Acessibilidade / Reportar erro

A “canalha de toda qualidade”.Ação, perseguição e racialização dos sujeitos delituosos, Bahia, 1823-18501 1 Agradeço ao Grupo de Pesquisa “Escravidão e Invenção da Liberdade” pela discussão do texto em uma de suas reuniões, e à Flaviane Ribeiro pela leitura e pelas sugestões ao longo da reorganização dos argumentos.

The “Scoundrel of Every Quality”. Action, Persecution and Racialization of the Criminal Subjects, Bahia, 1823-1850

Resumo

A ideia nesse artigo é tentar expor uma faceta da racialização, tão presente ainda no Brasil do século XXI, que permite, pela implicação de aspectos históricos que fazem referência a setores não brancos, atacar todo um modo de vida da população pobre de cor e rural da Bahia rebelde. Ao associarem os sujeitos delituosos a quilombos e mocambos, e o crime às “qualidades” e “condições” dos homens do povo, as autoridades pretendiam trazer a hierarquia racial para produzir uma perseguição impiedosa aos homens livres, bandidos ou não, e aos escravizados.

Palavras-chave:
Criminalização; Racismo; Delitos

Abstract

The idea in this article is to try to expose a facet of racialization, so present still in 21st century Brazil, that allows, by implication of historical aspects that refer to non-white sectors, to attack an entire way of life of the poor colored and rural population of rebel Bahia. By associating criminal subjects with the quilombos and mocambos, and crime with the “qualities” and “conditions” of the men of the people, these authorities intended to lead the racial hierarchy to produce a merciless persecution of free men, bandits or not, and enslaved people.

Keywords:
Criminalization; Racism; Crimes

Durante o pós-independência na Bahia, em meio a diversas atitudes de rebeldia, contestações e levantes de diversos grupos sociais, os habitantes daquela província presenciaram alguns surtos epidêmicos de banditismo. Fizeram parte desses acontecimentos escravizados, livres e libertos, indígenas, classes médias e soldados, por vezes todos misturados. Frente a essa situação, autoridades policiais e judiciárias da província efetuaram uma razão persecutória sugerida aqui como de “contra revolução preventiva”, que visava produzir uma linguagem racista, racializada e criminalizante que apavorasse as classes dirigentes e promovesse o ataque a modos de vida subalternos, frente àquilo que consideravam uma iminente recomposição organizativa das forças sociais derrotadas ao longo dessas revoltas. Para tanto, construíram e levaram a cabo uma guerra real e uma “guerra imaginária” (Lopes, 2013LOPES, Juliana Serzedello Crespim. Identidades Políticas e Raciais na Sabinada (Bahia-1837-1838). São Paulo: Alameda , 2013., pp. 178-179), dando destaque a uma possível unidade de diversas “qualidades”, “condições” e “temperamentos” de pessoas e grupos, e aos crimes e delitos praticados na província, dando-lhes, por conta dessa presença heterogênea de “raças”, cores e condições, um conteúdo mais político e subversivo do que de fato tinham.

Considerando um contexto ainda mais ampliado, estamos tratando de um “país” cujo projeto de nação das elites do Império estava em disputa entre suas próprias facções, as quais, em diversos momentos, perderam - ou quase perderam - o controle dos processos contestatórios daqueles anos, recebendo fortes abalos pela contestação vinda de baixo, de homens livres de cor, indígenas e escravizados. Como maior exemplo, temos a guerra nas matas empreendidas pelos cabanos da província de Pernambuco.

O banditismo, que desassossegava de modo severo a política, os comércios e a vida e, sendo assim, atrapalhava o plano de constituição de um Estado Nacional (Santos, 2017SANTOS, Igor Gomes. A Horda Heterogênea: crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da nação, Bahia (1822-1853). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2017.), incomodava especialmente autoridades locais, em especial juízes de paz, municipais, delegados e subdelegados. Para receberem a devida atenção por parte das autoridades centrais, enveredaram por uma linguagem ligada à semântica das raças, ou que “denegriam” - no sentido mesmo de tornar negro - as ações de furtos e roubos, definindo-as sempre como ações dos setores inferiores do povo, que sabemos se tratar das gentes de cor da população, ainda mais quando se tratava das pessoas do sertão e/ou de comunidades rurais, sempre pintadas com tintas carregadas, julgadas bárbaras e supostamente indispostas ao convívio junto à civilização.

