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Os negros d’água do rio Ribeira de Iguape: mito e história numa narrativa elaborada por comunidades negras do Vale do Ribeira

RESUMO

Este artigo aborda a importância das águas do rio Ribeira de Iguape para a história do Vale do Ribeira. Suas águas foram exploradas desde o século XVI, quando da sua foz partiam expedições em busca de metais. Posteriormente, metais preciosos foram descobertos no Alto e no Médio Vale, onde se estabeleceram arraiais mineradores. No final do século XVIII, a mineração entrou em decadência e cultivou-se o arroz em escala comercial. A lavoura acompanhava o leito do rio e dos seus afluentes, já que as águas garantiam a fertilidade dos solos, energia para mover engenhos d’água e local de atraque para as canoas. Entre os séculos XVII e XIX, muitos africanos trabalharam nas minas e lavouras do Ribeira. Dentre seus mitos e crenças, destacaremos os negros d’água, analisados na perspectiva atlântica, ou seja, entendendo as formações culturais criadas em solo americano como elaboradas no encontro de povos diversos, postos em contato sob o escravismo e possuidores de diferentes visões de mundo.

Palavras-chave:
remanescentes de quilombo; Vale do Ribeira; cultura popular

ABSTRACT

This article addresses the importance of the waters of the Ribeira River to the Ribeira Valley’s history. Its waters have been explored since the sixteenth century, when expeditions were launched from its mouth in search of metals. Precious metals were subsequently discovered along the upper and middle courses of the river, where mining camps were established. In the late eighteenth century, mining went into decline and rice began to be cultivated on a commercial scale. The rice fields followed the courses of the Ribeira River and its tributaries, with the waters ensuring the fertility of soils and proving energy to run water mill and places to moor canoes. Between the seventeenth and nineteenth centuries, many Africans worked in the mines and plantations of the Ribeira. Among their myths and beliefs, the article highlights the negros d’água, analysed from an Atlantic perspective, that is, understanding the cultural formations created on American soil as elaborations that emerged from the meeting of diverse peoples, possessing different worldviews and brought into contact under slavery.

Keywords:
former quilombos; Ribeira Valley; popular culture

A água é imprescindível para a conservação da vida. Como o ser humano tem necessidade de dotar de sentido o mundo ao seu redor, a água, além de uma dimensão material, também tem uma dimensão simbólica. Como ressaltou Queiroz, “a água encontra franco acolhimento no imaginário de todos os povos” (Queiroz, 2006QUEIROZ, Renato da S. Caminhos que andam: os rios e a cultura brasileira. In: REBOUÇAS, Aldo da C.; BRAGA, Benedito; TUNDISI, José G. (org.). Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. 3. ed. São Paulo: Escrituras, 2006., p. 721).

Nas águas brasileiras, europeus, africanos e indígenas inscreveram e mesclaram suas crenças e mitos. Assim, temos no Brasil uma extensa mitologia das águas, abrangendo mitos relacionados aos mares, rios, lagos, fontes e à chuva.

Um dos primeiros seres aquáticos descritos pelos cronistas coloniais foi o Ipupiara. Em 1560, José de Anchieta relatou que o Ipupiara era um monstro marinho que morava nas águas e matava os indígenas. Na segunda metade do século XVI, também há menção ao Ipupiara nos escritos de Gândavo e Gabriel Soares de Souza (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 459-460).

Outro mito indígena é o da serpente d’água Boiuna, também chamada de Mãe d’água ou Cobra Grande. Para Cascudo, a aterradora “mãe d’água Boiuna é a dona das águas do rio” e o mito mais poderoso e complexo das águas amazônicas (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 173-174).

Os povos africanos também contribuíram para as mitologias das águas existentes no Brasil. Quanto aos africanos oriundos da Costa da Guiné, Arthur Ramos frisou os orixás do complexo cultural jeje-iorubano: Olokum (deus do mar), Oloxá (deusa dos lagos), Oiá, Oxum e Obá (Ramos, 2007RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007., p. 12). Nina Rodrigues ressaltou que, no Brasil, na falta do rio Oxum, a orixá Oxum converteu-se na divindade das fontes e regatos. Na falta do rio Oiá, a orixá Oiá transformou-se na deusa das tempestades e tormentas (Rodrigues, 2004RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Ed. UnB, 2004., p. 255). Ainda temos uma deusa das chuvas, Nanã, a mais velha das deusas das águas africana (Carneiro, 1936CARNEIRO, Edison. Religiões negras: notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936., p. 47). Enquanto Oxum é a divindade das águas doces, Iemanjá, a mais prestigiada entidade feminina dos candomblés da Bahia, é a deusa das águas salgadas (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 448). Quanto à contribuição dos povos da África Centro-Ocidental à mitologia das águas brasileiras, destaca-se o culto aos “espíritos das águas”.

Os portugueses também colaboraram com a mitologia das águas brasileiras. Como ressaltou Cascudo, “os portugueses, homens do mar, possuíam a tradição das lendas marítimas, de tritões, sereias e animais fabulosos” (Cascudo, 2002CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002., p. 147).

Em muitos mitos brasileiros, não é possível identificar uma matriz cultural predominante. Esse é o caso do mito do João Galafuz (Pernambuco), ou João Galafoice (Alagoas), ou Juan de la Foice (Sergipe), descrito como um duende marinho que, com um facho luminoso, em certas noites, emerge das ondas e prenuncia tempestades e naufrágios (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 482).

Há outros mitos muito conhecidos, como o boto, na Amazônia, e o negro d’água, no Centro-Oeste. O boto é um animal sedutor que se transforma num rapaz bonito e, nas primeiras horas da noite, seduz e engravida as moças ribeirinhas (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 181). O mito do negro d’água foi observado nos rios São Francisco, Paraná, Tocantins e Cuiabá. Também chamado de caboclo d’água, é um dos mitos mais conhecidos do vale do rio São Francisco (Pardal, 1974PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1974., p. 54). A ele está associada a presença das carrancas, figuras esculpidas nas proas das embarcações. Segundo Joaquim Ribeiro, “dizem os pescadores que essas carrancas conjuram os malefícios do caboclo d’água, entidade mítica do rio” (Pardal, 1974PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1974., p. 70).

José A. Teixeira coletou esta versão do negro d’água: “habita as margens dos rios que correm pelo vão do Paraná. É todo preto. Cabeça pelada. Mãos e Pés de pato. Aparece entre pedras, à tardinha ou em noites de luar, a canoeiros e pescadores do Tocantins e seus afluentes. E procura virar a canoa” (citado em Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 210).

No Vale do Ribeira, foram coletados relatos nos quais os negros d’água apresentavam características semelhantes às aqui descritas. Elaborado pelas comunidades negras que há centenas de anos habitam a região do rio Ribeira de Iguape, o objetivo deste artigo é analisar as possíveis matrizes culturais e os sentidos do mito do negro d’água.

A OCUPAÇÃO DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE

O Vale do Ribeira é um corredor natural que liga o continente ao litoral. Percorrer o rio Ribeira de Iguape é uma das formas de transpor a Serra do Mar. No topo de uma de suas serras - a Serra de Paranapiacaba - localizam-se as nascentes desse rio que deságua no Atlântico após correr 520 quilômetros ao longo da Serra do Mar.

