel nacional de polo geopolítico sul-americano possível, apenas, com a consolidação das fronteiras da nação, articulada a uma política de equilíbrio com os países fronteiriços. "O 'corpo da pátria', completamente delimitado na primeira década do século [XX], demandava, sob um ponto de vista geopolítico, a consolidação de sua coluna vértebra" (Magnoli, 1997, p.272).

Estabelecido os parâmetros e a ação geopolítica do Estado brasileiro nos primeiros anos republicanos, ganharam relevo novas possibilidades para os quadros da diplomacia nacional, em especial em relação a aspectos referentes à construção de possíveis estratégias ligadas a projetos culturais.

Em busca de uma diplomacia cultural

De acordo com Sérgio Danese, tão logo foram resolvidas as questões das fronteiras, coube à diplomacia brasileira se constituir, também, em instrumento do desenvolvimento dos demais projetos do Estado passando, a diplomacia "a trabalhar intensamente para colocar o Brasil no caminho da integração regional com uma contribuição expressiva na dimensão cultural da construção da nacionalidade".10 10 DANESE, Sérgio França. Diplomacia presidencial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. Corrobora com essa perspectiva o início de certo processo de profissionalização do corpo diplomático brasileiro posto em prática por Rio Branco. Na época do barão, o Ministério passou a se preocupar com a formação cultural e política de seus diplomatas que, até então, ingressavam na carreira apenas por meio de relações pessoais.

Ao pensarmos "na dimensão cultural da construção da nacionalidade" faz-se necessário apresentar o conceito de Diplomacia Cultural. Como base para a compreensão deste conceito, podemos pensá-lo associado aos processos de construção da paz entre as nações. De acordo com Edgard Telles Ribeiro,11 11 RIBEIRO, Edgard Telles. A diplomacia cultural e o seu papel na política externa brasileira. Brasília: Funag, 1989. baseando-se em T. S. Eliot, que ao definir cultura como sendo tudo que faz a vida ter valor, estabelece que elementos culturais são a essência das relações humanas, bem como das relações entre países. Com base nessa argumentação, Telles Ribeiro afirma que o vínculo entre cultura e política externa reside no propósito básico de se construir, por meio da compreensão e do conhecimento, uma sociedade pacífica.

A Diplomacia Cultural de maneira bastante objetiva pode ser pensada como um instrumento, uma estratégia de difusão de aspectos culturais de uma nação no exterior associada à divulgação interna de culturas estrangeiras. Diante dessa perspectiva seu universo temático pode ser resumido pelo: intercâmbio de pessoas; pela promoção da arte e dos artistas nacionais; pela divulgação geral de elementos culturais, pelo apoio a projetos de cooperação intelectual etc.

Para Telles Ribeiro as relações culturais internacionais caracterizam-se pela busca, ao longo do tempo, de uma maior compreensão e aproximação entre os povos e instituições com a meta de se estabelecer um proveito mútuo. A Diplomacia Cultural, segundo o autor, por sua vez, seria a utilização específica da relação cultural para se alcançar objetivos nacionais de natureza não somente cultural, mas também política, comercial ou econômica.

Outrossim, o autor salienta que se por definição o jogo diplomático tem como objetivo último contribuir para a preservação da paz mundial, nada mais eficiente para isso do que fortalecer os mecanismos de compreensão mútua, e para se alcançar tal compreensão a maneira mais eficiente e duradoura é o intercâmbio cultural que possibilitaria a transferência de uma nação à outra de experiências, ideias e patrimônios valiosos, favorecendo uma atmosfera de entendimento. Tal contexto também contribuiria para minimizar julgamentos por estereótipos, assim como reforçaria sentimentos pacíficos, pela própria noção da universalidade do patrimônio cultural e artístico. Nesse particular, de acordo com Telles Ribeiro, por menor que seja uma manifestação cultural de um país sobre outro, atrelada a um modesto mecanismo de cooperação intelectual, esses momentos reforçam a aproximação, contribuindo para a comunhão de povos e culturas.

A referida comunhão tende a reduzir as tensões entre Estados, uma vez que reduz a desconfiança, reforçando o principio da reciprocidade, contribuindo, dessa forma para legitimar a credibilidade dos intercâmbios culturais, reforçando um "indispensável clima de confiança mútua", tanto em um plano regional quanto em um intercontinental. Em última análise, para Telles Ribeiro, a "cooperação cultural constitui poderoso esteio na luta pela compreensão mútua dentro do respeito à diversidade – única maneira válida de melhorar as relações entre povos e Governos" (Ribeiro, 1989, p.43).

Essa aproximação baseada na construção de relações culturais entre nações, foi reconhecida, ao longo do século XX, como elemento constitutivo das relações internacionais. Um "terceiro pilar da política externa",12 12 Termo cunhado por Willy Brandt, ministro dos Negócios Estrangeiros da antiga República Federal da Alemanha, em 1966, citado em RIBEIRO, 1989. que se estabeleceu como uma das dimensões essenciais do relacionamento entre Estados na era contemporânea.

Reforça essa perspectiva a análise do sociólogo francês Marcel Merle13 13 MERLE, Marcel. Forces et engeux dans les relations internationales. Paris: Ed. Economica, 1985. que afirma ser necessário, para uma perfeita compreensão dos atores do campo das relações internacionais, o conhecimento das questões culturais, na medida em que estes elementos se sobreporiam a aspectos meramente políticos e econômicos. A argumentação central de Merle baseia-se no fato de boa parte dos conflitos internacionais, na sua leitura, ser consequência de tensões de origem cultural. Logo, esse elemento cultural teria que ser sempre levado em consideração no quadro de formulações diplomáticas.