Os sujeitos criminosos e/ou criminalizados doravante abordados eram multiétnicos e multicoloridos, embora apareçam mais referências a uma população masculina, de cor, especialmente parda, jovem, com idades que preponderantemente variavam entre 16 e 40 anos. Trabalhavam em profissões diversas, mas os lavradores estão em destaque, assim como um conjunto de pequenos ofícios artesanais (sapateiros, ferreiros, entre outros). Suas regiões de nascimento e moradia variavam, mas é possível notar a presença marcante de homens das regiões de cana de açúcar, como Santo Amaro, e das vilas e dos distritos dos sertões do Rio São Francisco2 2 Chegamos a essas constatações com base, primordialmente - mas não exclusivamente -, em leituras dos chamados “Mapas” produzidos pelas autoridades, que foram lidos nos acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Estado da Bahia. Usamos “mapas” de presos, de julgados, de foragidos, de cadeias da província, entre outros. Esses “mapas” são, na verdade, tabelas que indicam informações concernentes, por exemplo, aos crimes praticados, ao local onde foram julgados e se foram absolvidos ou não, bem como qual é a cor, a qualidade, o estado civil, a idade, entre outros atributos dos sujeitos ali expostos. . Trata-se, em geral, de pessoas com extrema mobilidade territorial - devido ao grupo social de que se originam, de homens livres e pobres e de escravizados fugidos das comarcas rurais, mas também à própria necessidade marcante da itinerância aos sujeitos que viviam de delitos.

A ideia neste artigo é tentar expor uma faceta da racialização, tão presente ainda no Brasil do século XXI, que permite, pela implicação de aspectos históricos que fazem referência a setores não brancos, atacar todo um modo de vida3 3 Essa é a sugestão de Hill (1987) quando discute as ações de defesa das florestas pelo rei no final do século XVII inglês. Drenar os pântanos, cercar a floresta e desmatá-la, apesar da retórica de segurança e produtividade, implicava, deliberadamente, na “destruição de todo um modo de vida, em brutal desconsideração pelos direitos da plebe” (Hill, 1987, p. 69). da população pobre de cor e rural da Bahia rebelde. Ao associar os sujeitos delituosos a quilombos e mocambos, e associar o crime às “qualidades” e “condições” dos homens do povo, essas autoridades pretendiam trazer a hierarquia racial para produzir uma perseguição impiedosa aos homens livres, bandidos ou não, e aos escravizados.

CANALHAS, QUILOMBO DE LADRÕES ARMADOS E AMOCAMBADOS

As tradicionais feiras, que se espalhavam pelas vilas e pelos pequenos termos de toda a província, eram lugares propícios para que homens e mulheres livres pobres - em sua maioria de cor -, bem como bandidos e quilombolas, conseguissem fazer seus negócios. Eram um bom lugar para comprar, trocar e vender produtos lícitos e ilícitos. O ir e vir nas estradas, nos dias de feira, facilitava consideravelmente a chance de sujeitos vigiados pelo recrutamento e pela polícia não serem detectados em meio à multidão de pessoas trazendo nas montarias inúmeras mercadorias. Nessas circunstâncias, as forças policiais, também muito preocupadas com os salteadores, generalizavam a desconfiança, e muitas pessoas entravam para a lista de suspeitos e “verdadeiros réus de polícia”4 4 Formulação ideológica que caracterizava o sujeito passível de repressão preventiva pela ação, sobretudo, do recrutamento. Eram homens negros ou pardos, e/ou que viviam em relação com escravos, que não tinham trabalho e eram caracterizados visivelmente pela sua pobreza (Santos, 2017). . Muitas pessoas portavam armas nesse ir e vir das feiras, a maioria para a própria proteção. As feiras causavam apreensão nas autoridades, pois, como o comerciante, proprietário e militar Arnizau (1862ARNIZAU, José Joaquim de Almeida. Memória Topográfica, histórica, comercial e política da vila de Cachoeira da província da Bahia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 25, pp. 127-142, 1862., p. 127-142) destacou, junto a essa leva de gente, muitos criminosos e quilombolas se misturavam.

Em 1830, “homens malvados e ladrões, perturbadores do sossego público, que acoutados em diferentes lugares, ou casas de pessoas livres, ainda mesmo em senzalas de escravos de senhores mau administradores (...) faziam roubos, insultos e assassínios” em São Gonçalo dos Campos (Couto, 1830COUTO, João Pedreira. Colonial e Provincial; Governo da Província, Juízes - São Gonçalo, 1829-1889, 2600, São Gonçalo dos Campos (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 16 jul. de 1830.). Esta vila, ocupada por uma população de livres e escravizados, e despida quase que totalmente de destacamento policial, chegava a ser frequentada por cerca de 1500 a 2000 pessoas aos sábados, quando ali acontecia uma feira. Para o autor do documento, era certo que iria aparecer “(como tem acontecido) toda a sorte de crimes”, sem que ele pudesse dar providência alguma. O destacamento não era suficiente para a fiscalização dos problemas ordinários da localidade e, com o inchaço provocado pela presença de tantos forasteiros nessas feiras, a situação se agravava.

