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Origens do pensamento radical na América Latina: um estudo comparativo entre José Martí, Juan B. Justo e Ricardo Flores Magón

Resumo

Este artigo condensa os resultados, no plano ideológico, de uma pesquisa que analisa, em uma perspectiva comparada, como nascem, evoluem e são frustrados três projetos de democratização radical na América Latina nos primórdios do Imperialismo. José Martí (1853-1895) em Cuba, Juan B. Justo (1865-1928) na Argentina e Ricardo Flores Magón (1874-1922) no México lideraram esforços intelectuais e políticos visando superar os constrangimentos à integração nacional legados pela origem colonial, expressando-se em um pensamento que fundamentou a atuação dos partidos por eles dirigidos. Nossa hipótese é que esses autores, partindo de premissas ideológicas e políticas distintas mas orientados por um desígnio democrático comum, sugeriram balizas que referenciavam a máxima consciência possível da militância radical no continente, naquele contexto.

Palavras-chave:
América Latina; pensamento latino-americano; militância radical

ABSTRACT

This article summarizes the results, in the ideological sphere, of comparative research which analyzes the growth, evolution, and defeat of three projects of radical democratization in Latin America at the beginnings of Imperialism. José Martí (1853-1895) in Cuba, Juan B. Justo (1865-1928) in Argentina, and Ricardo Flores Magón (1874-1922) in Mexico led intellectual and political efforts aimed at overcoming the constraints inherited from colonial past that hindered national integration. This effort found expression in ideas on which the political parties they headed were built. Coming from different ideological and political premises, but referring to a common democratic purpose, our hypothesis is that these authors established a frame of reference for the maximum possible consciousness of radical activism in the continent during that period.

Keywords:
Latin America; Latin American thought; radical militancy

Este artigo condensa os resultados, no plano ideológico, de uma pesquisa que analisa, em uma perspectiva comparada, como nascem, evoluem e são frustrados três projetos de democratização radical na América Latina nos primórdios do imperialismo.2 2 Neste trabalho nos referimos ao Imperialismo como uma etapa do capitalismo, caracterizada pela afirmação do capital monopolista segundo as análises pioneiras de HOBSON, 1983; HILFERDING, 1985; LÊNIN, 2000; BUKHARIN, 1984. José Martí (1853-1895) em Cuba, Juan B. Justo (1865-1928) na Argentina e Ricardo Flores Magón (1874-1922) no México lideraram esforços intelectuais e políticos visando superar os constrangimentos à integração nacional legados pela origem colonial, processo esse que se expressou em um pensamento que fundamentou a atuação dos partidos por eles dirigidos.

José Martí foi o fundador e líder máximo do Partido Revolucionario Cubano, organização responsável por retomar a guerra pela independência de Cuba em 1895, quando a ilha se encontrava sob dominação espanhola. Preso pela primeira vez aos 16 anos sob acusação de inconfidência, Martí teve sua pena comutada para o exílio graças às gestões de seu pai, militar espanhol que servia ao reino na ilha. Viveu na Espanha, no México, na Guatemala e na Venezuela antes de se estabelecer em Nova York em 1881, de onde escreveu para diversos jornais do continente, no qual exerceu atribuições diplomáticas para países que não o seu e conspirou incansavelmente até o lançamento da expedição revolucionária em 1895, em que perdeu a vida. Morando nos Estados Unidos, Martí adquiriu uma fina percepção do expansionismo que presidia a política desse país, ao mesmo tempo em que desenvolveu um rechaço cultural ao capitalismo, lapidando de forma definitiva o ideário que orientou sua militância, consignada em um legado de reputado valor literário abrangendo obras poéticas, teatro, cartas e um romance (Retamar, 2006RETAMAR, Roberto Fernández. Introducción a José Martí. La Habana: Ed. Letras Cubanas, 2006.).

Principal liderança política e ideológica do Partido Socialista na Argentina desde a fundação até a sua morte (1928), Juan B. Justo imprimiu, por meio de uma trajetória intransigente baseada em seus princípios, a marca fundadora do socialismo desse país. Como figura pública, dirigiu a organização que elegeu o primeiro deputado e o primeiro senador socialista das Américas,3 3 Respectivamente, Alfredo Palacios em 1904 e Enrique del Valle Iberlucea em 1913. ocupando também pessoalmente diversos postos parlamentares. Além da atuação na política nacional, Justo vinculou-se ativamente à II Internacional Socialista, participando como delegado de congressos em Copenhague em 1910 e em Berna e Amsterdã em 1919. No plano intelectual, o socialista argentino é autor da primeira tradução de O Capital de Karl Marx para o castelhano, publicada em 1898. Além dos diversos panfletos que escreveu, realizou no livro Teoría y Practica de la Historia (1909) um esforço pioneiro de análise sistemática dos problemas históricos em perspectiva democrática na América Latina (Cúneo, 1956CÚNEO, Dardo. Juan B. Justo y las luchas sociales en la Argentina. Buenos Aires: Alpe, 1956.).

Ricardo Flores Magón liderou a progressiva radicalização do Partido Liberal Mexicano desde a sua refundação em 1901, convertendo-o na principal referência de oposição intransigente à ditadura de Porfirio Díaz no México, instalada no poder desde 1876. Diante da repressão política que sofreu, Flores Magón e seus correligionários exilaram-se nos Estados Unidos em 1904, de onde conspiraram infatigavelmente para desencadear a revolução mexicana. Duas tentativas de detonar a luta armada, levadas a cabo em 1906 e 1908, frustraram-se em função da intervenção da polícia política mexicana, que agia em conluio com as autoridades estadunidenses. Quando a revolução afinal eclodiu em 1910, os magonistas foram incapazes de liderá-la, mas estimularam com entusiasmo o protagonismo camponês nas páginas do Regeneración, periódico que editaram por quase dois decênios. Perseguido dos dois lados da fronteira, Flores Magón morreu em 1922 em uma prisão nos Estados Unidos, provavelmente assassinado (Abad de Santillán, 1978ABAD DE SANTILLÁN, Diego. Ricardo Flores Magón: El Apóstol de la Revolución Social Mexicana. México: CEHSMO, 1978.).