É a partir da inserção nesse contexto que destacamos a importância da Revista Americana, periódico dirigido, inicialmente, pelos diplomatas Araújo Jorge, principal responsável pela Revista, e Delgado de Carvalho, bem como pelo jornalista Joaquim Viana, editada, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1909 e 1919,14 14 A partir de 1916 a direção da Revista Americana ficou a cargo de Araújo Jorge e Silvio Romero Filho. Cabe ressaltar que Araújo Jorge era secretário de Rio Branco e considerado por muitos seu principal assistente, apesar da pouca idade. Delgado de Carvalho teve grande importância na consolidação da diplomacia brasileira, assumindo a cadeira sobre História Diplomática no curso de formação de diplomatas. uma vez que a julgamos de extrema relevância para a compreensão do cenário político e cultural da época, bem como pensamos ser ela uma das primeiras, senão a primeira, manifestação organizada por um órgão ligado ao Estado que objetivava pensar a cultura e identidades nacionais, e estas deveriam ser inseridas em um projeto intercontinental.

A Revista Americana

No período no qual ela circulou, a Revista Americana foi uma das mais importantes publicações que apareceram na cena cultural brasileira. Além de divulgar ideias, seu principal objetivo era "aproximar intelectuais, congregar espíritos, revelar identidades e promover formas de integração cultural entre os diversos povos da América".15 15 SENADO FEDERAL. Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual. Seleção de artigos fac-similar. Brasília: Funag, 2001. Apresentação. Ao longo dos seus dez anos de vida,16 16 Com algumas interrupções, como durante parte da Primeira Guerra Mundial. foram tratados os mais variados assuntos, com temas que versavam desde a diplomacia, propriamente dita, à crítica literária passando pela publicação de poesias e contos que, na maioria das vezes, tratavam de problemáticas sul-americanas. É possível afirmar que ela foi pioneira e única, no Brasil, em seu gênero no período.

Neste sentido a publicação da Revista Americana pode ser vista como uma tentativa de se encontrar, senão uma resposta satisfatória às questões surgidas no período, ao menos um caminho de debate que levasse, doravante, a um possível denominador comum que representaria, em síntese, uma cooperação e solidariedade continental, molas mestras para se estabelecer a paz no continente.

De acordo com Álvaro da Costa Franco17 17 SENADO FEDERAL, 2001, Apresentação, cit. a Revista Americana surgiu como um projeto inovador de cooperação intelectual internacional desempenhando, durante dez anos, "papel de grande relevância, e único, em nosso cenário cultural", sendo núcleo de cooperação entre intelectuais americanos. Esta cooperação teria funcionado, segundo Costa Franco, como alicerce da política de aproximação com os 'vizinhos' do Brasil.

No editorial do primeiro número afirmava-se que Revista tinha como objetivo:

Divulgar as diversas manifestações espirituais da América e seguir ao mesmo passo, paralelamente, o traçado superior da sua evolução política e econômica, tornando-se um traço de união entre as figuras representativas da intelectualidade desta parte do mundo.

Ela facilitará ao historiador e ao geógrafo, ao político e ao jornalista, ao artista e ao filósofo, elementos seguros determinantes de uma noção exata e precisa dos múltiplos e paradoxos, aspectos da nossa vida espiritual.18 18 Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).

A Revista Americana é considerada por muitos como um dos instrumentos da política americanista de Rio Branco. Esta política, conforme já observado, insere-se em um novo momento da política externa brasileira, inaugurado com a Proclamação da República.

No já citado editorial do primeiro número da Revista, era constatado o hiato cultural existente entre as Américas, "continente conhecido aos fragmentos" que levava a "ignorância intelectual" entre os países do continente. Tal fato reforçava-se pelas distâncias que separam os países americanos assim como pela ausência, quase absoluta, de meios de comunicação rápidos e eficientes à época.

Havia a necessidade de se criar uma identidade própria para o Brasil e a América, na medida em que:

as ideias, para serem aceitáveis, necessitam trazer a marca europeia e transpor os mares nos bojos dos transatlânticos, o descaso injustificável pelas coisas do nosso continente; a indiferença pela sua história; o desamor às suas tradições; o desprezo pelos incontáveis aspectos de sua natureza e ter-se-á um quadro quase completo de várias causas por que as gentes americanas se desconhecem voluntariamente ...

Quando os povos americanos tiverem uma noção mais exata do valor das suas fortes qualidades originarias e nativas, ainda não de todo esmaecidos ao influxo das culturas exóticas; quando reconhecerem que o nosso continente, tão mal conhecido e ultrajado, constitui, por si só, uma matriz perene de estudos, exames, indagações... (ibidem)19 19 Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).

Portanto, torna-se de extrema relevância, analisar a Revista Americana reconhecendo a contemporaneidade das preocupações que a inspiraram e a sua importância no processo de criação de uma tradição republicana, aproximando-a da crença em um futuro no qual o Brasil poderia assumir um lugar de destaque no Continente e este no contexto mundial.

Inegavelmente pensar tais questões nos remete ao papel e às preocupações da intelectualidade de fins do século XIX e primeiras décadas do XX. Pesquisar um periódico que trás a posição de diplomatas / intelectuais com atuação nesse período nos aproxima, obrigatoriamente, aos projetos de construção da Nação, tema presente nos mais variados grupos intelectuais de então. Pensando de forma mais precisa, a análise desse período nos permite observar uma intelectualidade preocupada profundamente com o desenvolvimento tanto teórico quanto prático do que se convencionou chamar de Nações e Nacionalidades, compreendidas como combinações específicas de identidades culturais, mais ou menos forjadas, mais ou menos herdadas, territorialidades e aparatos estatais modernos, ou seja, entidades 'soberanas' capazes de entreter relações com seus 'súditos'.

Essa perspectiva se fez bastante presente no chamado 'Novo Mundo' que, ao longo de todo o século XIX e inicio do XX, apresentou como um de seus objetivos básicos a construção de seus Estados-nações. Tal construção passa pela própria definição do que seria uma nação, compreendida, em 1882, por Ernest Renan como:

uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas, que na verdade são uma só, constituem essa alma ou princípio espiritual. Uma se encontra no passado, outra no presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de memórias; a outra é o consentimento diário, o desejo de viver junto, a vontade de perpetuar o valor de uma herança recebida de forma indivisa ... pressupõe um passado; mas ela é sintetizada no presente como um fato concreto, o consentimento, o desejo expresso e claro de continuar uma vida em comum. A experiência de uma nação ... é um plebiscito diário, tanto quanto uma existência individual é uma perpétua afirmação da vida.20 20 RENAN, Ernest. O que é uma Nação. s.l.: s.n., 1882.