O juiz de Paz, João Pedreira de Couto, destacava o pavor e o trabalho que vinha tendo o destacamento de polícia para frear as ações conjuntas de ambos os grupos sociais (escravizados e bandidos), os quais formavam uma hidra pavorosa aos olhos dos homens de bens. O documento destaca o estado de “terror” contínuo que, de “comum acordo com os escravos fugitivos, e mesmo com alguns dos de casa”, era implantado, ao “fazerem roubos, insultos e assassínios”. Ainda nessa correspondência, o juiz cita, como exemplo de fazenda mal administrada, aquela pertencente a um homem identificado como Correa, proprietário de mais de 300 escravos, o qual, por não possuir filhos ou um feitor, não conseguia lhes impor a ordem. Sendo assim, seus escravos “vivem continuadamente soltos e carregados de armas proibidas a roubarem, insultarem e assassinarem”. Já outro documento consiste na resposta dada ao Juiz João Pedreira Couto a uma carta enviada ao presidente da Província pelo senhor Correa, na qual ele, na condição de juiz, afirmava agir constantemente naquela fazenda no intuito de tirar dela escravos de outros proprietários que residiam ali há meses, além de dar buscas tanto aos ladrões - que sabiam haver ali um esconderijo seguro - quanto aos cavalos furtados, que ficavam nos pastos da fazenda daquele senhor (Couto, 1830COUTO, João Pedreira. Colonial e Provincial; Governo da Província, Juízes - São Gonçalo, 1829-1889, 2600, São Gonçalo dos Campos (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 16 jul. de 1830.).

Não conseguimos identificar qual é o maior problema para o Juiz: se são os crimes que acontecem na vila em época de feira, ou se é o fato de os bandidos confraternizarem com as senzalas.

Nove anos depois desse documento, a feira da vila de São Gonçalo ainda era um problema para as autoridades, por conta dos crimes que o ajuntamento de pessoas em torno dela propiciava, e dos criminosos que por ali agiam. A solução para se proteger nas estradas, até a chegada à Vila, era viajar “de bacamarte, punhal e sem respeito algum às autoridades”, que tentavam impedir a livre circulação daquelas armas (Sem autor, 1839SEM AUTOR. Colonial e Provincial: Governo da Província, Juízes - São Gonçalo 1829-1889, 2600; São Gonçalo dos Campos (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 11 set. 1839. ).

Não tão distante dali, saindo do Recôncavo Sul, os fazendeiros e negociantes de Nazaré, dois anos antes, em 1837, pediam, em abaixo-assinado, aumento da força policial em decorrência da feira que se formava semanalmente na cidade. Seu argumento era bastante revelador do perfil dos homens que incomodavam esses proprietários: naquela localidade estava “uma das maiores feiras, onde por isso concorre numeroso povo de diversas condições e temperamentos, cercados de engenhos com bastante escravatura, [que davam] passagem para o mar e para o sertão por diversos portos e estradas” (Vários autores, 1837VÁRIOS AUTORES (Abaixo assinado). Colonial Provincial, Polícia 3114; Nazaré (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 22 mai. 1837.).

Estes documentos, citados até então, revelam o medo do contato entre bandidos ou sujeitos criminalizados preventivamente e escravizados nos dias de feira. Não se tratava apenas de reprimir os salteadores. O problema, antes de tudo, parecia ser a presença dos bandidos acoitados em “senzalas de escravos”, ou a proximidade que os criminosos podiam ter com “engenhos de bastante escravatura” e com homens de muitas “condições” (escravos, livres ou libertos) e “temperamento” (homens selvagens, bárbaros, incivilizados, pouco amantes da lei e da ordem, etc.).

Para o subdelegado de um distrito de Abrantes, as feiras, especialmente a daquela vila, atraíam “uma grande parte [de pessoas] desmoralizadas e perversas” (Meireles, 1851MEIRELES, Manuel João de. Governo da Província, Colonial e Provincial, Polícia-subdelegados 1842-1859, 3004; Engenho Timbó (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 12 de maio de 1851. ). Na perspectiva dessas autoridades, as feiras funcionavam como um refúgio de desordeiros, de pessoas que viviam de trabalho de jornal e pequenas colheitas esporádicas, bem como roceiros negros, por vezes escravizados, vaqueiros, criminosos, dentre outros. Muitas posturas municipais que visavam regulamentar o fluxo dessas pessoas foram aprovadas nas localidades, com o objetivo de criminalizar e constranger certos tipos de ações delituosas de certa qualidade de pessoas5 5 Para esse assunto, ver Pires, 2003, pp. 49-59. .