Nossa hipótese é que esses autores, partindo de premissas ideológicas e políticas distintas mas orientados por um desígnio democrático comum, sugeriram as balizas que referenciavam a máxima consciência possível da militância radical no continente, naquele contexto. Com o objetivo de reconstituir os pressupostos fundamentais que lastreiam a comparação, para então apresentar seus resultados principais no plano ideológico, dividimos o texto em duas seções principais. Na primeira parte, indicamos o movimento de conjuntura em que se inscreveu a atuação de cada militante, referindo seu protagonismo político à problemática da formação nacional, ao mesmo tempo em que explicitamos os referenciais bibliográficos que norteiam a aproximação encetada, bem como as interpretações sobre os dilemas específicos que informam nossa leitura. Na segunda parte, procedemos à comparação entre os autores a partir das distintas e avançadas visões sobre a formação nacional, referências ideológicas fundamentais para a ação política dos partidos que, respectivamente, dirigiram. Inicialmente, abordamos a especificidade dos pensamentos enfocados, relacionando-os à formação histórica em que estão inscritos e ao horizonte civilizatório aos quais se orientam, para então comentar sucintamente seu legado. A seguir, focalizamos o fundamento comum dos pensamentos analisados, expresso em uma indiferenciação ideológica observável na relação entre natureza e história, assim como na problematização da história como uma totalidade.

REFERÊNCIAS PARA A COMPARAÇÃO

Vivendo no contexto de difusão das relações de produção capitalistas no continente, José Martí em Cuba, Juan B. Justo na Argentina e Ricardo Flores Magón no México lideraram projetos políticos pioneiros visando subordinar o desenvolvimento capitalista aos desígnios da sociedade nacional. A influência que tiveram para o desencadeamento dos processos que objetivaram - a guerra da independência em Cuba, a reforma política na Argentina e a Revolução Mexicana - atesta a sintonia de suas propostas com relação aos dilemas da conjuntura. O malogro do ideário democrático que representavam indica a prevalência de constrangimentos estruturais que obstaram a consumação da nação na América Latina em tal contexto histórico.

O afloramento relativamente simultâneo desses projetos pode ser referido às transformações econômicas e sociais decorrentes da dinamização do setor exportador primário no contexto de afirmação do capital monopolista durante o último quarto do século XIX, que ensejou a instalação progressiva dos requisitos para a reprodução capitalista no continente. Do ponto de vista social, a difusão do padrão mercantil corresponde a um desenvolvimento embrionário de setores identificados com a nova ordem. Havia assim, em parte, a emergência incipiente de burguesias propensas a modificar as relações de poder e o Estado, com o intuito de adequá-los às transformações econômicas e sociais em andamento. Para esses setores, configurava-se então uma oportunidade de encadear a modernização capitalista a um processo de afirmação do poder burguês. Em outras palavras, franqueava-se a possibilidade histórica da revolução burguesa na América Latina (Fernandes, 1975aFERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente e classes sociais na América Latina. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975a.).

Em oposição à emergência burguesa, as mudanças nas relações de trabalho acenavam para um novo patamar de organização e reivindicação popular, sinalizada pela formação de partidos geralmente nucleados nas principais concentrações urbanas, mas capazes de influir nos acontecimentos políticos nacionais. Combinando em diferentes matizes demandas de conteúdo classista e de sentido nacionalista, essas organizações possuíam, a despeito das particularidades de cada caso, uma orientação comum: a democratização das sociedades em que estavam inseridas. Ao projetar a questão social na cena política, esses atores procuraram dotar o processo de mudança social de um sentido democrático, buscando na integração do conjunto da população por meio do trabalho as condições para a superação do legado colonial e a afirmação da nação. Em outras palavras, a formação nacional é o horizonte comum do pensamento e da ação política das três lideranças políticas que estudamos (Sampaio Jr., 1999SAMPAIO JR., Plínio de Arruda. O Impasse da Formação Nacional. In: FIORI, J. L. (Org.) Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p.415-448.).

A problemática da formação nacional como eixo articulador entre os autores pressupõe uma interpretação das linhas gerais do desenvolvimento latino-americano que enfatize as permanências do legado colonial. Nossa leitura do sentido do movimento histórico está baseada em Caio Prado Jr.,4 4 PRADO JR., 1966. Ver também: PRADO JR., 2000; 2001. enquanto a análise da difusão das relações de produção capitalistas no continente apoia-se em Florestan Fernandes, para quem a instalação progressiva dos requisitos para a reprodução capitalista gerou impulsos contraditórios, nos quais as tendências de autonomização da acumulação de capital foram constrangidas pela dupla articulação entre dependência externa e assimetria social. Na leitura do sociólogo brasileiro, esse é um processo em que estímulos exógenos se articulam às condições endógenas ainda incipientes de desenvolvimento da esfera mercantil, em um contexto no qual a instauração dos dinamismos típicos da sociedade capitalista emerge como premissa necessária para a renovação dos vínculos econômicos do continente com o centro do capitalismo. Segundo essa visão, a expansão econômica experimentada na conjuntura consagra a dissociação entre desenvolvimento e integração nacional, estabelecendo as bases para a afirmação do capitalismo dependente.5 5 FERNANDES, 1975a. Outros desenvolvimentos da mesma questão encontram-se em: FERNANDES, 1975b; 1968; 1981.

Partindo de um dilema histórico comum, selecionamos conjunturas contrastantes no panorama latino-americano, visando explorar as potencialidades do método comparado: entre um destino francamente neocolonial (Cuba) e a situação de maior integração nacional (o reformismo na Argentina), eclode a primeira revolução social do século (no México), sinalizando os extremos que balizariam a história do continente no século que se abria. Marc Bloch sintetiza nestas palavras o método da história comparada:

Antes do mais, no nosso domínio, o que é comparar? Incontestavelmente, é o seguinte: escolher em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras. São portanto necessárias duas condições para que haja, historicamente falando, uma comparação: uma certa semelhança entre os factos observados - o que é evidente - e uma certa dissemelhança entre os meios onde tiveram lugar. (Bloch,1998BLOCH, Marc. História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998., p.121)6 6 Uma discussão sobre a pertinência desta abordagem para a América Latina encontra-se em: PRADO, 2005.