As águas ocupam papel central na história do Vale do Ribeira. A presença de sambaquis fluviais na região sinaliza a importância do Ribeira para as populações que ocuparam a região há milhares de anos. Na época da chegada dos europeus, no século XVI, o litoral da Baixada do Ribeira era habitado pelos povos Guaianá, e ao sul de Cananeia viviam os povos Guarani.

As águas do Ribeira foram atravessadas pelos portugueses desde o início da colonização. Portugal tinha esperança de, assim como a Espanha, achar vultosas riquezas. Das proximidades da foz do Ribeira partiam expedições que revolviam suas águas, explorando as matas e subindo as escarpas da Serra de Paranapiacaba. No final do século XVI descobriu-se ouro nas proximidades das suas nascentes, no atual município de Apiaí. Pelo Ribeira e seus afluentes, expedições exploraram pedregulhos, águas e areias e, assim, acharam ouro em veios, leitos, cascalhos e corredeiras (Mancebo, 2001MANCEBO, Oswald. Apiaí: do sertão à civilização. São Paulo: Ômega, 2001., p. 16-17). Formaram-se arraiais mineradores no Alto Ribeira (atual município de Apiaí) e no Médio Ribeira (atuais municípios de Eldorado e Iporanga), e o trabalho nas minas era feito por mão de obra escrava. Entre os séculos XVII e XVIII, africanos foram introduzidos na região para o trabalho nas minas. Em menor escala, indígenas também trabalharam compulsoriamente nas minas (Paes, 2007PAES, Gabriela Segarra M. A Recomendação das Almas na Comunidade Remanescente de Quilombo de Pedro Cubas. 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2007., p. 32-34).

As minas de ouro da região do Vale do Ribeira esgotaram-se no final do século XVIII, levando à extinção dos arraiais mineradores. Muitos proprietários de cativos partiram em busca de oportunidades mais promissoras em outras regiões, mas, para aqueles empobrecidos, a manutenção de cativos tornou-se extremamente onerosa. Escravizados foram alforriados ou fugiram da escravidão e, assim, transformaram-se em camponeses livres. Porém, uma parte dos proprietários permaneceu na região e alocou seus recursos (terra, água e cativos) na nova atividade econômica que, a partir do final do século XVIII, começava a ganhar vigor - a produção de arroz em escala comercial. Uma nova dinâmica populacional emergiu no Médio Ribeira. Numa vasta região, passaram a coexistir propriedades com cativos e núcleos de negros livres.

No século XIX, o cultivo de arroz foi a principal atividade econômica na região de Xiririca (antigo nome do atual município de Eldorado) e Iguape (foz do rio Ribeira). Os solos que ofereciam melhores possibilidades localizavam-se nas áreas inundáveis, pois eram conservados pelas cheias (Petrone, 1966PETRONE, Pasquale. A Baixada do Ribeira: estudo de geografia humana. São Paulo: FFLCH/USP. Boletim n. 283 (Cadeira de Geografia n. 14), 1966., p. 37-38), o que fez o espaço agrário seguir o leito dos rios. Além de garantirem a fertilidade e o transporte, as águas dos rios desempenhavam papel fundamental no processo produtivo, pois sua força fornecia a energia necessária para mover os engenhos d’água que processavam o arroz.

Os camponeses negros da região do Médio Ribeira também cultivavam e vendiam arroz. Eles desbravaram áreas florestadas, num processo de interiorização orientado pelos rios (Paes, 2014PAES, Gabriela Segarra M. Ventura e desventura no rio Ribeira de Iguape. 2014. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2014., p. 62). A população negra espalhava-se na imensidão da floresta na busca contínua por novas terras. Mudanças significativas surgiram a partir dos anos 1950. Parques estaduais e áreas de preservação ambiental foram implantados, haja vista que os maiores remanescentes de Mata Atlântica do estado de São Paulo concentravam-se (e ainda se concentram) no Vale do Ribeira. A região também possuía muitas terras devolutas (terras não tituladas, portanto, pertencentes ao Estado), fato que favoreceu a implantação pelo governo de áreas de preservação ambiental. Contudo, apesar de as terras serem devolutas, não eram desabitadas.

Outro problema enfrentado pelos moradores da região foi a ameaça de serem impactados pela construção de barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape. Desde os anos 1930 elas são tema de debate, mas a discussão intensificou-se na década de 1980.

Os camponeses negros do Médio Ribeira mobilizaram-se conjuntamente contra as adversidades e se autoidentificaram como quilombolas, lutando assim para garantir a propriedade definitiva de suas terras, como a Constituição Federal de 1988 passou a assegurar. Os bairros negros do Médio Ribeira (re­gião que se estende entre os rios Pilões, no município de Iporanga, e Pedro Cubas, no município de Eldorado) originaram as comunidades remanescentes de quilombo de Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Sapatu, Nhunguara, São Pedro, Galvão, Ivaporunduva, André Lopes, Pilões e Maria Rosa.

Em 1994, representantes das comunidades negras da região pleitearam o reconhecimento e a titulação de suas terras junto à Justiça Federal de São Paulo. A partir desse momento, intensificaram-se os contatos entre os diferentes órgãos do Estado e as comunidades negras.

NEGROS D’ÁGUA NAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO DE ELDORADO E IPORANGA

Atualmente, moradores mais velhos das comunidades remanescentes de quilombos de Eldorado e Iporanga afirmam que o rio Ribeira serve de morada para muitos seres encantados. Eles sublinham que “tudo que tem na terra, tem na água”. Como exemplo, citam a presença no rio Ribeira dos inofensivos bois d’água, vacas d’água, cachorros d’água e cavalos d’água. Também habita suas águas um ser perigoso - a mãe d’água.1 1 A presença do mito da mãe d’água entre povos indígenas em várias regiões do Brasil permite depreender que na região do rio Ribeira esse mito tenha sido uma contribuição dos povos indígenas. Relatos orais e documentos apontam para a presença de povos indígenas na região até, pelo menos, meados do século XIX (PAES, 2007, p. 33-34). Esses povos conviveram com outros, como os africanos e seus descendentes, e contribuíram com as narrativas míticas locais. Os povos indígenas miscigenaram-se com outros, realizaram trocas culturais e deixaram um importante legado, especialmente quanto às técnicas de pesca, a agricultura itinerante e a toponímia regional (OLIVEIRA JUNIOR et al., 2000, p. 61). Porém, os entes mais lembrados são os negros d’água.

