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A voz e a cruz de Rita: africanas e comunicação na ordem escravista

RESUMO

A pesquisa que fundamenta este artigo focaliza os dilemas, escolhas e possibilidades de comunicação e interação linguística que se apresentaram aos africanos escravizados. Mais especificamente, focaliza o uso da então chamada “língua mina” (línguas do grupo Gbe) a partir de um registro produzido em Vila Rica, Minas Gerais, por Antônio da Costa Peixoto (Alguns Apontamentos da Língua Mina com as palavras portuguesas correspondentes, de 1731 e Obra Nova da Língua Geral de Mina, de 1741Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora).). A proposta é buscar práticas dialógicas que estiveram na base da elaboração desses documentos e que revelariam, subjacentes ao seu declarado autor, experiências das comunidades linguísticas ali envolvidas. Cotejando a obra com documentação coeva e com a historiografia sobre a escravidão, buscam-se indícios sobre as (e os) possíveis informantes de Peixoto, parti­cular­mente a experiência feminina, a partir da sua atuação no comércio, sua relação com a escrita, e a questão da intimidade. Busca-se ainda compartilhar procedimentos teóricos e metodológicos, contribuindo para o aprofundamento e a sistematização da dimensão linguística da escravidão de africanos no Brasil.

Palavras-chave:
línguas africanas; escravidão e comunicação; Minas Gerais; Costa da Mina; mulheres africanas

ABSTRACT

The research on which this article is based focuses on the dilemmas, choices and possibilities of communication and linguistic interaction presented to enslaved Africans. More specifically, it examines the use of what was then called the ‘Mina language’ (encompassing diverse languages of the Gbe group) from records written in Vila Rica, Minas Gerais by Antônio da Costa Peixoto (Alguns Apontamentos da Língua Mina com as palavras portuguesas correspondentes, 1731, and Obra Nova da Língua Geral de Mina, 1741). The proposal here is to identify the dialogical practices that informed the elaboration of these documents and reveal, subjacent to their declared author, experiences shared by the linguistic communities involved. Pairing the work with contemporary documentation and historiography on slavery and Mina Africans, the article seeks clues to Peixoto’s possible informants, especially the female experience, based on their commercial activities, their relationship to writing, and the question of intimacy. It also seeks to explain the theoretical and methodological procedures used in the research, thus contributing to deepening and systematizing our knowledge about the linguistic dimensions of the enslavement of Africans in Brazil.

Keywords:
African languages; slavery and communication; Minas Gerais; Mina Coast; African women

Rita Dias de Araújo foi o nome usado por uma mulher africana, escrava e depois liberta, que viveu na freguesia de São Bartolomeu, Vila Rica de Ouro Preto, em meados do século XVIII. Ela foi uma das inúmeras donas de venda, atividade marcada pelas mulheres mina. Teve uma filha, Maria Dias de Araújo, com o escrivão e juiz da vintena, português, Antônio da Costa Peixoto (1703-1763), que assina os manuscritos Alguns apontamentos da língua mina com as palavras portuguesas correspondentes (1731Alguns apontamentos da lingoa minna com as palavras portuguezas correspondentes. Por Antônio Da Costa Peixoto em 1731. (Biblioteca Nacional de Lisboa, seção de reservados).) e Obra nova de língua geral de mina traduzida ao nosso idioma (1741). Uma marca de cruz em ação de crédito, onde se compromete a pagar sua dívida de 63 oitavas e 2 vinténs de ouro, por obter cachaça, melado e toucinho para a sua venda, é o único registro disponível de seu próprio punho.2 2 Ações cíveis (Crédito). 1754. Caixa 215 documento 3270; Ações cíveis (Alma). 1755. Caixa 272. Documento 5359. (AHMI). Testamento de Costa Peixoto: sala 20, prateleira L, Livro de óbitos de Casa Branca, Óbitos 1758-1816, Livro 03, fls. 40v-42v (AEAM). Com esses indícios, Rita servirá aqui de fio condutor para pensar a expressão de mulheres falantes da então chamada língua mina, analisando-se os dois documentos citados em diálogo com a historiografia sobre escravidão e documentação coeva e privilegiando os tópicos do comércio, da escrita e da intimidade.

Embora há décadas a historiografia tenha proposto uma virada teórica decisiva com o conceito de escravo como sujeito histórico, a dimensão linguística da experiência da escravização tem aparecido em estudos isolados, portanto ainda carente de propostas mais sistemáticas de tratamento e construção do objeto pelo historiador. Além do diálogo com os conceitos da linguística, especialmente da sociolinguística e da história linguística - que, aliás vêm enfrentando mais sistematicamente essa questão -, a historiografia contemporânea ainda não ofereceu, sobretudo a novas pesquisas das gerações jovens, alguns instrumentais que inspirem e deem forma ao enfrentamento desse desafio. Desafio que tanto diz respeito a identificar documentação pertinente e propor questionamentos analíticos, como a estabelecer o diálogo interdisciplinar com a linguística sem deixar de lado a especificidade da abordagem pela história. A interlocução com os já consolidados estudos sobre etnicidade, a releitura dos clássicos da historiografia e da produção intelectual brasileira que atentaram para a dimensão linguística nas suas análises (como Francisco Varnhagen, Nina Rodrigues, Joaquim Norberto, Gonçalves Dias, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e outros), são alguns caminhos importantes. Em meio a um campo muito fértil de reflexão para o historiador, com inúmeras possibilidades de recortes e problemáticas, este artigo se propõe a compartilhar alguns modos de trabalho que venho trilhando em torno do que se pode conceituar como uma história social das línguas africanas no Brasil.3 3 Vale esclarecer que a história social das línguas pode contribuir com interrogações mais próprias da historiografia linguística, que tem aparatos teórico-metodológicos específicos para tratar dos códigos ou sistemas linguísticos em si, seus contatos e mudanças. Ver, por exemplo, os estudos reunidos por AVELAR & LÓPEZ (2015), bem como diversos trabalhos de Tania Alkmim, Dante Lucchesi, Yeda Pessoa de Castro, Charlotte Galves e os citados na bibliografia.

Ao considerar como a dimensão linguística se incorpora à reflexão sobre a sociedade escravista, sobre as formas de contato, relação e comunicação entre seus agentes e atores, algumas perspectivas teóricas, ou modos de ver, me parecem pertinentes. A primeira delas seria difícil de encaminhar pelo conhecimento histórico, mas cabe levantar como problema pertinente ao horizonte de questionamentos. Como refletir acerca da experiência dos próprios africanos, ao desembarcar, ao serem incorporados ao regime de escravidão, ao necessitarem aprender e recriar formas de comunicação, ao sofrer os choques de sentidos e interrupções impostos a suas vidas? Como os africanos, falantes de línguas diferenciadas, acionaram seu ouvido e sua percepção para conseguirem, afinal, se comunicar e seguir sua existência na sociedade escravista? Qual a perspectiva “dos africanos” em face dos demais agentes que compunham a ordem escravista em diferentes épocas e situações?