Para estabelecer a comparação, analisamos expoentes do pensamento radical em cada conjuntura e sua expressão política substanciada na ação dos partidos que fundaram e dirigiram. Partindo de premissas teóricas e realidades concretas contrastantes, seus projetos revelam visões de nação e estratégias políticas distintas, cujo desfecho análogo enseja a investigação comparada.

José Martí viveu em Cuba a superposição entre a dominação colonial espanhola e a penetração econômica do capital estadunidense em um contexto no qual o desenvolvimento da usina açucareira acirra contradições sociais e econômicas que explodem na Guerra dos Dez Anos (1869-1878). Encerrado em um impasse militar, o conflito precipitou o fim da escravidão (abolida oficialmente em 1886) sem solucionar os dilemas que a provocaram. Nessa circunstância, o Partido Revolucionário Cubano forjado por Martí teve como desafio precípuo a emancipação nacional, que está associada a uma estratégia política de unidade latino-americana como forma de prevenir a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos do continente, que se anunciava. O desígnio de Nuestra América esteve assentado em uma concepção de modernidade alternativa à ocidental, valorizando a autoctonia como condição para construir um paradigma diverso de relações sociais, fundado em premissas igualitárias e de sentido integrador que recusassem a luta de classes como elemento constitutivo e permitissem a afirmação de um ideário humanista singular.

A Argentina vinculou-se, por meio da atividade agroexportadora, ao polo mais dinâmico da economia mundial, experimentando no final do século XIX um processo ímpar de crescimento, impulsionando uma torrente imigratória que acelera a urbanização do país e pressiona pela superação dos padrões exclusivistas da política prevalente. Nesse contexto, o Partido Socialista, dirigido por Juan B. Justo, focou sua ação na luta pela dilatação da democracia argentina, que se traduziria no combate a toda forma de privilégio, do latifúndio à educação superior restrita aos estratos dominantes. Embora sua interpretação do movimento histórico tenha conduzido ao eclipse da questão nacional, uma vez que via no desenvolvimento das forças produtivas um caminho que conduz à diluição dos antagonismos de classe e entre os Estados nacionais, o sentido objetivo de sua atuação política esteve sempre orientado à integração do trabalhador como cidadão. Membro ativo da II Internacional, acompanhando os debates e as correntes da crítica social europeia coetânea, sua liderança reflete no plano ideológico as ligações do continente com o polo modernizador do capitalismo.

O México viveu, sob a liderança despótica de Porfirio Díaz, simultaneamente as pressões pela integração nacional, diante da permanente ameaça expansionista dos Estados Unidos, e as consequências de um desenvolvimento capitalista que acirrava as tensões sociais, principalmente no campo, onde subsistia uma longa tradição de levante popular. Nesse contexto, o Partido Liberal Mexicano, liderado por Ricardo Flores Magón, expressou a convergência entre as consignas políticas legadas pela Reforma Liberal comandada por Benito Juárez em meados do século XIX, e a ascendente pressão por democratização social, em um programa que avançou as bases para uma revolução democrática nacional, integrando em uma plataforma coerente reivindicações populares a propostas nacionalistas nos marcos do capitalismo. Em que pese a posterior inflexão ideológica dos magonistas, será esse ideário, plasmado no programa liberal de 1905, que nucleará a oposição intransigente nos anos finais do Porfiriato (1876-1910), servindo como referência fundamental do partido até a eclosão da Revolução Mexicana (1910).

O contraste entre análises particulares que compõem o exercício da história comparada exige uma leitura do processo histórico no qual está inserido cada autor, coerente com o marco interpretativo da problemática proposta. Especificamente, os casos abordados neste trabalho supõem uma visão sobre o desenlace da emancipação cubana, o caráter da reforma política na Argentina e o sentido da revolução mexicana.

No caso cubano, entendemos que a frustração da emancipação é resultado de uma complexa conjunção entre as hesitações do Consejo de Gobierno em endossar a radicalização popular da guerra, a cumplicidade do delegado do PRC no exílio com a intervenção estrangeira e a própria agressividade estadunidense. O estudo de Ibrahim Hidalgo Paz desvela minuciosamente essa articulação, complementando o trabalho pioneiro de Ramón de Armas (Paz, 2004PAZ, Ibrahim Hidalgo. Cuba 1895-1898: contradiciones y disoluciones. La Habana: Centro de Estudios Martianos, 2004.; Armas, 2002ARMAS, Ramón de. La revolución pospuesta La Habana: Centro de Estudios Martianos, 2002.). Com relação à Argentina, interpretamos a reforma política promovida pela Lei Saenz Peña em 1912 como um recurso para conter a crescente subversão social, entendendo o subsequente triunfo eleitoral do radicalismo sob a liderança de Yrigoyen como uma alternativa conservadora ao esgotamento da política criolla. Essa leitura se apoia no livro de David Rock (2001)ROCK, David. El Radicalismo Argentino, 1890-1930. Buenos Aires: Amorrortu, 2001., que enfatiza a natureza conservadora original do radicalismo argentino. No caso mexicano, em meio ao vasto debate sobre o caráter da Revolução Mexicana, para efeito do nosso trabalho basta indicar que nos situamos no campo que salienta o caráter truncado da revolução, ponderando que as mudanças inquestionáveis no plano do Estado foram insuficientes para superar o subdesenvolvimento, indicando uma derrota do campo popular no processo.7 7 Ver a respeito: GILLY, 1981. Para uma síntese do debate sobre o caráter da revolução, consultar: KNIGHT, 1989. Em particular, o confronto entre maderistas e magonistas, evidenciado nas páginas de Regeneración, nos afasta das leituras que enaltecem o papel progressista do líder constitucionalista e dos governos subsequentes (Herzog, 1997HERZOG, Jesus Silva. Breve Historia de la Revolución Mexicana. 2 tomos. 15. reimpr. México: FCE, 1997.). Embora não produza uma obra de síntese, os livros de Friedrich Katz sobre o século XIX mexicano e o trabalho interpretativo subjacente a seus estudos, que abordam o período revolucionário, constituíram referências importantes.8 8 Ver: KATZ, 1990a; 1990b, tomo 1; 1991; 1982; 1998.