A resposta dada pela autoridade da vila de São Gonçalo a tal estado de coisas foi a de que “não eram capitães do mato para prenderem negros fugitivos e ladrões”. Claramente, as autoridades policiais compreenderam que o discurso contra os crimes que aconteciam ao longo da duração da feira, e contra a circulação de pessoas sem que se pudesse vigiá-las, estava diretamente vinculado à questão da vigilância sobre os escravos, ao pavor das fugas e dos levantes. Literalmente expuseram a situação: o convite ao combate ao crime vinha através de uma linguagem racializada e marcada pela escravidão6 6 A rejeição tão enfática daquelas autoridades relacionava-se à racialização do ofício, que era normalmente ocupado pela própria gente de cor e por indígenas. Tal racialização estava entranhada no mundo mais vil da escravidão, o da violência quase que direta contra os negros fugidos. A este respeito, ver Lara (1996). . A resposta, que não deve ter sido aquela que as autoridades locais gostariam de ter recebido, não fugiu ao tom.

Em outra circunstância e em outra vila, a de Abadia, o capitão comandante de um batalhão informou ao juiz de paz que não poderia fazer muito para combater os “quilombos de ladrões” (Pereira, 1833PEREIRA, José Bernardino. Seção Colonial Provincial, Governo da Província, Polícia, 6151; Vila de Abadia (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 17 ago. 1833.), pois a sua disposição, diante de uma “Barra aberta”, permitia sempre “novidades” para o combate aos criminosos.

Essa linguagem, que associava quilombolas ao banditismo - referindo-se à “canalha” (como veremos) que vivia a perambular entre feiras, senzalas e estradas, como similar aos aquilombados e aos delituosos -, pode ser compreendida através de estudos historiográficos sobre as atitudes sociais e econômicas dos quilombos ao longo da História do Brasil. Primeiramente, as “comunidades de fugitivos”, entre elas desertores, escravizados em fuga e foragidos das cadeias, em sua grande parte, recorriam às práticas de furtos e razias, com o intuito de atenuar as necessidades emergentes, como comida, roupas, animais para transporte e animais para o abate e a alimentação. Essa associação é direta, pois pequenos grupos de quilombolas eram flagrados roubando esses itens descritos e, por vezes, os roubos chamavam a atenção da comunidade para a passagem desses fugitivos. Um segundo aspecto, já destacado por alguns historiadores, informa que os quilombos não são comunidades apartadas e alheias às relações escravistas controladas pelos brancos, e nem às comunidades das senzalas. A maior parte dos quilombos e quilombolas possuía relações de troca, venda, compra, além de prestação de serviços ocasionais para proprietários de terra e comerciantes. Viviam, de fato, circulando pelas feiras livres, onde vendiam seus produtos, alguns, notoriamente, fruto de roubos (Gomes; Reis, 1996GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um Fio: História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 1996.; Gomes, 2015GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.).

No caso em que a fazenda em São Gonçalo é denunciada por receptar ou acoitar muitos escravos foragidos, a historiadora Yuko Miki (2014MIKI, Yuko. Fugir para a escravidão: as geografias insurgentes dos quilombolas brasileiros, 1880-1881. In: GOMES, Flavio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio (Orgs.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014. pp. 35-68.) explica ser essa uma das estratégias dos quilombolas para sobreviverem e viverem como livres. Eles emprestavam sua força de trabalho para algum proprietário que tivesse a disposição de lhes oferecer um pedaço de terra para plantarem por algum tempo, pois a condição de itinerância de alguns desses quilombos não permitia que assentassem sua vida numa modalidade camponesa mais sedentária. Em troca da hospitalidade de que gozavam, esses quilombolas podiam oferecer parte da colheita, a submissão aos senhores, além de pólvora, alimentos, entre outras coisas de que os senhores pudessem necessitar. É claro que não poucos senhores aceitavam aquela condição, pelo fato de terem medo dos quilombolas. Nas senzalas, podiam estabelecer um ponto estratégico onde pudessem esconder os furtos e as mercadorias que seriam negociados com diversos outros homens livres, libertos e escravizados, antes, durante ou depois das feiras nas proximidades.

A todo esse cenário movimentado e “multifacetado” - que envolvia, “tal qual uma arena social” de “lutas e solidariedades conectando comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores, fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos sujeitos que vivenciaram os mundos da escravidão”, como os acoitadores -, Flávio Gomes chamou de “campesinato negro” (Gomes, 2006GOMES, Flávio dos Santos. História de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzala no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 45, grifos do autor). Parte desse campesinato negro foi construído pelo que o autor designou também como “comunidades de senzalas”. Nelas, indivíduos e pequenos agrupamentos quilombolas podiam frequentar as senzalas, dormir, morar e esconder produtos, fazendo daquele espaço um braço do aquilombado nas suas estratégias de vida. Não era o quilombo, nem o quilombola, uma figura marginal à sociedade. Este grupo podia contar com abrigo de senhores, cientes ou não, e dos seus iguais, que ainda permaneciam sob o jugo do trabalho escravo, por dentro e nas franjas do sistema escravista.