Muitos quilombolas afirmaram que já viram negros d’água no rio Ribeira.2 2 As informações referentes aos negros d’água foram obtidas mediante entrevistas por mim realizadas com os moradores das Comunidades Remanescentes de Quilombo de Eldorado e Iporanga entre os anos de 2001 e 2008. Declararam que eles andam sumidos, mas sustentaram que eram muito presentes há alguns anos. Os informantes atuais concordaram quanto à cor da pele (“bem pretinho”) e dos dentes (“bem branquinho”). Também concordaram quanto à estatura (baixa). Divergiram quanto ao cabelo - em alguns relatos, o cabelo era definido como “muito seco” e, em outros, os negros d’água foram descritos como possuidores de uma “cabeça pelada”. Também não há consenso quanto aos pés. Para a maioria dos informantes, seus pés eram normais, no entanto, alguns relataram que eles possuíam pés de pato, aspecto também destacado pela pesquisadora Rosana Mirales. Em entrevistas realizadas na região, foi dito a essa pesquisadora que, na época da escravidão, os negros d’água eram colocados “em tanques, para que se adaptassem ao mundo da terra. Ali tinham as mãos e os pés cortados com navalhas, uma vez que eram como os de patos” (Mirales, 1998MIRALES, Rosana. A identidade quilombola das comunidades Pedro Cubas e Ivaporunduva. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica (PUC). São Paulo, 1998., p. 73).

Segundo relatos dos quilombolas de Eldorado e Iporanga, os negros d’água viravam canoas que trafegavam pelo rio. Isso exigia que os canoeiros ficassem atentos. Assim que avistavam as mãos dos negros d’água tocando a canoa, os canoeiros cortavam os dedos dos negros d’água com um facão ou com o remo. Alguns achavam que, com exceção de virar as canoas, os negros d’água não ofereciam perigo. Muitos sublinharam o seu espírito brincalhão e relataram que eles faziam gracejos para as pessoas da terra. No entanto, outros afirmaram que os negros d’água gostavam de fazer maldade. Alguns disseram que eles encantavam as mulheres e as levavam para viver com eles no fundo dos rios. Outros acreditavam que eles matavam os homens e comiam as crianças. Os relatos eram coincidentes quanto ao local de moradia dos negros d’água (poços fundos e revessas). Muitos destacaram que, na realidade, eles moravam nas grutas existentes no fundo dos rios, onde era seco.

Embora morassem no fundo do rio, muitas vezes aproximavam-se das suas margens. Eram vistos sentados ou próximo das pedras existentes no rio. Esses momentos eram perigosos, pois tanto os negros d’água podiam capturar as pessoas da terra e levá-las para o fundo do rio, como podiam ser capturados pelas pessoas da terra. A captura de negros d’água era realizada com redes, tarrafas, laços e cordas. Muitos deles foram sequestrados e passaram a viver na terra. Tiveram de ser amansados e, para isso, deram-lhes comida com sal, desconhecida por eles. Esses negros acabaram se adaptando à vida na terra, aprenderam a língua, casaram-se com pessoas da terra e tiveram filhos. Desse modo, muitos dos atuais habitantes das comunidades quilombolas de Eldorado e Iporanga afirmaram descender de “nação de negros d’água”.

Rosana Mirales detalhou como o corpo era adaptado para sobreviver num mundo diferente do original. Assim, quando o negro d’água transportava uma pessoa da terra, “para que a pessoa que está sendo levada para o outro mundo não morra, o negro da água a coloca nas costas, e, ao se locomover no interior da água, forma em sua coluna vertebral um canal de ar, de maneira que, quem está sendo carregado, não se afoga” (Mirales, 1998MIRALES, Rosana. A identidade quilombola das comunidades Pedro Cubas e Ivaporunduva. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica (PUC). São Paulo, 1998., p. 74). O negro d’água não se afogava porque possuía uma pedra no estômago, a qual permitia que sobrevivesse na água. No entanto, a mesma pedra transformava-se em veneno na terra e, para expeli-la, o negro d’água deveria comer sal (Mirales, 1998MIRALES, Rosana. A identidade quilombola das comunidades Pedro Cubas e Ivaporunduva. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica (PUC). São Paulo, 1998., p. 72).

Há muitos relatos de negros d’água que foram capturados. Em Ivaporunduva, contam um fato ocorrido há muitos anos durante a festa de Santa Cruz, comemorada no dia 3 de maio e com duração de aproximadamente 3 dias. Nesses dias, Ivaporunduva recebia muitos visitantes vindos de lugares distantes. Além das atividades lúdicas, as pessoas participavam das atividades religiosas organizadas por um vigário. As pessoas confessavam, comungavam e faziam novena. Num dos dias da festa, alguns homens foram pescar. Lançaram a rede e, ao puxá-la, além dos peixes, havia um menino. Era um negro d’água. Arisco, o negro d’água foi amarrado e levado ao local da festa. Ele foi vestido e, em seguida, batizado pelo vigário. Passou a ser chamado Inácio Marinho. Deram-lhe comida com sal e, assim, aos poucos, foi amansado. Tempos depois, casou-se e teve filhos. Muitos dos seus descendentes vivem, atualmente, na região e carregam o seu sobrenome, Marinho.

Outro negro d’água, cujos nome e sobrenome ainda são muito lembrados, chamava-se Gregório Marinho. Há muitos anos, ao passear pela superfície do rio na região de Pedro Cubas, o negro d’água encantou-se com uma escravizada que vivia na localidade. Também encantada pelo negro d’água, a escravizada incentivava as vindas do seu admirador. Planejando capturá-lo, ela passou a preparar comida com sal, sem que o negro d’água desconfiasse. Aos poucos, ele foi amansando. Um dia, a negra pediu auxílio para outras pessoas e, assim, o negro d’água foi capturado. Construiu-se um tanque na terra para que ele conseguisse sobreviver. Como o negro d’água não tinha nome, passou a ser chamado de Gregório Marinho. A cativa e o negro d’água constituíram família. Atualmente, muitos quilombolas de Pedro Cubas afirmam descender desse casal.

Documentos históricos mostram que, realmente, existiu um Inácio Marinho em Ivaporunduva e um Gregório Marinho em Pedro Cubas em meados do século XIX. Existiram e possuíram terras, as quais foram registradas pelo pároco de Xiririca. Outros Marinhos estão presentes no Registro de Terras de Xiririca (Paes, 2014PAES, Gabriela Segarra M. Ventura e desventura no rio Ribeira de Iguape. 2014. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2014., p. 80).

A presença dos Marinhos históricos (Inácio e Gregório), captados pela documentação, e dos míticos, lembrados pela população local, apontam a importância desses personagens para a localidade e também sinalizam o enraizamento da crença nos negros d’água.

O RIO RIBEIRA, O RIO CUANZA E A ESCRAVIDÃO

Entre os séculos XVII e XIX o Vale do Ribeira recebeu africanos. Primeiramente, foram enviados às minas. Num momento posterior, a lavoura arrozeira passou a ser o seu principal destino.