Apoiados nos trabalhos citados, entendemos que os projetos enfocados neste estudo expressam caminhos diferentes de democratização nacional que partilharam de um destino frustrado: a independência cubana foi bloqueada pela intervenção dos Estados Unidos, em conivência com quadros do próprio PRC; a dilatação da democracia argentina foi confinada à dimensão política, na qual o triunfo do radicalismo a partir da eleição de Yrigoyen sagrou-se como alternativa socialmente conservadora; no México, sucessivos governos foram derrubados em meio a quase uma década de guerra civil, resultado de persistentes esforços para se conter o alcance social da revolução detonada. Tomadas em conjunto, essas experiências revelam a derrota de três tentativas de se conciliar desenvolvimento e integração nacional nos marcos do capitalismo no continente, sugerindo constrangimentos estruturais para a formação da nação pela via burguesa nos referidos contextos históricos.

Ao abordar o pensamento e a atuação dos militantes selecionados, nossa proposta não foi responder às razões de tal desfecho histórico, nem apontar falhas nas práticas ou nas ideias. Partimos da premissa de que os autores analisados constituem expoentes do pensamento e da política radical em suas conjunturas, expressão da consciência crítica possível na totalidade histórica em que estão inscritos (Lukács, 2003LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). Nessa perspectiva, os limites e contradições que a análise evidencia estão referidos às determinações gerais que o próprio exercício comparativo contribui para explicitar. Em consonância com tal proposta, a investigação de cada caso esteve orientada pela seguinte pergunta: qual a visão da nação subjacente ao ideário político do autor? O exercício comparativo, por sua vez, esteve guiado pelas seguintes questões: quais os constrangimentos ideológicos comuns do ponto de vista da formação nacional? O que a diversidade de pensamento e de estratégia revela sobre a problemática na conjuntura? Por fim, consideramos o legado ideológico dos autores do ponto de vista da maturação futura da problemática enunciada.

COMPARAÇÕES: VISÕES DA FORMAÇÃO

O contraste entre as formações dos autores revela projetos que partilham de uma orientação política e um substrato ideológico similares, referenciados no movimento da história latino-americana em que estão inscritos, cuja especificidade remete à expressão nacional do dilema que vivenciaram. Confrontados os militantes com o impacto do Imperialismo sobre realidades marcadas pelo legado colonial, a natureza singular da formação americana lhes impôs o desafio de discernir entre os aspectos comuns e as particularidades do desenvolvimento nacional em relação ao padrão civilizatório dos países centrais, em uma circunstância na qual fatores objetivos e subjetivos obstaram tal diferenciação. Partindo desse patamar ideológico comum, a especificidade da conjuntura, da formação socioeconômica e das referências intelectuais conformará abordagens contrastantes do problema, em que o ângulo particular adotado por cada autor repercutirá na universalidade de seu pensamento e na incidência posterior de seu legado.

a) Especificidade: origens do pensamento radical

1. Morfologia da formação

Os projetos políticos enfocados neste trabalho orientam-se na direção da formação nacional, nos marcos de uma aliança de classes fundada na integração do conjunto da população por meio do trabalho. Partindo de realidades distintas mas marcadas pela persistência do legado colonial, a singularidade da incorporação de cada país aos fluxos do mercado mundial no Imperialismo condicionou a estratégia política e marcará o ângulo da reflexão de cada autor. Ávidos leitores que viveram no exterior, voluntariamente ou não, os três militantes partem de uma tradição política endógena que conjugam com fontes do pensamento universal para elaborar projetos de democratização radical referenciados em uma leitura do sentido da história mundial.

José Martí conjuga a tradição filosófica cubana de matriz cristã com a filosofia transcendentalista de Emerson para construir um pensamento político de expressão ética fundado na autoctonia, projetando em Nuestra América o desígnio de uma modernidade alternativa à ocidental. A consciência da vulnerabilidade cubana encaminha a reflexão martiana rumo a uma totalidade maior, inscrevendo a luta antilhana no dilema da América Latina diante do Imperialismo. O ensejo de fundamentar a unidade cubana e continental em uma circunstância de precários nexos econômicos e políticos desloca sua reflexão para o plano da cultura, no qual o pensador cubano busca as raízes de uma identidade que se projete em uma utopia humanista de conteúdo universal.

Juan B. Justo combina aspectos do pensamento sarmentino com um sólido conhecimento do socialismo europeu para costurar uma leitura da história de matiz evolucionista e pretensão científica, fonte de um projeto político que visa engatar o vagão argentino na locomotiva da história ocidental, rumo à realização socialista. A ilusão do progresso na Argentina em que viveu o induz a uma aposta no desenvolvimento técnico e econômico como um processo destinado a diluir o antagonismo de classe e a promover a integração das nações sob a égide da livre cooperação. Em uma circunstância na qual o crescimento econômico opera transformações velozes no país, a democratização social se afigura como consequência de um processo racional de integração na economia mundial e de progressiva participação política popular.

Ricardo Flores Magón parte do legado ideológico do liberalismo mexicano do século XIX para incorporar progressivamente a temática social à agenda liberal, produzindo um ideário político orientado à integração nacional como passo para utopias futuras. Em uma circunstância na qual a modernização porfirista aguçou as contradições sociais e a repressão política bloqueou a contestação dentro da ordem, os magonistas alargaram o conteúdo da noção de liberdade para incluir sua dimensão econômica, refletida em um discurso crescentemente informado pela linguagem da luta de classes. A repressão no exílio e o contato com o movimento operário estadunidense ampliaram a consciência de classe magonista, dotando-a de uma perspectiva internacionalista explicitada ao longo da Revolução Mexicana.

