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Eugenia Meyer

ENTREVISTA

Eugenia Meyer

Marieta de Moraes Ferreira (MM)

Professora Associada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretora Executiva da Editora FGV. Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 – Botafogo. 22231-010 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. marieta@fgv.br

Buenos Aires, 8 de setembro de 2012.

Eugenia Meyer, historiadora mexicana, é neta de imigrantes russos e poloneses e filha de Gregorio Walerstein, renomado produtor de cinema mexicano. Estudou na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), onde é catedrática desde 1963 e, desde 2009, a primeira mulher nomeada Professora Emérita do Colégio de História. Doutorou-se em 1968, mesmo ano do Massacre de Tlatelolco, tendo se envolvido ativamente no movimento estudantil mexicano. Foi a primeira mulher a assumir a cátedra de História da Revolução Mexicana em universidades de seu país, além de ter sido membro de um núcleo de história oral formado exclusivamente por mulheres – o que lhes trouxe diversos obstáculos. É assessora do Projeto de História Oral no Escritório Regional de Cultura para América Latina e Caribe da Unesco. Publicou diversos trabalhos no campo da história oral, historiografia e história do México, com destaque para o período revolucionário do início do século XX. Desde 1988 faz parte do Sistema Nacional de Investigadores do Conselho Nacional para a Ciência e a Tecnologia de seu país. Em 1998 recebeu o prêmio Universidad Nacional em "Docência em Humanidades". Em 2012 a Academia de História de Cuba nomeou-a correspondente acadêmica estrangeira, e a Rede Latino-americana de História Oral (Relaho) acaba de instituir um prêmio bianual com seu nome para os melhores artigos, teses e livros de história oral sobre a América Latina.

Eugenia Meyer, a Mexican historian, is the granddaughter of Russian and Polish immigrants and the daughter of Gregorio Walerstein, a renowned Mexican cinema producer. She studied at the Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), where she has held a chair since 1963 and in 2009 became the first woman to be nominated as Professor Emeritus in the College of History. She completed her doctorate in 1968, the same year as the Tlatelolco Massacre, having been actively involved in the Mexican student movement. She was the first woman to assume the Chair of the History of the Mexican Revolution in various universities in her country, as well as having been a member of the oral history group consisting solely of women – which involved confronting various obstacles. She is an adviser to the Oral History Project in Unesco's Regional Office of Culture for Latin America and the Caribbean. She has published various papers in the field of oral history, historiography and the history of Mexico, especially the revolutionary period at the beginning of the twentieth century. Since 1988 she has been part of the National System of Researchers of the National Council for Science and Technology of Mexico. In 1998 she received the Universidad Nacional award for Teaching in the Humanities. In 2012 the Academy of history of Cuba nominated her as a foreign academic correspondent, and the Latin American Oral History Network (Relaho) has just created a biannual award with her name for the best articles, theses and books about Latin American oral history.

MM. Eugenia, esta entrevista é para a Revista Brasileira de História. Nós gostaríamos de conversar com você sobre sua trajetória. O início da sua carreira, sua origem familiar e sua formação profissional.

Venho de uma família com três filhos. Sou a do meio, a do sanduíche. Meus pais estudaram na Universidad Nacional de México, participaram de movimentos estudantis importantes, como a da Autonomia Universitária dos anos 1930. Para meus pais era muito importante a formação universitária. No começo eu queria estudar para ser advogada criminalista infantil, mas na época também planejava me casar. Foi muito complicado, porque meu noivo disse que a carreira de criminalista infantil não era profissão para uma mulher. Ir aos tribunais...

MM: Você teve que desistir?

E por eliminação escolhi História.

MM: Você nasceu na Cidade do México?

Nasci na Cidade do México. Minha mãe e meus avós maternos vieram da Rússia. Meus avós paternos vinham da Polônia e foram primeiro para o Chile, com a ideia de migrar para os Estados Unidos. Mas as fronteiras foram fechadas aos migrantes e, então, eles chegaram ao México. Meu pai já nasceu no México – eu sou a segunda geração nascida no México –, e acredito que isso também determinou a atitude e a disposição do meu pai: muito nacionalista, muito interessado em que os filhos aprendessem a amar o país onde nasceram. E meu pai nasceu durante a Revolução Mexicana, no dia em que mataram Madero, em 22 de janeiro de 1913. Os pais dele viajaram para Chihuahua, no norte, onde aconteceu a rebelião de Francisco Villa, depois foram para Guadalajara, no oeste, onde aconteceu a rebelião religiosa, movimento reacionário. Na minha infância, as menções à Revolução e à História Contemporânea foram uma constante. Talvez isso também tenha determinado que o que me interessava na História era o México Contemporâneo.

MM: Você teve formação religiosa?