O linguista Emilio Bonvini assim aponta as rupturas vividas pelos africanos nas Américas:

A ruptura semântica foi, sem dúvida, a que mais se sentiu: para os africanos deslocados, o sentido dass palavras tornou-se brutalmente obsoleto ou passou a “girar em falso”, porque elas não refletiam mais a realidade africana, mas, ao mesmo tempo, ainda não tinham apoio na nova realidade, constituída de noções diferentes e de denominações novas (plantas, farmacopeia, caça, animais, novas técnicas e novos produtos de consumo). A outra ruptura foi de ordem dialógica, pois essas mesmas línguas foram confrontadas com contatos linguísticos inabituais: novas línguas convivendo no mesmo espaço (outras línguas africanas decorrentes do tráfico, línguas ameríndias, língua portuguesa falada pelos senhores), sem esquecer a perda de seu valor identitário consecutivo ao nivelamento da língua resultante do desaparecimento das variantes dialetais. (Bonvini, 2008BONVINI, Emilio. Línguas africanas e português falado no Brasil. In: FIORIN, José; PETTER, Margarida (Org.) África no Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2008. p.15-62., p.33)

A segunda perspectiva de uma história social das línguas africanas seria a da comunicação travada “com africanos” pelos diferentes atores e instituições envolvidos na construção da ordem escravista. Tanto no caso dos missionários, que se destacaram na tarefa, sobretudo no período colonial, como no caso das autoridades centrais ou locais, vale investigar as possíveis políticas linguísticas que agiram para transformar o africano em um escravo. Dispersas na historiografia e na documentação, há referências que podem apontar formas de políticas linguísticas em relação aos africanos. Não necessariamente enquanto política centralizada e planificada, mas diferentes ações de autoridades civis e eclesiais, explícitas ou não, formais ou informais, que revelariam formas de tratamento das línguas dos escravos africanos. Isso incluiria a construção de um conhecimento linguístico decodificado em gramáticas, vocabulários e catecismos, de forma similar ao que foi empreendido para os grupos e línguas indígenas (Bessa-Freire, 2004BESSA-FREIRE, José Ribamar. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.). Um exemplo importante foi o processo de construção de um domínio linguístico sobre o quimbundo, que envolveu as várias margens do Atlântico ao longo do século XVII, em diferentes e variadas situações, das quais a elaboração da Arte da Língua de Angola pelo jesuíta Pedro Dias (Dias, 1697FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997.) foi a ponta do iceberg (Lima, 2017MAIA, Moacir R. C. O apadrinhamento de africanos em Minas colonial: (re)encontro na América. (Mariana, 1715-1750). Afro-Ásia, Salvador, v.36, p.39-80, 2007.b). Ao lado do quimbundo, a língua mina estava também no horizonte de preocupações das autoridades, em um período de recrudescimento do tráfico.

Em 1700, João de Lencastre, governador geral do Brasil, demonstrava estar preocupado com a “doutrina dos negros da Costa da Mina”, pelo motivo de “se ignorar a diversidade de suas línguas, assim naquela Ilha [de São Tomé] como nesta cidade [Salvador, Bahia]”. A ilha era um entreposto comercial de africanos originados de diferentes regiões, e o tráfico com a Costa da Mina se intensificara desde o final do século XVII com o início da mineração. O governador arquiteta um plano para enfrentar esse problema, envolvendo o arcebispo, párocos e moradores, para que estes “os façam doutrinar e catequisar pelos intérpretes”. Envolvendo a Junta das Missões e os próprios “senhores dos negros”, a proposta distribuía tarefas e responsabilidades entre os agentes coloniais. O bispo de São Tomé deveria se esforçar para catequizar os africanos antes de embarcarem para a Bahia. A doutrinação daqueles vindos diretamente da Costa da Mina empregaria “negros forros práticos na sua mesma língua”, que aprenderiam o ofício de catequistas com os padres jesuítas do colégio da Bahia. A Fazenda Real deveria adquirir escravos, escolhendo aqueles que pudessem “dar conta de si neste ministério”.4 4 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II acerca do recrutamento de catequistas entre os negros forros da Bahia para doutrinar os negros da Costa da Mina. Lisboa, 23 fev. 1701. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 3, Doc. 314.

Além das autoridades leigas e religiosas, documentos de proprietários de escravos, feitores, capitães do mato e agentes da ordem seriam também de extrema importância para entender como se construiu a comunicação com os falantes de línguas diferentes, daí a ideia de uma comunicação “com os africanos” e uma política linguística para acessá-los.

A terceira perspectiva para a qual o historiador pode estar atento diz respeito a como os africanos travaram, entre si, formas de comunicação e sociabilidade no mundo escravista. Como suas línguas maternas puderam ser usadas, como lançaram mão de línguas gerais comuns e compartilhadas, como fizeram uso das línguas correntes e dominantes em diferentes épocas e lugares - fossem essas as línguas americanas, europeias ou africanas. Enfim, trata-se de pensar em como se deu a comunicação “entre africanos”. Não deixa de haver, aí também, uma política linguística africana, no sentido de tomar parte de comunidades linguísticas. Quanto mais ativa fosse essa comunicação, mais estratégica seria a perspectiva anterior. Não por acaso, o domínio sobre o quimbundo foi contemporâneo do enfrentamento a Palmares.5 5 PRICE (1996) sugere o potencial de comunicação dos quilombolas ao comparar Palmares às comunidades de escravos fugitivos do Suriname, os Saramacas, que por terem sobrevivido por séculos, chegaram a formar uma língua própria (1996). LARA (2008) também inspira essa formulação, ao mostrar que os línguas (intérpretes) foram agentes frequentes e necessários dos acordos de paz, sendo esse um dos elementos do reconhecimento de sua soberania.

Para construir uma história social das línguas africanas, além da comunicação “dos africanos”, “com africanos” e “entre africanos” é ainda importante conseguir vislumbrar, nos mais distintos campos documentais, indícios e informações que interessem. Obviamente, os registros escritos por africanos e descendentes são preciosíssimos. Mas se trata de, permanentemente, saber formular modos de leitura que permitam a construção dos objetos da investigação e a ampliação do escopo. Essa quarta perspectiva teórica constitui-se afinal como a possibilidade de encontrar e distinguir registros de línguas africanas no Brasil, bem como de usos africanos das línguas disponíveis. Alguns registros constituíram propostas de conhecimento e descrição de determinadas línguas africanas no Brasil, como no caso considerado neste texto. Em outras situações, são registros dispersos de usos, fragmentos, como listas de palavras ou vocabulários utilizados por comerciantes e traficantes. Há ainda documentos que aproximam a escravidão africana e as questões linguísticas de forma indireta, como correspondência de autoridades, registros policiais, processos judiciais e anúncios, bem como a literatura ficcional e a produção artística (Lima, 2014_______. Escravidão e comunicação no mundo atlântico: em torno da língua de Angola, século XVII. História Unisinos, v.21, n.1, p.109-121, 2017b.). Obviamente, cada uma dessas perspectivas deve manter o estrito cuidado com as especificidades temporais e locais.

Se as perspectivas são complexas e amplas, a obra de Antônio da Costa Peixoto é um bom ponto de partida para enfrentá-las. Entretanto, desconstruiremos a noção de autor, avaliando esse registro como fruto de práticas dialógicas.6 6 Outros indícios na trajetória pessoal e profissional de Antônio da Costa Peixoto apontam sua disposição para compartilhar espaços de sociabilidade e comunicação com africanos falantes de mina, tema que venho pesquisando e que será objeto de outro artigo. O único trabalho localizado sobre Peixoto é o de ARAÚJO (2013), que identificou seu testamento e uma denúncia de moradores acusando-o de andar em tavernas com negros e negras. A hipótese, aqui, é que tal documento serve para pensar a comunicação e expressão de africanas e africanos na ordem escravista. A obra de Antônio da Costa Peixoto que chegou até nós compõe-se por dois manuscritos. O primeiro intitula-se Alguns apontamentos da língua Mina com as palavras portuguesas correspondentes, data de 1731 e se encontra sob a guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa. O segundo, uma versão ampliada, intitula-se Obra nova da língua geral de Mina, é de 1741 e pertence à Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. Uma edição impressa foi organizada por Luís da Silveira, bibliotecário de Évora, publicada em 1944 pela Agência Geral das Colônias, seguida por outra edição em 1945. O texto se organiza por entradas em língua mina (palavras, frases ou diálogos) que são traduzidas para o português, e poderia ser descrito como um vocabulário.