Fatores como política, interesses materiais comuns, necessidades militares entre outros, sempre se mostraram elementos decisivos na formação das nações ao longo de séculos, em especial a partir de fins do século XVIII, época que marcou o inicio da chamada 'Era das Revoluções', que pôs fim ao Antigo Regime.

Encontramos nas páginas da Revista Americana um claro esforço em analisar tais assuntos, relacionando-os com as preocupações contemporâneas, tanto no contexto mundial, quanto no contexto específico do chamado Novo Mundo, buscando criar um espaço para o debate entre a intelectualidade sul-americana, numa tentativa de gerar sínteses que poderiam ser transformadas em projetos para o continente.

Paralelo a isso, não se pode perder de mente que a Revista trouxe consigo um objetivo de consagração do Ministério das Relações Exteriores na recém-inaugurada ordem republicana brasileira, consagração esta que, no entanto, não foi alcançada, definitivamente, naquela época, mas que teve a Revista Americana como uma tentativa, um marco inaugural de uma Diplomacia Cultural que visava aproximar as nações americanas, notadamente as da América do Sul.

Neste sentido a Revista Americana apresentou como uma de suas principais preocupações a necessidade de reflexão acerca da formação territorial brasileira e, por extensão, sul-americana. Questões referentes a essa temática, tal qual o pan-americanismo, tiveram destaque ao longo de todo o período em que a Revista circulou e, em última análise, foram legitimadoras desse projeto maior de consagração da diplomacia na elaboração de um ideário pautado na aproximação das nações da América do Sul e, consequente, na construção de uma paz continental.

Consideramos a reflexão sobre os temas supracitados de fundamental importância para inserir a Revista em uma determinada época, em um determinado locus social, político e cultural, que, em última análise, nos remete a uma reflexão sobre a posição do Estado brasileiro por meio da visão do Ministério das Relações Exteriores do período, que teve no barão do Rio Branco seu principal artífice. Defendemos esse argumento na medida em que a abordagem de tais assuntos permite estabelecer uma nova perspectiva para questões relacionadas ao arbitramento internacional, abrindo espaço, inclusive, para o debate de temas como soberania, alianças e hegemonia, inseridos no processo de discussão da delimitação das fronteiras sul-americanas dentro de uma perspectiva de manutenção da paz e do equilíbrio político no continente. Tais temas apesar de não serem analisados neste artigo também aparecem com bastante recorrência nas páginas do periódico.

Conforme dito, na atuação do Ministério das Relações Exteriores das primeiras décadas republicanas, fundamentalmente a partir de Rio Branco, é possível notar a importância concedida à formação de um corpo diplomático que seria pilar central de um quadro institucional, suficientemente sólido, composto por verdadeiros 'Homens de Estado', preparados, independente do posicionamento político, para representar, defender e projetar o Brasil, tanto interna, quanto externamente. A construção das fronteiras, a demarcação dos limites e a consolidação do território, associadas à defesa nacional e a um determinado tipo de americanismo, bem como a busca de prestigio internacional, foram a marca do Ministério das Relações Exteriores na construção do projeto de República e de certa forma definiram o papel da diplomacia na recém-inaugurada ordem republicana.

A Revista Americana se insere nesse projeto político de aproximação com os vizinhos americanos. Dentro dessa perspectiva temas ligados à formação territorial do continente, uma das funções básicas da diplomacia, tiveram grande destaque nas páginas do periódico. A valorização dessa temática implicava o recurso à história como auxílio para a construção de projetos de Nação apresentados nas páginas do periódico.

Essa perspectiva de valorização da narrativa histórica como legitimadora das posições políticas e culturais se fez presente na Revista Americana em vários momentos. Dentre eles destaca-se o da morte de Rio Branco, quando a Revista valorizou a memória do barão buscando claramente estabelecer e legitimar critérios que justificassem não apenas as ações do Chanceler, mas também as estratégias do Brasil a partir de então. As análises então apresentadas foram debatidas à luz do que era, e é, de certa forma, definido como o paradigma riobranquiano da política externa brasileira.

Poucos dias após a morte do Chanceler, na edição de fevereiro de 1912, a Revista apresentou um Editorial no qual elaborou um discurso que permitiu, fazendo uso das próprias palavras do barão, reafirmar suas teses e constituir princípios para a diplomacia brasileira e sul-americana. Ao salientar o lema básico da trajetória de Rio Branco Ubique patriae menor,21 21 "Em qualquer lugar a pátria em minha lembrança". a Revista Americana observou e defendeu a necessidade de como um diplomata deveria se colocar e, principalmente, colocar seu país acima de todo e qualquer tipo de interesse, devendo ser este o legado da diplomacia brasileira. Caberia aos diplomatas o papel de construir um projeto de nação, projeto este voltado para o futuro, mesmo que para isso as estratégias diplomáticas não fossem perfeitamente compreendidas, uma vez que seria característica da política internacional de qualquer Estado o reconhecimento apenas posterior de seus feitos.

Fazendo uso das palavras do barão, especificamente de seu pronunciamento na Conferência Pan-Americana de 1906, a Revista Americana ressaltava o que seria a essência e o legado deixado pelo Chanceler, a saber: a unidade territorial brasileira associada a uma cordialidade nas relações internacionais, sendo esta uma função básica das nações civilizadas. Para Rio Branco havia, à época, uma tendência insana e bárbara que estaria abalando os meios cultos. Nesse particular deveria ser estabelecido, entre os estadistas, um verdadeiro senso político voltado, fundamentalmente, para o combate a todo e qualquer tipo de rivalidade internacional. Portanto, não deveria haver qualquer tipo de preocupação por parte dos vizinhos brasileiros. Nas palavras do Chanceler reproduzidas no editorial:

Este vasto país todo unido, na tranquila segurança de seus destinos, sem preocupações ambiciosas ... nunca teve, pretensão e predomínio de hegemonia. O patriotismo brasileiro nada tem de agressivo ... mais ainda por atos de que por palavras fiéis às tradições da nossa política exterior, trabalhamos sempre por estreitar as nossas relações com as nações do nosso continente e particularmente com as que nos são mais vizinhas ... Repúblicas limítrofes, a todas as nações americanas só desejamos paz, iniciativas inteligentes e trabalhos fecundos para que, prosperando e engrandecendo-se, nos sirvam de exemplo e estímulo à nossa atividade pacífica, como a grande e gloriosa irmã do norte, promotora dessas úteis conferências. Aos países da Europa, a que sempre nos ligaram e hão de ligar tantos laços morais e tantos interesses econômicos, só desejamos continuar a oferecer as mesmas garantias que lhes têm dado até hoje o nosso constante amor à ordem e ao progresso.22 22 Revista Americana, fev. 1912. (Editorial).