Nenhuma. Meus avós, dos dois lados, são judeus imigrantes, mas minha avó materna, por exemplo, era socialista menchevique. Quantos aos meus avós paternos, acho que não tinham nenhuma prática religiosa. Além do mais, havia poucas possibilidades, considerando que no México quase não havia sinagogas. Hoje há quarenta mil judeus em 110 milhões de habitantes. Mas acho que o que ficou muito claro na minha educação foi que o judaísmo não é para nós uma religião.

MM: Uma cultura...

É uma cultura, uma forma de viver, um conceito filosófico, ético. É uma filosofia de vida.

MM: Sim, entendo. Tenho muitos amigos no Brasil com uma posição semelhante.

E fui educada numa escola laica. Depois me mandaram para um colégio judaico por um tempo. Fiquei totalmente deslocada, mas quando entrei na universidade percebi que meu lugar era 'aqui e agora'. E que estava muito mais ligada ao que acontecia com meu país etc. Entendo isso assim porque, como sou ateia, assumo que minha cultura tem uma raiz judaica.

MM: Seus pais foram para a universidade. Em que época? Para que profissão?

Meu pai estudou Contabilidade e depois Economia, mas não terminou. Foi a primeira geração de economia, que não terminou, composta só por socialistas. Minha mãe estudou o que, na época, se chamava Filosofia e Letras, que é Literatura.

MM: Sua mãe trabalhou?

Não, minha mãe não se formou. Meu pai seguiu a carreira por um tempo, foi professor, também deu aulas e, durante a Guerra, um colega sugeriu que eles fizessem um filme, como aventura. Fez um filme que se saiu muito mal – não tinha um centavo –, mas ele se apaixonou, deixou tudo e se dedicou a ser produtor de cinema.

MM: Ah, fantástico!

E meu pai foi, talvez, o mais importante produtor de cinema mexicano daqueles anos fundamentais do século XX. A época de ouro do cinema mexicano. Fez 270 filmes, porque produzia, escrevia os roteiros... Ele vivia num ambiente absolutamente proibido para nós, porque minha mãe era contrária a qualquer contato nosso com a produção de filmes...

MM: Mas de qualquer forma acho que isso teve uma influência na sua educação, não?

Uma influência muito grande, da parte do meu pai. Eu fiz uma História Oral do Cinema Mexicano.

MM: Em que ano você entrou na universidade?

Em 1958. Naquela época o bacharelado não era de 3 anos, como agora. No México temos o pré-escolar, depois seis anos de educação básica, três anos de educação secundária e depois 3 anos de bacharelado. Naquela época eram 2 anos. Entrei em 1958, e nesse ano me casei. Você podia pegar mais matérias, os programas eram diferentes, e isso me permitiu terminar o curso antes. Terminei o curso de acordo com o currículo, em novembro de 1960, e meu filho nasceu em janeiro de 1961.

MM: Você se formou bacharel em História?

Não, fiz Licenciatura em História. Um ano depois de terminar entreguei uma monografia. Naquela época não havia o conceito de mestrado, nem de doutorado.

MM: No Brasil era igual.

Passei para o Doutorado. Fui a mais jovem a terminar a licenciatura e terminei o Doutorado aos 28 anos.

MM: Qual foi seu tema de pesquisa?

Sempre tive a ideia de trabalhar com a História Contemporânea no México, o que era um problema, como continua sendo hoje. Porque essa ideia de uma mulher interessada na Revolução Mexicana – fui a primeira mulher a dar aulas de Revolução Mexicana na universidade – me levou a travar muitas batalhas até entenderem que meus alunos podiam fazer teses sobre o México recente e que nós, historiadores, também trabalhamos com o mundo presente.

MM: Quando você começou a dar aulas na universidade?

Terminei o doutorado em 1968, mas nesse período eu já lecionava no bacharelado. Nessa época era possível dar aulas e ter um cargo de pesquisa em outro lugar. Assim, comecei a trabalhar em 1965 no Instituto Nacional de Antropologia e História. Lá eu fiz, basicamente, a tese de doutorado sobre a Historiografia Norte-americana da Revolução. E demorei mais para poder lecionar disciplinas sobre o me interessava, a Revolução Mexicana. Inicialmente dava uma disciplina que consistia em comentários de textos. Depois fui para os seminários de pós-graduação.

MM: E como era o clima na universidade na década de 1960? Havia mobilização política?

Bom, havia, sim. Primeiro vivi o movimento de 1968, que foi o Massacre de Tlatelolco e isso tudo é parte do meu trabalho.

MM: Você pode falar um pouco sobre esse evento?

