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A revista A Ordem e o "flagelo comunista": na fronteira entre as esferas política, intelectual e religiosa

Resumos

Nos anos 1920, durante o período da neocristandade, surgiu uma das mais influentes gerações de líderes leigos católicos na história da América Latina, reunidos em torno do Centro Dom Vital. O principal núcleo de irradiação das ideias do grupo católico foi a revista (de periodicidade mensal) A Ordem, lançada em 1921. A proposta deste artigo é apresentar os elementos centrais utilizados pelas elites leigas para solapar o projeto comunista, tais como: a noção de propriedade privada, a questão da organização da sociedade e a comparação entre comunismo e crenças religiosas. Entende-se aqui o conceito de "intelectuais" num sentido amplo, referindo-se mais especificamente ao papel desempenhado pelas camadas eclesiásticas na luta por supremacia no campo político, intelectual e mesmo "religioso".

catolicismo; comunismo; "visões de mundo"


In the 1920's, during the Neo-Christianity period, one of the most influential generations of Catholic lay leaders in the history of Latin America was centered around the Dom Vital Center. The main source for spreading the ideas of this group was the monthly magazine A Ordem, launched in 1921. The main objective of this paper was to present the core elements used by secular elites to undermine the communist project, such as the notion of private property, the question of the organization of society and the comparison between communism/religious beliefs. The concept of 'intellectual' is understood in a broader sense, specifically referring to the role played by ecclesiastical layers in the struggle for supremacy, in the political, intellectual and even the 'religious' fields.

catholicism; communism; "visions of the world"


Precisamos enfrentar o comunismo como uma negação integral de Cristo e da Igreja e não como um fenômeno passageiro que afeta apenas os nossos interesses materiais ou as nossas posições sociais. Seu perigo é infinitamente mais profundo.

Tristão de Ataíde

Um dos grandes desafios deste trabalho é traçar novos parâmetros analíticos concernentes às relações entre intelectuais e sociedade no Brasil dos anos 1930. Com base em critérios teórico-metodológicos definidos, a proposta é abordar o campo intelectual seguindo as indicações de Karl Mannheim e Pierre Bourdieu. Lembrando que todos os indivíduos inseridos num determinado "campo" compartilham certo número de interesses fundamentais, a questão consiste, portanto, no seguinte: será que o anticomunismo serviu como uma das principais bandeiras para galvanizar a intelectualidade católica, permitindo sua atuação no processo político do período?1 1 O presente artigo é parte de uma discussão desenvolvida em maior detalhe em PEREIRA, 2010. Agradeço à Capes o financiamento da pesquisa que viabilizou este trabalho. Não poderia deixar de mencionar o apoio decidido do professor Sérgio Ricardo da Mata, do Departamento de História da Ufop, sobretudo pelas indicações valiosas de leitura.

A noção de "campo" diz respeito ao espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder. Para Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias. Entretanto, o autor sustenta a tese de que há leis gerais dos campos (leis de funcionamento invariantes), como por exemplo, entre os campos político, filosófico e religioso. Com efeito, "sabemos que em qualquer campo descobriremos uma luta, cujas formas específicas terão de ser investigadas em cada caso, entre o novo que entra e tenta arrombar os ferrolhos do direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência" (Bourdieu, 2003BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos. In: _______. Questões de Sociologia. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século Ed., 2003., p.119-120).

Parte-se, aqui, da premissa de que apenas num sentido muito limitado o indivíduo cria por si mesmo um modo de falar e de pensar. Em geral, ele fala a linguagem de seu grupo e, por conseguinte, pensa do modo que seu grupo pensa. Assim, cada indivíduo é "predeterminado em um duplo sentido pelo fato de crescer em uma sociedade: encontra, por um lado, uma situação definida e, por outro, descobre em tal situação padrões de pensamento e de conduta previamente formados" (Mannheim, 1982MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982., p.31).

A Sociologia do Conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social, pois o pensamento humano não surge e opera em um vácuo social, mas em um meio social definido. Indivíduos reunidos em grupos ou se empenham, seguindo o caráter e a posição dos grupos a que pertencem, em transformar o mundo da natureza e da sociedade à sua volta, ou, pelo contrário, tentam mantê-lo em uma dada situação. Em resumo, "a direção dessa vontade coletiva de transformar ou manter é que produz o fio orientador para a emergência de seus problemas, seus conceitos e suas formas de pensamento" (ibidem, p.31-32).

Porém, é importante ressaltar que chamo de intelligentsia os grupos sociais cuja tarefa específica consiste em dotar a sociedade de uma interpretação do mundo. 2 2 De acordo com Mannheim, "os mágicos, os brâmanes e o clero medieval devem ser encarados como estratos intelectuais, cada um gozando em sua sociedade de um controle monopolístico sobre a formação da visão de mundo dessa sociedade...". (1982, p.38). Em outras palavras, chamo de intelectuais aqueles grupos que pretendem o monopólio do direito de pregar, ensinar e interpretar o mundo. Do ponto de vista sociológico, diz Mannheim, o fato decisivo dos tempos modernos, em contraste com a situação vigente na Idade Média, foi a quebra do monopólio da interpretação eclesiástica do mundo, "mantido pela casta sacerdotal, tendo surgido, no lugar de um estrato de intelectuais fechado e inteiramente organizado, uma intelligentsia livre" (ibidem, p.39-40). Não só: concomitante à liberação dos intelectuais da rigorosa organização da Igreja, foram sendo cada vez mais reconhecidas outras formas de interpretar o mundo.

Pertencer a um determinado grupo vai muito além dos laços de lealdade, obediência e nascimento, principalmente "porque vemos o mundo e certas coisas no mundo do mesmo modo que o grupo os vê (isto é, em termos dos significados do grupo em questão). Em cada conceito, em cada significado concreto, está contida uma cristalização das experiências de um certo grupo" (ibidem, p.49).

Faço uma pausa que me é cara: como interpretar a luta entre os intelectuais ligados à revista A Ordem e os comunistas no período ora abordado? Importante sublinhar que todo conflito político, enquanto uma forma racionalizada da luta pela predominância social, visa atingir o status social do opositor, seu prestígio público e sua autoconfiança (ibidem, p.65). Como negar que os articulistas da revista em exame assumiram enquanto grupo "armas intelectuais", tais como refutar no plano teórico seus opositores e, igualmente, solapar sua posição social? Nas palavras de Karl Mannheim:

Somente em um mundo em transformação, em que se estejam criando valores novos fundamentais e destruindo os antigos, pode o conflito intelectual chegar ao ponto em que os antagonistas busquem aniquilar não só as crenças e atitudes específicas um do outro, mas igualmente os fundamentos intelectuais sobre os quais estas crenças e atitudes repousam. (Mannheim, 1982MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982., p.90)

Segundo Mannheim, existe entre todos os grupos de intelectuais um "vínculo sociológico de unificação", a saber, a educação. Em outras palavras, a "participação em uma herança cultural comum tende progressivamente a suprimir as diferenças de nascimento, status, profissão e riqueza, e a unir indivíduos instruídos com base na educação recebida" (Mannheim, 1982MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982., p.180-181). No entanto, são os grupos sociais (e não o indivíduo isolado) que formulam teorias correspondentes tanto aos seus interesses como a determinadas situações, visto que em cada situação específica são descobertos certos modos de pensar e possibilidades de orientação. Somente na medida em que essas "forças coletivas, estruturalmente condicionadas, continuam a existir além da duração de uma situação histórica isolada, é que perduram as teorias e as possibilidades de orientação" (ibidem, p.200).