Teóricos que se dedicam à história do conhecimento linguístico apontam como a alteridade está na base de todo intuito de forjar listas de palavras, vocabulários e dicionários, práticas de escrita não por acaso ligadas à história do comércio, das navegações, das diferentes formas de colonização. Os dicionários nascem como instrumentos para acessar línguas outras, sendo muito recentes os dicionários chamados monolíngues (Nunes, 2006PAIVA, Eduardo F. Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América portuguesa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL POLÍTICA, NAÇÃO E EDIÇÃO. Belo Horizonte, 2003 . Anais... Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2003. v.1.; Auroux, 2009AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. Unicamp, 2009.). A obra de Costa Peixoto tanto depara com a alteridade como testemunha um ambiente de intensa heterogeneidade linguística, onde circularam línguas diferentes, inclusive outras línguas africanas, e línguas americanas, como a língua geral paulista de base tupi. Essa heterogeneidade, porém, era marcada por status diferenciados, de acordo com seu peso demográfico, com sua função político-administrativa, com os vínculos sociais e comunitários e com os espaços possíveis por onde pudessem circular (Calvet, 2007CAMILO, Débora. As donas da rua: comerciantes de ascendência africana em Vila Rica e Mariana (1720-1800). Ouro Preto: Ed. Ufop, 2015.). Nesse complexo ambiente, os manuscritos em foco colocam face a face o português, língua da administração, língua da escrita e do poder, do qual o autor é um representante por sua condição de escrivão e juiz de vintena, e a língua mina. Outra característica central de instrumentos linguísticos como dicionários, de uma ou mais línguas - aos quais frequentemente historiadores recorrem sem a devida crítica, buscando definições supostamente “neutras” para vocábulos utilizados em outras épocas -, é que constituem também discursos e representações sobre a sociedade. Sua problematização como fonte passa por essa característica.

PRÁTICAS DIALÓGICAS NA ALTERIDADE

Os diálogos e traduções apresentados por Costa Peixoto em seu contato com os falantes de língua mina representam relações sociais na escravidão. Trata-se de uma peça textual que, para além do que tenham sido seus objetivos e formas de uso e circulação, opera uma representação e uma elaboração simbólica sobre a experiência. Daí a potência dos diálogos relacionados à violência brutal e à tensa negociação da escravidão (ver, a esse respeito, Lara, 2002_______. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. Tese (Titularidade) - IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, 2008.), com um teor dramático raríssimas vezes explicitado. Mas é importante incorporar à análise uma visão do conjunto das vivências cotidianas que ali também aparecem. A obra pode assim servir para investigarmos as práticas dialógicas subjacentes, conceito inspirado no estudo de Olabiyi Yai (2000YAI, Olabiyi. Texts of enslavement: Fon and Yoruba Vocabularies from Eighteenth and Nineteenth-century Brazil. In: LOVEJOY, Paul (Org.) Identity in the shadow of slavery. London: Continuum, 2000. p.102-112.), que define o conceito de performances dialógicas no mundo atlântico, atuantes na produção de vocabulários e outros documentos similares sobre as línguas africanas. O autor aponta um entendimento não essencialista da noção de autoria, uma vez que a colaboração de africanos se impunha necessariamente. Africanos, e particularmente mulheres, seriam informantes e coautores, ainda que anônimos e, a rigor, não passíveis de identificação precisa, e tiveram um espaço de negociação, orientando perguntas e respostas, deixando suas marcas e visões de mundo.

As entradas do vocabulário são em língua mina, é dela que se parte para a correspondência em português. Boa parte da obra tem pequenos “blocos” de textos, à maneira de parágrafos, organizados por campos semânticos e por associação temática. Há também pequenas frases e diálogos. Em um exercício crítico-analítico, sugiro que Rita, representando mulheres falantes de mina envolvidas com o comércio em suas vendas e tabuleiros, em diferentes formas de intimidade, partilhando espaços de sociabilidade, assim como o conjunto de africanos e não africanos que compartilharam a comunicação em língua mina e que viveram sob o domínio da língua portuguesa, devem ser considerados como sujeitos decisivos na elaboração da Obra nova.

LÍNGUA GERAL DE MINA

Rita Dias de Araújo é africana. É o que diz a classificação “preta forra”, pondo em movimento uma das mais perenes classificações da ordem escravista, a distinção entre africanos e crioulos, onde o critério linguístico era decisivo. É provável que Rita fosse mina. Já é amplamente conhecida a importância do tráfico da chamada Costa da Mina para as áreas mineradoras da América portuguesa, aon de chegavam através da Bahia e do Rio de Janeiro.7 7 De acordo com as estimativas do Slave Trade Database, entre 1701 e 1750, selecionando as regiões de embarque Costa do Barlavento, Costa do Ouro, Golfo do Benim e Golfo de Biafra, desembarcam no Brasil 402 mil africanos. Selecionando apenas o Golfo do Benim, são 320 mil (Disponível em: www.slavevoyages.org; acesso em: maio 2017). Parte significativa desse contingente era dirigida à área de mineração (RIBEIRO, 2008). Libby estima em 100 mil a população escrava na Capitania de Minas Gerais em meados do século XVIII. As vilas de Ribeirão do Carmo (Mariana) e Ouro Preto detêm quase a metade desse número (LIBBY, 2007, p.412). A dimensão da população livre seria bem inferior, estimada em 40 mil. Entre a população escrava a tendência foi de preponderância africana até a década de 1780. Dentre os africanos, os oriundos da Costa da Mina formaram o maior grupo individual, atingindo grande proporção em algumas localidades (LIBBY, 2007, p.413, 416, 431). Para as relações entre a Bahia e o golfo do Benim convergiam várias dimensões econômicas, políticas e culturais como a produção e consumo de tabaco, a dinâmica política dos reinos e povos africanos e os interesses dos homens de negócio da Bahia, já descritos na clássica análise de Pierre Verger (2002VILLALTA, Luiz Carlos. Educação: nascimento, ‘haveres’ e gêneros. In: RESENDE, M. Efigênia; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.) As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v.2, p.253-287.). Na década de 1720, a construção do forte luso-baiano em Ajudá e a ascensão do poderio do reino do Daomé marcam o processo de escravização de diferentes povos da região, categorizados pelo tráfico como mina. Em 1731, mesmo ano do vocabulário de Costa Peixoto, o Conde de Sabugosa, governador da Bahia, defendia a total dependência em relação ao mercado escravo africano, especialmente o de Ajudá (Boxer, 1969CALVET, Louis. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2007., p.175).

A África Ocidental é uma área de grande diversidade linguística. Dentre várias das famílias linguísticas, o complexo dialetal gbe, da família cuá, compõe a base do que Peixoto e outros contemporâneos identificaram como língua mina. Esse complexo dialetal, de significativa importância demográfica, com milhões de falantes nos atuais países de Gana, Togo, Benim e Nigéria, tem alto grau de intercompreensão (Capo, 1988CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002.).8 8 CAPO (1988) explica que as línguas do grupo Gbe, em um contínuo linguístico, com cerca de 50 denominações e variantes, se compõem tanto por equivalências como por particularidades lexicais. Ao mesmo tempo que existem diferenças de cunho linguístico, simbólico e político, há um contínuo. Chega-se a falar de uma única língua, embora esse nível não seja percebido pelos falantes. É também amplamente conhecido que o uso histórico da categoria mina engloba diferentes povos e etnias africanos e que portanto, para interpretar seu siginificado em determinada situação, devem-se buscar informações e particularidades do tráfico (Soares, 2004_______. Introdução. In: SOARES, Mariza (Org.) Rotas atlânticas da diáspora africana. Niterói: Ed. UFF, 2011. p.11-33.; Law, 2006LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do termo ‘mina’. Tempo, v.10, n.20, p.98-120, 2006.). Não se deve portanto associar automaticamente a categoria mina com a língua mina, pois pode se tratar de um falante de, por exemplo, iorubá, tradicionalmente chamado nagô no Brasil, que é de uma família linguística distinta, a benuê-congolesa, que teve grande concentração na Bahia e em Pernambuco nas primeiras décadas do século XIX, chegando também a compor uma língua geral nagô (Petter, 2006PRICE, Richard. Palmares como poderia ter sido. In: GOMES, Flavio dos S.; REIS, João José (Org.) Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; Mamigonian; Reis, 2004MENDONÇA, Renato. A influência africana no Português do Brasil. (1933). 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.; Rodrigues, 1977SILVA, Flávio. O Senado da Câmara e o pequeno comércio nas Minas setecentistas. Oficina do Inconfidência, Ouro Preto: Museu da Inconfidência, v.4, n.3, p.162-179, 2004., p.165). O léxico registrado na obra de Peixoto é identificado como majoritariamente fon, com termos maí, gun e evê, todos do complexo gbe (Castro, 2002DIAS, Pedro. Arte da língua de Angola. Lisboa: Miguel Deslandes, 1697.; Rodrigues, 2003RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. As línguas gerais sul-americanas. Papia: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, São Paulo, v.4, n.2, p.6-18, 1996.; Yai, 2000YAI, Olabiyi. Texts of enslavement: Fon and Yoruba Vocabularies from Eighteenth and Nineteenth-century Brazil. In: LOVEJOY, Paul (Org.) Identity in the shadow of slavery. London: Continuum, 2000. p.102-112.).