Sim. Eu estava terminando o doutorado e ainda era muito nova. O movimento aconteceu de forma plural, e participei de todo ele. Não estive no dia do massacre de Tlatelolco, 2 de outubro, porque estava sofrendo um aborto, então fiquei em casa. Meu marido fotografou todo o movimento. Ele também não foi no dia 2 de outubro. Foi por acaso que não estivemos lá...

MM: Dia 2 de outubro de 1968...

É o Massacre de Tlatelolco, um movimento de estudantes que foi influenciado pela repercussão do movimento francês.

MM: No Brasil também tivemos isso, em 1968 houve uma grande movimentação política dos estudantes.

Existe um 'antes' e um 'depois' de 1968 na vida institucional. Os estudantes perceberam muitas coisas. Desde então continuei trabalhando na universidade. No começo só dava aulas, mas trabalhava também no Instituto de Antropologia. É lá que eu criei o primeiro Arquivo da Palavra, com Alicia Olivera, e permaneci lá por muitos anos...

MM: Alicia Bonfil?

Sim, Alicia Olivera Sedano de Bonfil, que faleceu há 3 meses. E começamos o projeto de História Oral no Instituto de Antropologia. E no começo foi muito difícil. As pessoas riam de nós: "Isso não faz sentido", ou "História Oral tem a ver com Freud ou com Odontologia?". E como éramos só mulheres no grupo, ficava mais complicado. Mas rapidamente começamos a desenvolver projetos importantes, e foi então que tomamos a decisão de começar a gerar na América Latina uma espécie de rede. Fui ao Brasil para um curso de História Oral na Fundação Getulio Vargas. Eu estive na Venezuela e em outros países para criar os primeiros projetos, e continuei no Instituto de Antropologia até 1982. Naquela época já havia sido criado um Departamento de Estudos Contemporâneos que, na essência, era História Oral. Ali desenvolvemos projetos sobre a História da Revolução, a História do Cinema Mexicano, a História Contemporânea do México, projetos sobre o exílio espanhol...

MM: E como foi essa opção pela História Oral? Como isso começou na sua vida?

Eu queria encontrar depoimentos sobre a revolução mexicana, e na Universidade do México não havia nada...

MM: Na América Latina não existia História Oral. Existia uma linha de antropólogos que faziam entrevistas...

Eu tinha interesse em trabalhar com um período obscuro da História do México, que é a época de Victoriano Huerta, que representa uma reação à Revolução Mexicana em 1913, 1914. Ainda havia algumas pessoas vivas.

MM: Essa pesquisa era para sua tese de doutorado?

Não. Era para um trabalho que iria fazer depois. Eu achava interessante trabalhar esse tema porque sou a favor da 'história do lado contrário', uma história que não seja institucionalizada, que não seja oficial. Porque existem muitas versões de tudo o que aconteceu, não é? Eu ia procurar testemunhas desse período. Ainda havia alguns vivos e, o melhor, uma pessoa que tinha já 90 anos e morava em San Antonio, Texas, mas que me concederia uma entrevista. Numa revista americana de aparelhos de áudio eu li que existia uma Oral History Association nos Estados Unidos, e que eles convidavam para um congresso. Então fui para Bloomington, Indiana, para um primeiro congresso. Não sabia nada.

MM: Isso foi em que ano?

Foi no início da década de 1970. E, claro, foi bem interessante. Ali tinha de tudo. Havia donas de casa que faziam um projeto de história oral de sua comunidade. Havia projetos de "By Myself I Am A Book". Uma série de coisas. A aproximação sob o ponto de vista ideológico não me satisfazia, mas foram minhas primeiras reuniões.

MM: Claro. E naquele momento havia uma vertente de historia oral que se definia como militante, revolucionária, não é?

Nos Estados Unidos nem tanto. Mas no ano seguinte, ou 2 anos depois, entrei em contato e fui às reuniões, uma em Oxford, outra em Essex. Conheci Paul Thompson, Luiza Paserini e Mercedes Vilanova – os europeus –, e obviamente descobri que aquilo tinha muito mais afinidade com o que eu gostava de fazer. Era, sem dúvida, trabalhar mais com a questão das classes subalternas. Mas é preciso fazer uma distinção do que era récit de vie, a maneira como trabalhavam Berteau e outros que não eram historiadores, mas com os quais tínhamos um interesse comum. Eu estava muito mais perto do pensamento da Escola dos Annales, e tivemos de gerar procedimentos e ir desenvolvendo uma tarefa muito importante de adequação e adaptação metodológica ao meio mexicano e, me atrevo a dizer, latino-americano. Também devo dizer que isso me levou a um tema que tem me interessado muitíssimo: como transmitir ou retornar ao povo a história que resgatamos? Uma forma de fazer isso é pela construção de museus. Por isso me dediquei a fazer muitos museus no México, porque não eram criados havia muitos anos. Fiz quatro ou cinco museus históricos, alguns nacionais, outros regionais, onde a história oral era importantíssima. Hoje em dia, vamos a museus modernos na Europa sobre o Holocausto e todos têm história oral.