Esta citação nos remete a algumas questões bastante elucidativas quanto à escolha por parte dos editores da Revista desse discurso. Além do explícito posicionamento em relação à América do Sul com os indicativos do concerto político desejado pelo Estado brasileiro, evidencia-se a necessidade de aproximação com os Estados Unidos, entretanto por um viés claramente realista, sobretudo por manter uma posição favorável diante da Europa.

Por fim, Rio Branco encerra sua fala enaltecendo o lema republicano, estratégia fundamental de sua política externa, tanto na aproximação com os norte-americanos, quanto com os 'vizinhos mais próximos'. Igualmente, fica evidenciada a questão da formação territorial do continente, compreendida, na lógica riobranquiana, a partir da construção das fronteiras brasileiras. Sendo esta, conforme já afirmado, o grande legado da 'diplomacia do barão'.

Tal perspectiva pode ser observada em artigo de Rui Barbosa,23 23 BARBOSA, Rui. Rio Branco. Revista Americana, abr. 1913. Esse número foi todo dedicado ao barão do Rio Branco, tendo sido publicado na íntegra com o título O barão do Rio Branco visto por seus contemporâneos. Brasília: Funag, 2002. Essa foi a edição utilizada. publicado na Revista Americana, no qual afirmava ter sido Rio Branco "o último benfeitor das nossas fronteiras", salientando, que ele não implementou uma política expansionista, pois não alargou divisas brasileiras e, sim, 'restaurou-as', tendo sido sua obra não uma ampliação, mas uma retificação. Nas palavras de Barbosa:

Não direi, como se tem dito, que nos dilatou o território. Não. Os grandes méritos de outras coisas não precisam que da verdade. Só ela, no tribunal da posteridade, resiste ao juízo final.

Thiers, obtendo a desocupação do solo de França, pelos alemães, não aumentou o território francês: restabeleceu-o. Foi seu libertador. Rio Branco alcançando o reconhecimento do nosso direito à região que o estrangeiro nos disputou, não alargou as nossas divisas: restaurou-as.

A sua obra não foi de ampliação, mas de retificação, de restituição, de consagração. Mas nem por isso é menor ...

Para sermos bons irmãos, entre nossos vizinhos, cumpre assentar, em causa julgada, que o Brasil nunca teve cobiças nem perpetrou expansões territoriais.

Invejável destino o desse conterrâneo em sua realidade, projetando o seu vulto sobre os extremos do país, espécie de nome tutelar, como deus Termeiro da nossa integridade nacional. (Barbosa, 2002, p.17)

Interessante notar a utilização do verbo restaurar por parte de Rui Barbosa. Tal expressão por si só remete à perspectiva do mito do território pronto. A política de fronteiras do barão, para Rui Barbosa, não expandiu, não conquistou territórios, fez apenas cumprir o que seria o legado histórico do Brasil. Logo é de fundamental importância, para o discurso e a ação diplomática, a valorização de uma dada narrativa histórica, fato que nos auxilia na compreensão da (re)leitura realizada como mecanismo de legitimação das posições políticas tomadas pelo Estado brasileiro, no alvorecer do período republicano.

A valorização da estratégia do Chanceler como exemplo de homem público e de estadista que, portanto deveria servir de referência a partir de então para a República foi tema central de vários artigos publicados no número em homenagem ao barão, assinados por eminentes intelectuais do período, como, por exemplo, Pandiá Calógeras.

Calógeras,24 24 CALÓGERAS, João Pandiá. Rio Branco e a política exterior. Revista Americana, abr. 1913. em longo artigo, desenvolveu aprofundada reflexão acerca da política de Rio Branco, enfatizando aspectos referentes às relações do Brasil com o restante da América e a importância do Direito Internacional, assim como o papel político que fora desenvolvido pelo barão e que deveria servir de exemplo para os 'Homens de Estado' brasileiros.

Para Calógeras era a aproximação com o restante do continente americano, em especial a América do Sul, com o objetivo de manter a paz sul-americana, um dos principais legados da recém-proclamada República. Para tal seria necessário que a diplomacia se transformasse em um instrumento suprapartidário, isto é, que estivesse acima das "desordens da política interna". Segundo o autor, deveria ser sob esse prisma a observação acerca do período do barão à frente da Chancelaria brasileira. De acordo com Calógeras, Rio Branco fora convicto na defesa de uma dada autonomia do Ministério, fundamental na medida em que o regime instituído incentivava a duração efêmera dos partidos, o predomínio de interesses individuais e uma tendência a inexistir um debate intelectual saudável com espaço para divergências.