Estudos sobre as sociabilidades minas vêm desfrutando da riqueza dos registros nos arquivos mineiros. Um dos elos de sociabilidade étnica seria o apadrinhamento de escravos pela mesma nação (Maia, 2007MAIA, Moacir R. C. De reino traficante a povo traficado: a diáspora dos courás do Golfo do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa. Tese (Doutorado em Historia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013., p.58), além da participação em irmandades. Diferentes trabalhos demonstraram como, sob a categoria mina, designações mais específicas aparecem também: cobu, coura, ajá, nagô, ardra, fon, sabaru e ladano, dentre outras (Maia, 2013, p.110; Rezende, 2006REZENDE, Rodrigo C. As nossas áfricas: população escrava e identidades africanas nas Minas setecentistas. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2006.). Todas essas designações provavemente estão relacionadas a falantes do grupo gbe, com exceção dos nagôs.

O conceito de língua geral, empregado por Peixoto no título da obra de 1741PEIXOTO, Antônio da Costa. Obra nova da língua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora. Publicado e apresentado por Luís Silveira. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944. 36p., tem alguns equivalentes contemporâneos e é entendido aqui como língua amplamente falada (Rodrigues, 1996_______. Obra Nova da Lingua Geral de Mina: a língua ewe nas Minas Gerais. Papia: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, Brasília, v.13, p.92-96, 2003.) com possibilidade de comunicação entre povos que se entendem como distintos.9 9 O conceito de língua geral tem várias definições na linguística atual. RODRIGUES (1996) define um recorte analítico específico para as línguas gerais indígenas nas áreas de colonização portuguesa, mas observa que em muitos documentos históricos, língua geral queria dizer simplesmente uma língua amplamente falada. Em BARROS (2003), o conceito de língua geral é usado para línguas que serviram ao contato intercultural, ao comércio e à colonização. O discurso contemporâneo de um “nativo” acerca disso é muito precioso:

Em 1748 que cheguei a esta Capital vindo da cidade de Bahia, achei já esta Congregação ou Corporação de pretos Minas de várias nações daquela costa a saber Dagomé, Maqui, Iano, Agolin, Sabaru todos de língua geral com muita união ... e continuando o tempo começaram os pretos a se zingarem as Nações umas com as outras...10 10 Estatutos da Congregação dos pretos minas Maki no Rio de Janeiro (1786). BNRJ, seção de Manuscritos, 9, 3, 11. Grifo nosso. Esse documento constitui a base da obra de SOARES (2000).

A percepção de um maqui sobre uma língua geral que ao mesmo tempo permitia uma associação, mas não anulava os sentimentos de identidades particulares, corresponde ao conceito de línguas Gbe tal como definido por Hounkpati Capo (1988CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002.). Nessa direção, a análise de Mariza Soares (2000_______. From Gbe to Yoruba: Ethnic Change and the Mina Nation in Rio de Janeiro. In: FALOLA, Toyin: CHILDS, Matt D. (Org.) The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. p.231-247.) sobre os grupos de procedência, apontando como a categoria mina, embora criada pelo tráfico, foi ressignificada, é pertinente para o fenômeno da língua comum na área mineradora. Outro registro contemporâneo é o batismo de 11 escravos do mesmo proprietário pelo pároco Pedro Leão de Sá, que batizou “a João, a Vitorino, a André, a Domingos, a Bernardo, a Manuel, a Jerônimo, a Tomás, a Pedro e a Matheus, escravos de João Pereira Pinto ... todos são de nação mina de língua geral”.11 11 Registro de Batismo de 25 jul. 1756. Códice 493, fl.135v (AENSP). Uma parte desse registro foi citada por MAIA, 2013.

A identificação da língua mina era percebida também por autoridades como Pedro de Almeida Portugal, o Conde de Assumar, atento ao potencial de resistência e comunicação dos africanos. Quando governador da capitania de Minas Gerais, em 1719, ele oficiou ao rei sobre a “desordem que se experimenta em todo esse governo na mesma doutrina dos negros”, elencando para isso dois motivos. O primeiro seria que os senhores não cuidariam de sua doutrinação. O segundo seria o mais essencial: “é porque vindo a maior parte deles já adultos de Angola e da Costa da Mina, dificilmente aprendem a falar a língua portuguesa”.12 12 Governador Assumar ao Rei. Vila do Carmo 4 out. 1719. Registro de alvarás, ordens, cartas régias e ofícios dos Governadores ao Rei. SC-04 (APM).

COMÉRCIO E COMUNICAÇÃO ENTRE DIFERENTES

- Sácouculourupou námeachô (Venda- me uma galinha fiada)

- Nhimásácouculouhé achóhã (Eu não vendo as minhas galinhas fiadas)

- Aquhé nábi ná sárupou? (E por quanto vendes uma?)

- Vnásá aquhé cou. (Vendo-a por meia oitava)

- Aquhé cou hé sú. (Meia oitava é muito) (Peixoto, 1741PEIXOTO, Antônio da Costa. Obra nova da língua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora e da Biblioteca Nacional de Lisboa. Publicado e apresentado por Luís Silveira. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1945. 66p., f. 27)13 13 Para melhor apresentar os conteúdos, as citações reordenaram alguns dos itens do manuscrito, eventualmente deslocando pequenos trechos e diálogos, sem utilização de aspas em benefício de maior clareza gráfica. As referências foram sempre indicadas.

A historiografia há muito vem apontando as experiências das mulheres africanas e afrodescendentes, escravas e forras, com o pequeno comércio (Antonil, 1967ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967.; Figueiredo; Magaldi, 1985FONSECA, Thais Nivia de L. “Segundo a qualidade de suas pessoas e fazenda”: estratégias educativas na sociedade mineira colonial. Varia Historia, Belo Horizonte, v.22, n.35, p.175-188, 2006.). Elas detinham 75% das vendas nos distritos de Vila Rica, em 1746. Em São Bartolomeu, as três vendas existentes pertenciam a mulheres, uma delas era da preta forra Rita Dias (Pereira, 2008PETTER, Margarida. Línguas africanas no Brasil. In: CARDOSO, Suzana; MOTA, Jacyra; SILVA, Rosa Mattos (Org.) Quinhentos anos de história linguística do Brasil. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2006. p.117-142., p.93-101). Debora Camilo (2015CAPO, Hounkpati B. Renaissance du Gbe: réflexions critiques et constructives sur l’eve, le fon, le gen, l’aja, le gun etc. Hamburg: Helmut Buske Verlag, 1988.) levantou número significativo de testamentos de mulheres comerciantes que se declararam oriundas da Costa da Mina, sugerindo um saber que viria de suas experiências culturais e econômicas na África Ocidental. Narrativas como a de Angela de Souza Ferreira, em testamento, guardam essa memória: “Declaro que sou natural da Costa da Mina de onde me trouxeram de baixo do [pego] do cativeiro, ainda em tenra na idade” (citado por Camilo, 2015, p.58). Sua senhora, no período de cativeiro, foi também uma preta mina.