Em outro documento, já fora do contexto das feiras, mas em outra localidade com intenso fluxo de pessoas, a região do rio São Francisco, temos a informação de que uma “esquadra” - ou ajuntamento - de facinorosos publicamente reunidos armados e amocambados” (sublinhamos) estava sendo procurada após sofrer forte repressão em Vila Nova da Rainha, por “amigos, parentes e vagabundos” (Leitão, 1831LEITÃO, Souza. Seção Colonial e provincial, Juízes - Vila Nova da Rainha 1830-1856, 2639 (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 23 de dezembro de 1831.) que os tinham procurado por todo o sertão do Piauí e rio São Francisco. O termo amocambar não nos parece surgir aí de modo ingênuo. É exatamente na sua pretensão de ser uma metonímia que ele faz sentido. Sabemos que os mocambos eram “pequenas, médias, grandes, improvisadas, solidificadas, temporárias ou permanentes comunidades de fugitivos [especialmente de negros] que receberam diversos nomes” nas Américas (Gomes, 2015GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015., pp. 3-4). Estas comunidades foram, inicialmente, designadas no Brasil como mocambos e depois quilombos, no entanto, são termos de origem da África Central (Gomes, 2015GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.). A linguagem da repressão não se desvinculava da linguagem de combate aos negros e indígenas.

Da mesma maneira, o termo esquadra guarda uma relação também com o mundo dos quilombos. Lara (2017LARA, Silvia Hunold. Quem eram os negros do Palmar? In: RIBEIRO et al. (Orgs.). Escravidão e Cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. Campinas - SP: Editora da Unicamp, 2017. pp. 57-85.), destaca que Zumbi e/ou os aquilombados da região dos Palmares eram normalmente chamados de corsários, uma definição que advém do mundo do tráfico e do comércio atlântico relacionados aos piratas. Esses corsários faziam “correrias” - termo bastante empregado também para designar as ações dos bandidos e quilombos - e causavam muita discórdia, confusões e delitos por onde passavam. O termo esquadra também estava relacionado a esse mesmo universo atlântico e chegou a ser oficializado no Maranhão, quando, em meados da década de 1840, a aprovação de um conjunto de leis resgatou o ofício em desuso desde a independência (Baldo, 1980BALDO, Mario. O Capitão-do-Mato. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Curso de Pós-Graduação em História do Brasil, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1980.) e atribuiu ao capitão do mato, sob o controle dos juízes de paz, a função de contratar soldados para a “Esquadra do Mato” (Mendes, 2012MENDES, Jany Kerly. Esquadras do Mato: atualização e oficialização do posto de Capitão do Mato no Maranhão. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Estadual do Maranhão - Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais. São Luiz, 2012., pp. 55-58).

Essa parecia ser a marca da manutenção da ordem social dos homens de elite na Bahia do início do século XIX, quando guerras, levantes e revoltas políticas aconteciam em meio a diversos levantes escravos e, como veremos, também indígenas. Uma linguagem racializada atendia a três preocupações centrais: no que concernia à segurança, à propriedade e à manutenção do comércio, tão ameaçadas pelos salteadores e criminosos itinerantes, que iam e viam vendendo os espólios de seus delitos; a permanente preocupação com os escravos, suas fugas e levantes, e com as ações políticas contra o regime implantado após a independência. Quando as autoridades policiais e militares utilizavam essa gramática racial para promover e incitar a “repressão preventiva” (Santos, 2017SANTOS, Igor Gomes. A Horda Heterogênea: crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da nação, Bahia (1822-1853). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2017.), elas miravam a existência concreta dos crimes dos salteadores, punguistas e ladrões de fazendas, mas o que queriam, de fato, era acertar em todo um modo de vida - o campesinato negro. Essa gramática era absolutamente necessária para uma Bahia que viveu, nas primeiras décadas do século XIX, o contínuo pavor causado por rebeliões escravas por todo o Recôncavo e Salvador, e que, nas décadas seguintes, enfrentou, em meio à turbulência de uma guerra de independência, rebeliões federalistas e anti-imperiais que deixaram um rastro perigoso de banditismo, deserção e descaminho das armas do estado para as mãos de milícias privadas e jagunços políticos. Estavam na mira das autoridades todo um modo de vida, associado ao campesinato negro, e toda uma forma delituosa, produzindo-se um léxico associativo das duas ações, como veremos ainda mais a frente, no que diz respeito a outros casos e grupos sociais.