Estabelecendo um contraste entre os ângulos pelos quais os autores avaliam os problemas nacionais, notamos que a concretude da ameaça à soberania cubana sensibilizou Martí para a dimensão cultural do dilema americano, em um contexto de precária unidade econômica e política; na Argentina, as possibilidades de integração facultadas pelo crescimento econômico ensejaram um enfoque político da democratização social alicerçado em uma fé no desenvolvimento da civilização ocidental; no México, o país de maior tradição de levante popular no continente, a pressão sobre as formas tradicionais de vida e a intolerância com a reivindicação política explicitaram as contradições sociais da modernização em curso. Em síntese, no plano ideológico os problemas nacionais se expressam primeiramente por meio da cultura em Martí; da política em Justo; das contradições sociais em Magón. Observado no seu conjunto, o leque de suas preocupações compõe uma morfologia dos temas culturais, políticos e sociais que informarão a reflexão sobre os dilemas do continente, articulados sobre a esfera econômica por esforços posteriores referentes à problemática da formação nacional.

2. Horizonte civilizatório

Produzidas no período anterior à consolidação da III Internacional, as fontes ideológicas dos projetos analisados, postas em contraste, indicam certo ecletismo, especialmente no que toca à busca de referenciais teóricos, às vezes contraditórios entre si. Martí inspira-se em uma filosofia transcendentalista e na tradição de pensamento nacional de raiz cristã, enquanto Justo e Magón, que maturam politicamente alguns anos mais tarde, apoiam-se em correntes europeias materialistas e no legado político endógeno de corte anticlerical. Além disso, enquanto a chave da política martiana é a autoctonia e o liberal mexicano reivindica o potencial comunista do legado nativo, o socialista argentino identifica o aborígene com a barbárie, pregando uma adesão irrestrita aos valores da civilização ocidental. O desprezo de Justo pelo potencial civilizatório americano contrasta com a defesa mexicana realizada por Magón no curso da revolução e a fé martiana no potencial humanista da cultura americana. Essa postura de Justo está lastreada na falta de uma percepção crítica do Imperialismo, preocupação fundamental na política dos líderes cubano e mexicano.

O ideal civilizatório funciona como pressuposto na leitura do movimento histórico subjacente aos projetos enfocados. Enquanto a referência precípua à autoctonia projeta um horizonte civilizatório próprio e original em Martí, a fé no Ocidente aponta para um padrão de desenvolvimento histórico a ser almejado pelo socialismo argentino. No caso de Magón, a primazia da política cede terreno para a teleologia somente quando a derrota militar dos liberais resulta em uma aposta na espontaneidade revolucionária. O horizonte utópico diverso dos projetos expressa a sua referência civilizatória ao mesmo tempo em que testemunha a pluralidade de matrizes ideológicas que os inspira: Nuestra América como uma proposta de modernidade alternativa em Martí, a livre cooperação no socialismo em Justo e uma federação de livres produtores em Magón.

Do ponto de vista do temperamento ideológico, o esforço intelectual que embasa a reflexão de Justo se traduziu em uma inflexibilidade ideológica, contrastante com a permeabilidade à conjuntura característica de Flores Magón, no qual o pensamento subordinou-se visivelmente às exigências da prática. Em Martí, um espírito aberto conjugou influências ecléticas para realizar uma densa reflexão original, que, uma vez maturada, sustentou um trabalho político obstinado pela causa. A relação que os pensadores tiveram com o materialismo histórico ilumina, de outro ângulo, sua verve intelectual. Enquanto Martí recusou o socialismo como uma doutrina referenciada em uma realidade exógena, Justo defendeu ardorosamente sua validade para a circunstância argentina, mas rechaçou o método dialético, postura coerente com a prática reformista que adotou. Já Magón passou ao largo do problema de uma adesão teórica, embora demonstre simpatia política por Marx, assim como os demais.

3. Legado

Assim como se alimentaram das tradições de pensamento endógeno, o legado político e ideológico dos autores analisados fecundou a militância futura em seus países e, em alguns casos, projetou-se pelo continente afora. Embora a vitalidade dessa herança esteja associada a desdobramentos históricos que escapam à influência direta dos seus protagonistas, é possível apontar conexões que evidenciam seu papel precursor para as correntes da política e do pensamento radical na América Latina, salientando-se o caráter renovador dessas trajetórias, dadas as referências nativas que as inspiraram. Endereçando conjunturas específicas e submetidos a influências intelectuais diversas, o ângulo particular através do qual abordaram os dilemas do seu tempo diferenciou a repercussão posterior de seu legado.

Ao enfrentar simultaneamente o colonialismo espanhol e o expansionismo estadunidense, Martí projetou a formação cubana nos marcos do dilema latino-americano sob o Imperialismo. A frustração do processo emancipatório naquele contexto perpetuou a vigência de seu ideário nacional, inspirando sucessivas gerações de militantes na ilha. Reconhecido por Fidel Castro como o autor intelectual do assalto ao quartel Moncada em 1953, Martí é uma referência nuclear para a Revolução Cubana triunfante em 1959, desde a constituição do Movimiento 26 de Julio até hoje.

O alcance crítico da reflexão de Juan B. Justo é limitado pela força do mito do crescimento econômico na Argentina contemporânea, que, alimentado por uma fé no desenvolvimento das forças produtivas mundiais, obscureceu os nexos entre Imperialismo e padrão de luta de classes, conduzindo a um eclipse da nação como problema histórico. A pretensão científica do socialismo argentino embotou sua reflexão, impondo-lhe certa rigidez e tornando-o, assim, impermeável à evolução da conjuntura nacional e internacional. Não obstante, o pioneirismo político e a estatura intelectual de Justo estabeleceram a marca fundadora de uma das tradições socialistas mais sólidas do continente.

Por sua vez, a permeabilidade aos influxos da luta social marcou a evolução do pensamento de Ricardo Flores Magón, evidenciando ao mesmo tempo sua força e sua debilidade: o líder mexicano foi capaz de uma penetrante leitura da conjuntura que se radicalizava, mas as respostas políticas que elaborou estiveram marcadas por uma ausência de mediações que resultou inadequada para endereçar o problema da centralização do poder, núcleo da vulnerabilidade do campo popular na revolução. A despeito do empenho em integrar sua imagem a uma versão da história afirmada pelo Estado pós-revolucionário, o legado magonista é reivindicado até hoje por atores políticos identificados com os setores derrotados na Revolução Mexicana - como o EZLN (Ejército Zapatista de Liberación Nacional) -, transcendendo a esfera dos círculos anarquistas. Em sua circunstância imediata, o magonismo influenciou diretamente Augusto Cesar Sandino (1895-1934) durante sua estadia mexicana nos anos 1920, tendo sido incorporado como referência fundamental ao seu pensamento, junto à teosofia (Hodges, 1987).