MM: É verdade, a história oral tem sido incorporada a muitos museus...

Mas naquela época não se usava isso.

MM: E você continuou lecionando História Contemporânea do México?

Sim, e pude introduzir alguns cursos e seminários de História Oral. Depois me pediram, depois de uma longa greve, que idealizasse um curso para a licenciatura chamado "Novas Fontes para uma Nova História", onde trabalhava História Oral, testemunhos de diferentes tipos, récit de vie, histórias de vida, fotografia, cinema e literatura, integrando tudo. Depois disso o presidente da República me nomeou diretora de uma instituição que ainda não existia, o Instituto Mora.

MM: Quando foi isso?

Eu cheguei em 1983 para criar o instituto. Fui incumbida de construir o edifício. Aí sim, fizemos um projeto sobre a América Latina, outro sobre o México, outro sobre a História dos Estados Unidos, uma série de projetos, desenvolvemos histórias regionais. Criamos uma biblioteca, esplêndida, no edifício novo. E depois disso fui para um trabalho que tinha pouco a ver com História Oral – fui ser a diretora de publicações culturais do meu país, durante 5 anos.

MM: Um novo desafio... Temos uma história um pouco semelhante. Atualmente sou diretora da casa de publicações da Fundação Getulio Vargas, um trabalho muito diferente, muito interessante...

Sim, mas nunca me afasto da minha origem. Nunca parei de dar aulas.

MM: Ah, eu também. Acho que é muito importante manter o vínculo com a sala de aula.

Depois dessa experiência, decidi que não voltaria a ter um cargo burocrático. Eu estava vinculada originalmente ao Instituto de Antropologia. Saí de lá sem me aposentar, em 1994, e solicitei dedicação exclusiva à universidade, aplicar provas, tudo outra vez.

MM: Na Unam?

Sim, na Unam. E nesse período criei uma pequena empresa que se chama El Taller de Clío, onde fazíamos projetos culturais, museus, CDs, livros, mas como uma empresa independente.

MM: Atualmente você trabalha com isso?

Não, já encerrei essa atividade.

MM: Mas vamos voltar. Fizemos um tour rápido... Você deu aulas no ensino secundário?

No preparatório, o bachillerato, onde fui professora por 5 anos. O bachillerato é parte do sistema universitário, porque nós seguimos o sistema francês, o baccalauréat. Eu fui professora no 'preparatório'.

MM: O que é exatamente o bachillerato no México?

São os últimos três anos antes de entrar na universidade. Nós temos o primário, 6 anos; o secundário, 3 anos; e o preparatório, 3 anos, que é o bachillerato. Fui professora desde 1960. Eu estava no segundo ano do curso, era muito mais jovem que muitos dos meus alunos. Foi uma experiência fundamental na minha vida.

MM: O bachillerato pertence à grade da universidade?

É do sistema da universidade, sim. Reconheceram meu tempo na universidade desde o momento em que comecei a dar aulas no bachillerato, no preparatório. E fui professora ali por 5 anos. Dava aulas de História Universal, eram cursos ótimos, desde a Revolução Francesa até os nossos dias. E depois lecionava também História do México. Em 1962, 1963, comecei também a dar aulas no que chamavam de "Escolas para Estrangeiros", cursos de verão em inglês, mas isso não contava no currículo.

MM: Nessa fase você teve alguma experiência de pesquisa?

Fui auxiliar de pesquisa de vários professores. Trabalhava no Anuário de História da universidade, principalmente para dois professores muito importantes na minha formação. O ano de 1968 foi muito interessante: no auge do movimento estudantil, um dos professores que eu conhecia muito bem – o titular de Revolução Mexicana – tinha uma situação muito peculiar: dava num semestre Revolução Mexicana, e no outro, Renascimento Italiano. A velha ideia da cultura universal. Ele mandou me chamar e disse: "Vou embora da universidade – ele era muito conservador – porque não estou de acordo com o que está acontecendo". No meio do movimento de 1968. "Se você quiser, eu deixo meus cursos para você." Era tudo o que eu queria. Eu queria ser professora de Revolução Mexicana e não tinha como fazer concurso. Respondi "Claro que sim", mas ele não me disse que naquele semestre estava dando Renascimento Italiano.

MM: Então você teve de começar dando Renascimento!