Consciente da conotação moral presente no termo "ideologia", Mannheim postula o uso do termo "perspectiva" para designar o modo global de o sujeito conceber as coisas, tal como determinado por seu contexto histórico e social (ibidem, p.287-288). Outro postulado central da Sociologia do Conhecimento diz respeito ao vínculo entre a orientação para certos valores e significados e uma dada posição na estrutura social (o modo de ver e a atitude condicionados pelos propósitos coletivos de um grupo).

Como bem observa Bourdieu, a produção das representações do mundo social - concebida como uma dimensão fundamental da política - é um quase-monopólio dos intelectuais, tendo em vista que "a luta pelas classificações sociais é uma dimensão capital da luta de classes e é por esse lado que a produção simbólica intervém na luta política" (Bourdieu, 2003BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos. In: _______. Questões de Sociologia. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século Ed., 2003., p.66). De acordo com o sociólogo, o intelectual é aquele que detém o monopólio da produção do discurso sobre o mundo social.

O conceito de "campo" proposto por Bourdieu permitiu trabalhar com acurácia esse grupo de intelectuais que gravitavam em torno da revista católica A Ordem e do Centro Dom Vital, na medida em que o conflito entre o clero e os comunistas deve ser visto como uma luta por supremacia no campo político e intelectual. Ressalve-se que um autor não se conecta de modo direto à sociedade, senão através da estrutura de um campo intelectual, que funciona como uma espécie de mediador entre o autor e a sociedade. O que está em jogo na estrutura de um "campo", advoga (Bourdieu 2003BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos. In: _______. Questões de Sociologia. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século Ed., 2003., p.120), "é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições envolvidas na luta ou, se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores".

Para completar o quadro teórico do autor resta apresentar o conceito de habitus,3 3 Sobre a aplicabilidade teórica do conceito de habitus ver SETTON, 2002. entendido aqui como as estruturas mentais por meio das quais os indivíduos apreendem seu mundo social. Habitus como uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas.4 4 "Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas - o que o operário come, o esporte que pratica e a maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o que é bom e mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar etc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um pretensioso ou ostentatório para outro e vulgar para um terceiro" (BOURDIEU, 2008, p.22). Tal noção permite avaliar a propensão de um dado grupo social a selecionar respostas no interior de um repertório cultural específico, em conformidade com as exigências de um dado "campo" ou de uma dada conjuntura. Ao construir uma "teoria das práticas", o sociólogo faculta a possibilidade de repensar o processo de formação das identidades coletivas, pois o conceito em questão enfatiza o caráter de interdependência entre indivíduo e sociedade. Grosso modo, o habitus deve ser visto como sistema de disposições (estruturadas/estruturantes) adquiridas pela aprendizagem (implícita ou explícita) que funciona como um sistema de esquemas geradores de estratégias. Assim como o habitus religioso, artístico ou científico, assevera Bourdieu, o habitus do político supõe uma preparação especial. De modo que é, em primeiro lugar,

toda a aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados econômicos etc.) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do presente e do passado ou das capacidades mais gerais tais como o domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica política, a do tribuno, indispensável nas relações com os profanos, ou a do debater, necessária nas relações entre profissionais. (Bourdieu, 2001BOURDIEU, Pierre. A representação política: elementos para uma teoria do campo político. In: _______. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p.169-170., p.169-170)

Nessa perspectiva, a maior parte das ações dos agentes sociais é produto de um encontro entre um habitus ("estruturas incorporadas") e um "campo" ("estruturas objetivas"). Trocando em miúdos, o habitus, como um conjunto estruturado e geral de representações coletivas, interiorizado nos indivíduos, é constituído em condições históricas e culturais específicas e, igualmente, em espaços sociais distintos, tais como a família, a escola, o trabalho etc.

O LUGAR DA INTELECTUALIDADE CATÓLICA NO COMBATE AO COMUNISMO

Analisando o campo intelectual brasileiro, Daniel Pécaut sublinha que a noção de engajamento entre o grupo obteve sucesso, especialmente no final dos anos 1950, quando a palavra de ordem foi a adesão voluntária às causas populares. No contexto particular da década de 1930, diz o autor, os intelectuais brasileiros mantinham laços com as Ciências Sociais, sobretudo com a Sociologia, elemento que indicaria tanto o "discurso que o Brasil faz sobre si mesmo" como a "posição que o intelectual ocupa no processo de constituição da nação brasileira" (Pécaut, 1990PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Trad. Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990., p.7). Nas palavras do autor, desde os pensadores de 1930, que delinearam em detalhes o esquema da boa organização social, até os de 1955, que imaginaram o desenvolvimento correto, "todos se achavam igualmente persuadidos de que expressavam apenas o que é, de fato, o social e o que é, de fato, o desenvolvimento - estavam convencidos de que as ideias comandam diretamente o devir histórico" (ibidem, p.8).

Uma das teses centrais do autor reside na afirmação de que duas gerações de intelectuais brasileiros, a de 1920-1940 bem como a de 1954-1964, manifestaram a convicção de que lhes cumpria uma responsabilidade essencial no processo de construção da nacionalidade. Mesmo com um intervalo de 30 anos, ambas atingiram evidência social notável e, ademais, contribuíram efetivamente para impor novas "representações do político". No entanto, no que diz respeito aos intelectuais dos anos 1920-1940, preocupados especialmente com o problema da identidade nacional e das instituições, o autor propõe algumas nuances na análise:

É verdade que nem todos os intelectuais da época partilham das mesmas concepções políticas. Muitos simpatizam com os diversos movimentos autoritários surgidos após 1930, ou mais tarde aderem ao Estado Novo instaurado em 1937. Outros mantêm-se distantes dessa questão. Em sua grande maioria, contudo, mostram-se de acordo quanto à rejeição da democracia representativa e ao fortalecimento das funções do Estado. Acatam também a prioridade do imperativo nacional e aderem, explicitamente ou não, a uma visão hierárquica da ordem social. Assim, apesar de suas discordâncias, convergem na reivindicação de um status de elite dirigente, em defesa da ideia de que não há outro caminho para o progresso senão o que consiste em agir "de cima" e "dar forma" à sociedade. (Pécaut, 1990PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Trad. Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990., p.15)