Dentre os autores analisados neste trabalho, a projeção transcendente do legado de José Martí certamente enseja um detalhamento da singularidade de seu pensamento. Embora o triunfo da Revolução Cubana de 1959 proporcione um estímulo suplementar à divulgação de sua obra, é a originalidade e a densidade dos temas abordados que lastreia sua relevância atual. Ao voltar-se para a autoctonia como contraponto necessário a uma crítica do padrão civilizatório ocidental, Martí buscou no passado colonial o ponto de partida de uma reflexão sobre a identidade continental, fator que o conduziu a uma valorização pioneira do potencial político e humanístico da formação da América Latina. A centralidade do legado colonial, de fato, o diferencia dos demais autores enfocados neste trabalho; mas é a elevação radical do estatuto civilizatório da cultura americana que torna sua reflexão algo bastante original no contexto continental. Ao combinar, com a espiritualidade peculiar que informa o seu compromisso militante, a reivindicação da autoctonia como via para a soberania nos marcos de um horizonte civilizatório inovador diante do Imperialismo, Martí conjugou um elenco de temas nucleares para a política radical latino-americana no século que se abria: autoctonia e civilização, Anti-Imperialismo e unidade continental, humanismo e anticapitalismo, mística e revolução. Consideradas a amplitude do seu escopo e a profundidade da sua reflexão, é possível identificar pontos de contato, diretos ou não, com uma diversidade de correntes ideológicas e políticas no campo democrático, o que justifica seu lugar como referência central do pensamento latino-americano desde então (Hart, 1978HART, Armando. Siete enfoques marxistas sobre José Martí. La Habana: Ed. Política, 1978.).9 9 Citaremos dois exemplos de influência direta: combinando o amor como móvel revolucionário a uma postura estoica de autossuperação e entrega à causa, Che Guevara reconhece os pontos de contato da sua ética militante com Martí, de quem toma uma frase que, no seu entender, deve sintetizar o espírito dos revolucionários: "Todo hombre verdadero debe sentir en la mejilla el golpe dado a cualquier mejilla de hombre" (GUEVARA, 1978, p.74). As indagações em torno à existência de uma filosofia latino-americana, como aspecto do problema maior da possibilidade de uma cultura latino-americana no capitalismo dependente, estimuladas de forma incisiva a partir da obra de Leopoldo Zea, tomam José Martí como referência imediata. ZEA, 1957; 1995a.

b) Fundamento comum: indiferenciação ideológica

1. Natureza humana e história

O fundamento ideológico comum dos pensadores analisados é a premissa humanista de que o sentido da história é a realização de uma natureza humana, o que aponta para uma convergência entre natureza e história. Em Martí, o sentido da história é a afirmação do hombre natural, em uma abordagem na qual processo histórico e individuação do sujeito aparecem entrelaçados. Em Justo, a formulação de uma base biológica da história evidencia uma indissociação analítica que resultará na percepção de uma contradição entre capitalismo e natureza. Em Magón, a confluência entre natureza humana e liberdade será o eixo de uma visão segundo a qual a tirania e depois a propriedade privada obstruem a um só tempo a realização do homem e a evolução da história.

Assim, a noção do hombre natural, a base biológica da história e a liberdade econômica articulam para cada autor uma interpretação da história a uma concepção de homem, movimento que faculta uma relativa naturalização da história às expensas da política. Essa brecha se evidencia quando Martí revela uma crença de matiz espiritual na virtude da história em detrimento de suas contradições objetivas; Justo absolutiza a razão, substituindo os condicionantes de classe por universais humanistas; Magón imediatiza os processos históricos e sociais, idealizando o potencial da espontaneidade revolucionária.

Do ponto de vista político, a convergência entre natureza humana e sentido da história esvazia o problema da ideologia, vinculando a ação política primordialmente à natureza humana e não a interesses de classe. Dessa perspectiva, o caminho para a sensibilização militante passará pela reconexão com a natureza humana obstruída por uma situação de opressão: uma tarefa fundamentalmente ética em Martí, pedagógica em Justo e iluminista em Magón. Nos três casos, a referência usada para se compreender o processo de formação do ator responsável pela transformação social não é o dinamismo da luta de classes, mas sim o humanismo universal. Assim como a formação da consciência crítica é entendida como um processo de sintonia natural e imediata com o humano. O desafio para a emancipação seria, portanto, desobstruir a conexão do ator social com a natureza humana, liberando o curso para a evolução da história, ou respectivamente: viabilizar o fluxo natural da essência humana em Martí, a realização orgânica elementar em Justo e o exercício da liberdade e da solidariedade em Magón. Coerentemente, a unidade social do processo emancipatório é o indivíduo em Martí e em Magón. E ainda que Justo maneje as classes sociais como categorias, a diluição de todo antagonismo operada por seu humanismo remete ao oposto da individualidade, que é o homem como espécie.

Em última análise, a convergência entre natureza e história expressa-se, nos autores, como certa tendência a aceitar os fenômenos na sua evidência aparente, tanto quanto em uma propensão política a conceber os processos sociais e históricos como imediatos. Consequentemente, nenhum dos autores operou uma crítica penetrante das contradições do capitalismo, nem abordou o Estado ou a transição revolucionária como problema político. Se assumirmos que a mediação entre história e natureza, no plano totalizante do modo de produção, é feita pela economia, esse traço ideológico remete ao incipiente desenvolvimento das relações de produção capitalistas nas sociedades analisadas, o que inibiu a diferenciação da esfera econômica, limitando a evidenciação dos problemas colocados pela afirmação do capitalismo. Nesse contexto, a matriz ideológica que conforma o pensamento dos autores revela-se oposta à noção da práxis aceita pelo materialismo histórico, o qual entende a história como um processo ilimitado de dupla transformação das relações do homem com o meio, que forja a sua própria natureza (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. São Paulo: Clacso; Expressão Popular, 2007.).

