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A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto

Resumos

O reinado de d. Miguel (1828-1834) colocou fim à primeira experiência liberal portuguesa e foi marcado por intensa repressão política aos seus opositores. Contra o rei absoluto formou-se uma verdadeira 'internacional antimiguelista', que incluía brasileiros de diferentes condições sociais: cirurgiões, estudantes, militares, trabalhadores domésticos. Tendo como fonte principal os processos políticos do reinado de d. Miguel, pretende-se com este artigo reconstituir alguns aspectos da resistência ao regime implantado pelo rei usurpador com base no estudo de caso do réu Luciano Augusto. Homem preto e criado de servir, Luciano foi acusado de constitucionalista e partidário de d. Pedro IV. Entre outros objetivos, busca-se esclarecer o trânsito de pessoas e de ideias no interior do que fora, talvez, a parcela mais importante do império português, permitindo até mesmo o estabelecimento de contrastes entre o contexto americano e o europeu.

Estado Nacional; miguelismo; liberalismo


The reign of Dom Miguel (1828-1834) brought to an end the first Portuguese liberal experience, and was marked by the intense political repression of opponents. A 'anti-Miguelist international' was formed against the absolutist King, which including Brazilians from different walks of life, such as surgeons, students, military officers, and domestic workers. Drawing mainly on the political lawsuits from Dom Miguel's reign, this article seeks to reconstitute some aspects of the resistance against the regime established by the usurping king, using the case study of the Luciano Augusto. A black man and house servant, Luciano was accused of being a Constitutionalist and supporter of Dom Pedro IV. Amongst other objectives, we also seek to clarify the flow of people and ideas within what had been, perhaps, the most important part of the Portuguese Empire, which would also allow us to establish contrasts between the American and European contexts.

Nation States; Miguelism; Liberalism


ARTIGOS

A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto 1 1 A autora é bolsista do Programa Pesquisador Mineiro/Fapemig, e a pesquisa conta com o apoio da Capes e do CNPq e foi desenvolvida sob supervisão do prof. António Manuel Hespanha, da Universidade Nova de Lisboa. Agradeço aos colegas do Núcleo Impérios e Lugares no Brasil/Ufop as contribuições que deram ao aprimoramento deste texto.

The struggle of Brazilians against Miguelism in Portugal (1828-1834): the case of the black man, Luciano Augusto

Andréa Lisly Gonçalves

Universidade Federal de Ouro Preto – Campus de Mariana, Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Rua do Seminário, s/n. 35420-000 Mariana – MG – Brasil. alisly@terra.com.br

RESUMO

O reinado de d. Miguel (1828-1834) colocou fim à primeira experiência liberal portuguesa e foi marcado por intensa repressão política aos seus opositores. Contra o rei absoluto formou-se uma verdadeira 'internacional antimiguelista', que incluía brasileiros de diferentes condições sociais: cirurgiões, estudantes, militares, trabalhadores domésticos. Tendo como fonte principal os processos políticos do reinado de d. Miguel, pretende-se com este artigo reconstituir alguns aspectos da resistência ao regime implantado pelo rei usurpador com base no estudo de caso do réu Luciano Augusto. Homem preto e criado de servir, Luciano foi acusado de constitucionalista e partidário de d. Pedro IV. Entre outros objetivos, busca-se esclarecer o trânsito de pessoas e de ideias no interior do que fora, talvez, a parcela mais importante do império português, permitindo até mesmo o estabelecimento de contrastes entre o contexto americano e o europeu.

Palavras-chave: Estado Nacional; miguelismo; liberalismo.

ABSTRACT

The reign of Dom Miguel (1828-1834) brought to an end the first Portuguese liberal experience, and was marked by the intense political repression of opponents. A 'anti-Miguelist international' was formed against the absolutist King, which including Brazilians from different walks of life, such as surgeons, students, military officers, and domestic workers. Drawing mainly on the political lawsuits from Dom Miguel's reign, this article seeks to reconstitute some aspects of the resistance against the regime established by the usurping king, using the case study of the Luciano Augusto. A black man and house servant, Luciano was accused of being a Constitutionalist and supporter of Dom Pedro IV. Amongst other objectives, we also seek to clarify the flow of people and ideas within what had been, perhaps, the most important part of the Portuguese Empire, which would also allow us to establish contrasts between the American and European contexts.

Keywords: Nation States; Miguelism; Liberalism.

Este artigo parte da constatação de que os vínculos entre a história de Portugal e a do Brasil estiveram longe de se afrouxarem nos anos que se seguiram à emancipação política da ex-colônia portuguesa na América. A observação é válida também para o curto período do reinado de d. Miguel (1828-1834).

O (antigo) regime instalado pela contrarrevolução miguelista caracterizou-se por intensa repressão política aos seus opositores, até mesmo nos momentos que antecedem a guerra civil, que marcou os 3 últimos anos de seu reinado. O estudo de caso que apresento a seguir é parte de uma pesquisa mais ampla que busca investigar a atuação de brasileiros envolvidos em processos políticos abertos contra os que combateram o miguelismo em Portugal.

No conjunto de quase um milhar e meio de processos, que abarcam todos os anos do governo de d. Miguel, na capital Lisboa encontrei 11 envolvendo brasileiros de diferentes partes do país: Pernambuco, Maranhão, Minas Gerais, Pará e Rio de Janeiro. À exceção de um dos militares, Jerônimo Pereira de Vasconcelos, que será nobilitado quando da reinstalação do regime constitucional, tratava-se de pessoas comuns 2 2 Peter Burke utiliza, no seu estudo da Europa Moderna, a categoria povo comum para designar o "conjunto da não elite, incluindo mulheres, crianças, pastores, marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais". BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna: 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.11. Optou-se, neste trabalho voltado para a conjuntura de crise da sociedade de Antigo Regime, pela designação pessoas comuns porque ela permite que se identifique um grupo dos setores subalternos que partilha características semelhantes sem, contudo, desconhecer-lhe certa heterogeneidade. Para a definição da expressão pessoas comuns no contexto do século XIX, mais especificamente do Brasil imperial, ver JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm; Fapemig, 2009. p.26. que, em reuniões em mercearias, boticas, barbearias, becos e ruelas invectivavam contra o usurpador do Trono, irmão mais moço de d. Pedro. Brasileiros que entoavam cantos e hinos a favor da Constituição; que distribuíam e liam panfletos em locais públicos; que se manifestavam com gestos e palavras contrárias ao rei. Todos constitucionalistas, ou acusados de defenderem o liberalismo e, portanto, malhados, termo pejorativo, atribuído pelos miguelistas aos partidários da restauração da Carta Constitucional.

Entre estudantes, boticários e militares vindos do Brasil, apenas um deles foi declarado como homem preto: Luciano Augusto. São os fragmentos de sua ação política, reconstituída com base no registro feito por uma Comissão especial para apuração de crimes políticos, instalada pelo governo de d. Miguel, que serão apresentados neste trabalho.

A história social, a história política renovada e o gênero biográfico

A historiografia brasileira de fins dos anos 1990 e início deste milênio foi marcada, entre outros aspectos, pela renovação da história política. Das novas abordagens, uma das mais destacadas relaciona-se à discussão em torno da formação do Estado e da nação no Brasil. Nesse universo mais amplo, um tema que mobilizou vários estudiosos foi o dos diferentes projetos políticos que disputaram sua hegemonia no processo de constituição do Estado Nacional Brasileiro.

No âmbito dessa renovação, sobressaem interpretações sobre a estruturação do poder e a elaboração das leis; a constituição do aparato jurídico, as novas formas de organização da máquina administrativa. Ao longo desse percurso, um aspecto a ser ressaltado é a aproximação entre a história social e a história política renovada. Ainda que tal aproximação tenha se dado das mais variadas formas, uma das mais bem-sucedidas, parece-me, tem sido a dos estudos que se voltam para a elaboração de biografias, sejam individuais, sejam coletivas.

À primeira vista, o gênero biográfico sugeriria algo da velha forma de se fazer história política, com sua ênfase na personagem que, distanciada do contexto mais amplo, movida por traços particulares e puramente individuais, ostentaria a marca do heroísmo, tão caro a uma tradição historiográfica hoje praticamente superada. Porém, a tentativa de encarnar, de dar um 'rosto' à história, de realçar a posição dos sujeitos compreende, pelo menos nos casos mais bem-sucedidos, acatar a sugestão feita por Jacques Le Goff, em sua biografia de são Luís, de que, melhor do que qualquer outro objeto, uma personagem cristaliza em torno de si, de forma mais acabada, o conjunto de seu meio. 3 3 LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.21.

O que não significa cair naquele tipo de armadilha que Bourdieu chamou de a 'ilusão' biográfica. 4 4 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. Pelo menos no que diz respeito a este trabalho, a menção à construção de biografias, de histórias de vida não significa perder de vista o caráter fragmentário, descontínuo, quase inapreensível da 'vida' de um personagem. As próprias características das fontes aqui privilegiadas, os processos políticos, sobre os quais se falará mais adiante, apesar de trazerem informações sobre nascimento, ascendência e naturalidade dos sujeitos, permitem apenas que os situemos em um momento preciso de suas vidas, em determinada dimensão possível dos diversos campos em que atuaram. No caso em questão, esse momento é aquele em que se acham envolvidos nas malhas do poder sob acusação de crime contra o governo e a pessoa de Sua Majestade.

Outro ponto importante é que o estabelecimento de trajetórias individuais tem deixado de se circunscrever apenas aos sujeitos que alcançaram uma projeção mais ampla – outro sinal de renovação – para abarcar personagens mais obscuros, aqueles a quem optamos por referir como pessoas comuns. 5 5 Representativos dessa produção, ainda que não relacionada à história política, são, a meu ver: REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010; REIS, João J . Domingos Sodré: um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; SOARES, Mariza de Carvalho. A 'nação' que se tem e a 'terra' de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português, século XVIII. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v.2, p.303-330, 2004. Iniciativas como o projeto The Biographies: The Atlantic Slaves Data Network (ASDN), criado por Hawthorne e por Gwendolyn Hall, da Michigan State University, confirmam essa tendência. Multiplicam-se, assim, os estudos que oferecem, mediante um personagem, as tramas de seu tempo e o trânsito entre o espaço micro e o macrossocial.