Os comerciantes do Vale do Ribeira buscavam os cativos no Rio de Janeiro. Grande número de africanos procedia da África Centro-Ocidental, é o que mostram os Maços de População de Xiririca para o ano de 1806. Apesar de a maioria dos escravizados dessa localidade ser nascida no Brasil, 32 cativos eram africanos. Desse total, 31 eram provenientes da África Centro-Ocidental (12 cativos oriundos de Angola, 18 de Benguela e um do Congo) (Paes, 2007PAES, Gabriela Segarra M. A Recomendação das Almas na Comunidade Remanescente de Quilombo de Pedro Cubas. 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2007., p. 35). A procedência dos cativos de Xiririca no começo do século XIX confirma os dados obtidos por Robert Slenes, segundo os quais, nesse período, a maioria dos escravizados do Centro-Sul brasileiro era oriunda da África Centro-Ocidental (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 55-56). Mesmo num período anterior, dada a intensidade e a relevância do comércio escravista na África Centro--Ocidental, a quantidade de africanos dessa região levados ao Vale do Ribeira parece ter sido expressiva.

Entre os séculos XVI e XIX, milhares de cativos oriundos da África Centro-Ocidental cruzaram o Atlântico e passaram a viver em vários locais na América. O contato entre Portugal e a África Centro-Ocidental foi iniciado no final do século XV com o envio do navegador português Diogo Cão pelo rei de Portugal ao estuário do rio Zaire (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 52). O expedicionário aportou na foz daquele rio, na Província de Soyo, pertencente ao Congo. Formado por um conjunto de províncias, o Congo abrangia uma extensa região da África Centro-Ocidental. Existiam grandes mercados regionais no reino, nos quais cativos eram comercializados (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 48).

Dado o aumento da demanda atlântica por cativos, Portugal voltou seus olhos para o Dongo, localizado ao sul do Congo (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 74-75). O Dongo, chefatura antes subordinada ao Congo, estendia-se do rio Bengo até a foz do rio Cuanza. A estratégia adotada por Portugal para garantir a aquisição de cativos foi o controle do rio Cuanza. Em 1575, nas proximidades da foz do rio, os portugueses fundaram a colônia de São Paulo de Loanda (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 74, 75, 103 e 124). Em seguida, foram edificadas três feitorias ao longo do Cuanza: Muxima, Massangano e Cambambe. Com o passar dos anos, foram erigidas novas feitorias lusitanas ao longo desse rio. Esse conjunto de feitorias portuguesas delineava o que passou a ser chamado de Angola.

Angola era vista como um grande reservatório de cativos (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 102). O Brasil despontava como colônia emergente, e a aquisição de escravizados para o Brasil passou a ser uma das prioridades da política portuguesa para Angola. Fundada no escravismo, a colonização portuguesa desenhou um espaço composto por uma área de produção escravista, localizada na América do Sul, e uma área de reprodução de cativos, centrada em Angola (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 9). Assim, Brasil e Angola, “duas partes unidas pelo oceano se completam num só sistema de exploração colonial” (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 9).

Angola e Brasil estavam tão entrelaçados que, quando os holandeses decidiram controlar a economia açucareira, as duas localidades entraram na sua mira. Em 1630 a Holanda conquistou Pernambuco, e em 1641 foi a vez de os holandeses desembarcarem em Luanda. Por sua vez, Portugal centrou esforços para restaurar a soberania sobre as duas colônias. Em 1654 os holandeses foram expulsos do território brasileiro. Antes disso, em 1647, Salvador Correa de Sá e Benevides comandara as forças militares que expulsaram os holandeses de Angola e promoveram a restauração portuguesa. Em seguida, ele assumiu o cargo de governador de Angola. Muito prestigiado na corte portuguesa, fazia parte do Conselho Ultramarino e possuía vínculo direto com o comércio escravista (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 41). Transitou por diversas posições dentro do Império português e, em 1658, foi nomeado para um novo cargo do outro lado do Atlântico, “Administrador das Minas”, com jurisdição sobre as capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo (Taques, 1954TAQUES, Pedro. Notícias das Minas de S. Paulo e dos sertões da mesma Capitania. São Paulo: Martins, 1954., p. 45).

As atividades de Salvador Correa de Sá e Benevides nos dois lados do Atlântico sugerem laços estreitos entre Angola e a mineração nas capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Note-se que, nessa época, em meados do século XVII, as minas além-Mantiqueira não tinham sido descobertas. O Vale do Ribeira era um dos locais de exploração aurífera. Assim, esses fatos apontam para Angola como um dos locais de embarque de muitos africanos que foram introduzidos na região do rio Ribeira.

No entanto, outras procedências também devem ser consideradas. No século XIX, período de exploração da lavoura arrozeira, cresceu o número de africanos em Xiririca e Iguape. Em Xiririca, os africanos passaram de 9% do total dos cativos, em 1801, para 29% em 1815. Em Iguape, entre os mesmos anos, os cativos africanos passaram de 8% para 30% do total de escravizados (Valentin, 2006VALENTIN, Agnaldo. Uma civilização do arroz: agricultura, comércio e subsistência no Vale do Ribeira (1800-1880). 2006. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2006., p. 167). Os africanos da região do rio Ribeira eram adquiridos no porto do Rio de Janeiro. A partir de 1808, cresceu o número de africanos provenientes da África Oriental nesse porto. A abertura dos portos brasileiros determinou o ­crescimento das importações oriundas do Índico. Ainda assim, a grande maioria dos tumbeiros que entraram no Rio de Janeiro partiam dos portos de Congo e Angola - oito em cada dez, entre os anos de 1795 e 1830 (Florentino, 2014FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Ed. Unesp, 2014., p. 83).

O número de africanos provenientes da África Centro-Ocidental no Sudeste brasileiro foi vultoso, no entanto, no Vale do Ribeira, possivelmente existiram muitos escravizados oriundos de outras regiões africanas.

O RIO RIBEIRA, O RIO CUANZA E OS ESPÍRITOS D’ÁGUAS

Na África Centro-Ocidental, os grupos etnolinguísticos tendiam a acompanhar os principais cursos de água (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 32). Dentre os grupos etnolinguísticos, merece destaque o dos Ambundo. Agricultores “sem qualquer motivação para se transformarem em guerreiros” (Parreira, 1997PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade em Angola na época da rainha Jinga, século XVII. Lisboa: Ed. Estampa, 1997., p. 181), possuíam o quimbundo como idioma (Parreira, 1997PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade em Angola na época da rainha Jinga, século XVII. Lisboa: Ed. Estampa, 1997., p. 161). Eles habitavam a região banhada pelo rio Cuanza, na área imediatamente ao norte do planalto de Benguela (Parreira, 1997PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade em Angola na época da rainha Jinga, século XVII. Lisboa: Ed. Estampa, 1997., p. 161) e possuíam este mito fundador: o mundo tinha começado quando os seus antepassados partiram da Kalunga, identificada como “a grande água”, e pararam nos vales e colinas habitados pelos seus descendentes (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 55, 59).

Os Ambundo organizavam-se em linhagens. Os chefes de linhagem veneravam uma insígnia chamada lunga, descrita por Miller como “uma relíquia sagrada que assume formas físicas variadas, mas, geralmente, tomou a forma de uma figurinha humana talhada em madeira” (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 59). Cada lunga “habitava” um rio ou lago, “sob os cuidados dum dignitário que era o único a conhecer o segredo da comunicação com as forças espirituais” (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 62). Uma insígnia era um objeto que estava associado a poderes sobrenaturais. Assim, os chefes das linhagens Ambundo, guardiões do lunga, intermediários entre os vivos e os mortos, eram os detentores do poder.