Entre 1922 e 1928, Jackson de Figueiredo não restringia o raio de atuação do Centro Dom Vital apenas em bases intelectuais e religiosas, mas sim buscava imprimir-lhe um caráter político (embora apartidário) em defesa da autoridade, da ordem e do nacionalismo. Nesse período, a história do Centro confunde-se com o posicionamento político de seu fundador, sem falar em sua atuação bastante tímida e distante do grande público. Com a morte de Jackson de Figueiredo, em 1928, Alceu Amoroso Lima assume a presidência do Centro promovendo uma revisão dos estatutos e um afastamento da política militante.5 5 "Na década de 1930, filiais do Centro Dom Vital são criadas em outros estados, mas a célula do Rio de Janeiro permanece como o principal núcleo irradiador da doutrina católica e a que apresenta maior crescimento, contando com mais de 500 sócios nesse período. Reuniões, antes informais, dão lugar a cursos e conferências, atraindo um público cada vez mais numeroso, composto por intelectuais, profissionais liberais, professores, políticos, empresários, mesmo que não formalmente ligados à instituição. Personalidades de destaque da época, como Osvaldo Aranha, Pedro Calmon, Afrânio Peixoto, Tasso da Silveira, Murillo Mendes e Jacques Maritain são convidados a ministrar palestras e participar de conferências" (GROPPO, 2007, p.30). Em boa medida, as razões do grande prestígio desfrutado tanto pela revista A Ordem como pelo Centro Dom Vital, notadamente no período de 1935 a 1938, devem ser buscadas e mesmo explicadas à luz da confluência de seus objetivos com o modelo político de tendência autoritária do governo Vargas.

Portanto, nos anos 1920, a elite católica concentrava seus esforços na luta contra o fortalecimento do Estado laico, o avanço do protestantismo, a inércia do grupo católico e pela recondução da Igreja ao centro das decisões políticas nacionais. Dessa maneira, para grande parte da elite dirigente do catolicismo no Brasil era inconcebível que num país de maioria católica, a Igreja "estivesse alijada do centro das decisões políticas, ocupando um papel obscuro em meio a uma intelectualidade cada vez mais pautada pelo cientificismo e pelo anticlericalismo" (Groppo, 2007GROPPO, Célia Maria. Ordem no céu, ordem na terra: a revista "A Ordem" e o ideário anticomunista das elites católicas (1930-1937). São Paulo: PUC-SP, 2007. Dissertação (Mestrado em História) - PUC-SP. São Paulo, 2007., p.33). É nesse sentido que a revista, elaborada por intelectuais católicos e a eles dirigida, coloca-se como guardiã dos ideais católicos e como instrumento de combate contra aqueles identificados como inimigos.

A questão-chave proposta por Cândido Rodrigues é esta: em que medida a revista incorpora aspectos do ideário conservador em seu discurso? Para tanto, o autor envereda pela esteira do pensamento do político irlandês Edmund Burke (1729-1797), um dos primeiros críticos dos desdobramentos da Revolução Francesa:

Formulando uma concepção de história pautada na tradição que, por sua vez, era fundada no princípio de autoridade (o qual Burke entendia como sacralizado pela tradição), ele a adota (a autoridade) como parâmetro para o bom funcionamento da sociedade. Esta deveria pautar-se, inevitavelmente, pelas verdades legadas pelos antepassados, inclusive, e fundamentalmente, as consideradas verdades religiosas, como a inviolabilidade da propriedade privada, principalmente a real e a do clero, o primado da monarquia hereditária, a santidade do rei e rainha etc. (Rodrigues, 2005RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem - uma revista de intelectuais católicos: 1934-1945. Belo Horizonte: Autêntica; São Paulo: Fapesp, 2005., p.17)

A esse respeito, o autor assinala que a defesa da autoridade dos monarcas, dos papas e do clero, levada a efeito por Burke e outros pensadores, em oposição à liberdade religiosa e aos "Direitos do Homem" propugnados na Revolução Francesa, se coadunava com a postura política conservadora e antiliberal da Cúria Romana, adotada desde meados do século XVIII. Com efeito, as ideias contrárias aos desdobramentos da Revolução Francesa também encontraram ressonância em outros pensadores, tais como Louis-Ambroise de Bonald (1754-1840) e Joseph de Maistre (1753-1821).

Já no contexto de implantação do regime republicano espanhol, o autor sublinha o lugar de destaque ocupado pelo filósofo e político católico Juan Donoso Cortés (1808-1853), para quem o catolicismo seria um "remédio" contra a revolução (leia-se desordem). De fato, para o autor, tais pensadores - que participaram ativamente do cenário europeu de fins do século XVIII até a segunda metade do século XIX - exerceram papel decisivo no tocante às questões de caráter político-religioso, "servindo de referência, no período em que viveram e mesmo posteriormente, não somente para a Igreja Católica, mas também para pensadores e governos que, mais tarde, empregariam seu ideário na fundamentação de regimes de força, arbitrários" (Rodrigues, 2005RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem - uma revista de intelectuais católicos: 1934-1945. Belo Horizonte: Autêntica; São Paulo: Fapesp, 2005., p.20).

Importante ressaltar que tanto a revista A Ordem como o Centro Dom Vital (1922) "surgem num contexto social que tende a adotar uma cosmovisão cada vez mais agnóstica. A luta que a inteligência católica trava é no sentido de legitimar-se perante esta sociedade, combatendo os seus erros políticos e religiosos" (Velloso, 1978VELLOSO, Mônica Pimenta. A Ordem: uma revista de doutrina, política e cultura católica. Ciência Política, v.21, n.3, p.120-121, jul.-set. 1978., p.120-121). Cabe destacar que o artigo de Mônica Velloso foi um dos primeiros trabalhos a chamar atenção para as afinidades entre o pensamento "conservador" europeu6 6 Segundo Hannah Arendt, o conservadorismo "como credo político e como uma ideologia, deve sua existência a uma reação à Revolução Francesa, e é significativo apenas no que diz respeito à História dos séculos XIX e XX". ARENDT, 1990, p.35-36. - representado por nomes como Donoso Cortés, Charles Maurras, Joseph de Maistre e Antonio Sardinha - e o discurso produzido pela intelectualidade católica, fundamentando seu contra-ataque ideológico perante as investidas de outros grupos sociais ascendentes, portadores de novas "ideologias".