A escassez de registros documentais, argumento recorrente para se fugir ao desafio de tentar elucidar aspectos da história de vida de determinados personagens inscritos no limiar do anonimato e da presença nos espaços públicos 'não formais', tem sido contornada pelo cruzamento de informações, muitas delas pontuais e fragmentárias. Uma alternativa que se coloca, também dependendo da disponibilidade dos registros, é a das biografias coletivas. O método prosopográfico tem se mostrado um importante instrumento capaz de promover, dentre muitas outras opções, a aproximação entre a história política e a história social.

Vários esforços têm sido feitos nesse sentido. Entre outros trabalhos, podemos citar os estudos que trataram do tema da estratificação social e das mobilizações políticas na Província de Minas Gerais, entre 1831 e 1835. 6 6 ANDRADE, Francisco Eduardo. Poder local e herança colonial em Mariana: faces da Revolta do "Ano da Fumaça" (1833). In: Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Ed. Ufop, 1998. p.127-135; ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; GONÇALVES, Andréa Lisly . Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Hucitec; Minas Gerais: Fapemig, 2008; GONÇALVES, Andréa Lisly; MEYER, Marileide L. Cassoli. Nas fímbrias da liberdade: agregados, índios, africanos livres e forros na província de Minas Gerais, século XIX. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, p.645-663, jul.-dez. 2011. Um dos principais objetivos dessa produção foi o de reconstituir as solidariedades e as dissensões observadas entre a população forra, escrava e mestiça da província no conjunto das mobilizações políticas em Minas Gerais, nos anos iniciais das Regências, no contexto de formação do Estado Nacional Brasileiro.

Uma constatação que acabou por se impor foi a de que muitos desses grupos se organizavam em torno de lideranças 'restauradoras'.

Essas lideranças destacaram-se, por exemplo, nas mobilizações populares ocorridas em 1831, em Santa Rita do Turvo, Termo de Mariana, Comarca de Ouro Preto, de profundo conteúdo étnico. Mais tarde, as mesmas lideranças se envolveram na Revolta do Ano da Fumaça, em 1833, quando os sediciosos tomaram o poder em Vila Rica.

Assim, o que mais chamava a atenção era a disposição desses grupos de feição conservadora para a mobilização dos setores populares, escravos, índios, mulatos, forros e mestiços em torno de suas bandeiras. O que, cumpre ressaltar, não seria uma especificidade da província mineira. Não que os partidários do liberalismo fossem totalmente avessos a esse tipo de mobilização, mas sua adesão ao pacto político liberal talvez os fizesse apostar mais em uma forma de ação política dentro da ordem.

As abordagens mostravam que as diferentes opções políticas dos grupos em confronto na província, entre 1831 e 1834, não correspondiam unicamente a laços pessoais, construídos de forma mais ou menos aleatória, o que era possível apontar, por exemplo, ao se estabelecer o perfil socioeconômico dos que apareciam na documentação como tendo participação direta nos conflitos. Assim, indicaram-se as dimensões das posses de escravos, a natureza da ocupação dos cativos, as principais atividades desenvolvidas nas propriedades dos pesquisados e determinados laços políticos, sociais e econômicos estabelecidos pelos envolvidos nos movimentos.

No caso específico da Comarca de Ouro Preto, uma das lideranças mais expressivas foi a do capitão-mor Manoel José Esteves Lima. Vereador em Mariana por várias legislaturas, arrematador dos dízimos, engenheiro de cana, ressalta-se, entre as atividades do camarista, aquela que exerceu como administrador do trabalho forçado de indígenas e recrutas na abertura de estradas no Antigo Sertão do Rio da Casca, a fim de estabelecer a ligação entre Minas Gerais e o Espírito Santo. Com essa personagem, reforça-se a convicção da importância dos estudos biográficos ou trajetórias de vida, ao lado do intento de procurar desvendar as razões pelas quais os setores populares, naquela conjuntura específica, alinhavam-se a grupos portadores de projetos conservadores.

No intenso jogo político vivido na província mineira nos anos regenciais, a invectiva publicada no jornal liberal O Universal de 6 de abril de 1831 afirmava que Manoel Esteves era "Mais inimigo da liberdade do que os mesmos satélites de d. Miguel". As menções ao reinado de d. Miguel em O Universal, porém, são pouco frequentes, sendo raros os artigos como o do número 311, de 10 de julho de 1829, no qual se prega a condenação do regime de terror imposto por d. Miguel. O que não deixa de causar estranheza, e não apenas pelo compromisso do periódico com o grupo de liberais moderados. Atribui-se a redação do jornal a Bernardo Pereira de Vasconcelos, que viveu o drama dos perseguidos políticos miguelistas na figura de seu irmão mais velho, Jerônimo Pereira de Vasconcelos. Coronel da Infantaria 16, Jerônimo Pereira de Vasconcelos foi preso em Lisboa sob a acusação de, desde Coimbra, ser uma das lideranças da revolução antimiguelista do Porto, em 1828. Apesar disso, pelo que se pode verificar, a associação entre Esteves Lima e os partidários de d. Miguel era apenas um recurso retórico utilizado pelo jornal. Não há indícios de ligação entre o Capitão Mor e os ultrarrealistas portugueses.

Tais constatações chamaram minha atenção para a viabilidade de levar adiante um estudo comparado entre formações sociais em que a mobilização de setores ínfimos para o apoio a projetos restauradores parecia ter sido algo importante, o que me levou a pesquisar a personagem d. Miguel e as forças que o apoiaram, não apenas no período de seu reinado em Portugal, mas também no momento de sua aparição política, no ano de 1823. Opção reforçada pela constatação de que tais mobilizações também faziam parte das disputas entre diferentes projetos políticos presentes no processo da formação do Estado Nacional Moderno em Portugal.

As pesquisas em bibliotecas e arquivos portugueses tiveram o efeito de reforçar minha disposição para buscar estabelecer relações entre os dois contextos, mesmo após a independência política do Brasil. Nesse sentido, sobressaem alguns temas que, se não são inéditos, foram muito pouco explorados pela historiografia, sobretudo a brasileira. Um deles diz respeito aos significados que se podem atribuir, em termos das permanências da noção de Império luso-brasileiro, à adoção e vigência da Carta Constitucional brasileira em Portugal, entre os anos de 1826 e 1828. 7 7 "D. João VI morre a 10.3.1826, sem que se tivesse efetuado qualquer reunião das cortes tradicionais do reino. O seu filho primogênito, D. Pedro, que entretanto declarara a secessão do Brasil e se fizera imperador do novo Estado, sucede-lhe no trono, entregando a regência a sua irmã D. Isabel Maria (27.4.1826). Dois dias depois, D. Pedro outorga a Portugal a Carta Constitucional (29.4.1826), nomeando 30 pares para a respectiva Câmara (câmara alta) e mandando proceder a eleições de deputados, para a Câmara dos Deputados (câmara baixa). Tentando um compromisso com o partido legitimista, chefiado por seu irmão D. Miguel, abdica o trono de Portugal na sua filha D. Maria da Glória, contratando os seus esponsais com D. Miguel, sob condição de juramento da Carta, o que este faz em Viena (4.10.1826). HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. p.154. Sobre o mesmo tema, ver Considerações sobre a constituição da Monarquia Portuguesa. Para as reformas que se devem fazer na Carta Constitucional de 29 de abril de 1826. Lisboa: Tip. de Sotero Antônio Borges, 1851, Biblioteca Nacional de Lisboa. Exame da Constituição de D. Pedro e dos direitos de D. Miguel dedicado aos fiéis portugueses. Trad. do Francês por J. P. C. B. F. Lisboa, na Imprensa Régia, 1829, Biblioteca Nacional de Lisboa. Principalmente para os ultrarrealistas, partidários do futuro rei d. Miguel, a adoção da Constituição brasileira de 1824 significava uma inversão inconcebível nas relações entre Portugal e Brasil e deslocava o tema da emancipação política do Brasil para a antiga metrópole. Em outras palavras, a outorga da Carta Magna ao reino, por d. Pedro I, imperador do Brasil, munia a panfletária e violenta imprensa contrarrevolucionária portuguesa de argumentos 'nacionalistas' que exageravam no possível desequilíbrio de forças, necessariamente desfavorável à nação portuguesa, que colocaria em risco a sua 'independência' frente à jovem nação brasileira.

A lista dos temas que aproximam as histórias do Brasil e de Portugal na conjuntura específica da ascensão e do reinado de d. Miguel, portanto, não é negligenciável, como se depreende do exemplo citado. Além dele, outros podem ser apontados: a atuação de exilados antimiguelistas que, no Brasil, constituíram uma importante base de apoio ao imperador Pedro I; 8 8 A documentação sobre o tema é relativamente vasta. Destaco, aqui, pela originalidade da fonte, escrita por um exilado antimiguelista no Brasil, futuro 1º Marquês de Sá Bandeira, o Diário de Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo sobre o "Estado do Brasil". Contém esboço do Porto de Pernambuco, desenhado pelo autor do diário, relação de nomes dos militares que se distinguiram na campanha de 1828 defendendo os direitos do Sr. D. Pedro. PT AHM/DIV/3/18/11/17/03, Arquivo Militar de Portugal. as diferentes reações dos diversos grupos políticos brasileiros à virada absolutista, representada pela subida de d. Miguel ao Trono, em Portugal; 9 9 Neste ponto, o destaque cabe à imprensa periódica. A censura estabelecida no reinado de d. Miguel restringiu boa parte das manifestações não realistas. Apesar do caráter regressista do fenômeno do miguelismo, seus partidários fizeram da imprensa uma de suas principais trincheiras de combate aos constitucionalistas. A lista é grande e não pretendemos esgotá-la aqui: A Besta esfolada (1828-1829), O Cacete (1831), Defesa de Portugal (1831-1833), O Mastigoforo (1824-1829). No exílio, muitos dos opositores de d. Miguel dedicaram-se à publicação de jornais. Situação reproduzida pelos realistas após a derrota de d. Miguel, quando seus partidários, desterrados, passaram a publicar jornais a exemplo do Trombeta Lusitana, do Contrabandista e do A península, todos editados em Londres. o entendimento das contradições entre o complexo processo que levou à abdicação política do 1º imperador, o "Sete de Abril", sob a acusação de absolutista, e o papel que ele irá representar na restauração da monarquia constitucional em Portugal.