Vendas e tabernas eram espaços de circulação de ideias, troca de palavras, lugar de expressão. Vale somar ao volume de estudos sobre as comerciantes minas a reflexão sobre o quanto a interação se deu, nesses espaços, tanto entre africanos falantes de mina, como a partir de diálogos negociados entre esses últimos e os falantes de português. Documentos que trazem registros linguísticos podem assim ser investigados em seus possíveis indícios de uma expressão africana, considerando que o próprio ato de fala carrega uma performance subjetiva e um potencial de desafio. As continuadas ações de repressão às vendas, tabernas e negras de tabuleiro sugerem que os laços associativos foram significativos, como analisado por Figueiredo e Magaldi (1985FONSECA, Thais Nivia de L. “Segundo a qualidade de suas pessoas e fazenda”: estratégias educativas na sociedade mineira colonial. Varia Historia, Belo Horizonte, v.22, n.35, p.175-188, 2006.) e registrado em vários documentos, como por exemplo a reclamação de moradores quanto à ocupação desses espaços por escravos bebendo aguardente e, para cúmulo do escândalo, “assentados nos balcões”.14 14 Solicitação de determinação de horário de funcionamento das tavernas. CMOP, Cx. 18, doc. 44, 27 abr. 1746. (APM). Não por acaso, o léxico dos manuscritos de 1731 e 1741 refere-se em boa parte a atividades de comércio, inclusive as equivalências numéricas, contas do ouro e formas de negociação.

ESCRITA

- Mahiclehuhema. (Vou ler)

- Mahigulamhuhema. (Vou escrever)

- huhema (papel) (Peixoto, 1741Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora)., f. 23 e 10)

Na situação de escravidão nas Américas, os africanos estabeleceram re­lações com os sistemas linguísticos correntes, aprendendo e se apropriando da língua senhorial, da língua da ordem escravista, mantendo e adaptando suas línguas maternas, sofrendo rupturas nas suas possibilidades de contato. A relação com a linguagem escrita se impunha a suas vidas, uma vez que a escrita era um dos sistemáticos instrumentos de poder e autoridade da escravidão, da colonização, bem como da formação do Estado. Assim como africanos se tornavam ladinos, aprendendo a falar português, alguns conseguiram manejar, com maior ou menor domínio, a língua escrita. Ainda que raros, os exemplos de escravos e libertos que dominaram em algum grau a escrita são traços importantes do movimento de apropriação das formas de linguagem, comunicação e registro. Em um contexto social em que o acesso à escrita é claramente verticalizado, dominado por grande parte dos imigrantes que já contavam com ensino das primeiras letras em Portugal, e com um número quase invisível de letramento de forros (Venancio, 2001VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de todos os Santos. 4.ed. Salvador: Corrupio, 2002.), o desejo de instrução, para si ou para os filhos, é encontrado em diferentes situações de africanos ou descendentes, e parece que a mobilidade da região colonial da mineração ampliou essa possibilidade, ao menos para certos ofícios e relações entre grupos sociais (Fonseca, 2006FURTADO, Júnia. As mulheres nas Minas do ouro e dos diamantes. In: RESENDE, Maria Efigênia; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.) As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. v.2, p.481-504.; Paiva, 2003PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte: a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.; Villalta, 2007WISSENBACH, Cristina. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, v.4, p.103-122, 2002., p.256).15 15 Se incluirmos nesse questionamento o período de formação do Estado nacional, marcado pela urbanização, pela complexificação social e pela expansão da cultura escrita de forma mais ampla, e se considerarmos não exatamente os escravos, mas os seus descendentes que conseguiram a liberdade, esse número é ainda mais representativo. Afinal, como explicar que alguns dos mais importantes homens de letras do Oitocentos, desde escritores e publicistas a personagens menos célebres, como professores, tipógrafos, profissionais diversos e curadores, eram filhos, netos ou bisnetos de escravos? (LIMA, 2014, p.243).

Registros escritos que podem ser lidos como expressão de escravos e libertos sobre sua própria visão da escravidão e da liberdade não precisam ter sido, necessariamente, escritos pelo seu punho, embora esses tenham um valor preciosíssimo e raro (Wissenbach, 2002YAI, Olabiyi. Texts of enslavement: Fon and Yoruba Vocabularies from Eighteenth and Nineteenth-century Brazil. In: LOVEJOY, Paul (Org.) Identity in the shadow of slavery. London: Continuum, 2000. p.102-112.; Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., cap. 8). Em outras palavras, ainda que escravos alfabetizados tenham sido poucos, e libertos talvez um pouco menos raros, a escrita estava em suas vidas, fosse ou não dominada por eles. O momento em que Rita, com sua mão, assenta sua cruz, dizendo “por não saber ler nem escrever, pedi a Bento da Costa Sampaio que este por mim fizesse e como testemunha assinasse, eu me assinei com o meu sinal que é uma cruz”, trata-se de participar de um ritual de poder.16 16 Ações cíveis. Subtipo Crédito. 1754. Caixa 215 documento 3270; Ações cíveis. Subtipo Alma. 1755. Caixa 272. Documento 5359 (AHMI).

Nas devassas que ocorriam na região, em que os oficiais recolhiam testemunhos para apurar delitos, depoimentos de escravos e forros poderiam ser aceitos, na falta de testemunhas de outras qualidades. Folheando esses registros, em meio a assinaturas firmes e elaboradas, chamou minha atenção uma escrita trêmula, em letras de forma: “Anna Corriea”. Diferente da cruz assentada por Rita, ela testemunha em um delito ocorrido e deixa sua assinatura no auto.17 17 Devassas. 1º Ofício. Feridas que se dera em Bernarda do Espírito Santo. Códice 449, auto 9471, f. 6 e 6v. (AHMI). Preta forra, que “vive de sua agência”, morava junto à ponte de São José, área central de Vila Rica, o que deve ter ampliado a chance de que ela tivesse acesso ao letramento.

Silveira (1997SILVEIRA, Marco. O Universo do indistinto: Estado e sociedade nas minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997.) localizou evidências da importância da palavra escrita, não apenas como monopólio do poder, mas apropriada por diferentes grupos, que recorriam intensamente a bilhetes e notas como forma de defender um direito, cobrar por uma dívida, alcançar alguma estabilidade nas tensas relações sociais. Comerciantes africanas tinham grande cuidado com a gestão de seus negócios, administrando dívidas, róis de devedores e afinal, nos testamentos, dispondo sobre o destino de seus legados. Para isso a escrita, dominada ou não por elas, desempenhava papel central (Camilo, 2015CAPO, Hounkpati B. Renaissance du Gbe: réflexions critiques et constructives sur l’eve, le fon, le gen, l’aja, le gun etc. Hamburg: Helmut Buske Verlag, 1988., p.91).

Para distinguir entre um escravo que estivesse circulando a serviço do proprietário e outro que fosse um calhambola, as autoridades tentavam medidas como a obrigação de portar um bilhete escrito (Silva, 2004SILVA JR., Carlos. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, São Paulo, v.176, p.1-41, 2017., p.179). Cenas e diálogos da tensa negociação incluíam saber falar e entender a frase “guacheguimatim huhema, ná blauhê” em mina ou, em português: “se não tens escrito hei de amarrar-te”.

- Sóhã huhema mapom (Mostra o escrito para ver)

- Huhema hehunihé (Aqui está o escrito)

- Huhema matim (Não tenho escrito)

- Huhema hébũ (Perdi o escrito) (Peixoto, 1741Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora)., f. 17)

O termo “huhema” compõe um campo semântico que engloba “papel”, “escrito” e “carta”. Situações como essas indicam o quanto a comunicação dos africanos foi uma dimensão estratégica para eles. Nessa perspectiva, pode-se aventar a hipótese de que a tradução mina-português, escrita por Peixoto, atendia a interesses africanos e traz uma expressão africana.

A INTIMIDADE

- Da su cam? (Tu tens amigo?)

