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Publicar em defesa da ciência e da democracia

Publish to Defend Science and Democracy

Neste número a Revista Brasileira de História publica o seu primeiro dossiê integralmente dedicado à área de História Antiga. Como se pode constatar nos artigos e na Apresentação, esse campo de pesquisa é um dos mais dinâmicos e sofisticados de nossa historiografia. A exaustiva Apresentação elaborada pelos organizadores é um excelente guia de entrada nesse universo, seja para os especialistas ou para os que querem se familiarizar com os debates desse campo de estudos. O número traz ainda quatro artigos na seção livre e duas resenhas, mantendo a atual política editorial de ampliar a quantidade de contribuições por número, de modo a fazer frente à crescente demanda qualificada pelo periódico.

Em janeiro, quando fechamos o número anterior, não poderíamos ainda imaginar que o cenário hostil de ataques à ciência e à historiografia seria agravado pela pandemia da Covid-19. Desde a segunda quinzena de março a quarentena tornou-se uma realidade no Brasil. Aqui na RBH não tem sido diferente - as atividades de secretaria e assistência editorial, que aconteciam em nossa sede, tiveram de se deslocar para o ambiente doméstico. Mesmo assim, com o apoio e a dedicação que sempre foram marcas da equipe, temos conseguido manter a regularidade do trabalho da revista, não sem sacrifícios pessoais.

Infelizmente, os ataques do atual governo federal aos historiadores, às humanidades e às ciências de modo geral não só continuam como vêm se aprofundando de modo assustador. No momento em que finalizamos este texto o Brasil está há mais de um mês sem ministro da Saúde e, agora, também sem ministro da Educação. Quando achávamos que Ricardo Vélez Rodríguez tinha representado o fundo do poço, descobrimos que não parece haver limites para o pior neste governo quando se trata de destruir a educação e a ciência. A passagem do senhor Abraham Weintraub pelo MEC já está registrada nos anais da história universal da infâmia. A atual diretoria da Anpuh-Brasil tem sido diligente em responder em notas, eventos e articulação com outras associações e atores da sociedade civil a todas as ações do governo que representem agressões aos interesses da democracia e da ciência.

Parece ficar cada vez mais claro que vivemos um momento inédito de ataque às estruturas mais básicas das democracias liberais, e isso não apenas ou particularmente no Brasil. É hoje ainda mais urgente e necessário defender e fortalecer espaços como as revistas acadêmicas e sua autonomia científica e zelar pela qualidade do que é publicado. Não custa lembrar que o atual governo, desde o ano passado, praticamente zerou o financiamento público às revistas científicas no campo das humanidades. Os ataques a médicos, aos profissionais de saúde e cientistas no contexto da pandemia da Covid-19 têm sido a demonstração cabal de que as novas forças do obscurantismo não vão parar na destruição e aparelhamento das ciências humanas, seu alvo é toda e qualquer ciência livre.

Nesse contexto, mais do que nunca precisamos estar organizados para defender a cultura científica e a liberdade de pensamento. Precisamos resistir à pressão pela velocidade crescente nas publicações, se ela coloca em risco a necessária curadoria científica e a avaliação pelos pares. No contexto da pandemia, artigos em pré-publicação foram imediatamente citados como fonte de autoridade na guerra cultural de desinformação movida por grupos de direita. Algumas iniciativas interessantes como o Retraction Watch têm se revelado importantes para enfrentar alguns efeitos colaterais dessa agitação editorial crescente.1 1 Disponível em: https://retractionwatch.com/. Acesso em: 23 jun. 2020.

A tendência ao desaparecimento puro e simples de artigos em periódicos despertou a necessidade de se monitorarem as razões e as formas pelas quais as revistas têm lidado com a chamada retratação, ou seja, o cancelamento de um artigo já publicado ou a correção de informações erradas. Essa retratação pode acontecer por motivos de plágio ou alguma denúncia pública que aponte falha grave no artigo, em sua metodologia ou nos dados apresentados. Os organizadores do Retraction Watch têm denunciado certa epidemia de retratações, o que pode indicar os efeitos perversos de um eventual aligeiramento dos processos editoriais ou, em uma perspectiva mais otimista, a maior adesão aos protocolos de retratação de um artigo. A pandemia da Covid-19 tornou esse fenômeno mais visível, pois uma postagem no Retraction Watch aponta nada menos do que 22 artigos retratados nesse tema.2 2 Disponível em: https://retractionwatch.com/retracted-coronavirus-covid-19-papers/. Acesso em: 23 jun. 2020. O mais grave, muitos artigos publicados desaparecem sem que sejam apresentadas as razões ou seguidos os protocolos recomendados. Para o contexto brasileiro, felizmente o SciELO tem orientações muito precisas de como os periódicos abrigados em sua base devem proceder.3 3 O documento pode ser consultado em: https://wp.scielo.org/wp-content/uploads/ 20200500-Criterios-SciELO-Brasil.pdf. Acesso em: 23 jun. 2020. Essas orientações podem também ser muito úteis para periódicos que não estão na base SciELO, mas que ainda assim precisam deixar claros os procedimentos para a retratação.

O momento tem servido para aprofundarmos o debate acerca dos contornos éticos que devem regular a atuação de periódicos e editores. O fortalecimento da editoria científica como um trabalho regular e profissional é certamente urgente, embora a conjuntura brasileira não contribua muito nessa direção. De todo modo, esta não é a primeira vez que a comunidade historiadora se vê desafiada por poderosos interesses, nos cabe usar o momento como oportunidade de renovação e abertura de nossas oficinas para os grandes desafios que se colocam à construção de uma historiografia plural e democrática.

Por fim, cabe mencionar a melhoria nos indicadores de citação e impacto da RBH no último balanço do SJR, voltando a revista a ocupar a posição Q2 no último quartil e no CiteScore, da Scopus. Essas melhorias são sinais de que estamos no caminho certo, pois, mesmo sem tornar os indicadores de citação critérios absolutos, são eles um sintoma da relevância que a comunidade tem dado aos artigos aqui publicados. Afinal, a publicação só se realiza plenamente quando é lida e contribui efetivamente para a continuidade da grande conversação que é a produção de conhecimento e sabedoria.

23 de junho de 2020

NOTAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020
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