Um tema, porém, que não suspeitava abordar, até por ser, de certa forma, oposto ao meu ponto de partida – o dos setores populares mobilizados no apoio a projetos restauradores –, era o de brasileiros que, em solo lusitano, se opuseram, ou disso foram acusados, ao regime de d. Miguel, como é o caso do personagem Luciano Augusto. Não suspeitava, tampouco, que abordaria esse tema me valendo de métodos próprios à reconstituição de biografias e histórias de vida.

Breves considerações sobre as fontes

As fontes aqui utilizadas são os Processos políticos do reinado de d. Miguel que se encontram no Fundo dos feitos findos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Em 15 de agosto de 1828 o governo de d. Miguel instituiu, na Casa de Suplicação, uma "Comissão para julgar todos os crimes cometidos contra a Real Pessoa de El Rei ... contra a Segurança do Estado". Essa comissão era composta por um juiz relator e nove juízes adjuntos.

Trata-se de 1.402 processos abertos em Lisboa, a maioria envolvendo mais de um implicado, o que dificulta estabelecer o número exato dos opositores do regime que foram processados na capital do reino. Desses, mais de uma centena envolvem estrangeiros, dos quais pelo menos 11 são naturais do Brasil. Percebe-se uma verdadeira 'internacional antimiguelista', como no processo que se segue:

Joaquim José de Seixas ... natural do Maranhão ... Antonio Garcia, pedreiro, natural de Madrid, Francisco Manuel Mimoso, negociante, natural de Cuba, Manuel Roberto César, tenente-ajudante da Cavalaria do Ultramar, natural do –Maranhão ... todos pronunciados em virtude de se haverem amotinado na Cadeia da Corte, onde estavam presos por motivos políticos, em 22 de maio de 1829, dando vivas sediciosos e insultando o regime absolutista e a guarda que viera pôr termo aos distúrbios. (ANTT, Maço 77, n.2b, 1829)

Com o madrilenho Antônio Garcia encontram-se acusados de várias regiões da Espanha – Cádiz, Safra, Galiza, Málaga, Santander e Catalunha. Outros, assim como o cubano Francisco Manuel Mimoso, também provinham da América Espanhola, como "D. Filipe Árias, tenente de Caçadores, natural da América Espanhola, filho de d. Mariano Arias e de d. Josefa Gevantes" (ANTT, Maço 77, n.3, 1833).

No caso dos brasileiros, um dos processos mais ricos pela profusão de apensos – impressos, cartas pessoais trocadas com parentes no Brasil, transcrição de liras de Tomás Antônio Gonzaga – talvez seja o do estudante paraense Casimiro José Rodrigues, filho de Caetano Jerônimo Rodrigues e de Mariana da Purificação, preso quando passava uma temporada em Tomar, por recomendação médica, conforme alegado. 10 10 Processo crime movido contra Casimiro José Rodrigues, estudante, filho de Caetano Jerônimo Rodrigues e de Mariana da Purificação; e António José de Miranda, negociante, filho de Vicente Antonio de Miranda e de Floripes Joaquina de Oliveira, ambos naturais do Pará; por, apesar de estrangeiros, se imiscuírem nas lutas partidárias, trocando o primeiro correspondência com o segundo remetida quando preso, de Tomar, por aí haver sido encontrado com passaporte alterado, sendo ainda portador de papéis cheios de impropérios e correspondência entre os dois, onde se verifica os seus sentimentos hostis ao governo de D. Miguel. Por acórdão de 19 de fevereiro de 1831 foram condenados a sair imediatamente do Reino, sendo conduzidos presos a bordo da embarcação que escolhessem para o fazer. ANTT, Maço 13, n.6. O Quadro 1 relaciona os brasileiros que encontrei na documentação pesquisada.


Raros são os processos em que aparecem homens de cor. A presença de um João Francisco Rebolo, escrivão dos Órfãos, filho de Antonio Marques Rebolo, de Serpa, "preso em virtude de estar implicado nos motins populares que haviam tido lugar na mesma vila quando dos acontecimentos revolucionários do Algarve e do Porto" (ANTT, maço 57, n.2) é enganosa, se a expectativa é encontrar alguma referência de conteúdo étnico. No documento, além da completa ausência de alusão a uma possível condição de preto ou mestiço, Antonio é descrito como louro e de olhos azuis.

Inequívoco, por sua vez, é o registro constante nos Autos de sumário sobre a prisão de Maria Joaquina, que, com uma preta de nome Filipa Maria, fora encontrada quando "vinha [de estar com] os rebeldes" realistas. Inequívoco quanto à qualidade de Filipa, mas equívoco quanto à sua filiação política – se é que essa existia –, uma vez que mantinha contato com "rebeldes realistas" (ANTT, Maço 75 b, n.5).

Por tudo isso, a existência do processo no qual figura, como um dos réus, o homem preto Luciano Augusto merece atenção redobrada. Ainda mais quando se toma conhecimento de que Luciano era natural do Maranhão. 11 11 Processo crime movido contra o Dr. José Frederico Pereira Marecos, advogado da Casa de Suplicação e ex-professor do Colégio da Luz, natural de Santarém, filho de José Tiago Pereira Marecos e de D. Ana Genoveva Marecos, e seu criado Luciano Augusto, natural do Maranhão, filho de Simeão e de Delfina por haverem sido denunciados por Manuel Martins, sapateiro, que os acusara, assim como a seu irmão Firmo Pereira Marecos, funcionário da Torre do Tombo, de em sua casa, na travessa de S Mamede, n.3, 3º, falarem mal de D. Miguel e do seu governo e de fazerem afirmações que demonstravam o seu amor à causa de D. Pedro. ANTT, Maço 57, n.5. Antes, porém, de tratar do assunto, vale a pena considerar alguns aspectos, sobretudo sociais, da contrarrevolução miguelista. Afinal, e recorrendo mais uma vez a Le Goff, "O indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas, e essa diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo. O conhecimento da sociedade é necessário para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual". 12 12 LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.26. Sobre o tema da relação entre biografia e história ver, além do trabalho já citado de Bourdieu: DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009; CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982; GOMES, Ângela de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. A lista, é claro, não pretende ser exaustiva.

O contexto do miguelismo

"Anjo exterminador da Facção constitucional." Era dessa forma que José Sebastião de Saldanha Oliveira Daun, partidário de d. Miguel, se referia ao infante em seu Diorama de Portugal nos 33 meses constitucionais ou Golpe de Vista sobre a Revolução de 1820, a Constituição de 1822, a Restauração de 1823 e Acontecimentos Posteriores até ao fim de Outubro do Mesmo Anno, impresso em Lisboa, na Imprensa Régia, no ano de 1823. Nesse mesmo ano, d. Miguel fizera sua aparição na cena política ao encabeçar o golpe que pôs fim à primeira experiência liberal portuguesa e que ficou conhecida como Vila-Francada. 13 13 "Ainda que, tal como é tradicionalmente apresentada, a Vila-Francada seja na sua origem um pronunciamento militar contrarrevolucionário liderado por D. Miguel, tratou-se de um golpe ambíguo no qual se sobrepuseram dois golpes de Estado (o de D. Miguel e o de D. João VI) e acabou por se transformar numa coalizão de liberais moderados e partidários da monarquia tradicional". LOUSADA, Maria Alexandre; FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. D. Miguel. Lisboa: Círculo do Livro; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2009. p.50. Para alguns autores, a atitude do rei foi de contemporização. A nomeação de d. Miguel comandante do exército, em Vila Franca, ato explícito do apoio de d. João ao movimento contrarrevolucionário encabeçado por seu filho mais moço, seria compensada pela disposição real em outorgar uma nova Constituição ao país. PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI. Lisboa: Círculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2006. p.18. Em ambas as interpretações, porém, prevalece a ideia de que a atitude de d. João VI foi 'hesitante'. A partir de 1826, de acordo com Maria Alexandre Lousada, o "miguelismo passa a designar os partidários da legitimidade de d. Miguel face a d. Pedro, após a morte de d. João VI". 14 14 Quando não especificado o contrário, as informações sobre o miguelismo se baseiam em LOUSADA, Maria Alexandre. O miguelismo (1828-1834). O discurso político e o apoio da Nobreza titulada. Lisboa: Faculdade de Letras, 1987. p.1, mimeo. ; e LOUSADA; FERREIRA, 2009.

Em linhas gerais, a conquista e o consequente retorno ao poder dos legitimistas – como também eram designados os partidários de d. Miguel – significavam a vitória dos setores da alta nobreza, da fidalguia e do alto clero, provisoriamente derrotados com os sucessos da revolução do Porto, em 1820. Todo o aparato de Antigo Regime foi mobilizado para restaurar o absolutismo em Portugal, com destaque para a convocação dos três Estados do Reino no feitio instituído pelas Cortes de Lamego no ano de 1143, num processo que revela o quanto foram tortuosos os caminhos da construção das nações modernas. O miguelismo representou, assim: "A valorização da tradição como norma política, a transformação do passado em paradigma e a defesa da aliança entre a Igreja e a Coroa ... rejeitando as alterações sociais e, em particular, as declarações revolucionárias de igualdade e liberdade e o próprio princípio da revolução" (Lousada, 1987, p.1, 8).