Havia uma rígida correspondência entre as posições lunga e a hidrografia do território (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 94). Os guardiões do lunga controlavam “as chuvas que caíam na bacia hidrográfica de qualquer ribeiro ou rio ocupado pelo seu lunga”, garantindo assim a fertilidade dos campos (Miller, 1995MILLER, Joseph C. Poder político e parentesco: os antigos estados mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Nacional/Ministério da Cultura, 1995., p. 62).

Ao pesquisar os Ambundo modernos, Miller observou a crença em numerosos “espíritos das águas” e afirmou que essa crença é amplamente sustentada em toda a África Central. Esse autor associou os “espíritos das águas” atuais aos antigos malunga (plural de lunga). Atualmente, muitos lagos e rios trazem o nome do espírito que abrigaram em tempos idos.

O missionário capuchinho Cavazzi, no século XVII, ao percorrer a região do rio Cuanza, observou a existência de vários altares e pequenas casas utilizadas em rituais de veneração ao rio (Cavazzi de Montecúccolo, 1965CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, Padre João Antonio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Trad., notas e índice pelo Padre Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. v. 1 e 2., v. 2, p. 129-130).

Chatelain, ao pesquisar os contos populares da região de Luanda no século XX, também frisou a importância dos “espíritos das águas”. Conforme coletado por esse pesquisador, Kianda era um gênio das águas e um dos espíritos mais populares da mitologia de Luanda (Chatelain, 1964CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola: cinquenta contos em quimbundo. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1964., p. 521).

Os “espíritos das águas” não eram importantes apenas para os Ambundo. Robert Slenes destacou a importância dos “espíritos das águas” para diversos povos da África Centro-Ocidental. Relatou que os Bacongo (falantes de quicongo) também acreditavam nos “espíritos das águas”, os quais eram chamados de simbi pelos Basundi, kiximbi pelos Bampangu e simbi ou kinda pelos Mayombe. Slenes ressaltou que os atributos de simbi / kiximbi / kinda entre todos esses grupos eram essencialmente os mesmos daqueles que Chatelain descreveu para o Kianda (Slenes, 2002SLENES, Robert. The Great Porpoise-Skull Strike. In: HEYWOOD, Linda M. (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press , 2002., p. 192).

Esses povos, que compartilhavam um conjunto de ideias acerca dos “espíritos das águas”, atravessaram o Atlântico e passaram a viver em várias localidades da América. Ao abordarem a travessia do Atlântico, os pesquisadores Mintz e Price destacaram que os africanos que aportaram na América foram retirados de diferentes regiões do continente africano, portanto, de numerosos grupos linguísticos e étnicos. Defenderam que, em razão dessa heterogeneidade, “os africanos que chegaram ao novo mundo não compuseram grupos logo de saída. Na realidade, na maioria dos casos, talvez fosse até mais exato vê-los como multidões, aliás multidões muito heterogêneas” (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 37). No entanto, apesar da heterogeneidade cultural, os africanos apresentavam princípios básicos amplamente compartilhados e existia uma “herança generalizada”, que foi fundamental para a criação de uma nova cultura em solo americano. Por isso, propunham a substituição da explicação das semelhanças formais pela comparação de pressupostos gerais (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 27-33).

Já Thornton afirmou que a diversidade cultural africana estava sendo exagerada (Thornton, 2000THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2000., p. 253-256). Com base na linguagem, afirmou ser possível dividir os escravizados que abasteceram o tráfico atlântico em apenas três zonas culturais: a Alta Guiné (estendia-se do rio Senegal até a área ao sul do Cabo Mount na atual Libéria), a Baixa Guiné (abrangia desde as lagoas da região ocidental da Costa do Marfim até Camarões) e a Costa de Angola (alongava-se até o Império Lunda na província Shaba, na atual República Democrática do Congo) (Thornton, 2000THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2000., p. 256-263). Além disso, cada unidade linguística não encerrava uma cultura inteiramente diferente. Tanto a proximidade geográfica quanto as relações comerciais criaram similaridades culturais em regiões diversas.

Considerando a grande quantidade de escravizados originários da África Centro-Ocidental introduzida no Vale do Ribeira, apoiando-nos em Thornton, podemos classificá-los como oriundos de uma grande zona cultural - a região de Angola. Ali, a grande maioria das pessoas falava quicongo ou quimbundo. Robert Slenes destacou que os escravizados procedentes da África Centro--Ocidental eram de origem banto e definiu esse termo como o nome genérico de um grande grupo linguístico, composto por línguas faladas por diferentes povos, aldeias, confederações e reinos da África Centro-Ocidental. A afinidade que unia esses povos extrapolava a língua, pois também compartilhavam pressupostos culturais básicos (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 57-58).

No caso do Vale do Ribeira, parece que existiu uma “herança generalizada” compartilhada pelos povos da África Centro-Ocidental que aportaram na região - a crença nos “espíritos das águas”. Os negros d’água da região do rio Ribeira assemelhavam-se aos “espíritos das águas” dos contos angolanos descritos por Héli Chatelain. Também apresentavam pontos em comum com os “espíritos das águas” descritos por Slenes, denominados simbi, kiximbi ou kinda.

Os negros d’água do rio Ribeira, assim como os “espíritos das águas” centro-africanos, apresentavam baixa estatura e viravam canoas. Outro ponto em comum é o local de moradia. Os negros d’água do rio Ribeira moravam em grutas de pedra existentes no fundo dos rios, mas também eram vistos em revessas, correntezas e poços profundos. Quanto aos “espíritos das águas” centro-africanos, MacGaffey destacou que eles habitavam pedras, poços, lagos e correntezas (MacGaffey, 2002MACGAFFEY, Wyatt. Twins, Simbi Spirits, and Lwas in Kongo and Haiti. In: HEYWOOD, Linda M. (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2002., p. 212). Slenes, baseando-se em Tuckey, assinalou que as pedras eram a peculiar residência dos seembi e, apoiando-se em Laman, frisou que eles moravam em grutas de pedra existentes no fundo das águas (Slenes, 2002SLENES, Robert. The Great Porpoise-Skull Strike. In: HEYWOOD, Linda M. (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press , 2002., p. 201).

Há, ainda, outro ponto em comum: o sequestro de mulheres. Os negros d’água da região do rio Ribeira sequestravam mulheres da terra, assim como o Kianda levou uma mulher para viver com ele no fundo do rio (Chatelain, 1964CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola: cinquenta contos em quimbundo. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1964., p. 249).

O mito dos negros d’água do rio Ribeira também pode estar relacionado com um pressuposto cultural amplamente compartilhado por centro-africanos, o “complexo ventura-desventura”. Conforme Marina de Mello e Souza, baseando-se em Fox, Craemer e Vansina, a ordem natural seria boa e desejável, assim, se a vida fluísse no seu curso natural, tudo transcorreria dentro da ventura, mas isso raramente acontecia, uma vez que forças maléficas desviavam-na de seu caminho (Souza, 2002SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da Festa da Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 70).