Um curso de Renascimento Italiano! Imagine, trabalhar com Burckhardt e tudo isso. Depois fiz os exames, fiquei com a cátedra de Revolução Mexicana. Acho que é importante destacar que foi uma espécie de pequena revolução ou rebeldia, porque até então nenhuma mulher tinha se encarregado da Revolução Mexicana em nível universitário, muito menos ensinara a Revolução Mexicana em seus aspectos sociais e das mentalidades.

MM: Nesse momento você já estava próxima dos historiadores dos Annales, com a história das mentalidades? Como eram seus professores de História?

Eu fui formada ainda no Historicismo.

MM: No Brasil, também, a formação era assim.

No Historicismo, e com uma enorme influência de Heidegger. Devo destacar ainda que vários dos meus professores eram exilados espanhóis que chegaram ao México exilados pela Guerra Civil Espanhola. Eram pessoas mais abertas. Acho que o mais importante historiador que fazia Filosofia da História no México era Edmundo O'Gorman, que foi meu principal professor. Dava aulas sensacionais: Filosofia da História, Teoria da História. Foi o criador de coisas como a Invenção da América, Fundamentos para a História da América... Fez um livro chamado Crisis y Porvenir de la Ciencia Histórica, criticando Collingwood. Mas era uma pessoa fascinante... Essa relação acadêmica foi importantíssima. O'Gorman foi uma pessoa determinante para mim, tanto que há pouco tempo fiz um livro-texto sobre a obra de O'Gorman. Ele tem um texto que se chama "Fantasmas da historiografia contemporânea". É um texto muito pequeno, é como se fosse o testamento dele, onde defende uma História imprevisível, cheia de fantasia e de imaginação. E eu fiz esse livro-texto e dei o título de Imprevisibles Historias en torno a la Obra y Legado de Edmundo O'Gorman [México: Fondo de Cultura Economica, 2009].

Mas além dele tive outro professor que também não estava relacionado aos Annales porque chegou ao México naquele momento. O nome dele é Juan Antonio Ortega y Medina, um historiador espanhol... que se tornou historiador no México. Era um mestre. Eu era sua auxiliar e ele insistia para que eu ficasse com as suas disciplinas, mas ele ministrava um curso sobre o Império Espanhol e também trabalhava um assunto muito interessante, o Protestantismo, a Evangelização Puritana nos Estados Unidos, na Nova Inglaterra. Mas esses não eram temas interessantes para mim, claro. Assim, eu o auxiliava nos seminários de pesquisa. Esses dois são os homens que me formaram.

MM: Mas se os seus professores mais importantes não tinham maior vinculação com os Annales, como se deu sua aproximação com os historiadores franceses?

Acho que foi a partir de Marc Bloch. Comecei a ler textos de Bloch e de Febvre e percebi que estavam muito mais próximos daquilo que me interessava. Essas obras me parecem uma espécie de grande revolução diante das ideias de Ranke de que a História deve ser somente aquilo que aconteceu – a objetividade, a imparcialidade. Essa História não me interessava. Em suas diferentes etapas, a Escola dos Annales e o conceito de Nova História foram determinantes para mim.

MM: Mas no desenvolvimento da sua concepção de História os autores marxistas tiveram importância?

Sim. Obviamente tive de ler Marx, que era o esperado. Depois tive muita influência de alguns historiadores que trabalharam no México e eram de origem marxista: Friedrich Katz, John Womack, Eric Hobsbawm – que trabalhou bandidos no México – todos eram socialistas. Estive muito perto de todo o processo cubano, que achei fascinante, maravilhoso etc.

Desde a primeira vez que fui a Cuba, em 1976, tive um romance com Cuba que durou uns 18, 20 anos. E uma grande decepção depois. Foi quando fiz o livro sobre mulheres cubanas, que esteve muito tempo guardado, mas depois, finalmente, foi publicado. Acho que o final do processo cubano é muito triste. Existe uma série de problemas históricos e de erros dos cubanos, como também dos norte-americanos. Se os Estados Unidos não estabelecessem o bloqueio, tudo teria sido diferente...

MM: E como começou essa sua relação com Cuba?

Houve uma influência muito grande da parte do meu pai. Como eu já disse, fiz uma História Oral do Cinema Mexicano. Durante a Segunda Guerra Mundial, o México desenvolveu uma indústria cinematográfica enorme. Na época do presidente Miguel Alemán criou-se uma empresa para distribuir o cinema mexicano para a América Latina. Criou-se uma empresa chamada Películas Mexicanas, e meu pai foi enviado pelo governo para a América Latina toda, onde criou as distribuidoras de filmes.

MM: Realmente, o cinema mexicano teve uma importância muito grande na América Latina. E seu pai tinha alguma militância política? Era uma pessoa de esquerda?