Uma característica importante do regime político da contrarrevolução portuguesa foi o seu intenso caráter mobilizador. Mesmo sob o discurso de "extermínio do liberalismo, dos liberais e a restauração dos 'antigos privilégios', usos e costumes", sintetizados na divisa "Deus, Rei e Pátria", a adesão dos setores populares foi incontestável. Dentre outras razões, porque nas primeiras décadas do século XIX, em Portugal, era quase imediata a identificação de revolução à França e dessa à invasão napoleônica, com os males decorridos das guerras contra o invasor francês.

A capilaridade da contrarrevolução em Portugal, ou contrarrevolução à portuguesa, esteve assegurada, assim, pelo apoio de amplos setores populares a d. Miguel. As mobilizações dos grupos subalternos remontam ao período das invasões francesas e se intensificam quando das revoltas absolutistas que se observam em Portugal no período de 1823 a 1827.

Para muitos estudiosos, o reinado de d. Miguel foi um governo de terror. Para se ter uma ideia dessa afirmação, calcula-se que, em uma população de 3 milhões de habitantes, foram feitas cerca de 13 mil prisões (das quais resultaram, somente em Lisboa, cerca de 1.400 processos).

Mas quais seriam esses grupos, designados aqui como setores populares? Estudos, como os de Nuno Gonçalo Monteiro, 15 15 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Societa rural i actituds polítiques a Portugal (1820-34). In: FRADERA, Josep Maria; MILLAN, Jesús; GARRABOU, Ramon (Ed.). Carlisme i moviments absolutistes. Capellades: Eumo Editorial, 1990. têm apontado que esses setores eram compostos pelo que se chamava, no século XIX, de classes ínfimas, constituídas por homens solteiros, bandoleiros, jovens, erradios – o correspondente à polêmica categoria de vadios, empregada em estudos para a América Portuguesa e o Brasil Imperial.

A base social de apoio ao liberalismo, por sua vez, incluía as camadas mais enraizadas nas sociedades locais, aí representados os camponeses, com sua relação estável com a família e a propriedade. Era o caso da cidade do Porto e, também, ainda que em menor grau, de Coimbra, onde a oposição a d. Miguel encontrou apoio popular, sobretudo de pequenos proprietários, lideranças locais e elementos das milícias.

Mesmo que o discurso constitucionalista, posteriormente reforçado por uma historiografia tida como liberal, em Portugal, tenha contribuído para definir esses perfis, claramente desfavoráveis às bases legitimistas, o estudo, antes referido, de Nuno Monteiro aponta nessa direção: os pobres liberais eram diferentes dos pobres miguelistas.

Os ultrarrealistas foram, durante a década considerada, a única corrente política a adotar sistematicamente formas de mobilização violenta e que legitimavam o ataque a autoridades constituídas e a propriedades particulares. Contavam com a conivência majoritária dos intermediários tradicionais, das relações entre comunidades locais e a sociedade que os envolvia. Invocaram sistematicamente os símbolos tradicionais da ordem legítima ... Propugnavam o ataque aos constitucionalistas, majoritariamente residentes nos pequenos centros urbanos da província e que se apresentavam como as 'pessoas ricas' e das mais honradas. 16 16 MONTEIRO, 1990. p.147, em tradução de ALG.

Em 1828, por exemplo, na cidade do Porto, esses pobres, e não apenas eles, pegaram em armas para resistir à aclamação de d. Miguel. 17 17 Memórias históricas, políticas e filosóficas da Revolução do Porto, em maio de 1828, dos emigrados portugueses pela Espanha, Inglaterra, França e Bélgica. Obra póstuma de Joaquim José da Silva Maia. Rio de Janeiro: Tipografia de Laemmert, 1841. Na cidade de Lisboa, homens e mulheres da mesma condição também resistiram, ainda que não pelas armas, à reinstalação do regime absolutista representado por d. Miguel. Porém, nem sempre foi fácil estabelecer o meio social a que esses personagens se vinculavam, o mesmo valendo para sua maior ou menor integração social. No caso de Luciano Augusto, o seu meio era o dos criados de servir, dos homens pobres, de constitucionalistas e liberais, mas, também, dos ativos, e de nem tão ativos assim, defensores de d. Miguel. Alguns assim se diziam, talvez, apenas para salvar a própria pele. O que o particulariza, porém, é o fato de ser um homem preto.

Luciano Augusto, homem preto e malhado

Uma observação preliminar se faz necessária. Pela natureza da fonte de que dispomos, 18 18 ANTT, Maço 57, n.5. Exceto quando mencionado em contrário, todas as informações foram extraídas desse documento. A numeração das páginas não é sequencial, o que explica a opção por não citá-las na reprodução dos excertos. todo o cuidado é pouco para não confundir o malogro de uma ação de contestação ao regime com uma repressão bem-sucedida. Ou, melhor dizendo, para não se perder de vista que o documento que temos em mão permite apenas que se conheça pouco mais do que as bases em que foi feita a denúncia e a defesa de Luciano Augusto, sugerindo pistas sobre sua atuação política.

São poucos os dados pessoais que possuímos sobre o réu. Sabemos apenas que nasceu no Maranhão, no ano de 1805, e que era filho de Simeão e Delfina, cujos sobrenomes o filho não conhecia, na suposição de que os tivessem. Sobre sua aparência, está descrito que tinha estatura regular e rosto redondo e que, no dia de sua prisão, vestia colete e calças azuis. Luciano encontrava-se preso a ferros na cadeia do Limoeiro, condição a que não estava sujeito nenhum dos processados na documentação até aqui pesquisada.

Prevalece, na atuação do juiz encarregado do processo, um decepcionante – para o historiador, é claro – descaso em relação à vida pregressa de Luciano: como passara do Brasil para Portugal? Com que idade chegara a Lisboa? Tratar-se-ia de um forro? Se saíra cativo do Brasil, talvez acompanhando seus senhores, teria se beneficiado da legislação portuguesa que previa a liberdade para o escravo que ali aportasse? Não se tem notícia. O fato de Luciano Augusto ser cozinheiro, ofício "não raro destinado a cativos do sexo masculino nas cidades brasileiras", 19 19 REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.30. "No Rio de Janeiro, a quase totalidade dos homens escravizados anunciados nos jornais como domésticos, em meados do século XIX, era de cozinheiros" (ibidem). seria suficiente para se afirmar tratar-se de um africano, cativo ou liberto? Não creio. Poder-se-ia supor, ainda, que tivesse chegado a Lisboa a bordo de algum navio de cuja tripulação fizesse parte. Afinal, era comum que escravos, libertos, africanos ou crioulos livres tripulassem embarcações em viagens ultramarinas, até mesmo nos navios negreiros. 20 20 O assunto foi abordado mais recentemente por: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Porém, uma afirmação atribuída ao próprio Luciano, de que o fato de não saber ler o impedia de se 'lançar ao mundo', como citado mais adiante, torna improvável tal suposição. Em todo caso, a falta de informações traz alguma surpresa, principalmente porque não há uma única vez em que seu nome seja mencionado na fonte sem que venha seguido da expressão 'homem preto'.

Se, uma vez em Lisboa, teve outra ocupação além da de criado, também não nos é dado conhecer. O fato é que se tem registro de ter servido a cinco diferentes amos, e, nos últimos 7 ou 8 meses que antecedem à sua prisão, se assemelhava a um 'criado a dias', visto servir, simultaneamente, em diferentes casas, a três patrões, todos aparentados.

Na Travessa de São Mamede, número 3, na atual Amoreiras, Freguesia de Santa Isabel, servia a José Frederico Pereira Marecos, bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, solteiro de 30 anos de idade, natural de Santarém. Aos 21, exatamente no ano da Vila-Francada, José Frederico publicara, na imprensa daquela Universidade, um livro de poemas de 110 páginas, dedicado à sua mãe. Em junho de 1823, quando do golpe de d. Miguel, o próprio bacharel recolhera os exemplares, de acordo com um de seus biógrafos, por suas odes e sonetos transpirarem ideias e sentimentos liberais. Exerceu o jornalismo, a partir de 1827, na redação da Gazeta de Lisboa, atividade que retomou já em 1834. Marecos foi o primeiro professor a assumir a cadeira de literatura e retórica no Real Colégio Militar da Luz, instituição onde teve entre seus alunos Francisco Adolfo de Varnhagen. 21 21 OLIVEIRA, Laura N. de. As Regras de Composição Retórica na Obra de Francisco Adolfo de Varnhagen. Tese (Doutorado) – Fale/UFMG. Belo Horizonte, 2007. Foi, ainda, advogado da Casa de Suplicação. De estatura alta, moreno, tinha olhos e cabelos castanhos.

José Frederico Marecos e Luciano Augusto foram presos juntos, em finais de 1831, sob a acusação de conspirarem contra o governo absoluto de d. Miguel I. O irmão de José Frederico, Firmo Augusto Pereira Marecos, empregado da Torre do Tombo, futuro administrador da Imprensa Nacional, tivera melhor sorte que Luciano e José Frederico, conseguindo fugir às vésperas de ser preso.

Os depoimentos das testemunhas fornecem elementos para supor que a afinidade de ideias era o que aproximara amo e criado, muito mais do que a prestação de serviços domésticos. Pelo menos, era nesse ponto que as autoridades judiciais insistiam ao perguntarem inúmeras vezes sobre os motivos que levaram Luciano Augusto a trabalhar na casa de José Frederico.

A situação pareceu mais complicada ainda quando os próprios réus admitiram que Luciano não recebera, ao longo dos 7 ou 8 meses em que servira a Marecos, qualquer salário ou ordenado. E já antecipando algo dos depoimentos das testemunhas, a experiência de Luciano de embarcar suspeitos de subversão em paquetes para se verem livres de perseguições, alguns anos antes, pode ter pesado para que Luciano estabelecesse relações com o bacharel, aumentando a desconfiança das autoridades:

[Luciano] dissera que não havia, uma casa melhor do que uma onde ele tinha servido anteriormente no Alto do Salitre de um fulano por apelido Ruffo, que daquela casa se tinham passado muitos constitucionais para o Paquete, e que ele sumariado havia ajudado a isso e que dali tinha recebido algumas pechinchas, e que por todo o referido conhece que é aferrado ao sistema constituição (sic) e mais não disse...