A política internacional deveria corresponder aos anseios, às necessidades permanentes do Estado e dos deveres deste. Logo, não poderia ser dependente de quaisquer grupos que apresentassem vícios políticos nocivos à Nação e sim deveria ficar a cargo de uma elite, de homens que, independentemente de suas posições políticas, tivessem em mente a clara concepção do dever para com o Brasil, reunindo predicados suficientes para exercer tão importante função. Nesse sentido Calógeras afirmava ter sido estratégia de Rio Branco:

atrair para sua orientação diplomática colaboradores de todos os feitios mentais, nas Câmaras e fora delas. Empenhado em fazer uma política exterior nacional, lograria seu intento pela coadjuvação constante de todos os brasileiros, irmanados no mesmo ideal que animava ao chefe eminente da Chancelaria. (Calógeras, 1913, p.188)

Por mais que já se tenha criticado essa visão, defendida por alguns até os dias de hoje, de certa autonomia do Ministério das Relações Exteriores, à época do barão, que o caracterizaria como uma espécie de braço independente do Poder Executivo, é interessante notar que a defesa de tal autonomia, presente no discurso de Calógeras, nos remete para qual papel, e consequentemente, que preparo, deveria ter o corpo diplomático brasileiro. Aponta, em última análise, para a função do Itamaraty na recente ordem republicana, qual seja: uma instituição que deveria, com base no mérito pessoal e no profundo conhecimento da Nação, construir um projeto nacional, com repercussão internacional, a fim de garantir a legitimidade e a respeitabilidade, no estrangeiro, da política e da cultura brasileira e, por extensão, sul-americana sendo que tal reconhecimento deveria ter como pilar central a cooperação entre os povos americanos que faria da América o 'Continente da Paz'.

A busca da paz continental, para Calógeras, passava pelo estabelecimento de relações cada vez mais estreitas entre as 'nações confrontantes' da América do Sul. Essa aproximação se inseria em uma estratégia do Ministério voltada para acabar, inicialmente com as desconfianças entre 'os vizinhos'.

Neste sentido o estudo e o desenvolvimento de um Direito Internacional de viés americano deveriam ganhar relevo nas preocupações diplomáticas do período, fato que foi bastante valorizado nas páginas da Revista, que, com isso, sinalizava qual caminho e que papel deveria assumir a diplomacia no concerto político e cultural que estava sendo construído naquele momento. Direção que deveria assumir uma perspectiva de valorização de um modelo americano que garantiria a paz para a região. Reside aí, conforme já destacado, uma importante linha argumentativa da Revista, baseada na valorização do corpo diplomático em uma nova ordem que garantia um estreitamento das relações internas do continente, fato que exigiria além de uma aproximação política e econômica, uma aproximação cultural e intelectual, obviamente capitaneada pelas diplomacias nacionais. Nesse momento estariam lançadas tanto as bases para se estabelecer o lugar do Ministério na nova ordem republicana quanto a inserção do Brasil na esfera continental americana que deveria apresentar uma moral própria diante do concerto internacional do período.

A América como exemplo a ser seguido foi base de argumentação para J.C Gomes Ribeiro. Em artigo intitulado "As fronteiras do Brasil" afirmava ser necessário o estabelecimento de uma "era de solidariedade, entre as nações sul-americanas" que deveria se ligar com a criação de um Direito Internacional exclusivo da América, tendo como princípio fundamental, a fórmula decisória das questões de limites com base em recursos da arbitragem internacional.25 25 RIBEIRO, J. C. Gomes. As fronteiras do Brasil. Revista Americana, mar. 1917. Houve continuação em abril e junho do mesmo ano.

Com o claro objetivo de legitimar seus argumentos, Gomes Ribeiro realiza uma detalhada análise histórica acerca do processo de delimitação das fronteiras ao longo do período imperial brasileiro, destacando o que ele considerava serem os princípios gerais da diplomacia brasileira do Império: o Uti Possidetis e o respeito aos tratados firmados entre Portugal e Espanha à época colonial, quando não contrariassem os fatos da possessão e esclarecessem dúvidas resultantes da falta de ocupação efetiva.

Gomes Ribeiro demonstrou, nesse artigo, uma preocupação em definir o termo 'fronteira' em um sentido jurídico mais tradicional associando-o tanto ao que se refere às questões políticas entre vizinhos quanto ao reconhecimento interno do território. Para o autor:

o limite territorial das nações, a linha de contato das jurisdições de cada uma delas, interessando portanto, profundamente, o seu conhecimento cabal, não só aos Estados limítrofes como também, individualmente aos cidadãos de qualquer deles, em razão da multiplicidade de fatores sociais e políticos que de fronteira decorrem, na ordem institucional, na penal, na administrativa, na comercial e sobretudo na estratégica. (Ribeiro, 1917, p.106)

De certa maneira a análise da Revista evidencia o que pode ser entendido como a função que o corpo diplomático brasileiro e, por extensão, sul-americano deveria assumir naquele momento, como construtor de uma moral americana distinta do restante do mundo e que deveria servir de exemplo. O papel da diplomacia, em última análise, permeou os debates, tornando-se pedra de toque das argumentações dos articulistas da Revista Americana.

Em última análise, podemos afirmar que a valorização da diplomacia brasileira presente nas páginas da Revista Americana servia de norte para qual papel deveria exercer o Ministério das Relações Exteriores, na recém-inaugurada ordem republicana e, por extensão, na nova inserção do Brasil na cena continental, na qual a meta seria estabelecer, conforme dito, um padrão moral próprio da América a partir da construção de novos paradigmas jurídicos, que deveriam servir de modelo para outros continentes.

Mesmo sabedor que essa perspectiva defendida nas páginas da Revista Americana merece todas as relativizações e críticas, na medida em que era notória a existência de uma rivalidade entre as nações sul-americanas, é possível observar na Revista que um dos elementos aglutinadores de seus articulistas reside na valorização de uma moral americana pautada na defesa de princípios que teria no corpo diplomático e, por conseguinte, no Ministério, a instituição que seria responsável pela sua aplicação e, portanto, peça chave para estabelecer quais paradigmas deveriam ser seguidos pela América do Sul no alvorecer do século XX. Tal premissa é peça chave para a compreensão do projeto da Revista e da própria retórica da diplomacia brasileira e sul-americana nas duas primeiras décadas do século XX, que em síntese pode ser caracterizada a partir da necessidade de se estabelecer, muito mais do que um diagnóstico preciso da realidade, um prognóstico, um projeto de futuro que deveria ser construído, com uma América muito mais do que real, uma América possível, uma América imaginada que deveria se apoiar em seu passado histórico para alcançar um novo futuro no qual ela ocuparia o que era considerado como o seu devido lugar.