Na Chapada Diamantina, mais especificamente na vila de Lençóis, outro lugar que concentrou muitos indivíduos vindos de todos os lugares para tentar a sorte nas minas da região, no ano de 1846, Herculano Cunha, juiz municipal, informou outras autoridades sobre um boato de um levante escravo que teria sido movido “pela canalha que se compõe de criminosos de todos os lugares” (Cunha, 1846CUNHA, Herculano Antonio Pereira da. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 402. Rio de Contas (Arquivo Nacional, AN). 17 de janeiro de 1846.). Não foi possível, por falta de outros documentos, saber o alcance dessa aliança - se é que se configurava de fato uma aliança, e não apenas um boato. No entanto, vale à pena se destacar que o termo canalha tem como sinônimos “gentalha”, “populacho” e “ralé” (Aulete, 1881AULETE, F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881., p. 272). As palavras tinham sentido preciso. “Canalha” incide para além de “criminoso”, expandindo-se o sentido de inferioridade a toda a população pobre e de cor dos sertões da Bahia do século XIX. O juiz podia ter dito que os criminosos espalharam o boato, mas ele quis enfatizar que os criminosos eram compostos pela canalha, ampliando assim o escopo da repressão preventiva. Por conta da historiografia, sabemos a cor e a condição social de muitos dessa “canalha”, que foram trabalhar de faiscadores nas minas da Chapada (Almeida, 2010ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.).

Antônio Africano era provavelmente o pesadelo dessas autoridades que enxergavam, por toda a parte, quilombos de ladrões e criminosos amocambados. Segundo João Borges, juiz de paz de São Gonçalo, ele era um dos principais agitadores e “sedutores da escravatura” para a adesão à rebelião de 1835, conhecida como Revolta dos Malês. Antonio, segundo o mesmo juiz, vivia de envenenar “a escravatura tanto para a rebelião como para furtos” (Pereira, 1833PEREIRA, José Bernardino. Seção Colonial Provincial, Governo da Província, Polícia, 6151; Vila de Abadia (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 17 ago. 1833.). Um africano, provavelmente fugitivo - isto é, que se negou a viver submetido às formas mais diretas da escravidão e que possivelmente se sustentava fora da senzala por meio de furtos, fazendo uso de sua liberdade para seduzir outros escravos a seguir a insurreição -, podia ser, na mente dos proprietários, uma clara mensagem para outros escravos de que o crime compensava e, além disso, de que a aliança entre escravos fugidos e escravos cativos, temida pelos senhores, poderia acontecer.

FORÇAS DE DIVERSAS QUALIDADES, MISTURADOS E CÁFILA DE LADRÕES

Se o crime não foi a porta de acesso à revolta dos Malês - um levante planejado e organizado ao longo de algum tempo -, pode ter sido no caso dos indígenas da vila de Pedra Branca. Em 1834, um levante poderoso e de curta duração promovido pelos indígenas Kiriri Sapuyá aturdiu as autoridades baianas. Esse povo, por viver numa entrada do Paraguaçu - rio que seguia até as regiões ocupadas pela mineração e, mais à frente, já no século XIX, pela expansão das plantações de fumo -, vivia acossado pela contínua presença das fazendas de pecuária e, por esse motivo, entrava constantemente em choque com os homens brancos.

Segundo Maria Paraíso (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., pp. 27-29; Rego, 2009REGO, André de Almeida. Cabilda de facinorosos moradores (uma reflexão sobre a revolta dos Índios da Pedra Branca de 1834). Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. ), a expansão fumageira, a redução física dos indígenas, a perda de importância da sua força de trabalho pelos portugueses, os quais passaram a importar cada vez mais força de trabalho africana nos anos iniciais do século XIX e, enfim, a sede por terras para as diversas plantações modificaram aspectos da política dos Diretórios Indígenas. Para a autora, essa reformulação alterou a incorporação subalterna dos indígenas aos planos nacionais e, consequentemente, o modo de administração dos aldeamentos, incluindo o de Pedra Branca.

A transformação dos aldeamentos numa freguesia ou vila, parecida com as demais, aumentava o contingente de membros de outras raças e culturas numa mesma unidade política. A lógica da administração central buscava implantar/garantir “civilização”, fosse à força ou de forma pacífica, em substituição aos processos de catequese - que estavam apenas enfraquecidos enquanto técnica de controle central -, além de impor a ainda imatura, mas atuante, lógica da ideologia do trabalho livre e assalariado como experimento para os indígenas. Somavam-se ainda os processos de privatização das terras daquele povo, que os empurrava para fora de suas roças e os inseria determinantemente nas relações de mando menos paternalistas, guiadas, naquele momento, pelos capuchinhos, que ocupavam o lugar dos jesuítas, e pelos fazendeiros, sob a anuência do Estado Nacional7 7 Sobre esse tema, ver, em destaque, o livro de Almeida (2010), especialmente o capítulo 6 Ver também Sposito, 2012. .