2. Formação e totalidade

Além dos limites impostos pelo desenvolvimento capitalista incipiente, a própria natureza da problemática da formação implica um obstáculo ideológico suplementar à percepção da especificidade da América Latina, uma vez que o pensamento dos autores está inscrito em um processo histórico de diferenciação entre o passado colonial, quando a colônia ainda formava uma unidade com a metrópole, e a consumação da nação, dotada de relativa autonomia política, cultural e econômica. Um olhar retrospectivo sugere uma progressiva evidenciação das dimensões política, cultural, social e econômica da questão nacional. Nas guerras de independência desencadeadas durante a crise do antigo sistema colonial, a soberania é percebida sobretudo como um problema político, que envolve uma dimensão cultural quando Bolívar defende instituições adequadas à realidade continental. A necessidade de consumar a unidade nacional salienta uma dimensão cultural do problema através do século XIX, na medida em que a construção das nacionalidades enseja a afirmação de referências culturais e históricas próprias, convergentes com o processo de consolidação do Estado nacional.10 10 A respeito da progressiva diferenciação das esferas política, cultural, social e econômica através de um processo histórico que evidenciou a especificidade da formação latino-americana, consultar: RETAMAR, 2005; PINEDO, 2010; ZEA, 1976; 1995b.

Os autores analisados neste trabalho situam-se na passagem entre uma percepção política e cultural da especificidade continental e a apreensão dos dinamismos sociais e econômicos que conformam uma realidade própria, na qual a aspiração por soberania e integração nacional opõe-se ao movimento do Imperialismo. Nesse contexto, afloram projetos de democratização radical das sociedades americanas, mas a indiferenciação da esfera econômica, somada à natureza contraditória da problemática da formação, inibe a apreensão dos nexos entre as esferas da existência e sua relação com o capital internacional. Consequentemente, a autodeterminação econômica não é percebida como uma dimensão fundamental do problema da integração nacional, e a formação da nação emerge como uma questão política (associada à soberania em Martí, à democracia eleitoral em Justo e ao restabelecimento das liberdades políticas em Magón), cultural (relacionada respectivamente à autoctonia, à democratização do ensino, à separação entre Estado e Igreja e à reivindicação do legado indígena) e social (integração da população por meio do trabalho). Não obstante, a leitura que os autores constroem do capitalismo e a percepção sobre o Imperialismo influenciará a ideologia subjacente a seus projetos nacionais, determinando o modo como enfocam o problema do controle sobre o ritmo e o tempo da inovação social.

Ao fundamentar sua crítica da modernidade ocidental em pressupostos humanistas referidos à particularidade cultural dos processos históricos, Martí estabeleceu as premissas para vislumbrar a América Latina como uma totalidade, ao mesmo tempo em que dissociou o rechaço a uma sociabilidade marcada pela luta de classes dos dinamismos socioeconômicos da reprodução capitalista. Assim, sua aguda percepção do expansionismo estadunidense como expressão do Imperialismo o leva a defender a unidade continental como condição para estabelecer um padrão civilizatório autorreferido, sem problematizar imediatamente o capitalismo como modo de produção.

Embora oriente a sua interpretação da história na direção da superação do capitalismo, Juan B. Justo não observa contradições fundamentais que pressionem por um caminho revolucionário, mas, ao contrário, aposta na prevalência dos dinamismos políticos e econômicos conducentes ao estabelecimento gradual da livre cooperação. Nos antípodas de Martí, o socialista argentino combina uma crítica ao privilégio inerente à classificação capitalista com uma visão entusiástica do potencial civilizatório associado ao desenvolvimento das forças produtivas, operação que o leva a identificar o progresso americano com a diluição da sua especificidade histórica diante do movimento irresistível de propagação de uma cultura superior. Dessa perspectiva, a autodeterminação não é problematizada, eludindo a percepção crítica do Imperialismo e da nação como problema.

Flores Magón costurou uma percepção das contradições sociais do capitalismo à consciência de diversos aspectos da subordinação mexicana aos Estados Unidos em um projeto de integração nacional assentado na articulação entre democratização e soberania. A implacável perseguição política que sofreu apurou sua sensibilidade para o padrão de luta de classes mexicano, ao mesmo tempo em que provocou a constatação imediata da solidariedade internacional de classe em ambos os polos do conflito social, processo que resultou em uma progressiva radicalização de seu ideário. Apesar de observar os riscos do expansionismo ianque para a soberania mexicana, sua crítica não aborda os mecanismos do Imperialismo que reforçam os nexos entre dependência e assimetria. Durante a revolução, direcionará sua denúncia basicamente no sentido de prevenir uma invasão militar estadunidense, ao passo que a dimensão socioeconômica da autodeterminação será pulverizada na utopia da livre associação.

Nos três casos enfocados, uma relativa indiferenciação das esferas da existência marca as condições de produção do pensamento, limitando as possibilidades de análise política do econômico que permitiriam articular os problemas nacionais ao movimento do capital internacional como uma totalidade. Como consequência, o foco dos autores abordados oscila entre a especificidade latino-americana no plano da história ocidental e seu denominador comum, o desenvolvimento capitalista mundial: Martí salienta a singularidade cultural do continente; Justo acentua a tendência à integração econômica mundial; Magón denuncia as contradições de classe, no México como nos Estados Unidos. Essa sobreposição entre o específico e o comum é um indício do processo simultâneo de articulação e diferenciação do capitalismo em sua modalidade dependente na América Latina naquele período.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Inscritos no movimento histórico de afirmação do poder burguês nos marcos da problemática da formação nacional, os projetos políticos analisados neste trabalho revelam diferentes caminhos por meio dos quais se expressou a pressão popular por democratização radical na América Latina nos primórdios do Imperialismo. A identificação de um denominador comum, que justifica a comparação, não anula as notáveis diferenças observadas, em múltiplos níveis, a partir do contraste encetado. No plano ideológico, o pensamento de Martí revela uma densidade que o singulariza, não somente em relação aos demais autores analisados, mas na própria história do pensamento latino-americano. Do ponto de vista político, subjacente ao reformismo de Justo observa-se uma desconfiança ante a autonomia da classe trabalhadora que o distancia de Martí e Magón, cujas estratégias políticas apoiam-se objetivamente no protagonismo popular, sem a mediação eleitoral que sujeitou a organização argentina à cooptação. Não obstante o contraste entre a militância revolucionária de Martí e Magón com o reformismo moderado de Justo, entendemos que o Partido Socialista foi a principal expressão política vinculada ao interesse dos trabalhadores argentinos naquele momento histórico.