Com efeito, é a partir dos anos 1920 que os intelectuais brasileiros buscam uma reaproximação com o Estado, processo que se aprofundou após a Revolução de 1930. Destarte, "não houve uma cisão significativa entre o Estado brasileiro e os intelectuais autoritários", mas sim "uma forte tendência do Estado em cooptar figuras do campo intelectual de vários matizes ideológicos" (Beired, 1999BEIRED, José Luis Bendicho. Sob o signo da nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina (1914-1945). São Paulo: Loyola, 1999., p.67). Por sua vez, os intelectuais desenvolveram estratégias para ingressar no aparelho estatal, fato que denota a correspondência mútua de interesses.

A QUESTÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA E A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE

No tocante aos artigos/editorais da revista A Ordem, é interessante notar a confluência dos temas trabalhados pelo grupo católico em apreço, notadamente os de caráter político e religioso. A par disso, a proposta é explorar aqueles artigos que, de maneira geral, trazem para o primeiro plano o embate entre católicos e comunistas, isto é, entre duas "visões de mundo", seja no campo político, intelectual e mesmo "religioso". Seria Karl Mannheim, um dos pioneiros da "sociologia dos intelectuais", o primeiro a demonstrar que a competição controla não apenas a atividade econômica por meio do mecanismo de mercado, nem somente o curso dos acontecimentos da esfera política e social, mas, igualmente, "fornece o impulso motor de diversas interpretações do mundo que, quando se vem a descobrir o fundamento social, se revelam como expressões intelectuais de grupos conflitantes em luta pelo poder" (Mannheim, 1982MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982., p.290).

Dessa maneira, as reflexões serão formuladas a partir de dois eixos temáticos centrais: a questão da propriedade privada e a organização da sociedade. Para o leitor deve ficar claro que entendemos os intelectuais ligados ao Centro Dom Vital e à revista A Ordem como um dos principais agentes - ao lado das autoridades eclesiásticas - encarregados da missão de mobilizar (de maneira duradoura) o maior número possível de atores sociais dotados de uma mesma visão do mundo social. No entanto, no que diz respeito aos comunistas, a leitura inversa não pode ser descartada. Explico-me: com a finalidade de garantir uma mobilização duradoura, os partidos devem "elaborar e impor uma representação do mundo social capaz de obter a adesão do maior número possível de cidadãos". E mais: "conquistar postos (de poder ou não) capazes de assegurar um poder sobre os seus atributários [sic]" (Bourdieu, 2001BOURDIEU, Pierre. A representação política: elementos para uma teoria do campo político. In: _______. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p.169-170., p.174). Em resumo, a abordagem proposta por Pierre Bourdieu teria como base de apoio a seguinte assertiva: se, de um lado, não podemos negar as propriedades específicas de um "campo", de outro, não podemos deixar de reconhecer as "homologias estruturais" entre os diversos "campos", a exemplo da Igreja e dos partidos políticos.7 7 "Com efeito, do mesmo modo que a Igreja se consagra à missão de espalhar a sua graça de instituição por todos os fiéis, justos ou injustos, e de sujeitar os pecadores sem distinção à disciplina do mandamento divino, também o partido elege como fim trazer para a sua causa o maior número possível de refratários (é o caso sempre que o partido comunista se dirige, em período eleitoral, a 'todos os republicanos do progresso'), não hesitando, para alargar a sua base e atrair a clientela dos partidos concorrentes, em transigir com a 'pureza' da sua linha e em tirar proveito de modo mais ou menos consciente, das ambiguidades do seu programa" (BOURDIEU, 2001, p.184).

Foi durante o papado de Leão XIII (1878-1903) que a Igreja começou a formular uma doutrina social mais progressista, sobretudo a partir da Rerum Novarum, em 1891. Esse documento marcou a aceitação tardia do mundo moderno pela Igreja depois de seu combate aberto contra a modernização durante boa parte do século XIX (Mainwaring, 1989MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil. Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Brasiliense, 1989., p.43). Levando em conta que o papel dos Pontífices Romanos sempre foi "preservar o rebanho do Senhor dos embustes do inimigo", Leão XIII sublinha que o direito de propriedade, apoiado nos preceitos da lei natural e divina, garantiria a tranquilidade da sociedade pública e doméstica. Na contracorrente dos ensinamentos católicos, havia os socialistas que concebiam o direito de propriedade "como uma invenção humana que repugna à igualdade natural dos homens". Propondo o "comunismo dos bens", seus partidários declaravam que "é impossível suportar com paciência a pobreza" e, nesse sentido, as propriedades e regalias dos ricos deveriam ser violadas impunemente (Leão XIII, 1946LEÃO XIII. Quod Apostolici Muneris. Petrópolis, RJ: Vozes, 1946., p.12).

Na Encíclica Rerum Novarum, Leão XIII assinala que no bojo da proposta socialista de supressão da propriedade privada viria a tentativa de instigar nos mais necessitados uma espécie de ódio invejoso. Além de ser uma medida injusta, sobretudo por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciaria as funções do Estado comprometendo todo o edifício social. Uma das reivindicações preconizadas pelo socialismo, a saber, a conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, "não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação" (Leão XIIILEÃO XIII. Rerum Novarum. Petrópolis, RJ: Vozes, 1945., 1945, p.6).

Da mesma maneira que o fruto do trabalho pertence ao trabalhador, diz o Sumo Pontífice, a propriedade particular e pessoal dos bens deveria ser considerada um direito natural, ou seja, um direito inato a cada indivíduo. Ao apelar para o que o papa chamou de "providência do Estado", os socialistas contrariavam a justiça natural, quebrando os laços familiares. Ademais, no lugar da tão aclamada igualdade, a solução socialista traria a igualdade na indigência e na miséria. De todo modo, sem o respaldo da religião - "fundamento de todas as leis sociais" - e da instituição eclesiástica - "mãe comum dos ricos e pobres" - seria impossível encontrar uma solução eficaz para os conflitos sociais. No que diz respeito ao problema da questão social, o projeto da Igreja prescrevia a união entre as classes sociais, inculcando nos pobres a resignação e nos ricos a caridade cristã. Competiria ao Estado, exercendo sua autoridade, zelar pelo bem comum, para que "reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do que é seu" (Leão XIII, 1945LEÃO XIII. Rerum Novarum. Petrópolis, RJ: Vozes, 1945., p.28).