Os Kiriri Sapuyá caminhavam a passos largos para a sua expulsão definitiva do resto de terras que lhes sobrava. Sua alimentação, devido à falta de acesso às terras e à caça, estava cada vez mais precária. Segundo Paraíso (1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985.), para complementar sua dieta, o ataque ao gado das fazendas passou a ser corriqueiro.

Crime e criminalização foram as portas de entrada dos indígenas de Pedra Branca para um levante em 1834, tornando-se, também, o mote da repressão que se abateu sobre eles. Ao escreverem para as autoridades provinciais, os indígenas denunciaram o conluio entre administradores locais no intuito de tomarem suas terras e de submetê-los a trabalhos degradantes; essas mesmas autoridades acusavam aquele povo de ser assíduo ladrão de gado e de atacar as pessoas nos matos (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., p. 31). Seus roubos e as invasões de fazendas reforçavam o discurso da indolência e da vadiagem indígena, da selvageria e do despreparo para a civilização. Tal suposto despreparo somava-se ao fato de que os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca eram acusados de se associarem a outros homens também incapazes de conviver no mundo civilizado. Em um dos primeiros documentos enviados ao presidente da província que relatavam o levante, ele foi avisado que os indígenas eram mais de 300 homens e mulheres armados, sendo que “entre eles se acham muitos que não são índios” (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., p. 30).

O estopim do conflito foi o dia das eleições para juiz de paz do termo, quando os Kiriri Sapuyá tentaram impedir o prosseguimento do pleito, mas foram barrados por conta do excessivo número de cidadãos presentes que os repeliram. Ao se retirarem da Vila, “trataram de se reunirem todos quantos andavam por fora, e criminosos, todos estão praticando como eles os maiores desatinos, roubando os mantimentos e gados e prometendo matarem” (Santos et al. 1834SANTOS, José Henrique dos et al. Seção Colonial e Provincial, Correspondência recebida de juízes - Pedra Branca 1832-1889, 2530; Caranguejo (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 12 jun. 1834.) a todos, especialmente os inspetores de quarteirões indígenas, que eram, como atesta o mesmo documento, escolhidos entre os mais “mansos” e “obedientes” da vila. O autor desse ofício, dirigido às autoridades maiores, faz perceber uma espécie de frente de aliança indígena, que vai de andarilhos e/ou trabalhadores e moradores que viviam de certa itinerância, a pequenos lavradores dos subúrbios da vila (os “que viviam por fora”) e, enfim, a criminosos. Em junho do mesmo ano, outro documento procurava alertar os indivíduos dos arredores da Vila de Pedra Branca, no intuito de que eles evitassem ser “iludidos por qualquer motivo”, protegendo, assim, aquela “cáfila de facciosos e ladrões”. Apelava, enfim, para que não lhes dessem “pousada nem acolhimento” (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., p. 32).

O termo “cáfila”, para o Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza (Aulete, 1881AULETE, F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881., p. 260), significa “corja”, “bando”. Ao se referir a uma “cáfila de ladrões” de forma insultuosa, não só se reitera a depreciação do ajuntamento de ladrões e facciosos, mas também se indica a existência de um grupo, um coletivo. No mesmo dicionário, “cáfila” ainda denota “comboio de mercadorias no interior da Ásia e da África”. Ao que parece, é possível que o termo, como usado no documento das autoridades sobre a situação em Pedra Branca, mobiliza em seu conteúdo (ou semântica) uma conotação racial, seja pelos significados de “corja” e “bando”, seja pela ideia de comboio nos interiores da África e mesmo da Ásia.

As “raças” são definidas historicamente por uma série de componentes históricos, políticos, étnicos, cujas aceitação ou repulsão fazem parte da linguagem para definir “eles” e “nós”; especialmente num país em que sujeitos de cor estavam presentes em diversas classes sociais. Para se racializar os sujeitos de cor - isto é, defini-los como uma comunidade a ser alvo de perseguições, prisões e medo, como se deu nos casos aqui estudados -, outros elementos eram necessários. Na segunda metade do século XIX, como explica Wlamira Albuquerque (2009ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição, raça e cidadania no Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 2009.), alguns termos, além da própria ciência, foram emprestados do contexto imperialista, no intuito de definirem hierarquias raciais. Embora talvez não emergisse uma ciência das raças no contexto de que tratamos, já havia uma prática que depois se tornou uma teoria racial.

