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APRESENTAÇÃO - Uma grande diferença

A Great Diference

Este Dossiê não trata simplesmente da história da escravidão e da liberdade no Brasil, mas sim do modo como homens e mulheres escravizados enfrentaram o domínio senhorial, buscaram a liberdade e conseguiram sobreviver na nova condição. A história, aqui, é contada por gente de carne e osso: os centro-africanos Catarina, Felix, Luzia Pinta, Branca e outros calunduzeiros, que curavam seus clientes da “doença da escravidão”; a africana mina Rita Dias de Araújo, que viveu com um português e contou a ele o significado das palavras de sua língua materna; Maria de Araújo, Francisco da Costa, Antônio Rodrigues, Josefa Maria e Ana Antônia, que tiveram de recorrer aos tribunais de Mariana para defender a liberdade que haviam conquistado; Rufina Maria Manoela, uma cativa que possuía escravos e tinha conseguido construir uma casa de pedra e cal nas terras pertencentes aos beneditinos em Pernambuco; Martinho, nascido num engenho alagoano e, já adulto, vendido duas vezes para o Rio de Janeiro; as libertas Maria, Brazilina, Pulcheria, Benedicta e Lucrécia, que lutavam para conseguir libertar seus filhos que permaneciam escravizados; Pancrácio, Eduardo e Ulisses, que se divertiam num samba com outros criados e agregados da casa da baronesa do Rio Vermelho e foram duramente reprimidos pelo subdelegado de polícia em Salvador. Há também gente cujo nome é mais difícil de identificar, como os índios ditos “selvagens” que foram escravizados, e os “mansos” que estavam aldeados e foram colocados para trabalhar em fazendas, estradas e obras públicas em São Paulo.

Ao iluminar a experiência dessas pessoas, os artigos aqui reunidos lidam com aspectos importantes da história da escravidão e da liberdade no Brasil. Tratam das bases religiosas, políticas e intelectuais que eram arregimentadas pelos africanos para enfrentar a escravização e a vida no cativeiro; das condições de comunicação e interação linguística entre senhores e escravos; da precariedade da condição dos libertos e dos perigos da reescravização; das relações paternalistas e dos laços que favoreciam a diferenciação entre os cativos; das motivações senhoriais para a venda de escravos no tráfico interprovincial e das estratégias dos traficados para suportar a migração forçada; das barreiras impostas aos projetos familiares dos que lutavam pela liberdade; da continuidade da autoridade senhorial e do enfrentamento do racismo no contexto da Abolição; das relações entre escravidão e trabalho compulsório no Brasil oitocentista. Religião, política, comércio de escravos, emancipação, racismo - todos esses temas aparecem aqui discutidos a partir de histórias individuais, de casos bem circunstanciados no tempo e no espaço.

Que diferença isso faz?

Em primeiro lugar, esse procedimento implica uma posição quanto ao lugar ocupado pelas fontes na construção do conhecimento histórico. Sempre produzidos em contextos específicos, os registros das ações humanas no passado são pontuais. Linhas gerais e tendências podem certamente ser traçadas a partir da somatória de eventos, alinhados quantitativa ou qualitativamente. Desde a micro-história, no entanto, aprendemos que o particular contém o universal: o “todo” não é a mera soma das partes, mas está imbricado no singular e dele depende para existir (Levi, 1992LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p.133-161.). É por isso que os esquemas explicativos amplos só conseguem elucidar parcialmente a complexidade dos processos sociais, cheios de conflitos e caminhos nem sempre coerentes. Para ir além das linhas gerais, é necessário buscar como e por que indivíduos e grupos pensaram e agiram deste ou daquele modo em cada circunstância histórica (Thompson, 1979______. La sociedad inglesa del siglo XVIII: ¿lucha de clases sin clases? In:______.Tradición, revuelta y conciencia de classe: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustiral. Barcelona: Crítica, 1979. p.13-61.). É desta matéria-prima que se deve partir: das fontes em sua profusão múltipla de registros individualizados, sem que uma teoria hierarquize o que é ou não “importante”, o que pode ser ou não “exemplar”.

Assim, investigar a história de um homem ou de uma mulher que viveu como escravo/a ou liberto/a em certo tempo e lugar (ou de um acontecimento ocorrido aqui ou ali) permite iluminar dimensões significativas das experiências da escravidão e da liberdade que não seriam apreendidas se o ponto de partida tivesse sido previamente constituído por uma hipótese geral. Além de tocar as indeterminações que se abrem diante dos sujeitos a cada momento histórico, esse caminho permite verificar como as variáveis que geralmente habitam as explicações mais amplas atuam e estão conectadas. As relações entre classe, raça e gênero, por exemplo, bem como as de idade, etnia, religião e outras tantas que conformam o lugar social de cada um, tornam-se evidentes a partir da análise de casos particulares (Davis, 1991DAVIS, Natalie Z. Las formas de la historia social. Historia Social, Barcelona, v.10, p.177-182, 1991.).