Relacionado ao “complexo ventura-desventura”, temos outro princípio básico centro-africano: uma cosmologia baseada na divisão entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, com particular ênfase na importância dos espíritos ancestrais (Sweet, 2003SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2003., p. 103). O mundo dos mortos podia interferir no mundo dos vivos, causando ventura ou desventura. Os espíritos ancestrais esperavam ser homenageados pelos seus parentes vivos, pois eram as oferendas que garantiam sua potência no além. Em retribuição, protegeriam seus descendentes do mal, intervindo no dia a dia da comunidade. Por exemplo, ajudariam os caçadores na floresta e as mulheres no momento do parto. Esses dois mundos, dos vivos e dos mortos, eram separados por um grande volume de água (Sweet, 2003SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2003., p. 104).

Thompson ressaltou que o mundo, na cultura “kongo”,3 3 Considerando que grande parte dos africanos oriundos da África Centro-Ocidental possuía uma cultura menos particularista do que frequentemente se supõe (SLENES, 1991/1992, p. 58), que foram socializados na cultura “kongo” ou em culturas relacionadas (SLENES, 1991/1992, p. 55-56) e que “Kongos” e “Angolas” que vieram para a América compartilhavam muitas crenças e línguas (THOMPSON, 1984, p. 104), ao abordarmos a cultura “kongo” estaremos tratando-a como paradigmática para uma extensa região da África Centro-Ocidental. é apreendido segundo o “cosmograma kongo”. Graficamente, pode ser representado por uma cruz (+), cuja barra horizontal simboliza a kalunga (as águas do rio ou do mar, ou qualquer superfície reflexiva como, por exemplo, um espelho), a qual divide dois mundos especulares: o mundo dos vivos (metade superior) e o mundo dos mortos (metade inferior). A barra vertical liga o mundo visível, dos vivos, ao mundo invisível, dos mortos e dos espíritos. As quatro pontas da cruz representam os quatro momentos do sol. O ponto localizado na extremidade horizontal, à direita (Leste), representa o nascer do dia, quando o sol rompe a barreira da kalunga e começa o seu percurso no mundo dos vivos. O ponto mais alto da cruz, na extremidade vertical (Norte), significa o meio-dia e o apogeu da força de uma pessoa do reino dos vivos. O ponto localizado na extremidade horizontal, à esquerda (Oeste), simboliza o fim da vida visível de uma pessoa e o pôr do sol, momento em que o sol rompe novamente a kalunga e começa a percorrer o mundo dos mortos. O ponto mais baixo da cruz, na extremidade vertical (Sul), representa a meia-noite e o apogeu da força de um ser do outro mundo. O sol, ao percorrer os quatro pontos do cosmograma, atravessa os reinos dos vivos e dos mortos, existindo um eterno retorno noite/dia e vida/morte (Thompson, 1984THOMPSON, Robert F. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. New York: Vintage Books, 1984., p. 108).

O mito dos negros d’água do rio Ribeira parece ecoar o pressuposto básico da existência desses dois mundos. Além dos negros d’água, o Ribeira também conta com a presença de outros seres, como o boi d’água, o cachorro d’água e o cavalo d’água. A existência desses seres é explicada desta forma pelos atuais moradores da região: “tudo que tem na terra, tem na água”. Novamente, a crença na existência de dois mundos especulares (de vivos e mortos) parece alicerçar essa afirmação.

Negros d’água, como Inácio Marinho e Gregório Marinho, eram seres que atravessavam águas e circulavam por mundos distintos. Era possível atravessar as águas de baixo para cima, significando “renascer”, e de cima para baixo, significando “morrer” (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 53-54). Originários do fundo das águas, os negros d’água pertenciam, portanto, ao mundo de baixo, ao mundo dos mortos. Como geraram descendência, não eram apenas mortos, eram ancestrais. Desse modo, os negros d’água representavam espíritos ancestrais, oriundos do reino dos mortos que, ao cruzarem as águas, propiciaram vida, ou seja, originaram descendência. Portanto, o mito do negro d’água alude ao movimento contínuo da vida e da morte, ao eterno retorno dia/noite. Assim, podemos inscrever esse mito dentro de um conjunto de referências culturais centrado no conceito de kalunga.

O ATLÂNTICO E A KALUNGA

O mito do negro d’água narra a travessia das águas doces do rio Ribeira. No entanto, simbolicamente, poderia também representar as águas salgadas atravessadas por muitos africanos que aportaram no Vale do Ribeira. O sobrenome dos negros d’água - Marinho - reforça a hipótese do sentido de o mito prender-se às águas do mar. Simbólica e concretamente, uma quantidade enorme de africanos atravessou “a grande água”, a kalunga, o oceano, e essa experiência deixou marcas profundas, as quais, possivelmente, influenciaram a criação dos mitos.

Principalmente na longa travessia do Atlântico, mas também antes disso, ainda na África, nos comboios e nas feitorias, formaram-se os primeiros laços sociais. Homogeneizados por um sistema desumanizante, homens e mulheres desenvolveram esforços de cooperação, os quais podem ser vistos como os primórdios das culturas afro-americanas (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 65). Novos vínculos sociais foram estabelecidos, assim como novos sistemas culturais começaram a tomar forma (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 68). Um forte vínculo unia malungos, ou seja, “companheiros de embarcação”.

Robert Slenes discorreu sobre a raiz que originou a palavra “malungo”. Conforme esse historiador, nos dicionários contemporâneos há duas hipóteses concorrentes. Em quimbundo (língua dos Ambundo) e quicongo (língua dos Bacongo), mu+lungu significa “no barco”. Assim, um processo de metonímia teria transformado “meu barco” em “meu companheiro de embarcação” (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 52-53). Outra possibilidade é “malungo” derivar da palavra malungu, que significa “irmãos/companheiros” em quimbundo e umbundo (língua dos Ovimbundo). Para Slenes, ambas as explicações estão incompletas. Esse historiador frisou que, hoje em dia, malungu tem o significado de “canoa grande gigantesca” em quimbundo, quicongo e umbundo.4 4 Segundo Slenes, malungu em umbundo significa não apenas “companheiros”, mas “companheiros de sofrimento”, assim, “a mesma pessoa idosa, por exemplo, que chamaria um barco de malungu, também poderia usar essa palavra para referir-se a si e a um ex-companheiro de cadeia” (SLENES, 1991/1992, p. 53). Além disso, também significa “companheiros” em quimbundo e umbundo. Conforme Slenes, escravizados falantes de quimbundo, quicongo e umbundo teriam chegado a “malungo”, pelo menos em parte, através do conceito de “canoa gigantesca” e, escravizados vindos do interior, falantes de línguas de origem banto diferentes de quicongo, quimbundo e umbundo, teriam compreendido malungo como “companheiros” não pelo conceito de “barco”, mas pelo de “irmão/parente” (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 52-53).