Mas, voltando a José Frederico, que acusações recaíam sobre ele? Quais seriam suas posições políticas? Ater-me-ei aqui àquelas possíveis de se apreender com base em seu processo político. Se o procedimento tem a desvantagem, na qual já se insistiu exaustivamente até aqui, de se basear em fonte de órgão de repressão policial, ele evita que se informe sobre seu alinhamento político por sua atuação posterior aos episódios aqui abordados. Explicando melhor, Marecos irá pautar toda sua vida pública, já a partir de 1834, por uma incessante defesa do liberalismo e do constitucionalismo em Portugal. Assim, as veleidades liberais, identificadas em seus versos, de que ele tinha ciência ao destruir os exemplares de seu primeiro livro, não se desvaneceram na idade madura. Por último, a reconstituição será feita apenas com o intuito de buscar clarear aspectos do universo no qual estava imerso Luciano Augusto.

As principais acusações foram feitas pelos seus colegas de magistério no Colégio Militar. A maioria afirmou que Marecos era constitucional e maçom e 'muito amigo da liberdade'. José Frederico negou-as todas e insistiu que sua demissão se deveu a que a disciplina – literatura – que lecionava era

de muito pouca vantagem e de considerável despesa ... que há muito tempo se dizia que ela devia ser suprimida que atribui a sua demissão a medida econômica do governo a este respeito, que de nenhum modo a pode atribuir a motivos políticos pela razão de haver exercido o mesmo lugar por três anos durante o atual governo sem ter merecido a mais pequena advertência das autoridades aí constituídas.

Nos testemunhos, fica patente o interesse do professor de literatura pela política internacional, não faltando menção à França e, sobretudo, à situação da Polônia. O último assunto vale ser registrado porque foi tema que Marecos não negou ter tratado com vários interlocutores e, por isso mesmo, não se eximiu de comentar quando inquirido pela autoridade policial:

Perguntado se se lembra de ter dito falando-se a respeito de Varsóvia que os polacos haviam vencer por isso que pugnaram pela sua liberdade respondeu que se lembra de ter falado com algumas pessoas relativamente a Varsóvia mas que o seu dito nunca podia ser este porque jamais podia persuadir-se que dois milhões de habitantes pudessem triunfar de uma guerra contra uma potência que tem mais de cinquenta e dois milhões de habitantes, mas que ainda que assim o dissesse nunca isso podia ser ato criminoso pois é certo que a Polônia já esteve independente e só foi sujeita à Rússia depois do Congresso de Viena. 22 22 Muito provavelmente, o que inquietava as autoridades policiais miguelistas eram os fatos relacionados ao Levante de Novembro ou Levante dos Cadetes (1830-1831), como ficou conhecida a revolta armada que eclodiu em Varsóvia contra o domínio russo na Polônia. Sobre o assunto, consultar: DAVIES, Norman. God's Playground: a History of Poland. Oxford: Oxford University Press, 1981. cap. 13.

A situação econômica de José Frederico Marecos, da qual Luciano Augusto estava perfeitamente a par, parece ter ficado insustentável depois de sua demissão do cargo de professor por suspeita de difundir ideias liberais e constitucionalistas.

Várias testemunhas reiteraram que, supostamente, teriam ouvido do criado de Marecos que as afinidades políticas podiam traduzir-se em apoio econômico, estreitando as redes entre os militantes antimiguelistas:

que se seus amos vissem que o Senhor Dom Miguel ficava reinando não tinham remédio senão fugir para fora do Reino que a seus amos lhe vinham gêneros fiados para casa e quem lhos fiava era um suspeito que tem loja de mercearia defronte dos lugares da Ribeira Nova e juntos a um oratório de Santo Antônio que também tem loja de chocolateira no Cais do Sodré que liquidarão as contas até o fim de julho ficando-lhe a dever duzentos mil-réis, que hão de pagar logo que aqui chegue D. Pedro.

Por se tratar de homens simples, não passou despercebido, ao longo do processo, a algumas das testemunhas, a possibilidade de que Luciano apenas reproduzisse as palavras que ouvira dizer em casa de seu amo. Porém, a leitura dos depoimentos de duas das testemunhas arroladas no processo é suficiente para afirmar que não era Marecos que falava 'pela boca de Luciano'. Uma delas, Pascoal Gonçalves, afirmou que Luciano falava por si próprio e pelos outros: "o que ele declarante tudo lhe ouviu na loja de seu Mestre Manoel Martins, cujas expressões umas vezes dizia por si próprio e outras vezes como que se as tivesse ouvido a seus amos e que mais nada tinha a declarar".

A afirmação de um também criado, José Duarte, que servira com o réu, cerca de 3 anos antes, na casa de Estevão Pinto de Morais Sarmento, e que dele ouvira ser constitucional e que o rei d. Miguel não passava de um usurpador, parece suficiente para pôr fim a dúvidas quanto às genuínas convicções de Luciano. Por ser um dos mais completos, o depoimento de José Duarte merece ser citado praticamente na íntegra:

E perguntado ... disse que conhece a Luciano Augusto homem preto de ter sido cozinheiro de seu amo nos anos de trinta e trinta e um, e que por isso tivera com ele algumas conversas em matéria política nessa mesma época ouvindo-lhe ele testemunha dizer por muitas vezes, que ele sumariado era constitucional e que o Governo do Senhor D. Miguel não valia, e que o do Senhor D. Pedro é que era o verdadeiro.

Luciano Augusto estava convicto da vitória de d. Pedro IV e, se alardeava o fato sem tomar grandes precauções, era porque a condição de estrangeiro, assim supunha, lhe conferia imunidades: "e que ele senhor d. Pedro havia vir a Portugal e que todos lhe havíamos obedecer como se obedece ao Padre Santo e dizendo-lhe ele testemunha por algumas vezes que não devia falar daquela maneira, ele respondia que o podia falar quanto quisesse porque era estrangeiro".

E que dele a testemunha ouvira dizer, "cidadão do mundo" que era, "que se ele também soubera ler daria volta a todo o Mundo, acrescentando que ele era constitucional porque era homem de bem e que os corcundas eram uma corja de velhacos e ladrões".

Luciano, sempre segundo a testemunha, não se furtava à guerra de símbolos que marcou particularmente o reinado de d. Miguel, certamente por se tratar de um regime mobilizador. Tanto era desse jeito "que tinha uma casaca azul nova para vestir quando o senhor d. Pedro chegasse". Ainda assim, pode ter sido coincidência o fato de ter sido preso com calças e colete azuis, como já referido. Pode ser que o vermelho, a cor dos corcundas, não lhe caísse bem.

A batalha se estendia também às bandeiras. Várias testemunhas afirmaram que Luciano, em diferentes ocasiões, teria dito que os navios estrangeiros, que viriam em socorro dos constitucionais portugueses, já traziam a bandeira de d. Pedro sobre a de d. Miguel:

que o Rei dos franceses oferecera à filha do Senhor Dom Pedro uma Guarda de Honra e que haviam de vir quatrocentos cavalos para os rebeldes, tendo mais dito que estes já se achavam em Coimbra que a Nova esquadra posto que saiu pequena havia recolher mais aumentada por ser tomada pelos rebeldes e que havia aqui entrar com duas bandeiras, isto é a Portuguesa por baixo e a do Senhor Dom Pedro por cima.

Além de cioso em relação às cores que separavam os grupos políticos antagônicos, e de acordo com José de Siqueira, outro criado de Estevão Pinto de Morais Sarmento, Luciano "tinha por costume o cantar a constitucional de sorte que por muitas vezes ele testemunha o repreendeu ao fazer tal ao que ele respondia que podia fazer o que quisesse porque era estrangeiro".

O referido hino foi escrito por d. Pedro I, em homenagem à Carta Constitucional outorgada por ele a Portugal, em 1826, e tem como coro a estrofe:

Viva, viva, viva ó Rei

Viva a Santa Religião

Vivam Lusos valorosos

A feliz Constituição

A feliz Constituição 23 23 Ó Pátria, Ó Rei, Ó Povo/ Ama a tua Religião/ Observa e guarda sempre/ Divinal Constituição/ Coro/ Ó com quanto desafogo/ Na comum agitação/ Dá vigor às almas todas/ Divinal Constituição/ Coro/ Venturosos nós seremos/ Em perfeita união/ Tendo sempre em vista todos/ Divinal Constituição/ Coro/ A verdade não se ofusca/ O Rei não se engana, não/ Proclamemos Portugueses/ Divinal Constituição/ Coro. Foi o hino de Portugal de maio de 1834 até a proclamação da República, em outubro de 1910.

O Intendente de polícia que fez a denúncia contra Luciano não tinha a menor dúvida quanto às posições políticas do dito criado: "Julgo mais dever dizer a V. Ex. que o referido Preto é exaltado Malhado segundo sou informado". Também persuadido da condição de malhado do réu estava o mestre sapateiro Manoel Martins.

O emprego do termo 'malhado', mais uma batalha travada no campo dos símbolos, teria sua origem no acidente que d. Miguel sofrera na viagem de Queluz para Caxias, em novembro de 1828. Naquela ocasião, o cocheiro que o conduzia perdeu o controle sobre a parelha composta de cavalos malhados e a carruagem se desgovernou, com ameaça para a integridade física do rei. Daí a expressão se disseminou, por obra dos contrarrevolucionários, como alcunha dos cartistas.