NA FRONTEIRA ENTRE AS ESFERAS POLÍTICA, INTELECTUAL E RELIGIOSA

Na leitura de Marx e Engels, a religião é "uma expressão da imperfeita consciência de si do homem: não do homem como indivíduo abstrato, mas como homem social, ou ser humano coletivo".8 8 Ver, a esse respeito, o verbete "religião" em BOTTOMORE, 1996, p.316. Dito de outro modo, se para o primeiro a religião pode ser definida como "felicidade ilusória do povo", para o segundo ela é a "projeção fantástica das forças que obscurecem a existência humana". Com efeito, essa postura antiteísta declarada "converteu-se em linguagem habitual das publicações e dos líderes comunistas. Atitude ideológica notável que teve repercussões notáveis no sistema jurídico e especialmente na prática do método comunista" (Cifuentes, 1989CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado comunista. In: _______. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed., 1989., p.111). Na União Soviética sob Stalin, a erradicação das crenças religiosas - vistas como um "obstáculo ao progresso humano" - era fruto da ideologia da supressão das alienações (Rivière, 1989RIVIÈRE, Claude. As liturgias políticas. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1989., p.102). Seguindo o pensamento marxista, tornar-se-ia necessário reduzir a forte influência (negativa, no caso) exercida pela religião sobre as camadas da classe trabalhadora que ainda não haviam alcançado a consciência de classe.

Produzindo uma espécie de síntese do contexto histórico-social do período entre-guerras, Tristão de Ataíde9 9 Em 1919, quando convidado a redigir a crítica literária do novo órgão de imprensa intitulado O Jornal, Alceu Amoroso Lima adota o pseudônimo "para encobrir sua identidade, já que naquela época existiam preconceitos incompatibilizando o exercício de atividades industriais com a prática intelectual" (BELOCH, 1983, p.1829). traz à baila um conjunto de questões que indicariam tal esforço: "Onde estamos?"; "Para onde vamos?"; "Para onde devemos ir?" (Ataíde, 1935ATAÍDE, Tristão de. A Idade Nova e a Ação Católica. A Ordem, Rio de Janeiro, ago. 1935., p.103). Seria possível definir, em uma única palavra, a condição do homem moderno: encruzilhada. Uma das principais angústias que o incomodavam profundamente era o sentimento generalizado de instabilidade. À medida que se afastava do paradigma da unidade medieval e cristã, "para entregar-se ao signo da liberdade e da diversidade indefinidas e ilimitadas, - perdia o homem também o senso da responsabilidade e da segurança" (ibidem). Na perspectiva do autor, as sociedades governadas pelo "capricho do voto, da força ou do dinheiro" deveriam ser vistas com reservas, pois "estão sempre entregues à lei do imprevisto e da transformação" (ibidem). Desse modo, alguns fenômenos sociais poderiam ser apontados como os principais fatores de desagregação da sociedade burguesa e de sua concepção geral da vida:10 10 "A revolução francesa marca o início político da era burguesa, como a revolução industrial inglesa marcara o seu início econômico. Uma e outra baseada sobre o indivíduo, tendo por ideal a liberdade absoluta, caracterizadas pelo domínio da raça branca, pela industrialização do Ocidente, pela colonização do universo ainda desconhecido, pela religião da ciência e pela decadência do prestígio da religião, pela arte puramente estética, pelo culto da cultura, pelas viagens de recreio, pela libertação sexual do homem, o urbanismo generalizado, o triunfo das economias abertas e livres, as universidades em que tudo se ensina sem ordem nem hierarquia de valores, o feminismo etc. Eis aí, muito de propósito acumulados sem vislumbre de orientação, alguns traços patentes dessa era em que fomos formados e em que, geralmente ainda vivemos" (ATAÍDE, 1935, p.104). a "Guerra", a "Revolução", a "Crise" e a "Reação Nacionalista".

Entre uma "visão catastrófica" e uma "visão idílica" da realidade social, Alceu Amoroso Lima preferia se afastar de tal dicotomia. Segundo ele, o fundamental consistiria em indicar os quatro caminhos que poderiam levar à edificação de uma "Idade Nova", "para a qual todos sentem confusamente que se encaminha a humanidade de nossos dias": o "caminho liberal" (primazia da liberdade individual/predomínio da burguesia); o "caminho socialista" (abolição da propriedade privada/hipertrofia do Estado11 11 Ressalve-se que para Alceu Amoroso Lima esse elemento seria o principal fator responsável por colocar em risco a integridade dos direitos da pessoa humana, da família e de outras instituições sociais. /aniquilamento da burguesia/ditadura do proletariado); o "caminho nacional-totalitário" ("reação nacional e autoritária contra a desagregação provocada pelos excessos do liberalismo e do socialismo"); o "caminho cristão" ("dispõe de força moral e opera nas consciências"). Disto isto, os três primeiros caminhos traduziriam uma das marcas indeléveis do mundo moderno, a saber: "o espírito de diversidade".

A tese do autor é a de que o século XX, após quase três décadas de experiências em termos de organização sociopolítica, não abrigaria mais "regimes puros",12 12 "Nenhum regime conseguirá impor-se a todos os povos e a todos os continentes, como a monarquia se impôs em tempo à Europa ou como as repúblicas democráticas se impuseram à América" (ATAÍDE, 1935, p.108). pelo contrário, caminharia para a aglutinação de tendências diversas ("regimes mistos"). Embora apresentem traços de "hostilidade recíproca e de desordem", as três correntes revelariam traços positivos comuns, tais como: 1) Intervenção crescente do Estado na vida social; 2) Incorporação gradativa do econômico ao político; 3) Remuneração limitada pelas necessidades coletivas (a economia capitalista pautada exclusivamente no conceito de lucro sendo substituída por uma economia em que o indivíduo se subordina à coletividade como a parte ao todo); 4) Organização corporativa da sociedade (importância crescente dos sindicatos como órgãos de defesa profissional e a sua incorporação gradual ao organismo político do Estado); 5) Importância dos fatores técnicos (domínio do homem sobre a natureza como fruto do progresso material e científico); 6) Justiça social (assegurar aos homens um mínimo em termos de satisfação de suas necessidades individuais e familiares).