Aprofundando ainda mais a reflexão sobre a origem da palavra, Slenes levantou a hipótese de malungo também estar associado com um vocábulo-raiz do proto-banto muito difundido na África Central e Austral - com o vocábulo donga, o qual significa rio, vale ou canal. Esse vocábulo em quicongo, quimbundo e umbundo toma a forma de kalunga,5 5 Conforme abordado no item “O rio Ribeira, o rio Cuanza e os espíritos d’águas”, Miller sublinhou que kalunga era identificada como “a grande água”. Esse historiador também destacou que lunga era um objeto mágico-religioso que proporcionava ao seu detentor poderes sobrenaturais, pois possibilitava a comunicação entre os vivos e os mortos. Também frisou que cada lunga habitava um rio ou lago. Miller associou os “espíritos das águas” atuais aos antigos malunga (plural de lunga). Slenes também fez referência a uma categoria de espíritos dos antepassados (malunga) que se comunicava com os vivos. Nota-se, assim, que lunga, malunga e kalunga apresentam o mesmo radical (ma e ka são prefixos) e abordam o mesmo conjunto simbólico. adquirindo também o significado de “mar”. Dessa forma, “malungo” não significaria apenas “meu barco” e, por extensão, “companheiro de embarcação”, mas forçosamente “companheiro na travessia da kalunga”.

Atravessar a kalunga, a linha divisória que separava o mundo dos vivos daquele dos mortos, significava “morrer” ou “renascer”. Assim, malungos eram “companheiros da travessia da vida para a morte” ou “companheiros da travessia da morte para a vida” (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 54). Muitos povos das regiões de Congo e Angola relacionavam a cor branca com a morte. Assim, os homens eram pretos e os espíritos eram brancos. Os mortos iam para Mputu - a terra dos brancos, a terra dos mortos. Associaram Portugal a Mputu. Dessa forma, simbolicamente, atravessar a kalunga em direção à terra dos brancos significava “morrer” (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 53-54). E, de fato, ao atravessar o Atlântico em tumbeiros, milhares de africanos pereceram.

Atravessar o Atlântico em direção à América significou ruptura e morte. Mas, como mencionado anteriormente, conforme o “cosmograma kongo”, o movimento do sol é circular, ou seja, há um eterno retorno dia/noite, vida/morte. Atravessar a kalunga também significou renascimento. O negro d’água do rio Ribeira atravessou as águas da kalunga de baixo para cima, ou seja, do reino dos mortos para o reino dos vivos. O mito, assim, também enfatiza o renascimento e o reino dos vivos. Isso fica mais claro pelo fato de os negros d’água gerarem descendência, ou seja, vida.

O mito aborda o movimento contínuo da vida e da morte. Na travessia da kalunga, algo morre e algo renasce. O que renasce tem relação com o que morreu. Dessa forma, o mito do negro d’água narra o nascimento de um novo mundo a partir da transformação de elementos de um mundo antigo. De acordo com Mintz e Price, com a travessia atlântica e a consequente destruição dos antigos laços sociais, “a ‘bagagem cultural’ de cada indivíduo sofre uma transformação fenomenológica, até que a criação de novas estruturas institucionais permita a refabricação do conteúdo, baseado no passado - e muito distante dele” (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 71). Desse modo, na criação do mito dos negros d’água foram utilizados conteúdos culturais preexistentes, como a crença nos “espíritos d’água” e na kalunga que divide os reinos dos vivos e dos mortos, os quais foram transformados em algo novo.

De forma análoga, na América também surgiu um mundo novo, marcado pela travessia atlântica e caracterizado pelo escravismo. Assim, novas formas sociais e culturais foram forjadas para enfrentar as necessidades cotidianas de uma sociedade escravista (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 112-113). Uma explicação para o trauma da travessia atlântica e da escravidão foi uma dessas necessidades. Como enfatizaram Mintz e Price, “qualquer aglomerado de escravos da plantation teria primeiro que lidar com os traumas da captura, da escravidão e do transporte” (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 65). O mito do negro d’água serviu a esse propósito, pois conferiu sentido à nova realidade vivida ao abordar questões referentes à travessia marítima e ao mundo da escravidão.

O mito retrata a violência do mundo da escravidão. O ponto inicial era o aprisionamento. Geralmente, os negros d’água eram capturados com anzóis e tarrafas. Assim, involuntariamente e com violência, os negros d’água foram arrancados do seu mundo e lançados numa nova realidade. Semelhantemente, os africanos foram tirados de sua terra natal e inseridos num outro espaço. A passagem de um mundo para o outro - do fundo das águas para a terra, no caso dos negros d’água; e da África para a América, no caso dos africanos - foi realizada pela transposição das águas.

A violência da escravidão também pode ser evidenciada pelo fato de os negros d’água, durante a escravidão, terem “as mãos e os pés cortados com navalhas, uma vez que eram como os de patos” (Mirales, 1998MIRALES, Rosana. A identidade quilombola das comunidades Pedro Cubas e Ivaporunduva. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica (PUC). São Paulo, 1998., p. 73). Dessa forma, o mito parece fazer menção à violência física e à perda da mobilidade e, simbolicamente, da liberdade. A questão da aprendizagem de uma nova língua também chama atenção - tanto negros d’água como africanos tiveram de aprender a língua do local onde passaram a morar.

No mundo da escravidão, existiram relacionamentos entre homens e mulheres de diferentes etnias e locais de nascimento. No mito do negro d’água, esses relacionamentos também estavam presentes. Os negros d’água citados, Inácio e Gregório Marinho, casaram-se com mulheres da terra e geraram filhos. As mulheres da terra também podiam ser sequestradas pelos negros d’água. Tornar-se-iam suas esposas e viveriam no fundo das águas. Esses relacionamentos entre pessoas da terra e da água ocupavam papel destacado no mito, apontando para o fato de que relacionamentos entre pessoas nascidas em diferentes locais (por exemplo, entre pessoas nascidas na África e no Brasil) eram frequentes na época da escravidão. Diferentemente das mulheres, homens e crianças podiam ter outro fim. No mito, havia o receio de os homens serem mortos e as crianças devoradas. Medo da morte e do devoramento6 6 Conforme Sweet, “it was widely understood that Europeans carried away black bodies in order to ‘eat’ them” (SWEET, 2003, p. 162). eram temores que se assemelhavam aos que os africanos sentiam frente à possibilidade de serem escravizados e obrigados a realizar a travessia atlântica.

No mito do negro d’água, um elemento sobressai: o sal. Os negros d’água eram amansados com sal, ou seja, após a sua ingestão, seu temperamento bravio era domado e ajustado às regras do local para onde foram levados. Entre os centro-africanos existiam certas crenças associadas ao sal. Monica Schuler (2002SCHULER, Monica. Liberated Central Africans in Nineteenth-Century Guyana. In: HEYWOOD, Linda M. (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press , 2002.), ao pesquisar africanos de origem congolesa que, entre os anos de 1841 e 1865, foram levados para a Jamaica, notou que eles acreditavam que, assim como os espíritos não ingeriam sal, a abstenção desse elemento conferia-lhes poderes semelhantes, tais como o poder de interpretar o mundo ao seu redor e voar de volta para a África. Ou seja, a ausência de sal garantia a integridade espiritual (Slenes, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 54). De forma análoga, o sal dado ao negro d’água o levava a perder suas características originais e, assim, se ajustar a uma nova situação.