Os artigos da Revista Americana expressam uma determinada leitura acerca de qual papel deveria assumir a diplomacia brasileira na nova cena política que naquele momento estava sendo construída, tanto em nível externo, com o novo concerto das nações no contexto da Primeira Guerra Mundial, quanto internamente com a consolidação da ordem republicana na qual o corpo diplomático brasileiro buscava seu espaço. Em ambas as perspectivas havia a valorização de uma aproximação entre as nações americanas como mote para a construção de uma nova ordem continental que passaria pela construção de mecanismos de soluções de conflitos fronteiriços por meio de uma moral americana pautada em um conjunto de normas que garantiriam a paz e o equilíbrio entre as nações.

No tenso contexto do alvorecer do século XX, os posicionamentos dos analistas sobre o período, variaram desde a consideração da diplomacia como um instrumento de civilização regulador das relações internacionais servindo como instituição responsável pela defesa das nações menos poderosas, passando por elemento estratégico de expansão comercial e negociadora em situações extremas de conflito armado, promovidas, fundamentalmente, pelas nações centrais da economia capitalista.

Nos debates da Revista Americana ficava latente a necessidade de se pensar um determinado projeto para as Américas em um contexto de evidente tensão fruto de uma clara transição, caracterizada por uma crise de valores e de paradigmas, que trazia consigo um enorme desafio para aquela geração intelectual: o de compreender um mundo em constante mudança sem referências consolidadas.

A Revista valorizou a diplomacia e indicou caminhos para o Brasil e a América do Sul, que deveriam ser trilhados, construídos. Ao se perceber as estratégias e os rumos do Itamaraty nas décadas posteriores à publicação do periódico, fica claro qual o maior legado da Revista Americana. Ela pode ser pensada como a primeira experiência brasileira do que se denominou, posteriormente, 'diplomacia cultural', articulada a um projeto de aproximação sul-americana. Capitaneada pelos corpos diplomáticos do continente, tal política baseou-se na elaboração de uma moral e uma cultura próprias, da e para a América do Sul, a partir das articulações de uma série de conceitos que se mostraram caros para o debate diplomático e intelectual sul-americano da época.

Corroborando com essa perspectiva, há aspectos presentes na própria estrutura da Revista que apontam para essa aproximação entre as nações sul-americanas e que não foram possíveis de serem apresentados neste artigo. Nesse particular deve ser destacada a lógica divulgadora explicitada pelo próprio periódico, especificamente nas seções denominadas 'Bibliografia', que consistia em uma espécie de boletim acerca dos livros que chegavam ao conhecimento da redação, na seção 'Revistas' que consistia em resenhas de alguns periódicos publicados na América e na Europa e, finalmente, na seção 'Notas' direcionada aos leitores versando sobre assuntos diversos, com especial destaque para resenhas críticas sobre publicações a respeito da própria Revista Americana.

Outrossim, existem textos de caráter mais literário, versando desde a história da literatura e da crítica literária propriamente dita, até a poesia e a ficção. A maioria desses textos trazia consigo uma preocupação em divulgar elementos culturais, históricos e sociológicos, das várias nações da América do Sul.

Outro aspecto que também merece destaque era o sentimento de americanidade que ganhava relevo, em diversas abordagens presentes na Revista que simultaneamente à defesa da pátria, da integridade territorial e da soberania nacional, projetavam a defesa de um ideal americano, especialmente em artigos que versavam sobre temas diplomáticos.

Vários textos de história e critica literária apresentavam a clara função de informar ao leitor do periódico as diversas manifestações culturais de parte de América do Sul, em especial as do Brasil e Argentina, com algum destaque para o Chile, Uruguai e Peru, permitindo um maior conhecimento da literatura dos 'vizinhos', mas, igualmente, atualizando e incentivando a reflexão sobre as culturas políticas presentes, com o objetivo de valorizar as semelhanças entre as nações acima citadas.

Interessante perceber que a valorização dos aspectos em comum das nações sul-americanas foi bastante marcante. Pode-se afirmar que a Revista tinha a preocupação em salientar tudo aquilo que poderia promover a aproximação entre as nações, associada com a defesa da tese de que a América seria um continente de paz. A busca de um ideal americano era preocupação de vários autores servindo de base para o projeto da publicação. Daí sua importância para a análise dos intelectuais que formaram a diplomacia sul-americana, em especial a brasileira nos primeiros anos do século XX e que serviram de base para o pensamento e a ação diplomática nas décadas seguintes.

Em relação a essa geração da diplomacia brasileira não se pode perder de mente que na sua esmagadora maioria ela foi oriunda, nesse inicio de período republicano, das fileiras da Monarquia. Para se pensar essa transição da Monarquia para a República é chave compreender as estratégias empreendidas pelo corpo diplomático e, em última análise, pelos argumentadores da Revista Americana. Neste sentido não é possível concordar com os que tendem a colocar a diplomacia brasileira como herdeira nostálgica da época do Império. Ela assumiu um novo papel na ordem republicana se reconhecendo como parte de um grupo de nações que apresentava os requisitos necessários para conduzir um determinado projeto político e cultural responsável pela criação e, posteriormente, a consolidação de uma pretendida tradição republicana nas relações internacionais ao longo do século XX.

Há que se destacar que foi justamente ao longo do século passado que o Ministério das Relações Exteriores estabeleceu uma política institucional de formação permanente de quadros com a consolidação da profissionalização da carreira diplomática. Data do período imediatamente posterior ao fim da publicação da Revista, décadas de 1920 e 1930, o início dessa preparação sistemática para a formação efetiva de um corpo diplomático, uniforme e, principalmente, altamente qualificado, sobretudo nos campos da História, da Geografia e do Direito, além, obviamente, das questões internacionais, tanto para representar o Brasil no exterior, quanto para legitimar, internamente, as ações do Ministério. Nesse cenário, edificou-se a criação do Instituto Rio Branco que, a partir da década de 1940, tornou-se o órgão responsável, por excelência, pela formação do corpo diplomático brasileiro.