Os liberais contra-atacaram crismando os realistas de bestas e burros, epítetos que também faziam alusão a um episódio vivenciado por d. Miguel. Consta que, quando de sua chegada ao Palácio da Ajuda como rei de Portugal, alguns populares realistas mais exaltados substituíram os cavalos que transportavam o coche da realeza e entraram triunfantes nos jardins do Palácio. Deixando evidente que o designativo se aplicava a seus adversários, os corcundas deram o nome de Besta Esfolada a um dos seus mais destacados jornais, de autoria de José Agostinho de Macedo. 24 24 Acerca da atuação do eclesiástico, publicista e servil partidário de d. Miguel, José Agostinho de Macedo, ver: ANDRADE, Maria Ivone de O. José Agostinho de Macedo: um iluminista paradoxal. Lisboa: Colibri, 2001. v.1; e, da mesma autora, A contra-revolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004. v.2. O lema do periódico, violentíssimo em todos os seus ataques, era a perseguição aos liberais ou cartistas, identificando-os com o Diabo (a Besta). O excerto publicado no n.1, de 7 de julho de 1828, intitulado O Cão Malhadiço, parece ilustrativo: "E o Porto, por dezessete vezes se tem amotinado, e revolucionado, e por mais que tenha sido malhado, nunca se viu emendado: e se agora de todo não derrubam este Cão, ainda que o malhem tornarão a morder". 25 25 MACEDO, José A. de. A Besta Esfolada. Lisboa, na Tipografia de Bulhões, s.d. p.7. Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em: http://purl.pt/14339/1/365667_1828-07-07/365667_1828-07-07_item2/365667_1828-07-07_PDF/365667_1828-07-07_PDF_24-C-R0150/365667_1828-07-07_0000_capa-15_t24-C-R0150.pdf; Acesso em: 30 dez. 2011.

Retornando a Luciano Augusto, sua defesa coube a José Maria da Costa Silveira da Mota, nomeado pela justiça para esse fim. Formado em Coimbra, Silveira da Mota, então com 29 anos, será, décadas depois, mais precisamente em 1857, responsável pela criação dos Anais da Associação dos Advogados de Lisboa, entidade criada em 1838.

Seus argumentos seguem, em linhas gerais, aqueles que foram utilizados nos demais processos políticos pesquisados em relação ao reinado de d. Miguel I, seja de portugueses, seja de brasileiros. Sua estratégia consistia em desacreditar as testemunhas, acusando-as de agirem por vingança, por não terem qualquer estima pelo acusado, por serem seus inimigos notórios. Ressaltava ainda a baixa condição dos depoentes, ecoando categorias estruturantes do Antigo Regime, com sua naturalização das desigualdades sociais.

Sobre o réu recaíam os desqualificativos mais fortes, em razão da sua condição de homem preto, o que não o tornaria apto a tomar qualquer partido nas disputas que, literalmente, mobilizavam Portugal, pelo menos desde 1828:

Quando mesmo uma razão bem clara não mostrasse a miserável origem desta denúncia falsa, e falsos depoimentos, bastaria observar quem são as pessoas, entre quem diz terem se passado e dito tais denúncias indignas da menor atenção. Um Sapateiro remendão, um seu oficial, e uma mulher de sua casa ouvem, discutem e julgam das opiniões políticas de um miserável preto, que nada sabe. Se é um princípio de eterna verdade que ... as ações estão na razão direta da intenção e graus de quem as pratica, que peso pode dar-se racionalmente aos ímpetos ditos de um negro, último anel na cadeia dos entes racionais, última degeneração da espécie humana? Esta só consideração aos olhos de Juízes tão conspícuos e compassivos mereceria um piedoso desprezo.

Principalmente porque Luciano Augusto não era um cativo, as palavras do advogado apontam para a perspectiva da racialização da questão da cor em Portugal, diferentemente do que tem sido observado por diversos autores para a sociedade imperial brasileira, sobretudo nos anos de formação do nosso Estado Nacional. Naquela altura, as elites puderam prescindir do discurso da raça para equacionar a realidade de que no Brasil havia, segundo Cipriano Barata, "portugueses brancos europeus, portugueses brasileiros, mulatos, crioulas do país, da Costa da Mina, de Angola, cabras, caboclos ou índios naturais do país ... mestiços, pretos, crioulos e negros da Costa da Mina, Angola, etc.". 26 26 Diários das Cortes Gerais e extraordinárias da Nação Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821-1823, tomo 7, sessão de 13 ago. 1822, p.138-139. Acerca da questão da 'ausência da raça' ou do caráter inclusivo da definição de cidadania no Brasil oitocentista ver: MARQUESE, Rafael de Bivar; BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824). In: CHAVES, Cláudia; SILVEIRA, Marco Antônio (Org.). Território, conflito e identidade. Belo Horizonte: Argvmentvm; Brasília: Capes, 2007. p.63-87.

Por acórdão de 31 de março de 1833, José Frederico Pereira Mareco foi solto por falta de provas. Luciano Augusto não chegou a ser julgado em razão da entrada das tropas liberais em Lisboa a 24 de junho de 1833.

Considerações finais

Decorridos 5 anos da Revolução do Porto de 1828, sufocada pelas tropas de d. Miguel, o bacharel Pedro da Fonseca Serrão Veloso ofereceu a d. Pedro IV uma publicação contendo várias listas com nomes de pessoas que foram pronunciadas após a vitória das tropas realistas. 27 27 Coleção de listas que contém os nomes das pessoas que ficaram pronunciadas e sumários a que mandou proceder o Governo Usurpador depois da heroica contra-revolução que arrebentou na mui nobre cidade do Porto em 16 de maio de 1828, nas quais se faz menção do destino que a Alçada, criada pelo mesmo governo para as julgar, deu a cada uma delas. Porto, Tipografia de Viúva Álvares Ribeiro & Filho, 1833. Seu objetivo declarado era o de provar que o movimento contra o Governo Usurpador não se limitou a uma ação de militares, mas que contou com a participação dos mais amplos setores sociais.

Entre os ofícios e profissões declarados multiplicam-se os tendeiros, os barbeiros, os boticários, os alfaiates e os trabalhadores braçais. Das cinco mulheres listadas, apenas uma, Margarida Joana Rebelo, tem a ocupação declarada: "vive de fazer atacadores". 28 28 No Dicionário Houaiss atacador significa cadarço – emprego mais recorrente – ou cilindros de metal utilizados para o carregamento de espoletas de bombas e de foguetes de sinal. As duas acepções também se encontram no Dicionário Caldas Aulete: "atacador: cordão de enfiar por ilhoses, para apertar ou atacar os sapatos, o colete ou outra peça do vestuário" e "instrumento de calcar a carga de pólvora dentro do cartucho ou da arma de fogo; soquete...". O mais provável é que Margarida Rebelo se dedicasse à manufatura de cadarços. Entre os brasileiros citados, conhecemos apenas a ocupação do Cônsul Antônio da Silva Caldeira. O número de brasileiros listados, porém, está subestimado. No documento não consta, por exemplo, o nome de Jerônimo Pereira de Vasconcelos, processado em Lisboa por envolvimento na revolução, conforme já referido. Estão presentes, também, lavradores, músicos e, é claro, os criados de servir. No conjunto da documentação pesquisada, os criados são recrutados, principalmente, entre os estrangeiros, muitos deles provenientes da Galícia.

O que importa frisar é a disposição de Serrão Veloso em apontar o apoio popular da oposição ao miguelismo e, em decorrência, a favor do constitucionalismo. Muito provavelmente para se contrapor a algo que era evidente aos contemporâneos dos acontecimentos: a enorme base social e popular do miguelismo.

O tema, conforme exposto, desafia os autores atuais, para os quais a lista feita pelo bacharel tem um valor inestimável. Derrotados os revolucionários do Porto, a oposição a d. Miguel, mesmo sujeita à mais feroz perseguição, seguiu firme em todo o país. Enquanto no exílio e, mais tarde, na Ilha Terceira, forjava-se a resistência oficial ao regime, sob a liderança de d. Pedro, pessoas humildes, oficiais mecânicos e mulheres, entre eles muitos estrangeiros e alguns brasileiros, cerravam uma luta cotidiana e sem tréguas ao usurpador do Trono. Dentre eles, o exemplo de Luciano Augusto talvez seja o mais emblemático.

Não é o caso de se desconhecer aqui que o número de brasileiros, 11, que aparecem diretamente implicados nos processos políticos é reduzido. Principalmente se se tem em vista que a quantidade de perseguidos do regime, que consta na documentação, ultrapassa um milhar e meio, apenas em Lisboa. Porém, reunidas, suas trajetórias podem esclarecer o trânsito de pessoas e ideias no interior do que fora, talvez, a parcela mais importante do império português, permitindo até mesmo o estabelecimento de contrastes entre o contexto americano e o europeu.

Exemplo do que se vem afirmando é a possibilidade de que, na conjuntura brasileira da década de 1830, palavras supostamente proferidas por Luciano Augusto, como a de que se deveria confiar em d. Pedro IV como no "Padre Santo", ressumarem o absolutismo, a restauração. 29 29 Devo a arguta observação a Francisco Eduardo Andrade. Aliás, o contraste pode muito bem ser simbolizado pelo fato de que, enquanto no Brasil os partidários da volta de d. Pedro, renomados inimigos da liberdade, eram chamados de restauradores, em Portugal o termo designava os partidários da causa constitucional. Ressalte-se, por fim, que o trabalho só se completará quando as futuras pesquisas revelarem a história de brasileiros que lutaram no campo oposto, tendo em vista a extensa base popular do miguelismo.

NOTAS

Artigo recebido em 23 de janeiro de 2012.

Aprovado em 16 de abril de 2013.