Fixar um inimigo era tão importante para os indivíduos quanto para o Estado, a exemplo dos doentes que conferem relevância ao diagnóstico de um "mal obscuro". Após os levantes de novembro de 1935 (ocorridos em Natal, Recife e Rio de Janeiro), os comunistas teriam convencido "muitos céticos da iminência de um perigo social que havia adotado, com êxito, a tática da dissimulação, para despistar os incautos".13 13 LIMA, 1936, p.318. O artigo em questão é resultado de uma das diversas conferências sobre as diretrizes da Educação Nacional, promovidas pelo então ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema. A par disso, falar no "comunismo" não seria mais tratar de "assunto exótico", pois os episódios marcaram o ingresso do tema na ordem do dia. Aprofundando um pouco mais o olhar em direção ao fenômeno comunista - sinônimo de "infecção social" -, Alceu Amoroso Lima analisa as implicações dos vínculos entre o espaço da escola, o Partido e o Estado na construção das práticas pedagógicas na Rússia Soviética.14 14 Em 1921 publica-se na Rússia um decreto "proibindo absolutamente todo tipo de ensino religioso a pessoas menores de 18 anos. Pouco tempo depois, aprova-se lei na qual se estende a proibição a pessoas de todas as idades. 1934 - Publica-se um novo estatuto para as escolas secundárias, que estabelece o seguinte: 'As escolas primárias e secundárias devem assegurar a educação antirreligiosa dos estudantes e preocupar-se com que a instrução e os trabalhos escolares tenham por base uma luta ativa contra a religião e sua influência'" (CIFUENTES, 1989, p.113). O que o comunismo prescreveria em matéria de educação? Um princípio caro à "pedagogia soviética" seria o de que "toda educação é um meio de alcançar um fim superior. Isto é, a instrução e a educação não têm em si mesmas a sua razão de ser e são governadas por uma finalidade extrínseca determinada" (Lima, 1936LIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.320). Para os especialistas, o fim último desse projeto "é construir o homem novo e dar-lhe uma visão geral do universo; o fim próximo é preparar os paladinos do socialismo" (ibidem). Em síntese, a escola funcionaria (mediante a reeducação de jovens, adultos e crianças) como um espaço reservado à edificação de uma nova "filosofia da vida", melhor dizendo, uma outra "visão de mundo".

Uma vez definido o papel da instituição como um instrumento político a serviço dos ideais comunistas, o Estado assumiria a direção integral de toda atividade educativa. Nas palavras de Alceu Amoroso Lima, o sucesso do comunismo como projeto de transformação da sociedade dependia tanto das "elites" como das "massas". E como essa educação deveria ser concebida para um fim predeterminado e único, "não se podia tolerar qualquer outra autoridade nessa matéria que não a do próprio Estado e, mais do que isto, a do próprio Partido, que fornecia ao Estado não só a sua ideologia como os seus quadros humanos" (Lima, 1936LIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.321-322).

Para comprovar sua honestidade, diz Alceu Amoroso Lima, o intelectual não deveria combater o comunismo apontando apenas seus fiascos. Analisando igualmente seus êxitos, ele se distanciaria tanto da "deturpação dos fatos" como dos "critérios de valor". Fato inconteste seria a importância que o Estado soviético atribui à educação, mormente em virtude da aliança íntima estabelecida entre o campo da política e o das práticas de ensino. Ademais, colocar a escola a serviço do Estado implicaria "a preparação sistemática e ampla das novas gerações numa direção uniforme e segundo um plano preestabelecido ... tudo rigorosa e mesmo militarmente subordinado aos interesses do Partido e aos fins da Revolução Social" (Lima, 1936LIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.329). Nesse sentido, competia à intelectualidade católica a função de repudiar a "pedagogia soviética", já que esta se filiaria aos "princípios dogmáticos da filosofia materialista da vida e da sociedade" (ibidem, p.330).

Em resumo, qual deveria ser a postura dos católicos em face do problema comunista? O que incomodava Alceu Amoroso Lima era a mais remota possibilidade de conciliação entre comunismo e catolicismo. Para ele, a atitude dos católicos deveria se resumir a uma: a da "repulsa por convicção". Embora certos pontos sejam análogos às duas propostas de organização do Estado (tais como: sindicatos profissionais; limitação da propriedade; planejamento da vida econômica pelo Estado), a Igreja "ressalva sempre os direitos essenciais da personalidade e dos grupos sociais limitados, especialmente a família, contra toda e qualquer absorção pelo Estado" (Lima, 1936aLIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.346-347).

Chamando atenção para a dificuldade em apreender o fenômeno comunista em sua totalidade, Alceu Amoroso Lima advoga que o elemento antirreligioso do sistema marxista-leninista é apenas um componente da doutrina em exame. De fato, essa "filosofia geral da vida" seria, ao mesmo tempo, "um fenômeno filosófico, histórico, político, econômico, pedagógico, maçônico, judaico, etc., etc., e não apenas, ou mesmo principalmente, religioso" (Lima, 1936aLIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.348-349). No entanto, diz o autor, tratá-lo de maneira um tanto "chapada", sem levar em conta suas ramificações e suas origens extensas e complexas, poderia reduzi-lo apenas "a uma expressão do Anti-Cristo ou a uma campanha judaico-maçônica contra a Igreja" (ibidem, p.349), o que não se sustenta. Em seguida, recorda que se Lênin falhou ao conjecturar sobre a possibilidade de a Revolução Russa estender seus ideais em poucos anos a toda a humanidade, "erraram também alguns de seus adversários, julgando-a um fenômeno meramente russo ou efêmero, que se localizaria onde surgiu e pouco tempo duraria" (ibidem, p.351).

Para o laicato católico brasileiro, o comunismo seria "a última consequência lógica dos erros mais monstruosos do mundo moderno, na inversão de todos os valores, na desumanização do mundo e na descristianização da sociedade" (Lima, 1936aLIMA, Alceu Amoroso. Em face do comunismo (II). A Ordem, Rio de Janeiro, abr. 1936a., p.353). Apontado como herdeiro direto do "individualismo", o comunismo teria encontrado guarida no campo intelectual graças à "terrível sequência de erros que a partir da Idade Média tem levado o homem ao repúdio de Deus" (ibidem). Nos dizeres de Alceu Amoroso Lima, é no "terreno dos princípios", fundamentalmente, que o combate deveria se concentrar, pois a ideologia comunista "canalizou para si todas as pequenas ou grandes correntes anticristãs e antiespirituais que a humanidade tem deixado proliferar em seu seio..." (ibidem).

Na seção "Registro", o jornalista Perilo Gomes apresenta uma matéria referente à perspectiva oferecida aos trabalhadores na União Soviética. De acordo com o autor, todo operário que almejava obter um emprego se alistaria por meio de uma agência oficial do governo, responsável por ampará-lo. De uma lista de indicados ao cargo apenas um seria escolhido; este deveria passar por um período de 15 dias de experiência, "sem outra remuneração que não seja a 'carta de pão', isto é, uma autorização para fornecimento de certa quantidade de pão a título gratuito" (Gomes, 1935GOMES, Perilo. O trabalhador na Rússia. A Ordem, Rio de Janeiro, mar. 1935., p.245). Se correspondesse às expectativas de seu empregador, o trabalhador seria obrigado a acatar a remuneração fixada na tabela oficial, cujo valor era inferior ao custo de vida. Recusado por duas vezes pelo empregador, o operário perderia o direito de usufruir da "carta de pão", sendo despejado de seu alojamento, fato que o levaria fatalmente à miséria. A perda do auxílio fornecido pela agência trazia ainda para o indivíduo outra consequência drástica: ser considerado como morto. Em suma, seu nome sequer figuraria na lista dos desempregados. Para Perilo Gomes, o governo russo utilizara tal artimanha para reduzir as cifras dos "sem trabalho" e, simultaneamente, manter intacta a imagem do regime comunista.15 15 Desde os primeiros meses do regime, diz o historiador Nicholas Werth, particularmente durante o inverno de 1918-1919, a resistência operária foi quebrada pela "arma da fome", tendo em vista que os "cartões de racionamento" não eram mais respeitados. Nesse sentido, para "obter cartões que dessem direito aos 250 gramas de pão por dia, e recuperar o trabalho após o fechamento geral das fábricas, os operários foram forçados a assinar um pedido de emprego que estipulava que toda interrupção da produção seria, a partir de então, considerada uma deserção passível da aplicação da pena de morte..." (COURTOIS, 2005, p.109).