Esse percurso analítico não recusa generalizações, mas constrói conceitos e teorias menos abstratos e mais adequados à análise histórica, já que a atenção às nuances e contradições derivadas de contextos variados evita anacronismos e teleologias (Thompson, 1981THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.). Mesmo para os que preferem um enfoque mais amplo e sistêmico, essa abordagem permite perceber movimentos e modulações, oferecendo uma perspectiva mais complexa e menos linear na análise dos processos históricos.

Em segundo lugar, ele traz para o centro da investigação os sujeitos históricos. Tal preocupação já estava presente nas propostas de Bloch ([1949]2001BLOCH, Marc. A história e os homens. In:______. Apologia da história ou O ofício de historiador. [1949]. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.52-55.) e Febvre ([1941]1989FEBVRE, Lucien. Viver a história. [1941]. In:______. Combates pela história. 3.ed. Lisboa: Presença, 1989. p.28-41.) e ganhou força na segunda metade do século XX. Mais que contrapor a experiência dos homens comuns à dos grandes chefes políticos e militares, ou focalizar grupos sociais definidos de modo abrangente e genérico, a análise que destaca a atuação dos sujeitos consegue captar com maior eficiência a rede de relações sociais, políticas, econômicas e culturais que formatou o que chamamos de história - e, para o que nos interessa aqui, de “escravidão” ou de “liberdade”. Tais fenômenos ganham consistência e gradação quando examinados do ponto de vista de comerciantes de grosso e pequeno trato, senhores de grandes e reduzidas escravarias, cativos africanos ou nascidos no Brasil, libertos que foram alforriados gratuita ou onerosamente, trabalhadores livres ou libertos. Há dilemas que foram particularmente importantes para as mulheres, outros para os homens; o modo como alguém era tratado dependia da tonalidade da cor de sua pele, que podia combinar-se com outras características pessoais ou sociais; estar na cidade ou numa fazenda fazia diferença - esses e muitos outros aspectos, enfeixados nas circunstâncias particulares das trajetórias individuais, dão concretude e elasticidade aos conceitos e interpretações que construímos. Ao escutar essa pluralidade de vozes e observar interesses e modos de ver e agir nem sempre coincidentes, os historiadores podem entender melhor o passado. Um conhecimento assim produzido torna a história menos lógica e racional - e mais humana.

Há, no entanto, uma diferença fundamental quando se estuda a história da escravidão e da liberdade privilegiando a visão de escravos e libertos. Eles oferecem uma perspectiva de avaliação das relações sociais que geralmente confronta as explicações tradicionalmente adotadas pelos

historiadores. Há bem mais que números, rotas e lucros quando se estuda a travessia forçada pelos olhos de quem viajou no porão de um navio que cruzou o Atlântico ou dentro de uma canoa que desceu o Amazonas. Além disso, o fato de milhares de pessoas escravizadas e levadas para trabalhar nas Américas serem africanas, por exemplo, impõe uma reflexão sobre a África e seu lugar na economia mundial na época moderna e no século XIX. Será possível uma história do capitalismo que não contemple os processos de escravização que envolviam africanos e europeus nesse período? Do mesmo modo, o grande contingente de índios traficados pelos rios amazônicos obriga a pensar o lugar do comércio das drogas do sertão na economia colonial. Como esquecer essa multidão compelida à diáspora ao se estudar a história europeia ou da colonização da América?

Não se trata apenas de uma questão de escala, de opor o micro ao macro. O local e o global podem ser abordados tanto do ponto de vista dos sujeitos quanto dos grandes sistemas.1 1 Na história da escravidão e da liberdade há dois belos exemplos de como combinar, de maneira diversa, o ponto de vista dos sujeitos com uma análise em escala global ou com uma abordagem sistêmica: COSTA, 1998, e SCOTT; HÉBRARD, 2014. O mesmo se dá com o velho dilema entre a determinação e a vontade individual. Colocar o foco nas experiências das pessoas que viveram o cativeiro ou buscaram a liberdade implica tomar partido na análise das relações de exploração e dominação. Mais que simplesmente descrever ou explicar, os historiadores buscam compreender - e uma interpretação nunca é “neutra”, especialmente quando se trata da vida em sociedade. Saber o que o cativeiro e a liberdade significaram na vida das pessoas - nos seus próprios termos e avaliações - é, portanto, fundamental. Sem dúvida, tal abordagem permite alcançar a miríade de tensões e conflitos que fazem parte do fato de ser cativo ou liberto de certo senhor ou patrono. É mais que isso, porém: há uma diferença profunda entre interpelar essas relações sociais da perspectiva de cima ou de baixo (Hobsbawm, 1998HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. In:______. Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.216-231.).