  • 2 Peter Burke utiliza, no seu estudo da Europa Moderna, a categoria povo comum para designar o "conjunto da não elite, incluindo mulheres, crianças, pastores, marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais". BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna: 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.11.
  • Optou-se, neste trabalho voltado para a conjuntura de crise da sociedade de Antigo Regime, pela designação pessoas comuns porque ela permite que se identifique um grupo dos setores subalternos que partilha características semelhantes sem, contudo, desconhecer-lhe certa heterogeneidade. Para a definição da expressão pessoas comuns no contexto do século XIX, mais especificamente do Brasil imperial, ver JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm; Fapemig, 2009. p.26.
  • 3 LE GOFF, Jacques. São Luís Rio de Janeiro: Record, 2010. p.21.
  • 4 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da História Oral Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
  • 5 Representativos dessa produção, ainda que não relacionada à história política, são, a meu ver: REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010;
  • REIS, João J. Domingos Sodré: um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008;
  • SOARES, Mariza de Carvalho. A 'nação' que se tem e a 'terra' de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português, século XVIII. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v.2, p.303-330, 2004.
  • 6 ANDRADE, Francisco Eduardo. Poder local e herança colonial em Mariana: faces da Revolta do "Ano da Fumaça" (1833). In: Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Ed. Ufop, 1998. p.127-135;
  • ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008;
  • GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Hucitec; Minas Gerais: Fapemig, 2008;
  • GONÇALVES, Andréa Lisly; MEYER, Marileide L. Cassoli. Nas fímbrias da liberdade: agregados, índios, africanos livres e forros na província de Minas Gerais, século XIX. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, p.645-663, jul.-dez. 2011.
  • 7 "D. João VI morre a 10.3.1826, sem que se tivesse efetuado qualquer reunião das cortes tradicionais do reino. O seu filho primogênito, D. Pedro, que entretanto declarara a secessão do Brasil e se fizera imperador do novo Estado, sucede-lhe no trono, entregando a regência a sua irmã D. Isabel Maria (27.4.1826). Dois dias depois, D. Pedro outorga a Portugal a Carta Constitucional (29.4.1826), nomeando 30 pares para a respectiva Câmara (câmara alta) e mandando proceder a eleições de deputados, para a Câmara dos Deputados (câmara baixa). Tentando um compromisso com o partido legitimista, chefiado por seu irmão D. Miguel, abdica o trono de Portugal na sua filha D. Maria da Glória, contratando os seus esponsais com D. Miguel, sob condição de juramento da Carta, o que este faz em Viena (4.10.1826). HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. p.154. Sobre o mesmo tema, ver Considerações sobre a constituição da Monarquia Portuguesa Para as reformas que se devem fazer na Carta Constitucional de 29 de abril de 1826. Lisboa: Tip. de Sotero Antônio Borges, 1851, Biblioteca Nacional de Lisboa. Exame da Constituição de D. Pedro e dos direitos de D. Miguel dedicado aos fiéis portugueses Trad. do Francês por J. P. C. B. F. Lisboa, na Imprensa Régia, 1829, Biblioteca Nacional de Lisboa.
  • 12 LE GOFF, Jacques. São Luís Rio de Janeiro: Record, 2010. p.26.
  • Sobre o tema da relação entre biografia e história ver, além do trabalho já citado de Bourdieu: DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009;
  • CERTEAU, Michel de. A escrita da História Rio de Janeiro: Forense, 1982;
  • GOMES, Ângela de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto)biográficas Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009.
  • 13 "Ainda que, tal como é tradicionalmente apresentada, a Vila-Francada seja na sua origem um pronunciamento militar contrarrevolucionário liderado por D. Miguel, tratou-se de um golpe ambíguo no qual se sobrepuseram dois golpes de Estado (o de D. Miguel e o de D. João VI) e acabou por se transformar numa coalizão de liberais moderados e partidários da monarquia tradicional". LOUSADA, Maria Alexandre; FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo. D. Miguel Lisboa: Círculo do Livro; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2009. p.50.
  • Para alguns autores, a atitude do rei foi de contemporização. A nomeação de d. Miguel comandante do exército, em Vila Franca, ato explícito do apoio de d. João ao movimento contrarrevolucionário encabeçado por seu filho mais moço, seria compensada pela disposição real em outorgar uma nova Constituição ao país. PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI Lisboa: Círculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2006. p.18.
  • 14 Quando não especificado o contrário, as informações sobre o miguelismo se baseiam em LOUSADA, Maria Alexandre. O miguelismo (1828-1834) O discurso político e o apoio da Nobreza titulada. Lisboa: Faculdade de Letras, 1987. p.1, mimeo.
  • 15 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Societa rural i actituds polítiques a Portugal (1820-34). In: FRADERA, Josep Maria; MILLAN, Jesús; GARRABOU, Ramon (Ed.). Carlisme i moviments absolutistes Capellades: Eumo Editorial, 1990.
  • 17Memórias históricas, políticas e filosóficas da Revolução do Porto, em maio de 1828, dos emigrados portugueses pela Espanha, Inglaterra, França e Bélgica Obra póstuma de Joaquim José da Silva Maia. Rio de Janeiro: Tipografia de Laemmert, 1841.
  • 19 REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.30.
  • 20 O assunto foi abordado mais recentemente por: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • 21 OLIVEIRA, Laura N. de. As Regras de Composição Retórica na Obra de Francisco Adolfo de Varnhagen Tese (Doutorado) Fale/UFMG. Belo Horizonte, 2007.
  • 22 Muito provavelmente, o que inquietava as autoridades policiais miguelistas eram os fatos relacionados ao Levante de Novembro ou Levante dos Cadetes (1830-1831), como ficou conhecida a revolta armada que eclodiu em Varsóvia contra o domínio russo na Polônia. Sobre o assunto, consultar: DAVIES, Norman. God's Playground: a History of Poland. Oxford: Oxford University Press, 1981. cap. 13.
  • 24 Acerca da atuação do eclesiástico, publicista e servil partidário de d. Miguel, José Agostinho de Macedo, ver: ANDRADE, Maria Ivone de O. José Agostinho de Macedo: um iluminista paradoxal. Lisboa: Colibri, 2001. v.1;
  • e, da mesma autora, A contra-revolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004. v.2.
  • 25 MACEDO, José A. de. A Besta Esfolada Lisboa, na Tipografia de Bulhões, s.d. p.7. Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em: http://purl.pt/14339/1/365667_1828-07-07/365667_1828-07-07_item2/365667_1828-07-07_PDF/365667_1828-07-07_PDF_24-C-R0150/365667_1828-07-07_0000_capa-15_t24-C-R0150.pdf; Acesso em: 30 dez. 2011.
  • 26 Diários das Cortes Gerais e extraordinárias da Nação Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821-1823, tomo 7, sessão de 13 ago. 1822, p.138-139.
  • Acerca da questão da 'ausência da raça' ou do caráter inclusivo da definição de cidadania no Brasil oitocentista ver: MARQUESE, Rafael de Bivar; BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824). In: CHAVES, Cláudia; SILVEIRA, Marco Antônio (Org.). Território, conflito e identidade Belo Horizonte: Argvmentvm; Brasília: Capes, 2007. p.63-87.
  • 1
    A autora é bolsista do Programa Pesquisador Mineiro/Fapemig, e a pesquisa conta com o apoio da Capes e do CNPq e foi desenvolvida sob supervisão do prof. António Manuel Hespanha, da Universidade Nova de Lisboa. Agradeço aos colegas do Núcleo Impérios e Lugares no Brasil/Ufop as contribuições que deram ao aprimoramento deste texto.
  • 2
    Peter Burke utiliza, no seu estudo da Europa Moderna, a categoria
    povo comum para designar o "conjunto da não elite, incluindo mulheres, crianças, pastores, marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais". BURKE, P.
    Cultura popular na Idade Moderna: 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.11. Optou-se, neste trabalho voltado para a conjuntura de crise da sociedade de Antigo Regime, pela designação
    pessoas comuns porque ela permite que se identifique um grupo dos setores subalternos que partilha características semelhantes sem, contudo, desconhecer-lhe certa heterogeneidade. Para a definição da expressão
    pessoas comuns no contexto do século XIX, mais especificamente do Brasil imperial, ver JESUS, Ronaldo Pereira de.
    Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm; Fapemig, 2009. p.26.
  • 3
    LE GOFF, Jacques.
    São Luís. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.21.
  • 4
    BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.).
    Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
  • 5
    Representativos dessa produção, ainda que não relacionada à história política, são, a meu ver: REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de.
    O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010; REIS, João J
    . Domingos Sodré: um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; SOARES, Mariza de Carvalho. A 'nação' que se tem e a 'terra' de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português, século XVIII.
    Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v.2, p.303-330, 2004.
    Iniciativas como o projeto The Biographies: The Atlantic Slaves Data Network (ASDN), criado por Hawthorne e por Gwendolyn Hall, da Michigan State University, confirmam essa tendência.
  • 6
    ANDRADE, Francisco Eduardo. Poder local e herança colonial em Mariana: faces da Revolta do "Ano da Fumaça" (1833). In:
    Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Ed. Ufop, 1998. p.127-135; ANDRADE, Marcos Ferreira de.
    Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; GONÇALVES, Andréa Lisly
    . Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Hucitec; Minas Gerais: Fapemig, 2008; GONÇALVES, Andréa Lisly; MEYER, Marileide L. Cassoli. Nas fímbrias da liberdade: agregados, índios, africanos livres e forros na província de Minas Gerais, século XIX.
    Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, p.645-663, jul.-dez. 2011.
  • 7