O relato do bispo jesuíta francês Miguel d'Herbigny - presidente da Comissão Pró-Rússia e presidente honorário do Instituto Oriental Pontifício - sobre as perseguições religiosas promovidas pelos bolcheviques contribuiu para endossar a tese de que o Estado adquiria cada vez mais traços "totalitários", na medida em que concentrava um poder absoluto capaz de fiscalizar qualquer atividade desempenhada pelos cidadãos. Por sua vez, também colocou em primeiro plano a tentativa dos comunistas soviéticos de suprimir a religião e a religiosidade de indivíduos/grupos mediante a sacralização da ordem constitucional, favorecendo a criação de uma nova lealdade ao Estado (Rivière, 1989RIVIÈRE, Claude. As liturgias políticas. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1989., p.22). Em missão a serviço da Santa Sé,16 16 No início do pontificado de Pio XI, o Papa "esforçara-se em vão para acabar com a perseguição de cristãos na Rússia. Seu empenho, por intermédio do bispo jesuíta francês Miguel d'Herbigny, em consagrar bispos na União Soviética em segredo mostrou-se contraproducente. O bispo d'Herbigny foi expulso do país, e os bispos que consagrou foram mandados para colônias penais" (McBRIEN, 2000, p.367). o prelado constatou que mais de 90 por cento da população russa era composta de camponeses e menos de 10 por cento dela era de moradores urbanos.

Na visão dos articulistas da revista, o socialismo teria como principal atrativo a promessa de um resgate do "Paraíso Terrestre", concedendo a felicidade material a seus partidários e aos "milhões de infelizes que o liberalismo gerou, a plutocracia sustenta, a miséria revolta e a irreligião açula", pois é "correspondendo a essa grande promessa de vingança universal de oprimidos contra opressores que vai ganhando terreno a nova força destruidora do sistema social vigente".17 17 SUCUPIRA, 1937, p.605-606. O autor do artigo foi deputado e membro da bancada católica na elaboração e consolidação da legislação social na Constituição de 1934. Segundo Luiz Sucupira, o horror que os socialistas manifestavam em relação à propriedade privada, de maneira geral, estaria estreitamente vinculado à maneira com que Marx se apropriava das invenções intelectuais alheias, como, por exemplo, a teoria da mais-valia imputada a Proudhon.18 18 "A originalidade de Marx está, apenas, em se ter sabido aproveitar dessas ideias já expostas e já discutidas para o fim de com elas construir um sistema de governo que, saindo do período das utopias e dos platonismos, desse lugar a um movimento operário socialista de luta contra o capitalismo" (SUCUPIRA, 1937, p.606-607).

No transcorrer da análise, Luiz Sucupira advoga que há, no movimento socialista, além dos componentes do "profetismo" e do "messianismo", uma espécie de plágio dos Evangelhos às avessas, posto que para Marx e Engels, a humanidade "caminharia para um futuro absolutamente livre, sem opressões, sem iniquidades, sem divisões de classe, sem antagonismos nacionais, sem despotismos de governos, sem distinções de raças, sem compressões sociais" (Sucupira, 1937SUCUPIRA, Luiz. O Socialismo em face do Evangelho. A Ordem, Rio de Janeiro, jun. 1937., p.614). Por sua vez, o comunismo teria como promessa subjacente a felicidade perfeita, ou seja, o "paraíso na terra", na medida em que transformaria o "homem velho" de hoje no "homem novo" de amanhã, condutor de sua própria história.19 19 "Aderir ao comunismo, assim, implicava a alteração radical do estatuto ontológico do indivíduo - e daí as advertências e os avisos para aquele que se animava a participar do movimento revolucionário. De maneira similar aos antigos ritos de passagens, também presentes em épocas mais próximas nas sociedades secretas, o novato experimentava o ritual simbólico da morte e da ressurreição. Ser comunista, diziam eles, significava abandonar, para sempre, uma vida sem certezas, fragmentada, incoerente e conduzida passivamente pelos acontecimentos de uma realidade ininteligível para ter o domínio absoluto sobre seu próprio ser e libertar os povos da escravidão econômica, da opressão política e da miséria" (FERREIRA, 2002, p.68).

Tendo em vista que o socialismo nega a liberdade de consciência, os adeptos dessa nova "igreja" seriam como "servos" subservientes aos ditames de seus quadros. Segundo Sucupira, o culto a Lênin, por exemplo, colocava-se como necessidade vital para o indivíduo. No limite, aquele que negasse prestar reverência ao "messias comunista" correria o risco de perder o emprego e até mesmo o pão distribuído pelo Estado.20 20 "Teoricamente, os cidadãos eram classificados em cinco categorias de 'estômagos', dos trabalhadores braçais e os soldados do Exército Vermelho aos 'ociosos' - categoria na qual entravam os intelectuais, particularmente mal situados -, com 'rações de classe' 'decrescentes'. Na realidade, o sistema era mais complexo e injusto. Atendidos por último, os mais desfavorecidos - 'ociosos', intelectuais e 'aristocratas' - muitas vezes não recebiam nada. Quanto aos 'trabalhadores', eles estavam, de fato, divididos em várias categorias, de acordo com a hierarquia de prioridades que privilegiava os setores vitais para a sobrevivência do regime ... No sistema de abastecimento centralizado que os bolcheviques haviam posto em prática, a arma alimentar possuía uma grande importância na estimulação desta ou daquela categoria de cidadãos" (COURTOIS, 2005, p.111).

Os relatos de viajantes que conheceram in loco a experiência soviética tornaram-se uma das fontes mais importantes para o grupo católico. No livro Retour de l'U.R.S.S., chamam atenção as observações do escritor francês André Gide (1869-1951):

Duvido que em outro qualquer país, mesmo na Alemanha de Hitler, seja o espírito menos livre, mais curvado, mais medroso (e aterrorizado), mais escravizado...Na URSS admite-se desde logo e uma vez por todas que, em relação a tudo e a seja o que for, não pode haver mais de uma opinião. Cada manhã a Pravdaensina o que se deve saber, o que se deve pensar, o que se deve crer.21 21 GIDE, 1936, apud SÁ, 1937, p.550. Importante recordar que o Pravda foi um jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista (1918-1991).