- Vm zim a sû (Tenho amigo)

- Matima su hã (Não tenho amigo)

- Guigueroy nhihô? (Vosmecê quer a mim?)

- Vm geroy (Quero) / Má geru he hã (Não quero não)

- Vnà na numpoupoume (Me dar tudo [palavra ilegível])

- Mâsógamhâ (não posso)

- Huhameno hame (sou pobre) (Peixoto, 1731Alguns apontamentos da lingoa minna com as palavras portuguezas correspondentes. Por Antônio Da Costa Peixoto em 1731. (Biblioteca Nacional de Lisboa, seção de reservados)., f. 11v e 12)

Utilizar os manuscritos originais, e não as edições impressas em 1944 e 1945 (que suprimiram trechos, ou omitiram sua tradução para o português), é aqui de fundamental importância para perceber a lógica da obra, especialmente sobre o tema das relações de intimidade. Peixoto, autor declarado, e os anônimos autores, informantes, falantes de mina que subjazem aos documentos, falaram do corpo e de experiências íntimas com detalhes. Ao mesmo tempo, há trechos que o próprio Peixoto preferiu deixar opacos, sem tradução, o que nos leva a pensar sobre o porquê de estarem ali, uma vez que seriam entendidos apenas pelos que dominassem a língua mina. Além disso, aparecem conteúdos que, apesar de registrados, são mensagens um tanto cifradas, mescladas a desculpas por faltarem à “nossa polícia” e às interdições do cristianismo.

É no corpo (“ehutu”), que a tradução começa. Tanto o livro de 1731 como o de 1741 se abrem com essa temática. Da cabeça aos pés, podemos imaginar o diálogo nas duas línguas.

Rita aponta e fala: - Dâ. Antônio responde: - cabelo. Rita diz - tâ e Antônio traduz - cabeça. - Vtou? - Orelhas. - Ahótim? - Nariz. E assim continuam: “num” é boca, “adû”, dentes, “èdê”, língua, “atam”, barba, “cô”, pescoço, “anô”, peitos, “choume”, barriga. Abaixo do “vgom”, embigo, tem “vfum”, pentelho, “doz”, caralho, “cam”, colhões, “assoquhê”, pernas. O clima que poderia sugerir um enleio de amor logo seria interrompido: a “afovi”, dedos, “efem”, unha, “alô”, braços e mãos, segue uma associação do castigo: “alòpâ”, palmatória...

Na versão de 1741 esse vocabulário foi mais detalhado. Tem, entre outros, tripas (“adô”), coração (“tum”), costas (“nébé”), cono (“ayó”), cu (“migoume”), “sujidade de gente” (“mi”), urina (“adidô”).

No contexto em foco, eram multifacetadas as relações de família, conjugalidade, maternidade, muito longe do conceito de família patriarcal. Casamentos formalizados na igreja eram raros, e o chamado concubinato predominava. O número de mulheres era muito inferior ao de homens. Os filhos ilegítimos ou naturais eram o padrão. Nos registros dos batismos, uma combinação comum era: nome do inocente, “de pai incógnito”, nome da mãe, escrava do senhor de tal. Se o nome do pai não era mencionado, não podia faltar o nome do proprietário da mãe, que se tornava assim também dono do rebento. Como nesse registro de 1740 que pode ser, ou não, a Rita Dias, mas é uma Rita mina, da mesma paróquia, cujo proprietário tinha sobrenome Dias: “José inocente, filho de pai incógnito e de Rita Mina, escrava de Antonio Dias Soares”.18 18 Registros Paroquiais. Livro/Assento de Batismo de Escravos. Códice 491, 60v. (AENSP).

Figueiredo (1997FIGUEIREDO, Luciano; MAGALDI, Ana Maria M. Quitandas e quitutes: um estudo sobre rebeldia e transgressão femininas numa sociedade colonial. Caderno de Pesquisa, n.54, p.50-61, ago. 1985.) e Furtado (2007GOMES, Flavio dos S. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil. São Paulo: Ed. Unesp; Pólis, 2005.) buscam superar a clave de “desordem”, produzida pela tentativa de controle estatal e eclesial, observando arranjos familiares e conjugais variados, experiências de fato que não correspondem a modelos, estabilidades possíveis em meio às instabilidades constitutivas de uma sociedade escravista e desigual. Comum era o caso de Peixoto: solteiro, três filhas e um filho, com quatro mulheres. Rita, Ana Maria, Luzia Gomes e Marcela Pires, mencionadas no testamento apenas por seus nomes, freguesias em que moravam e os nomes dos filhos, sem menção à sua condição. Marcella foi uma parda forra, moradora da freguesia de Santo Antônio da Casa Branca, que aparece na relação de pagamentos dos foros à câmara municipal, sem ocupação identificada.19 19 Relação de nomes de moradores de Santo Antônio da Casa Branca, com os respectivos foros devidos. CMOP, Cx. 88, Doc. 74, fl. 1. (APM). As buscas nos registros de batismos, óbitos e inventários ainda não permitiram localizar indícios das suas outras mulheres e filhos. Sobre Ana Maria e Luzia Gomes não conhecemos mais nada. As mulheres escravas e forras construíram patrimônio e laços afetivos, dando continuidade a tradições africanas matrifocais em uma ética própria, apesar da misoginia (Furtado, 2007, p.495).

Pai (thohê), mãe (nóhê) e irmão (novy) aparecem no vocabulário, mas também meio-irmão (thovi). Casado (alogulitô), “não é casado” (magulialôhã), “onde casou?” (fiá hegulialô), “casei no Reino” (vmgulialô touboume), “casei nesta terra” (vmgulialô toume fi), “tem filhos?” (hetim vy), “não tem filhos” (matim vihã) (Peixoto, 1731Alguns apontamentos da lingoa minna com as palavras portuguezas correspondentes. Por Antônio Da Costa Peixoto em 1731. (Biblioteca Nacional de Lisboa, seção de reservados)., f. 5 e 5v). O documento de 1741 inclui nesse mesmo bloco temático “mulher dama, ou puta” (josi).

A prostituição teria sido especialmente disseminada na Capitania de Minas Gerais, área de população predominantemente masculina, de grande mobilidade espacial, com intensa e dinâmica circulação do ouro. Concorriam para isso interesses de proprietários e proprietárias que lucravam com o serviço sexual de escravas, além de duras condições enfrentadas pelas mulheres forras e pobres que estavam submetidas ao imposto de capitação e censo das indústrias. Ainda assim, as relações consensuais e afetivas não merecem ser rotuladas de “desordem”, ou com uma informalidade ligeira e superficial. Diante do acirrado olhar eclesial contra as práticas “de ofensas a Deus”, casais e famílias se formaram, forjando uma legitimidade de cuidado e assistência mútua que deixou indícios nas devassas e outras ações de controle, como analisa Figueiredo (1997FIGUEIREDO, Luciano; MAGALDI, Ana Maria M. Quitandas e quitutes: um estudo sobre rebeldia e transgressão femininas numa sociedade colonial. Caderno de Pesquisa, n.54, p.50-61, ago. 1985.). Mas a acusação de meretrício era também usada por senhores contra mulheres com quem haviam se relacionado (Furtado, 2007GOMES, Flavio dos S. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil. São Paulo: Ed. Unesp; Pólis, 2005., p.494), daí a necessidade de problematizar e desconstruir essa visão.

Os conteúdos sexuais e ou afetivos aparecem em diferentes momentos. Expressões muito explícitas foram incluídas, antecedidas por um enigmático mea culpa de Antônio da Costa Peixoto, evocando o sexto mandamento (não pecar contra a castidade), talvez para buscar se livrar das diferentes denúncias a que estaria sujeito, especialmente as visitas episcopais.