    "D. João VI morre a 10.3.1826, sem que se tivesse efetuado qualquer reunião das cortes tradicionais do reino. O seu filho primogênito, D. Pedro, que entretanto declarara a secessão do Brasil e se fizera imperador do novo Estado, sucede-lhe no trono, entregando a regência a sua irmã D. Isabel Maria (27.4.1826). Dois dias depois, D. Pedro outorga a Portugal a Carta Constitucional (29.4.1826), nomeando 30 pares para a respectiva Câmara (câmara alta) e mandando proceder a eleições de deputados, para a Câmara dos Deputados (câmara baixa). Tentando um compromisso com o partido legitimista, chefiado por seu irmão D. Miguel, abdica o trono de Portugal na sua filha D. Maria da Glória, contratando os seus esponsais com D. Miguel, sob condição de juramento da Carta, o que este faz em Viena (4.10.1826). HESPANHA, António Manuel.
    Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. p.154. Sobre o mesmo tema, ver
    Considerações sobre a constituição da Monarquia Portuguesa. Para as reformas que se devem fazer na Carta Constitucional de 29 de abril de 1826. Lisboa: Tip. de Sotero Antônio Borges, 1851, Biblioteca Nacional de Lisboa.
    Exame da Constituição de D. Pedro e dos direitos de D. Miguel dedicado aos fiéis portugueses. Trad. do Francês por J. P. C. B. F. Lisboa, na Imprensa Régia, 1829, Biblioteca Nacional de Lisboa.
  • 8
    A documentação sobre o tema é relativamente vasta. Destaco, aqui, pela originalidade da fonte, escrita por um exilado antimiguelista no Brasil, futuro 1º Marquês de Sá Bandeira, o
    Diário de Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo sobre o "Estado do Brasil". Contém esboço do Porto de Pernambuco, desenhado pelo autor do diário, relação de nomes dos militares que se distinguiram na campanha de 1828 defendendo os direitos do Sr. D. Pedro. PT AHM/DIV/3/18/11/17/03, Arquivo Militar de Portugal.
  • 9
    Neste ponto, o destaque cabe à imprensa periódica. A censura estabelecida no reinado de d. Miguel restringiu boa parte das manifestações não realistas. Apesar do caráter regressista do fenômeno do miguelismo, seus partidários fizeram da imprensa uma de suas principais trincheiras de combate aos constitucionalistas. A lista é grande e não pretendemos esgotá-la aqui:
    A Besta esfolada (1828-1829),
    O Cacete (1831),
    Defesa de Portugal (1831-1833),
    O Mastigoforo (1824-1829). No exílio, muitos dos opositores de d. Miguel dedicaram-se à publicação de jornais. Situação reproduzida pelos realistas após a derrota de d. Miguel, quando seus partidários, desterrados, passaram a publicar jornais a exemplo do
    Trombeta Lusitana, do
    Contrabandista e do
    A península, todos editados em Londres.
  • 10
    Processo crime movido contra Casimiro José Rodrigues, estudante, filho de Caetano Jerônimo Rodrigues e de Mariana da Purificação; e António José de Miranda, negociante, filho de Vicente Antonio de Miranda e de Floripes Joaquina de Oliveira, ambos naturais do Pará; por, apesar de estrangeiros, se imiscuírem nas lutas partidárias, trocando o primeiro correspondência com o segundo remetida quando preso, de Tomar, por aí haver sido encontrado com passaporte alterado, sendo ainda portador de papéis cheios de impropérios e correspondência entre os dois, onde se verifica os seus sentimentos hostis ao governo de D. Miguel. Por acórdão de 19 de fevereiro de 1831 foram condenados a sair imediatamente do Reino, sendo conduzidos presos a bordo da embarcação que escolhessem para o fazer. ANTT, Maço 13, n.6.
  • 11
    Processo crime movido contra o Dr. José Frederico Pereira Marecos, advogado da Casa de Suplicação e ex-professor do Colégio da Luz, natural de Santarém, filho de José Tiago Pereira Marecos e de D. Ana Genoveva Marecos, e seu criado Luciano Augusto, natural do Maranhão, filho de Simeão e de Delfina por haverem sido denunciados por Manuel Martins, sapateiro, que os acusara, assim como a seu irmão Firmo Pereira Marecos, funcionário da Torre do Tombo, de em sua casa, na travessa de S Mamede, n.3, 3º, falarem mal de D. Miguel e do seu governo e de fazerem afirmações que demonstravam o seu amor à causa de D. Pedro. ANTT, Maço 57, n.5.
  • 12
    LE GOFF, Jacques.
    São Luís. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.26. Sobre o tema da relação entre biografia e história ver, além do trabalho já citado de Bourdieu: DOSSE, François.
    O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009; CERTEAU, Michel de.
    A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982; GOMES, Ângela de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.).
    Memórias e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. A lista, é claro, não pretende ser exaustiva.
  • 13
    "Ainda que, tal como é tradicionalmente apresentada, a Vila-Francada seja na sua origem um pronunciamento militar contrarrevolucionário liderado por D. Miguel, tratou-se de um golpe ambíguo no qual se sobrepuseram dois golpes de Estado (o de D. Miguel e o de D. João VI) e acabou por se transformar numa coalizão de liberais moderados e partidários da monarquia tradicional". LOUSADA, Maria Alexandre; FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo.
    D. Miguel. Lisboa: Círculo do Livro; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2009. p.50. Para alguns autores, a atitude do rei foi de contemporização. A nomeação de d. Miguel comandante do exército, em Vila Franca, ato explícito do apoio de d. João ao movimento contrarrevolucionário encabeçado por seu filho mais moço, seria compensada pela disposição real em outorgar uma nova Constituição ao país. PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores.
    D. João VI. Lisboa: Círculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2006. p.18. Em ambas as interpretações, porém, prevalece a ideia de que a atitude de d. João VI foi 'hesitante'.
  • 14
    Quando não especificado o contrário, as informações sobre o miguelismo se baseiam em LOUSADA, Maria Alexandre.
    O miguelismo (1828-1834). O discurso político e o apoio da Nobreza titulada. Lisboa: Faculdade de Letras, 1987. p.1, mimeo. ; e LOUSADA; FERREIRA, 2009.
  • 15
    MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Societa rural i actituds polítiques a Portugal (1820-34). In: FRADERA, Josep Maria; MILLAN, Jesús; GARRABOU, Ramon (Ed.).
    Carlisme i moviments absolutistes. Capellades: Eumo Editorial, 1990.
  • 16
    MONTEIRO, 1990. p.147, em tradução de ALG.
  • 17
    Memórias históricas, políticas e filosóficas da Revolução do Porto, em maio de 1828, dos emigrados portugueses pela Espanha, Inglaterra, França e Bélgica. Obra póstuma de Joaquim José da Silva Maia. Rio de Janeiro: Tipografia de Laemmert, 1841.
  • 18
    ANTT, Maço 57, n.5. Exceto quando mencionado em contrário, todas as informações foram extraídas desse documento. A numeração das páginas não é sequencial, o que explica a opção por não citá-las na reprodução dos excertos.
  • 19
    REIS, João J.; GOMES, Flávio dos S.; CARVALHO, Marcus J. M. de.
    O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.30. "No Rio de Janeiro, a quase totalidade dos homens escravizados anunciados nos jornais como domésticos, em meados do século XIX, era de cozinheiros" (ibidem).
  • 20
    O assunto foi abordado mais recentemente por: RODRIGUES, Jaime.
    De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • 21
    OLIVEIRA, Laura N. de.
    As Regras de Composição Retórica na Obra de Francisco Adolfo de Varnhagen. Tese (Doutorado) – Fale/UFMG. Belo Horizonte, 2007.
  • 22
    Muito provavelmente, o que inquietava as autoridades policiais miguelistas eram os fatos relacionados ao Levante de Novembro ou Levante dos Cadetes (1830-1831), como ficou conhecida a revolta armada que eclodiu em Varsóvia contra o domínio russo na Polônia. Sobre o assunto, consultar: DAVIES, Norman.
    God's Playground: a History of Poland. Oxford: Oxford University Press, 1981. cap. 13.
  • 23
    Ó Pátria, Ó Rei, Ó Povo/ Ama a tua Religião/ Observa e guarda sempre/ Divinal Constituição/ Coro/ Ó com quanto desafogo/ Na comum agitação/ Dá vigor às almas todas/ Divinal Constituição/ Coro/ Venturosos nós seremos/ Em perfeita união/ Tendo sempre em vista todos/ Divinal Constituição/ Coro/ A verdade não se ofusca/ O Rei não se engana, não/ Proclamemos Portugueses/ Divinal Constituição/ Coro. Foi o hino de Portugal de maio de 1834 até a proclamação da República, em outubro de 1910.
  • 24
    Acerca da atuação do eclesiástico, publicista e servil partidário de d. Miguel, José Agostinho de Macedo, ver: ANDRADE, Maria Ivone de O.
    José Agostinho de Macedo: um iluminista paradoxal. Lisboa: Colibri, 2001. v.1; e, da mesma autora,
    A contra-revolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004. v.2.
  • 25
    MACEDO, José A. de.
    A Besta Esfolada. Lisboa, na Tipografia de Bulhões, s.d. p.7. Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em:
  • 26
    Diários das Cortes Gerais e extraordinárias da Nação Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821-1823, tomo 7, sessão de 13 ago. 1822, p.138-139. Acerca da questão da 'ausência da raça' ou do caráter inclusivo da definição de cidadania no Brasil oitocentista ver: MARQUESE, Rafael de Bivar; BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824). In: CHAVES, Cláudia; SILVEIRA, Marco Antônio (Org.).
    Território, conflito e identidade. Belo Horizonte: Argvmentvm; Brasília: Capes, 2007. p.63-87.
  • 27
    Coleção de listas que contém os nomes das pessoas que ficaram pronunciadas e sumários a que mandou proceder o Governo Usurpador depois da heroica contra-revolução que arrebentou na mui nobre cidade do Porto em 16 de maio de 1828, nas quais se faz menção do destino que a Alçada, criada pelo mesmo governo para as julgar, deu a cada uma delas. Porto, Tipografia de Viúva Álvares Ribeiro & Filho, 1833.
  • 28
    No Dicionário Houaiss
    atacador significa
    cadarço – emprego mais recorrente – ou cilindros de metal utilizados para o carregamento de espoletas de bombas e de foguetes de sinal. As duas acepções também se encontram no Dicionário Caldas Aulete: "atacador: cordão de enfiar por ilhoses, para apertar ou atacar os sapatos, o colete ou outra peça do vestuário" e "instrumento de calcar a carga de pólvora dentro do cartucho ou da arma de fogo; soquete...". O mais provável é que Margarida Rebelo se dedicasse à manufatura de cadarços.
  • 29
    Devo a arguta observação a Francisco Eduardo Andrade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      23 Jan 2012
    • Aceito
      16 Abr 2013
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