Sal e água. Esses são os elementos fundamentais do batismo. Tanto no Brasil quanto na África existiu um esforço para a conversão dos africanos ao catolicismo, e o batismo era o rito de iniciação. Dessa forma, esse sacramento ocupou papel central na vida religiosa das sociedades formadas nos dois lados do Atlântico. Alguns autores frisaram a associação feita pelos centro-africanos entre o sal e o catolicismo. Cavazzi destacou que os africanos chamavam o batismo de “comer sal” (Cavazzi de Montecúccolo, 1965CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, Padre João Antonio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Trad., notas e índice pelo Padre Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. v. 1 e 2., v. 1, p. 353). Sweet também ressaltou que eles associavam a prática ritual ao ato de “comer sal” (Sweet, 2003SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2003., p. 195). Cascudo fez esta observação sobre os negros de Angola que viviam no Brasil:

Os negros de Angola não encontraram melhor símbolo [que o sal] para o batizado. Se são cristãos, informam: Didimungua, comi sal. O padrinho é o pai de sal, tat’a mungua. A madrinha, mãe do sal, mam’a munga. O afilhado, filho do sal, mon’a munga. Os companheiros de batizado, irmãos do sal, pange a mungua. (Cascudo, 1998CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998., p. 796)

No mito do negro d’água, o sal parece ser uma clara alusão ao batismo. Após ingerir sal, o negro d’água amansou, ou seja, seu espírito foi modificado e ele passou a ter um comportamento adequado às novas regras. Portanto, o mito do negro d’água parece retratar a inserção do africano a um novo mundo, o qual era caracterizado, fundamentalmente, pelo catolicismo. Essa associação entre os negros d’água e o mundo cristão torna-se ainda mais evidente na história do negro d’água de Ivaporunduva (Inácio Marinho), o qual fora capturado durante a comemoração da Festa de Santa Cruz e batizado por um vigário.

Segundo Rosana Mirales, a ingestão de sal provocava a expulsão da pedra alojada no estômago do negro d’água. As pedras eram os locais de moradia do negro d’água, portanto, poderiam ser relacionadas com o mundo original, no caso, com a África. Simbolicamente, talvez a pedra representasse as tradições e crenças africanas. A oposição catolicismo versus crenças africanas talvez fosse representada pela oposição sal versus pedra. O mito parece abordar não apenas a conversão do africano ao catolicismo, mas também os esforços realizados para a “eliminação” das religiosidades tradicionais africanas.

Sal e água. São esses os elementos que compunham a travessia atlântica. Assim como o batismo, cruzar as águas salgadas do Atlântico também representava um rito de passagem. A travessia do Atlântico conduzia a um mundo novo. Realizada por africanos e europeus, desse rito de passagem emergiu a sociedade colonial brasileira.

Possivelmente, o enraizamento, a longevidade e a força do mito do negro d’água advêm da sua capacidade de servir de metáfora da travessia marítima, da escravidão e da formação de um mundo novo. Metáfora capaz de traduzir a realidade da morte e da vida de muitos africanos que cruzaram a kalunga. Metáfora da sociedade escravista. Metáfora da formação de um mundo novo, formado a partir do encontro de três velhos mundos. Mundo novo construído pelos indígenas que aqui estavam, junto aos africanos e europeus que cruzaram as águas do Atlântico. E, “de um Novo Mundo se trata, por certo, pois aqueles que se tornaram seus povos o refizeram e, nesses processos, refizeram a si mesmos” (Mintz; Price, 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: Ucam, 2003., p. 113).

REFERÊNCIAS

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NOTAS

  • 1
    A presença do mito da mãe d’água entre povos indígenas em várias regiões do Brasil permite depreender que na região do rio Ribeira esse mito tenha sido uma contribuição dos povos indígenas. Relatos orais e documentos apontam para a presença de povos indígenas na região até, pelo menos, meados do século XIX (PAES, 2007PAES, Gabriela Segarra M. A Recomendação das Almas na Comunidade Remanescente de Quilombo de Pedro Cubas. 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2007., p. 33-34). Esses povos conviveram com outros, como os africanos e seus descendentes, e contribuíram com as narrativas míticas locais. Os povos indígenas miscigenaram-se com outros, realizaram trocas culturais e deixaram um importante legado, especialmente quanto às técnicas de pesca, a agricultura itinerante e a toponímia regional (OLIVEIRA JUNIOR et al., 2000OLIVEIRA JUNIOR, Adolfo N.; STUCCHI, Deborah; CHAGAS, Mirian de F.; BRASILEIRO, Sheila dos S. Laudo antropológico das comunidades negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões. In: ANDRADE, Tânia (ed.). Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e conquista do território. 2. ed. São Paulo: Itesp: Páginas & Letras, 2000., p. 61).
  • 2
    As informações referentes aos negros d’água foram obtidas mediante entrevistas por mim realizadas com os moradores das Comunidades Remanescentes de Quilombo de Eldorado e Iporanga entre os anos de 2001 e 2008.
  • 3
    Considerando que grande parte dos africanos oriundos da África Centro-Ocidental possuía uma cultura menos particularista do que frequentemente se supõe (SLENES, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 58), que foram socializados na cultura “kongo” ou em culturas relacionadas (SLENES, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 55-56) e que “Kongos” e “Angolas” que vieram para a América compartilhavam muitas crenças e línguas (THOMPSON, 1984THOMPSON, Robert F. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. New York: Vintage Books, 1984., p. 104), ao abordarmos a cultura “kongo” estaremos tratando-a como paradigmática para uma extensa região da África Centro-Ocidental.
  • 4
    Segundo Slenes, malungu em umbundo significa não apenas “companheiros”, mas “companheiros de sofrimento”, assim, “a mesma pessoa idosa, por exemplo, que chamaria um barco de malungu, também poderia usar essa palavra para referir-se a si e a um ex-companheiro de cadeia” (SLENES, 1991/1992SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, Dossiê quinhentos anos de América, São Paulo: Edusp, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991/1992., p. 53).
  • 5
    Conforme abordado no item “O rio Ribeira, o rio Cuanza e os espíritos d’águas”, Miller sublinhou que kalunga era identificada como “a grande água”. Esse historiador também destacou que lunga era um objeto mágico-religioso que proporcionava ao seu detentor poderes sobrenaturais, pois possibilitava a comunicação entre os vivos e os mortos. Também frisou que cada lunga habitava um rio ou lago. Miller associou os “espíritos das águas” atuais aos antigos malunga (plural de lunga). Slenes também fez referência a uma categoria de espíritos dos antepassados (malunga) que se comunicava com os vivos. Nota-se, assim, que lunga, malunga e kalunga apresentam o mesmo radical (ma e ka são prefixos) e abordam o mesmo conjunto simbólico.
  • 6
    Conforme Sweet, “it was widely understood that Europeans carried away black bodies in order to ‘eat’ them” (SWEET, 2003SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2003., p. 162).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2018
  • Aceito
    26 Fev 2019
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