Entretanto, dando sequência à vertente analítica aqui proposta, interessa buscar a perspectiva feminina nessas práticas dialógicas. Ainda mais desafiador é pensar a relação afetiva e sexual a partir de uma negociação feminina. Onde o “não” - hoje símbolo e síntese da luta contra o assédio - se fez presente. Práticas definidas, objetivadas e pretensamente regulamentadas pela ordem colonial como prostituição aparecem em contornos tênues, onde a voz feminina tem expressão.

­- No hé name ayo parê (Mas dá-me um bocado de cono)

- Fihá náhina nauhê (Aonde lho hei de ir dar?)

- Huhá mi hi zume (Vamos para o mato)

- Zume hemihom (O mato está úmido)

- Huhà mi hi zamgi (Vamos para a cama)

- Huhà mi hi (Vamos)

(...)

- Name aquhê (Dê-me ouro)

- Hé nabi na nauhê (Quanto te hei de dar?)

- Name aquhé carê (Dê-me uma oitava)

- Aquhé carê he su (Uma oitava é muito); Guigeroi cou sógam name (dá cá a balança se quiseres minha oitava)

- Gam matim hã (Não tenho balança); Có huhema name (Deite neste papel)

(...)

- Hum ehibê (Ando com sangue)

- Sòhá màpom (Mostra para ver)

- Humcu hunham (Eu tenho vergonha)

- Humbê (Não quero)

- He hunihê (Aqui está)

- Nhimagerou napom gumtho hé hã (Eu não quero ver o teu sangue) (Peixoto, 1741Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora)., f. 39, 40 e 41)

CONCLUSÃO. IMPORTÂNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Em cada lugar, época ou situação houve possibilidades distintas para a experiência dialógica dos africanos e descendentes, e sua participação em comunidades linguísticas. Kittiya Lee (2005LIBBY, Douglas Cole. As populações escravas das Minas Setecentistas: um balanço preliminar. In: RESENDE, Maria Efigênia; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.) As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. v.1, p.407-438., p.59) sugere uma forma de entender as relações entre as diferentes populações em contato no período colonial: ao invés de considerar os grupos e suas origens, de forma estanque e às vezes essencializada, buscar suas articulações em torno das comunidades de fala. Sob a diversidade multifacetada, que dificilmente cabe nas categorias de “índios”, “europeus” ou “africanos”, havia a experiência comum de construir novos caminhos para ouvir, falar, ser entendido e se fazer entender. No caso da língua mina, as atividades mineradoras e uma particular conjuntura do tráfico criaram uma concentração de escravizados oriundos de uma vasta região da Baía do Benim identificada como uma “área gbe” (Silva Jr., 2017, p.7; Parés, 2016PEREIRA, Alexandra. Um mercador de Vila Rica: atividade mercantil na sociedade do ouro (1737-1738). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora, 2008., p.43; Soares, 2011VENANCIO, Renato. Migração e alfabetização em Mariana colonial. In: SILVA, Rosa Mattos e (Org.) Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas, 2001. p.391-400., p.14), comum a povos que se entendiam como distintos. Outros contextos históricos propiciaram concentrações semelhantes. O quimbundo foi uma língua presente em diferentes regiões do Brasil (Mendonça, 1973NUNES, José Horta. Dicionários no Brasil: análise e história do século XVI ao XIX. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp, 2006.). Robert Slenes (1992SOARES, Mariza. Os devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.), ao enfatizar a necessidade de considerar as culturas africanas no estudo da escravidão no Brasil, identifica como uma comunidade de palavra foi possibilitada pela proximidade entre algumas das línguas da família banto, na produção cafeeira do Vale do Paraíba. O nagô, no Recôncavo Baiano, nas primeiras décadas do século XIX, teve papel igualmente forte, também chamado, em registros históricos, de língua geral. A observação de especificidades é portanto um pressuposto fundamental para as investigações que envolvem a história linguística. Diferentes pesquisas (por exemplo Almeida, 2012ALMEIDA, Marcos Abreu de. Ladinos e boçais: o regime de línguas do contrabando de africanos (1831-c.1850). Dissertação (Mestrado em História) - IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, 2012.) vêm mostrando a inconsistência do célebre estereótipo de uma incomunicabilidade africana, a que estariam fadados pela diversidade de línguas, ou por uma imaginária e nunca referenciada política senhorial de diversificação étnica nas suas propriedades (Lima, 2017LIMA, Ivana Stolze. Africanos no Rio de Janeiro, entre fronteiras e práticas de comunicação. In: LIMA, Ivana Stolze; CARMO, Laura do (Org.) História social da língua nacional 2: diáspora africana. Rio de Janeiro: Faperj; Nau, 2014. p.229-248.a).

Esse cuidado com a especificidade impõe uma adequada periodização e localização da difusão do português. A partir da segunda metade do século XVIII, em um processo que se acentuou com a formação do Estado nacional após a Independência, a língua portuguesa se consolidou, levando a formas já distintas de inserção dos falantes de línguas africanas. A relação com as histórias dos grupos indígenas é igualmente pertinente, e os africanos também usaram línguas gerais tupis (Bessa-Freire, 2004). O repertório de línguas para a comunicação dependeria de seu peso demográfico, mas nem por isso as línguas minoritárias foram menos decisivas. Muitos não falavam uma língua só. A língua falada na praça podia ser diferente da língua falada nos matos. A da casa senhorial, diferente da usada na rua. A historiografia da escravidão, nas últimas décadas, produzida a partir de uma ampla gama de acervos, está cheia de exemplos dessas distintas situações. No quilombo do Piolho, Capitania do Mato Grosso, os índios teriam aprendido, com os negros, um pouco de português, além da doutrina cristã, como mostra o estudo de Gomes sobre quilombos e mocambos da América Portuguesa (Gomes, 2005LARA, Sílvia. Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica nas Minas Gerais de meados do século XVIII. In: BASTOS, Cristiana; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.) Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa: ICS, 2002. p.205-226., p.361).

Voltemos à voz de Rita, essa figura que aqui simboliza a comunicação africana, sob o texto de Peixoto. Aqui se propôs uma determinada leitura de um documento precioso e multifacetado. Sob o domínio senhorial que também se manifesta no texto (Lara, 2002_______. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. Tese (Titularidade) - IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, 2008.) e sob o que definimos acima como a perspectiva senhorial e/ou missionária da comunicação com africanos, busquei mostrar o não, da parte das mulheres africanas.

- Name ayó dim beré su nánauhé aquhé (Dá-me agora o cono e qualquer dia te darei ouro)

- Nhi maná ayóde aihohã (Eu não dou o meu cono fiado)

- Nhi matim aquhé dim hã (Eu não tenho agora ouro)

- Mé matim aquhé má ho hayô há (Quem não tem ouro não fode) (Peixoto, 1741Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora)., p.39-41)

FONTES

  • Alguns apontamentos da lingoa minna com as palavras portuguezas correspondentes. Por Antônio Da Costa Peixoto em 1731. (Biblioteca Nacional de Lisboa, seção de reservados).
  • Obra Nova da Lingua Geral de Mina. Por Antônio da Costa Peixoto, 1741. (Biblioteca Pública de Évora).