É por isso que trazer os escravos e libertos para o centro da análise leva também a perguntar por aspectos pouco estudados da escravidão e da liberdade, ou a examinar dimensões dessas experiências de outros ângulos. É o que fazem os autores que responderam à chamada de artigos para este Dossiê. Os calundus ganham novos significados depois que Alexandre Almeida Marcussi acompanha os rituais praticados em diversas partes da América portuguesa nos séculos XVII e XVIII. O exame de um vocabulário de língua mina realizado por Ivana Stolze Lima revela uma insuspeitada comunidade feminina na casa de um senhor das Minas setecentista. Ao seguir os caminhos difíceis de gente que teve de recorrer à justiça para manter a liberdade, Fernanda Domingos Pinheiro mostra como as diversas formas de obter a alforria podiam marcar a vida depois da escravidão. Soraia Sales Dornelles observa os modos de exploração do trabalho indígena em São Paulo oitocentista para indicar como, sob o manto esgarçado das leis, a liberdade dos índios aldeados era precária e instável. A história de uma escrava proprietária de escravos, investigada por Robson Pedrosa Costa, desvenda dimensões pouco estudadas das experiências do cativeiro como as da construção de hierarquias sociais entre os escravizados. Luana Teixeira parte das motivações senhoriais para vender escravos insubmissos e discute os efeitos do comércio interprovincial de cativos nas comunidades de escravos e os sentidos da rebeldia. A busca da liberdade ganha novos contornos quando pensada com base na experiência de mulheres que conseguiram a alforria mas dependiam de várias estratégias para libertar seus filhos, como nos mostra Marília Ariza. Os protestos contra uma ação policial que reprimiu a realização de um samba permitem que Wlamyra Albuquerque discuta os limites impostos à liberdade negra e as alternativas para seu enfrentamento nos anos finais da escravidão.

Certamente poderia haver outros temas, e há ainda muita pesquisa a ser feita para conhecer melhor o que escravos e libertos pensavam a respeito do mundo em que viviam e como lidavam com seus desafios e riscos. Desde os anos 1980, no entanto, quando a historiografia brasileira deu-se conta da importância teórica, heurística e hermenêutica dessa perspectiva analítica, multiplicaram-se os estudos e novos campos de investigação se abriram.2 2 Muitos já foram os balanços feitos a esse respeito. Ver especialmente SCHWARTZ, 2001, e RUSSELL-WOOD, 2001. Mas ainda resta muito por fazer - sobretudo quando alguns de nós retomam análises sistêmicas da escravidão, recuperando lógicas explicativas e debates de décadas atrás.3 3 É o caso, por exemplo, da retomada do conceito de “segunda escravidão” (TOMICH, [1988]2011) e da “teoria do sistema-mundo” de WALLERSTEIN (1974, 1980, 1989; 2001). Talvez esse apego à história de largos traços possa saciar rapidamente a curiosidade, mas retira dela a indeterminação. Vivendo em um mundo tão conturbado e difícil de explicar como o nosso, não se pode ignorar o desafio - e a necessidade - de trilhar um caminho diferente.

Os artigos deste Dossiê não apenas oferecem um bom panorama da produção historiográfica brasileira sobre o tema como tornam evidentes as potencialidades de uma história da escravidão e da liberdade no Brasil abordada do ponto de vista dos escravos e dos libertos. Isso, por si só, faz uma grande diferença!

REFERÊNCIAS

  • BLOCH, Marc. A história e os homens. In:______. Apologia da história ou O ofício de historiador. [1949]. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.52-55.
  • COSTA, Emília V. da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • DAVIS, Natalie Z. Las formas de la historia social. Historia Social, Barcelona, v.10, p.177-182, 1991.
  • FEBVRE, Lucien. Viver a história. [1941]. In:______. Combates pela história. 3.ed. Lisboa: Presença, 1989. p.28-41.
  • HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. In:______. Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.216-231.
  • LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p.133-161.
  • RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial. Tempo, Rio de Janeiro, v.12, p.11-50, 2001.
  • SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: ______ Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p.21-82.
  • SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014.
  • THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
  • ______. La sociedad inglesa del siglo XVIII: ¿lucha de clases sin clases? In:______.Tradición, revuelta y conciencia de classe: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustiral. Barcelona: Crítica, 1979. p.13-61.
  • TOMICH, Dale W. A “segunda escravidão”. [1988]. In:______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. p.81-97.
  • WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
  • ______. The Modern World-System. New York: Academic Press, 1974, 1980, 1989. 3v.
  • 1
    Na história da escravidão e da liberdade há dois belos exemplos de como combinar, de maneira diversa, o ponto de vista dos sujeitos com uma análise em escala global ou com uma abordagem sistêmica: COSTA, 1998COSTA, Emília V. da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., e SCOTT; HÉBRARD, 2014SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014..
  • 2
    Muitos já foram os balanços feitos a esse respeito. Ver especialmente SCHWARTZ, 2001SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: ______ Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p.21-82., e RUSSELL-WOOD, 2001RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial. Tempo, Rio de Janeiro, v.12, p.11-50, 2001..
  • 3
    É o caso, por exemplo, da retomada do conceito de “segunda escravidão” (TOMICH, [1988]2011TOMICH, Dale W. A “segunda escravidão”. [1988]. In:______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. p.81-97.) e da “teoria do sistema-mundo” de WALLERSTEIN (1974WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., 1980______. The Modern World-System. New York: Academic Press, 1974, 1980, 1989. 3v., 1989; 2001).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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