Outro testemunho relevante foi dado pelo escritor norte-americano Max Eastman (1883-1969), ex-professor de Filosofia da Columbia University (Nova York) e editor da revista Masses. Militante socialista, Eastman teria declarado que o regime bolchevique jogara por terra quaisquer vestígios dos ideais libertários, solapando a esperança da construção de uma sociedade sem classes. Seguindo a transcrição de seu relato, a União Soviética seria marcada pela "concentração de poder político e de privilégios nas mãos de uma casta burocrática, que suporta um autocrata mais impiedoso do que os Czars. A esta burocracia chama-se ainda o Partido Comunista".22 22 Paulo Sá não indica precisamente em quais textos é possível encontrar os relatos de Max Eastman a respeito de sua viagem à Rússia. No entanto, segundo o próprio Eastman, ele viajou ao país pela primeira vez em setembro de 1922, retornando aos Estados Unidos apenas em 1927 (em virtude de suas viagens pela Europa Ocidental, onde concluiu o livro Marx and Lenin, The Science of Revolution, publicado em Londres em 1926). Cf. EASTMAN, 1955. Para a intelectualidade católica, esses e outros depoimentos como o de um ex-militante e operário norte-americano, Andrew Smith, intitulado "Eu fui um operário na URSS", comprovariam a tese de que a Rússia estaria muito longe de se materializar no tão sonhado "paraíso" das classes trabalhadoras.

O filósofo ucraniano Nicolai Berdiaev (1874-1948) tornou-se uma das referências teóricas mais importantes para a intelligentsia católica na discussão envolvendo a linha tênue que separava o comunismo das crenças religiosas. Segundo Berdiaev, a manifestação hostil demonstrada pelo comunismo russo em relação a toda religião não seria fruto do acaso, mas sim um dado fundamental de sua "concepção de mundo". A edificação dos ideais comunistas, diz o autor, caracterizava-se pelo "estatismo ao extremo, em que o poder total, absoluto, exige a unificação obrigatória do pensamento" (Berdiaev, 1939BERDIAEV, Nicolai. Las fuentes y el sentido do comunismo russo. Trad. Vicente Mendevil. Buenos Aires: Losada, 1939., p.201-202).

A oposição a toda religião advinha do fato de que o comunismo vislumbrava substituir o cristianismo, seja conferindo respostas às aspirações religiosas da alma humana seja dando um sentido à vida. Sob essa ótica, o conflito com outras doutrinas religiosas seria inevitável, pois os componentes da intolerância e do fanatismo pertenceriam ao universo de sua crença. Seguindo o pensamento marxista, para que a classe operária atingisse sua emancipação seria necessário "arrancar do coração todo o sentimento religioso". No limite, "a Igreja deve ser separada da vida social, encerrada no recinto da consciência, para procurar, por meio de uma política de extinção progressiva, a sua total destruição" (Cifuentes, 1989CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado comunista. In: _______. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed., 1989., p.112). Para Berdiaev, o comunista verdadeiro e integral jamais poderia ser um crente religioso e, ao mesmo tempo, cristão. Pois lhe é imposta "uma concepção de mundo definida de antemão, deve ser materialista e ateu, ateu militante. Não basta compartilhar o programa social do comunismo para fazer-se membro do partido. É preciso aceitar essa fé, oposta à fé cristã, na qual reside essencialmente o comunismo" (Berdiaev, 1939BERDIAEV, Nicolai. Las fuentes y el sentido do comunismo russo. Trad. Vicente Mendevil. Buenos Aires: Losada, 1939., p.211).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Convém reconhecer que embora a idealização da União Soviética não tenha acompanhado as realidades do socialismo soviético, tal processo "alimentou o imaginário desse mundo novo a construir". Nesse aspecto, tal como a Igreja Católica - personificada por Roma - o comunismo no século XX caracteriza-se pela sua dimensão universal e pela unidade de sua organização. Mas é preciso salientar que a analogia em questão tem lá seus limites, pois na medida em que a Igreja Católica tenta gerir, com maior ou menor êxito, a diversidade das experiências religiosas (a multiplicidade dos grupos que a compõem, a heterogeneidade das tomadas de posição), o sistema comunista internacional só conseguiu sobreviver fechando-se progressivamente, eliminando amiúde todas as contestações abertas e implícitas, veladas ou potenciais. Nos países onde os partidos comunistas detinham o poder político, por exemplo, "desenvolveu-se a vertente policial e repressiva, recorrendo-se a todas as formas de violência física (campos de internamento, prisões arbitrárias, assassinatos, torturas, confissões forçadas, etc.), a uma escala sem precedentes" (Dreyfus, 2004DREYFUS, Michel [et al.]. O século dos comunismos: depois da ideologia e da propaganda uma visão serena e rigorosa. Lisboa: Notícias, 2004., p.14-15).

Contudo, a retórica reacionária e o anticomunismo, presentes em todo o mundo ocidental, contribuíram para associar estalinismo e nazismo (partido único, ideologia única, vontade de aniquilar a sociedade civil, exercício de poder através do terror) e, igualmente, para afirmar uma tendência comparativa nos estudos recentes sobre o comunismo.23 23 "Esta tendência não é nova e filia-se, pelo menos parcialmente, na teoria do totalitarismo, seja para a reivindicar, seja para a rejeitar. O principal interesse deste tipo de análise é provavelmente tirar partido dos avanços metodológicos alcançados no domínio dos estudos do nazismo, em proveito dos estudos sobre o comunismo" (DREYFUS, 2004, p.27-28). Porém, o que chama a atenção nesse debate é a ausência de qualquer tentativa de sublinhar aquilo que distingue o comunismo dos regimes fascistas e democráticos, a saber, "a utopia de um poder político efetivamente exercido pelas classes populares, pelos grupos mais numerosos da sociedade, pelos grupos menos dotados de recursos materiais e culturais" (Dreyfus, 2004DREYFUS, Michel [et al.]. O século dos comunismos: depois da ideologia e da propaganda uma visão serena e rigorosa. Lisboa: Notícias, 2004., p.16). Por fim, é preciso que os historiadores não negligenciem as outras dimensões do fenômeno comunista (nacional e internacional, política e social, emancipadora e repressiva), reduzindo a história do comunismo - através de juízos de valor e preconceitos políticos - a uma "aventura criminosa" e/ou a um complô de agentes e de espiões a serviço de Moscou.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2012
  • Aceito
    12 Dez 2014
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