Impressas

  • PEIXOTO, Antônio da Costa. Obra nova da língua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora. Publicado e apresentado por Luís Silveira. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944. 36p.
  • PEIXOTO, Antônio da Costa. Obra nova da língua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora e da Biblioteca Nacional de Lisboa. Publicado e apresentado por Luís Silveira. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1945. 66p.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Marcos Abreu de. Ladinos e boçais: o regime de línguas do contrabando de africanos (1831-c.1850). Dissertação (Mestrado em História) - IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, 2012.
  • ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967.
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    » http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a53-faraujo.pdf
  • AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. Unicamp, 2009.
  • AVELAR, Juanito Ornellas; LÓPEZ, Laura Álvarez (Org.) Dinâmicas afro-latinas: língua(s) e história(s). Frankfurt: Peter Lang Verlag, 2015.
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  • BESSA-FREIRE, José Ribamar. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.
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  • BOXER, Charles. Idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. 2.ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1969.
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  • 1
    Agradeço os comentários, críticas e sugestões de: Marcelo Araujo (Ibram), Roquinaldo Ferreira, Carlos Almeida, João José Reis e participantes da linha “Escravidão e invenção da liberdade” (UFBA), Jaime Rodrigues, Silvia Lara, pareceristas anônimos, e a colaboração das bolsistas Pibic/CNPq Rafaela Vasconcelos, Maria Elisa Scovino, Cristiane Elias e Juliana Santos de Lima. Agradeço, também, a dedicação dos responsáveis pelos arquivos consultados, especialmente Suely Perucci, Carmem Lemos e Carlos José Aparecido de Oliveira. A autora é pesquisadora do CNPq.
  • 2
    Ações cíveis (Crédito). 1754. Caixa 215 documento 3270; Ações cíveis (Alma). 1755. Caixa 272. Documento 5359. (AHMI). Testamento de Costa Peixoto: sala 20, prateleira L, Livro de óbitos de Casa Branca, Óbitos 1758-1816, Livro 03, fls. 40v-42v (AEAM).
  • 3
    Vale esclarecer que a história social das línguas pode contribuir com interrogações mais próprias da historiografia linguística, que tem aparatos teórico-metodológicos específicos para tratar dos códigos ou sistemas linguísticos em si, seus contatos e mudanças. Ver, por exemplo, os estudos reunidos por AVELAR & LÓPEZ (2015AVELAR, Juanito Ornellas; LÓPEZ, Laura Álvarez (Org.) Dinâmicas afro-latinas: língua(s) e história(s). Frankfurt: Peter Lang Verlag, 2015.), bem como diversos trabalhos de Tania Alkmim, Dante Lucchesi, Yeda Pessoa de Castro, Charlotte Galves e os citados na bibliografia.
  • 4
    Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II acerca do recrutamento de catequistas entre os negros forros da Bahia para doutrinar os negros da Costa da Mina. Lisboa, 23 fev. 1701. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 3, Doc. 314.
  • 5
    PRICE (1996) sugere o potencial de comunicação dos quilombolas ao comparar Palmares às comunidades de escravos fugitivos do Suriname, os Saramacas, que por terem sobrevivido por séculos, chegaram a formar uma língua própria (1996). LARA (2008) também inspira essa formulação, ao mostrar que os línguas (intérpretes) foram agentes frequentes e necessários dos acordos de paz, sendo esse um dos elementos do reconhecimento de sua soberania.
  • 6
    Outros indícios na trajetória pessoal e profissional de Antônio da Costa Peixoto apontam sua disposição para compartilhar espaços de sociabilidade e comunicação com africanos falantes de mina, tema que venho pesquisando e que será objeto de outro artigo. O único trabalho localizado sobre Peixoto é o de ARAÚJO (2013ARAÚJO, Fernando. Fome de ouro e fama da obra. Antonio Costa Peixoto e a Obra Nova de Lingoa Geral Mina. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a53-faraujo.pdf ; acesso em: 20 abr. 2014.
    http://www.antropologia.com.br/arti/cola...
    ), que identificou seu testamento e uma denúncia de moradores acusando-o de andar em tavernas com negros e negras.
  • 7
    De acordo com as estimativas do Slave Trade Database, entre 1701 e 1750, selecionando as regiões de embarque Costa do Barlavento, Costa do Ouro, Golfo do Benim e Golfo de Biafra, desembarcam no Brasil 402 mil africanos. Selecionando apenas o Golfo do Benim, são 320 mil (Disponível em: www.slavevoyages.org; acesso em: maio 2017). Parte significativa desse contingente era dirigida à área de mineração (RIBEIRO, 2008). Libby estima em 100 mil a população escrava na Capitania de Minas Gerais em meados do século XVIII. As vilas de Ribeirão do Carmo (Mariana) e Ouro Preto detêm quase a metade desse número (LIBBY, 2007, p.412). A dimensão da população livre seria bem inferior, estimada em 40 mil. Entre a população escrava a tendência foi de preponderância africana até a década de 1780. Dentre os africanos, os oriundos da Costa da Mina formaram o maior grupo individual, atingindo grande proporção em algumas localidades (LIBBY, 2007, p.413, 416, 431).
  • 8
    CAPO (1988) explica que as línguas do grupo Gbe, em um contínuo linguístico, com cerca de 50 denominações e variantes, se compõem tanto por equivalências como por particularidades lexicais. Ao mesmo tempo que existem diferenças de cunho linguístico, simbólico e político, há um contínuo. Chega-se a falar de uma única língua, embora esse nível não seja percebido pelos falantes.
  • 9
    O conceito de língua geral tem várias definições na linguística atual. RODRIGUES (1996) define um recorte analítico específico para as línguas gerais indígenas nas áreas de colonização portuguesa, mas observa que em muitos documentos históricos, língua geral queria dizer simplesmente uma língua amplamente falada. Em BARROS (2003BARROS, Maria Cândida D. M. Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVII-XVIII). In: BESSA-FREIRE, José Ribamar.; ROSA, Maria Carlota (Org.) Línguas gerais: política linguística e catequese na América do Sul no período colonial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003. p.85-112.), o conceito de língua geral é usado para línguas que serviram ao contato intercultural, ao comércio e à colonização.
  • 10
    Estatutos da Congregação dos pretos minas Maki no Rio de Janeiro (1786). BNRJ, seção de Manuscritos, 9, 3, 11. Grifo nosso. Esse documento constitui a base da obra de SOARES (2000).
  • 11
    Registro de Batismo de 25 jul. 1756. Códice 493, fl.135v (AENSP). Uma parte desse registro foi citada por MAIA, 2013.
  • 12
    Governador Assumar ao Rei. Vila do Carmo 4 out. 1719. Registro de alvarás, ordens, cartas régias e ofícios dos Governadores ao Rei. SC-04 (APM).
  • 13
    Para melhor apresentar os conteúdos, as citações reordenaram alguns dos itens do manuscrito, eventualmente deslocando pequenos trechos e diálogos, sem utilização de aspas em benefício de maior clareza gráfica. As referências foram sempre indicadas.
  • 14
    Solicitação de determinação de horário de funcionamento das tavernas. CMOP, Cx. 18, doc. 44, 27 abr. 1746. (APM).
  • 15
    Se incluirmos nesse questionamento o período de formação do Estado nacional, marcado pela urbanização, pela complexificação social e pela expansão da cultura escrita de forma mais ampla, e se considerarmos não exatamente os escravos, mas os seus descendentes que conseguiram a liberdade, esse número é ainda mais representativo. Afinal, como explicar que alguns dos mais importantes homens de letras do Oitocentos, desde escritores e publicistas a personagens menos célebres, como professores, tipógrafos, profissionais diversos e curadores, eram filhos, netos ou bisnetos de escravos? (LIMA, 2014, p.243).
  • 16
    Ações cíveis. Subtipo Crédito. 1754. Caixa 215 documento 3270; Ações cíveis. Subtipo Alma. 1755. Caixa 272. Documento 5359 (AHMI).
  • 17
    Devassas. 1º Ofício. Feridas que se dera em Bernarda do Espírito Santo. Códice 449, auto 9471, f. 6 e 6v. (AHMI).
  • 18
    Registros Paroquiais. Livro/Assento de Batismo de Escravos. Códice 491, 60v. (AENSP).
  • 19
    Relação de nomes de moradores de Santo Antônio da Casa Branca, com os respectivos foros devidos. CMOP, Cx. 88, Doc. 74, fl. 1. (APM). As buscas nos registros de batismos, óbitos e inventários ainda não permitiram localizar indícios das suas outras mulheres e filhos.
  • Obs.: As demais fontes manuscritas foram referenciadas nas notas. Principais acervos consultados e abreviaturas: Arquivo Público Mineiro (APM), Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI), Arquivo Eclesial de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto (AENSP), Arquivo Eclesial da Arquidiocese de Mariana (AEAM), Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2018
  • Aceito
    19 Jun 2018
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