Para nossos objetivos, as discrepâncias entre essas diferentes expressões da política radical referidas a um movimento histórico comum enriquecem o alcance da pesquisa, ao sugerir um quadro das referências ideológicas e políticas que informavam as origens do pensamento e do ativismo radical no continente nesse contexto. No plano do pensamento, observamos uma convergência entre natureza humana e história subjacente ao ideário dos autores, sugestiva de uma indiferenciação das esferas da existência que obsta a apreensão das relações entre o particular e o universal nos marcos de uma totalidade histórica. Vista por outro ângulo, a aproximação entre Martí, Justo e Magón revela uma morfologia dos temas culturais, políticos e sociais que informariam a reflexão posterior sobre os dilemas do continente, articulados a partir da esfera econômica como uma totalidade no pensamento elaborado pela Cepal e pela tradição vinculada ao materialismo histórico. No conjunto, a análise comparativa dos casos enfocados sugere as balizas históricas que referenciavam, nos termos de Lukács, a máxima consciência possível no campo da militância democrática na totalidade histórica em que estavam inscritos.

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  • 2
    Neste trabalho nos referimos ao Imperialismo como uma etapa do capitalismo, caracterizada pela afirmação do capital monopolista segundo as análises pioneiras de HOBSON, 1983HOBSON, John A. A evolução do capitalismo moderno. São Paulo: Abril, 1983.; HILFERDING, 1985HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.; LÊNIN, 2000LÊNIN, V. I. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2000.; BUKHARIN, 1984BUKHARIN, Nikolai. A economia mundial e o imperialismo. São Paulo: Abril, 1984..
  • 3
    Respectivamente, Alfredo Palacios em 1904 e Enrique del Valle Iberlucea em 1913.
  • 4
    PRADO JR., 1966_______. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.. Ver também: PRADO JR., 2000PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.; 2001_______. História e desenvolvimento. 3.ed., 2. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2001..
  • 5
    FERNANDES, 1975aFERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente e classes sociais na América Latina. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975a.. Outros desenvolvimentos da mesma questão encontram-se em: FERNANDES, 1975b_______. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975b.; 1968_______. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.; 1981_______. Reflexões sobre as "revoluções interrompidas" (uma rotação de perspectivas). In: _______. Poder e contra-poder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p.69-120..
  • 6
    Uma discussão sobre a pertinência desta abordagem para a América Latina encontra-se em: PRADO, 2005PRADO, Maria Ligia Coelho. Repensando a História Comparada da América Latina. Revista da História da USP, São Paulo, n.153, p.11-34, 2005..
  • 7
    Ver a respeito: GILLY, 1981GILLY, Adolfo (Org.) Interpretaciones de la Revolución Mexicana. México: Nueva Imagen, 1981.. Para uma síntese do debate sobre o caráter da revolução, consultar: KNIGHT, 1989KNIGHT, Alan. Interpretaciones recentes de la Revolución Mexicana. Revista Secuencia, México: Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora, n.13, p.23-43, ene.-abr. 1989..
  • 8
    Ver: KATZ, 1990a_______. Revuelta, Rebelión y Revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX. Mexico: Era, 1990a.; 1990b_______. La servidumbre agraria en Mexico en la época porfiriana. Tomo 1. México: Era, 1990b., tomo 1; 1991_______. The Liberal Republic and the Porfiriato, 1867-1910. In: BETHELL, Leslie (Ed.) Mexico since independence. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.; 1982KATZ, Friederich. La guerra secreta en México. México: Era, 1982.; 1998_______. The life and times of Pancho Villa. Stanford: Stanford University Press, 1998..
  • 9
    Citaremos dois exemplos de influência direta: combinando o amor como móvel revolucionário a uma postura estoica de autossuperação e entrega à causa, Che Guevara reconhece os pontos de contato da sua ética militante com Martí, de quem toma uma frase que, no seu entender, deve sintetizar o espírito dos revolucionários: "Todo hombre verdadero debe sentir en la mejilla el golpe dado a cualquier mejilla de hombre" (GUEVARA, 1978GUEVARA, Ernesto Che. José Martí. In: HART, Armando. Siete enfoques marxistas sobre José Martí. La Habana: Ed. Política, 1978., p.74). As indagações em torno à existência de uma filosofia latino-americana, como aspecto do problema maior da possibilidade de uma cultura latino-americana no capitalismo dependente, estimuladas de forma incisiva a partir da obra de Leopoldo Zea, tomam José Martí como referência imediata. ZEA, 1957ZEA, Leopoldo. America en la história. Madrid: Castilla, 1957.; 1995a_______. A filosofia americana como filosofia. São Paulo: Pensieri, 1995a..
  • 10
    A respeito da progressiva diferenciação das esferas política, cultural, social e econômica através de um processo histórico que evidenciou a especificidade da formação latino-americana, consultar: RETAMAR, 2005_______. Pensamiento de Nuestra América. Buenos Aires: Clacso, 2005.; PINEDO, 2010PINEDO, Javier. El concepto Segunda Independencia en la historia de las ideas en América Latina: Una Mirada desde el Bicentenario. Revista Atenea, Concepción, n.502, p.151-177, 2º sem. 2010.; ZEA, 1976_______. El pensamiento latinoamericano. Barcelona: Ariel, 1976.; 1995b_______. (Comp.) Fuentes de la cultura latinoamericana. 3v. México: FCE, 1995b..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2015
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2015
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