Meu pai dizia: "Ser marxista aos 18, 20 anos, todo mundo é". Mas ele foi muito amigo de ativistas políticos perseguidos durante um longo tempo, especialmente dois deles, que eram escritores. E a situação do meu pai era muito melhor que a deles... Ele não fez militância partidária nunca, mas ajudava. Minha mãe, não. A mãe dela, curiosamente, era socialista menchevique e bundista – os judeus que não estavam de acordo com o sionismo. Foi uma espécie de Clara Zetkin ou Rosa Luxembrugo, mas não fez militância política.

MM: E você, fez militância política?

Não, de nenhum partido. Não existe nenhum de que eu goste. Pior: estou profundamente decepcionada com todos. Talvez eu tenha chegado mais perto do Partido Comunista, mas o achava tão dogmático... No México, foi profundamente dogmático. Acho que no fundo do meu coração tenho um cantinho anarquista, e isso não me permite fazer militância partidária. Mas acredito ter uma militância como historiadora sobre causas que me parecem fundamentais.

MM: Voltando à sua relação com Cuba, como aconteceu o contato, sua possibilidade de ir a Cuba e desenvolver o projeto?

Não se esqueça de que Fidel Castro esteve no México, e foi no México que começou a Revolução. E uma história familiar diz que Fidel Castro morou no México, onde trabalhou como figurante de cinema.

Eu era diretora de Estudos Contemporâneos do Instituto de Antropologia, onde desenvolvia projetos. Estávamos muito envolvidos no projeto do exílio espanhol, o primeiro projeto no mundo sobre exilados espanhóis. Agora, com a famosa Lei da Memória, foram assinados acordos e nossos materiais estão na Espanha. O Diretor do Instituto de Antropologia, que se considerava progressista, mandou me chamar e disse: "Acabei de ser convidado para ir a Cuba pelo Ministério de Educação Superior, mas não posso ir. Você quer ir?". E eu disse: "Claro!". Quando cheguei a Cuba tive uma espécie de grande crise pessoal porque percebi que eu estava vivendo – no final de 1976 – o processo da Revolução Cubana, mas de forma muito distante. Eu era muito nova e digo isso no livro sobre mulheres cubanas. Digo que cheguei e percebi que enquanto Fidel estava lutando na Sierra Maestra, com Che e todos eles, eu estava na festa de 15 anos, com baile e valsas. Toda essa coisa da burguesia e da música dos Platters, Only you...

Passei por uma grande crise pessoal, me envolvi muitíssimo. Achei maravilhoso tudo o que acontecia. Fui 18 vezes a Cuba num período de 10 anos, me envolvi muito com a Casa de las Américas, que era o centro cultural, com o pessoal que estava no Icae, que era de cinema. Cheguei a ser jurada do prêmio Casa de las Américas. Eu estava muito feliz, pensei em morar em Cuba. Decidi fazer um projeto para ir mais frequentemente e ter mais opções. Em 1979 comecei o projeto sobre mulheres cubanas, e o projeto recebeu o apoio da Federação de Mulheres Cubanas. Vilma Espín, a mulher de Raúl Castro, me ajudou muitíssimo, me deu liberdade total. Eu escolhi umas mulheres que queria entrevistar, e ela me sugeriu algumas outras. E gravei oito depoimentos de mulheres que, naquela época, tinham entre 80 e 27, 28 anos.

MM: E qual era o eixo do projeto? Era a memória sobre a Revolução ou o impacto da Revolução sobre as suas vidas? Qual foi sua avaliação final? Elas estavam desapontadas com a Revolução?

Naquele momento eu não entendi. Eu dizia que tudo era maravilhoso etc. Gravar a vida de cada uma delas, para mim, foi muito interessante. Eu senti aquilo que sempre dizem que não deve acontecer, eu me envolvi com tudo. Havia momentos em que eu literalmente precisava parar a entrevista porque chorava de emoção. Descobri, também, que as entrevistas podem ser um processo de catarse para os entrevistados, de liberação. O caso mais importante, para mim, foi o de uma mulher que havia sido torturada. Quando ela me contou da tortura – ela nunca havia contado isso para ninguém –, estava muito cansada e me disse: "Olha, filha, passa um pouco de café". Era a casa dela, e eu disse: "Vamos parar". Naquela noite eu não consegui dormir, estava muito angustiada. No dia seguinte eu a vi e ela me disse: "Queria que você soubesse, Eugenia, que eu não tinha contado para ninguém a história completa da minha vida". "Mas posso usá-la?" "Você pode usar como quiser. Mas quero te dizer que ter contado a história me tirou um peso enorme, uma pedra enorme, e me sinto totalmente liberada."