A defesa de princípios como o de cooperação e intercâmbio entre as nações da América do Sul, de um lugar próprio no concerto das nações, de uma identidade única, de uma moral específica, de princípios jurídicos próprios e modelares para uma nova ordem continental e internacional, que marcaram a formação da Diplomacia brasileira no século XX, são elementos observáveis no projeto da Revista Americana.

NOTAS

Artigo recebido em 7 de novembro de 2009.

Aprovado em 8 de agosto de 2011.

  • 1 Estamos pensando nos pressupostos da 'virada linguística', em especial as perspectivas desenvolvidas por Quentin Skinner e J. G. Pocock. Sobre isso ver: SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas; Motives, intentions and interpretation of texts; e Reply to my critics; todos se encontram em TULY, James. Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988;
  • SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Ver também: FALCON, Francisco. História das idéias.
  • In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História Rio de Janeiro: Campus, 1997; e Introdução: o estado da arte; o conceito de linguagem e o métier d'historien, todos encontrados em J. G. POCOCK. Linguagens do ideário político São Paulo: Edusp, 2003.
  • 2 POCOCK, 2003. A perspectiva do lance nos remete, segundo Pocock, a um processo no qual um ato de fala é enunciado e de certa forma busca inovar o contexto linguístico, permitindo ao historiador observar o que um autor (ou grupo de autores) estava fazendo no momento de elaboração de seu discurso.
  • 3 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.85.
  • 4 Estamos considerando 'geração' compreendendo-a com base na fusão entre memória e história, ou seja, na existência de uma memória comum, um testemunho de como um conjunto de homens viveu determinada época. Nesse sentido, devemos ligar gerações aos marcos, aos eventos fundadores, mas com o cuidado de não nos determos somente neles, pois não devemos datar uma geração apenas pelos fenômenos sociais ocorridos, na medida em que estes podem ser apreendidos de várias maneiras. Sobre isto ver: ATTIAS-DONFUT, Cleudine. La notion de génération: usages sociaux et concept sociologique. In: L'Homme et la Societé, Paris, ané XXII, v.90, 1988 ; SIRINELLI Jean-François. La génération: la construction du temps historique. Paris: Histoire au Present, 1991.
  • 5 Sobre isso ver, entre outros: BUENO, Clodoaldo; CERVO, Amado Luiz. História da política exterior no Brasil Brasília: Ed.UnB, 2002; RODRIGUES, José Honório. Interesse nacional e política externa Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; RODRIGUES, José Honório;
  • SEITENFUS, Ricardo. Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945 Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1995; MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria São Paulo: Moderna; Ed. Unesp, 1997.
  • 6 Sobre essa perspectiva de uma 'missão civilizadora' ver: LINS, Álvaro. Rio Branco São Paulo: Alfa-Ômega; Brasília: Funag, 1996; CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1959; CARVALHO, Affonso de. Rio Branco: sua vida e obra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 1995.
  • 7 Uruguai, Argentina e Chile foram os primeiros a reconhecer o novo governo brasileiro, já em 1889. Em janeiro de 1890, foi a vez de Bolívia, Venezuela, México e Estados Unidos. Na Europa, a França republicana foi a primeira, em julho de 1890, seguida por Grã-Bretanha, Itália e Espanha, em 1891.
  • 8 Durante a gestão do barão do Rio Branco à frente das negociações relativas a disputas territoriais (a partir de 1893) e depois como chanceler da República (entre 1902 e 1912), foram definidos vários litígios fronteiriços: com a Argentina, Guianas Francesa e Inglesa, Bolívia (em relação ao Acre), Peru, Venezuela, Colômbia, Uruguai, Equador (que na época limitava com o Brasil) e Holanda (em relação ao Suriname). Entre 1893 e 1912, 440 mil km2 foram definidos favoravelmente ao Brasil. Sobre isso ver: DORATIOTO, Francisco. Espaços nacionais na América Latina: da utopia bolivariana à fragmentação. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • 9 LAFER, C.; PEÑA, F. Argentina e Brasil no sistema das relações internacionais São Paulo: Duas Cidades, 1973.
  • 10 DANESE, Sérgio França. Diplomacia presidencial Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
  • 11 RIBEIRO, Edgard Telles. A diplomacia cultural e o seu papel na política externa brasileira Brasília: Funag, 1989.
  • 12 Termo cunhado por Willy Brandt, ministro dos Negócios Estrangeiros da antiga República Federal da Alemanha, em 1966, citado em RIBEIRO, 1989.
  • 13 MERLE, Marcel. Forces et engeux dans les relations internationales Paris: Ed. Economica, 1985.
  • 14 A partir de 1916 a direção da Revista Americana ficou a cargo de Araújo Jorge e Silvio Romero Filho. Cabe ressaltar que Araújo Jorge era secretário de Rio Branco e considerado por muitos seu principal assistente, apesar da pouca idade. Delgado de Carvalho teve grande importância na consolidação da diplomacia brasileira, assumindo a cadeira sobre História Diplomática no curso de formação de diplomatas.
  • 15 SENADO FEDERAL. Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual. Seleção de artigos fac-similar. Brasília: Funag, 2001. Apresentação.
  • 16 Com algumas interrupções, como durante parte da Primeira Guerra Mundial.
  • 17 SENADO FEDERAL, 2001, Apresentação, cit.
  • 18Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).
  • 19Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).
  • 20 RENAN, Ernest. O que é uma Nação s.l.: s.n., 1882.
  • 21 "Em qualquer lugar a pátria em minha lembrança".
  • 22RevistaAmericana, fev. 1912. (Editorial).
  • 23 BARBOSA, Rui. Rio Branco. Revista Americana, abr. 1913. Esse número foi todo dedicado ao barão do Rio Branco, tendo sido publicado na íntegra com o título O barão do Rio Branco visto por seus contemporâneos Brasília: Funag, 2002. Essa foi a edição utilizada.
  • 24 CALÓGERAS, João Pandiá. Rio Branco e a política exterior. Revista Americana, abr. 1913.
  • 25 RIBEIRO, J. C. Gomes. As fronteiras do Brasil. Revista Americana, mar. 1917. Houve continuação em abril e junho do mesmo ano.