Nessa época estive muito envolvida, militante, com presas políticas no Uruguai... Eu trabalhava numa associação, e chegou ao México, por acaso, uma médica comunista uruguaia que tinha sido presa em Punta de Rieles. O nome dela é Ofelia Fernandez, e eu achei que seria interessante gravar a sua história de vida como denúncia. Fizemos uma entrevista maravilhosa, publicada em Oxford, e com isso descobri que a História Oral se transforma também num instrumento de denúncia.

MM: Sem dúvida! Mas vamos voltar um pouco mais porque eu também tenho um objetivo como entrevistadora. Acho que é importante esse seu ponto de vista, de mostrar que a História Oral pode ser um instrumento de denúncia, que pode ser um instrumento de ação política. E estou totalmente de acordo, que determinado grupo pode trabalhar com a História Oral para denunciar determinadas situações e que use isso de forma partidária ou política.

Mas existem outras razões.

MM: Perfeitamente. Fazer uma tese na universidade é diferente. Como você vê o trabalho com a História Oral no espaço acadêmico?

Acho que você não pode fazer uma tese apenas com História Oral. Eu defendo que a História Oral é um método, não uma técnica, e sei que nem todos concordam. Mas a História Oral não substitui os arquivos, nem o material documental. O trabalho heurístico do historiador inclui a História Oral para a História Contemporânea, mas é preciso analisar o material de História Oral como se faz a análise de interpretação de todos os outros materiais. Por isso, quando alguém pergunta "Por que não posso fazer uma tese só de História Oral?", respondo que é porque a História Oral não está isolada. Você não pode entrevistar um sujeito se você não conhece a História do sujeito, do entorno, das condições sociais, da conjuntura. Isso não pode ser feito sem rigor.

MM: Exatamente, a falta de rigor leva muitas pessoas a dizer que "a História Oral é muito limitada".

Mas também imagino que você esteja de acordo comigo, que toda história é subjetiva e parcial. E é subjetiva e parcial desde o momento em que você escolhe o tema.

MM: O período, as fontes. E quando você começa a ler as fontes, já está fazendo uma seleção. Um assunto que eu discuto sempre com meus alunos são as atas de reuniões, ou mesmo as atas de congressos nacionais. Nessas atas, quando as pessoas querem falar de coisas mais sigilosas, dizem assim: "Desligue o gravador, não escreva isso na ata". As atas são documentos escritos, que usamos, e que são totalmente parciais, fragmentados.

Estou certa de que se você tivesse me entrevistado há 20 anos, com certeza eu teria falado coisas diferentes. Também não acho que a História Oral seja uma panaceia, a utopia que resolve tudo. De maneira alguma. Acho que tem uma série de limitações. Não acredito, por exemplo, na História Oral coletiva. Não acho que quatro pessoas possam me entrevistar...

MM: Também penso assim...

Também não posso entrevistar quatro pessoas ao mesmo tempo. Não gosto de fazer História Oral com câmeras, a não ser que eu esteja prestando atenção na câmera, no gravador e naquilo que a pessoa entrevistada diz... Uma terceira pessoa já é uma plateia. E o sujeito da entrevista está atento às reações que você tem e que essa outra pessoa também tem.

MM: Cria-se uma dinâmica diferente. E essa nova dinâmica precisa ser analisada.

Acho que sim. A metodologia da História Oral é totalmente diferente das técnicas ou métodos usados pelos antropólogos, pelos jornalistas, pelos sociólogos...

MM: Eu também acho. E principalmente porque a História Oral tem essa vocação, digamos, de 'criar arquivos'.

Exato. E de permitir as vozes plurais. Quando fizemos o primeiro curso de História Oral no Brasil, na Fundação Getulio Vargas, em 1975, James Wilkie e a mulher dele participaram. Mas ele era daqueles que pensavam que podiam se instalar na casa do depoente um mês e gravar. Ele ainda está vivo, é um historiador norte-americano casado com uma guatemalteca. Para ele o conceito de História Oral, de uma maneira bem norte-americana, é uma coisa muito utilitária e pragmática. Ele e a mulher entrevistaram um político. Eu, por exemplo, acho que entrevistar um político ou uma pessoa pública é perda de tempo, porque eles já têm um discurso construído. É muito difícil que eles o mudem. A parte subjetiva, íntima, é muito difícil de ser captada. E são pessoas que construíram sua própria imagem com o que desejam que se saiba deles...

MM: Mas eu acho que lideranças políticas populares também têm um discurso construído.

Sim, concordo. Mas eu, por exemplo, se fosse trabalhar com gente que fez uma greve, não começaria pelo líder sindical. Acho muito mais interessante falar com os trabalhadores, porque aí, sim, você pode desmembrar o que é o discurso individual do discurso imposto.

MM: É verdade. Mas penso que mesmo com as lideranças, que têm um discurso mais construído, é possível captar certas informações. Por exemplo, as estratégias políticas que foram adotadas.

Sim, para isso é preciso muitíssima prática.

MM: É preciso ter um conhecimento grande para poder fazer as perguntas específicas e adequadas.

Claro, porque o que você tem de fazer é pegá-los no pulo, mas para isso precisa ter muita expertise.

MM: As pessoas acham que fazer História Oral é uma coisa muito simples... Ligar um gravador e está tudo resolvido.

Por isso mesmo eu digo que é preciso preparar as novas gerações. Oferecer cursos de metodologia, dizer para eles o que pode, o que não pode, que tipo de entrevistas existem, como você deve fazer, como fazer o questionário base, como se faz a cessão de direitos, todas essas coisas. Mas para os jovens é muito importante ouvir as experiências passadas.

MM: Mas no momento qual é o seu tema de pesquisa?

Estou fazendo uma pesquisa muito grande sobre a história da infância no México. É um assunto que me interessa muito. É uma parte da disciplina que quase não foi trabalhada na América Latina: a história da infância. E também estou muito ocupada trabalhando Memória e Esquecimento, com base não só em Maurice Halbwachs e Pierre Nora, mas também em todo o conceito novo de 'assassinos da memória', a questão do esquecimento. Todos esses me parecem assuntos muito importantes para a História Oral.

MM: Sem dúvida a questão do esquecimento é muito importante para a História Oral.

Esquecimento obrigatório, esquecimento voluntário. É um assunto, um tema central para a História Oral. As novas gerações não estão vendo isso. Estão muito preocupadas com as técnicas da entrevista e com os projetos que envolvem militância política – as favelas, os movimentos populares etc.

MM: No Brasil é um pouco diferente... Porque a História Oral, no Brasil, cresceu e se desenvolveu muito na universidade. Inicialmente havia essa resistência muito forte à História Contemporânea, à história recente e à história oral. Mas depois dos anos 1980 as universidades mais novas – por exemplo, nos novos estados, nos estados mais distantes (como Roraima, Acre e Tocantins), que tiveram seus cursos de graduação e de mestrado criados mais recentemente – se mostraram mais abertas para o uso da História Oral. Atualmente, mesmo as universidades mais tradicionais, como a minha, que é a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estão incorporando cada vez mais a História do Tempo Presente e a História Oral. Os programas de pós-graduação têm muitos alunos que hoje fazem suas teses de mestrado e doutorado usando História Oral – mas não apenas História Oral, trabalhando com outras fontes, refletindo teoricamente. A propósito, sua tese de doutorado já foi sobre História Oral?

Não, não mesmo. Foi sobre a Historiografia Norte-americana da Revolução de 1910. Na década de 1960, com a Revolução Cubana, a Revolução Mexicana se tornou o tema preferido dos Estados Unidos, porque eles estavam assustadíssimos. Isso porque foi a primeira grande revolução social do século XX. Uma revolução democrática burguesa com intenção social. Os Estados Unidos criaram, então, com a Aliança para o Progresso, muitos centros de pesquisa sobre a História da América Latina e, principalmente, sobre o México.

Eu estudei como os norte-americanos veem, desde 1908, o processo da revolução. Como eles a veem, como a condenam, como a apoiam, até a chegada dos profissionais de História. Os grandes livros sobre os homens mais importantes da Revolução – Zapata, Villa etc. – foram feitos por estrangeiros, não por mexicanos.

MM: Sim. A historiografia é um tema muito rico e que me interessa muito.

Sou professora de seminários de historiografia. Mas agora, a cada semestre eu mudo. Tenho a possibilidade de escolher meus seminários de pós-graduação. Num semestre, por exemplo, dei História e Literatura. Em outro semestre trabalhei o Culto às Comemorações, e agora estou trabalhando Memória e Esquecimento. Trabalho também os usos cinemáticos da História – como os filmes de ficção são determinantes para a formação do conhecimento histórico.

MM: O que você gostaria de dizer para os jovens estudantes de História brasileiros?

Eu diria que a História é uma aventura, e que temos de nos arriscar. Às vezes, temos de saltar no desconhecido, no vazio. A única forma de fazer isso é ter um sólido conhecimento teórico, metodológico. Não acho que seja necessário colocar rótulos, 'sou historicista', 'sou marxista', isso não. Mas é preciso conhecer as grandes linhas, para ter uma sustentação teórica e assim apoiar o que será trabalhado. Penso que a História sempre é presente. Nós somos História. A História está sempre em construção. E acredito que é muito importante lutar pela História presente.

MM: Concordo. Muito obrigada por sua entrevista.

Entrevista recebida em 20 de maio de 2013.

Aprovada em 27 de maio de 2013.

Transcrição e Tradução: Catalina Arica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2013
  • Data do Fascículo
    2013
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