  • 1
    Estamos pensando nos pressupostos da 'virada linguística', em especial as perspectivas desenvolvidas por Quentin Skinner e J. G. Pocock. Sobre isso ver: SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas; Motives, intentions and interpretation of texts; e Reply to my critics; todos se encontram em TULY, James.
    Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988; SKINNER, Quentin.
    As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Ver também: FALCON, Francisco. História das idéias. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo.
    Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997; e Introdução: o estado da arte; o conceito de linguagem e o
    métier d'historien, todos encontrados em J. G. POCOCK.
    Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
  • 2
    POCOCK, 2003. A perspectiva do lance nos remete, segundo Pocock, a um processo no qual um ato de fala é enunciado e de certa forma busca inovar o contexto linguístico, permitindo ao historiador observar o que um autor (ou grupo de autores) estava fazendo no momento de elaboração de seu discurso.
  • 3
    HOBSBAWM, Eric.
    A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.85.
  • 4
    Estamos considerando 'geração' compreendendo-a com base na fusão entre memória e história, ou seja, na existência de uma memória comum, um testemunho de como um conjunto de homens viveu determinada época. Nesse sentido, devemos ligar gerações aos marcos, aos eventos fundadores, mas com o cuidado de não nos determos somente neles, pois não devemos datar uma geração apenas pelos fenômenos sociais ocorridos, na medida em que estes podem ser apreendidos de várias maneiras. Sobre isto ver: ATTIAS-DONFUT, Cleudine. La notion de génération: usages sociaux et concept sociologique. In:
    L'Homme et la Societé, Paris, ané XXII, v.90, 1988 ; SIRINELLI Jean-François.
    La g
    énération: la construction du temps historique. Paris: Histoire au Present, 1991.
  • 5
    Sobre isso ver, entre outros: BUENO, Clodoaldo; CERVO, Amado Luiz.
    História da política exterior no Brasil. Brasília: Ed.UnB, 2002; RODRIGUES, José Honório.
    Interesse nacional e política externa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; RODRIGUES, José Honório; SEITENFUS, Ricardo.
    Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1995; MAGNOLI, Demétrio.
    O corpo da pátria. São Paulo: Moderna; Ed. Unesp, 1997.
  • 6
    Sobre essa perspectiva de uma 'missão civilizadora' ver: LINS, Álvaro.
    Rio Branco. São Paulo: Alfa-Ômega; Brasília: Funag, 1996; CARVALHO, Carlos Delgado de
    . História diplomática do Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1959; CARVALHO, Affonso de.
    Rio Branco: sua vida e obra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 1995.
  • 7
    Uruguai, Argentina e Chile foram os primeiros a reconhecer o novo governo brasileiro, já em 1889. Em janeiro de 1890, foi a vez de Bolívia, Venezuela, México e Estados Unidos. Na Europa, a França republicana foi a primeira, em julho de 1890, seguida por Grã-Bretanha, Itália e Espanha, em 1891.
  • 8
    Durante a gestão do barão do Rio Branco à frente das negociações relativas a disputas territoriais (a partir de 1893) e depois como chanceler da República (entre 1902 e 1912), foram definidos vários litígios fronteiriços: com a Argentina, Guianas Francesa e Inglesa, Bolívia (em relação ao Acre), Peru, Venezuela, Colômbia, Uruguai, Equador (que na época limitava com o Brasil) e Holanda (em relação ao Suriname). Entre 1893 e 1912, 440 mil km
    2 foram definidos favoravelmente ao Brasil. Sobre isso ver: DORATIOTO, Francisco.
    Espaços nacionais na América Latina: da utopia bolivariana à fragmentação. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • 9
    LAFER, C.; PEÑA, F.
    Argentina e Brasil no sistema das relações internacionais. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
  • 10
    DANESE, Sérgio França.
    Diplomacia presidencial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
  • 11
    RIBEIRO, Edgard Telles.
    A diplomacia cultural e o seu papel na política externa brasileira. Brasília: Funag, 1989.
  • 12
    Termo cunhado por Willy Brandt, ministro dos Negócios Estrangeiros da antiga República Federal da Alemanha, em 1966, citado em RIBEIRO, 1989.
  • 13
    MERLE, Marcel.
    Forces et engeux dans les relations internationales. Paris: Ed. Economica, 1985.
  • 14
    A partir de 1916 a direção da
    Revista Americana ficou a cargo de Araújo Jorge e Silvio Romero Filho. Cabe ressaltar que Araújo Jorge era secretário de Rio Branco e considerado por muitos seu principal assistente, apesar da pouca idade. Delgado de Carvalho teve grande importância na consolidação da diplomacia brasileira, assumindo a cadeira sobre História Diplomática no curso de formação de diplomatas.
  • 15
    SENADO FEDERAL.
    Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual. Seleção de artigos fac-similar. Brasília: Funag, 2001. Apresentação.
  • 16
    Com algumas interrupções, como durante parte da Primeira Guerra Mundial.
  • 17
    SENADO FEDERAL, 2001, Apresentação, cit.
  • 18
    Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).
  • 19
    Revista Americana, v.1, set. 1909. (Editorial).
  • 20
    RENAN, Ernest.
    O que é uma Nação. s.l.: s.n., 1882.
  • 21
    "Em qualquer lugar a pátria em minha lembrança".
  • 22
    Revista
    Americana, fev. 1912. (Editorial).
  • 23
    BARBOSA, Rui. Rio Branco.
    Revista Americana, abr. 1913. Esse número foi todo dedicado ao barão do Rio Branco, tendo sido publicado na íntegra com o título
    O barão do Rio Branco visto por seus contemporâneos. Brasília: Funag, 2002. Essa foi a edição utilizada.
  • 24
    CALÓGERAS, João Pandiá. Rio Branco e a política exterior.
    Revista Americana, abr. 1913.
  • 25
    RIBEIRO, J. C. Gomes. As fronteiras do Brasil.
    Revista Americana, mar. 1917. Houve continuação em abril e junho do mesmo ano.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      07 Nov 2009
    • Aceito
      08 Ago 2011
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