Nesse sentido, ao invés de grupos de facciosos e ladrões, ou de bandos de facciosos e ladrões, a autoridade persecutória usa um termo que tem relação direta com o mundo das outras “raças” habitantes da África e da Ásia, como é o caso de “cáfila de ladrões”. Os povos ao redor do conflito com os indígenas foram parte da definição que fundamentava o pacto da racialização aqui definida, como nos informa Guimarães (2008GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Cor e Raça: raça, cor e outros conceitos analíticos. In: PINHO, Osmundo Araújo; SANSONE, Livio (Orgs.). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: EDUFBA, 2008. , p. 1071): o “povo é justamente o sujeito dessa comunidade imaginária de origem ou de destino” do discurso, que visa definir as fronteiras entre os superiores e os inferiores, os brancos e os negros, a plebe/a ralé e os aristocratas “brancos”. Aqui, a suposição era de possível aliança entre o rótulo de “cáfila” e os Kiriri Sapuyá, pois foi sobre essa “comunidade” que se dirigia a preocupação das autoridades.

Os conflitos que se seguiram nas matas, nos dias posteriores à expulsão dos indígenas levantados, agravavam o quadro da aliança entre os supostos criminosos e os indígenas. Era imperioso para os poderes locais dispersá-los o quanto antes, para “prevenir maiores males e mesmo engrossarem em número, pois que são coadjuvados por réus de todos os crimes” (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., p. 35), que “tiravam sempre partido dessas desordens [...] através das pilhagens” (Santos, 1834SANTOS, José Henrique dos. Seção Colonial e Provincial, Juízes - Pedra Branca 1832-1889, 2530; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 23 abr. 1834. ). Paraíso afirma que, nesses conflitos, também se envolveram escravos fugitivos e pardos desprovidos de terra. Poderiam ser estes escravizados e homens pobres relatados nos textos como “malfeitores”, “réus de todos os crimes”, “cáfila”, que colaboravam com os índios nos ataques, não só na época dos levantes, mas também nos roubos de gados às lavouras? Provavelmente sim, afinal, escravos fugidos em grupos praticavam, algumas vezes, razias em fazendas e realizavam pequenos furtos individualmente. Escravizados tiravam proveito das desordens entre grupos sociais diferentes, ou mesmo das cisões do mesmo grupo social, para a efetivação de seus próprios planos.

Enquanto se ocupavam da repressão aos Kiriri Sapuyá de Pedra Branca, um capitão, um alferes e um segundo tenente escreveram para o major comandante, Antonio da Silva Castro, afirmando que era difícil capturá-los, já que a eles havia se agregado, oferecendo proteção, “forças de diferentes qualidades” (Silva et al. 1834SILVA et al. Colonial e Provincial, Juízes, Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 2861; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 4 jul. 1834.).

O que seriam essas “forças de diferentes qualidades”? Sabemos que, na linguagem da época, “qualidade” é um modo de designar a racialização do sujeito dentro de uma sociedade que não é polarizada absolutamente pela composição pura do sangue, mas por escalas de cor que se aproximam mais ou menos da branca, ganhando sentido ao serem escolhidas tanto no momento da sua aplicação (preto, africano, caboclo, mulato, negro, crioulo, cabra, branco, etc.) quanto de sua condição social/estatuto jurídico, de acordo com a sua caracterização enquanto livre, liberto ou escravo. Se for essa a implicação do termo, fica evidente a designação da heterogeneidade dos sujeitos que compunham a unidade de luta contra o Estado nos matos da região de São Miguel e Ribeirão de Pedra Branca, e a tentativa de inculcar a racialização dos sujeitos no combate ao crime e às desordens políticas da época.

A condição racial dos sujeitos é mais uma vez ressaltada de forma não direta quando, no dia 28 de setembro de 1834, uma força “com oitenta baionetas” recebeu “fogo dos malvados” nas imediações do sítio de Manoel Nunes, acabando preso um pardo de nome Manoel, morador do Ribeirão, e um escravo desse mesmo Manoel (Silva et al. 1834SILVA et al. Colonial e Provincial, Juízes, Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 2861; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 4 jul. 1834.). Depois de outras intensas trocas de tiros com os rebeldes que estavam sendo perseguidos há dias, relatou-se que os “malvados se acham em grande número, em várias casas de palha foram achados barris de pólvora, de que faziam uso, e disse serem coadjuvados por um partido de descontentes do sistema atual”. Considerava-se, enfim, que, se o governo não rechaçasse logo aquele movimento, teríamos “uma segunda guerra de cabanos” (Silva et al. 1834SILVA et al. Colonial e Provincial, Juízes, Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 2861; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 4 jul. 1834.).

Os oficiais que enviaram essa carta ao Comandante da força, o Major José Antônio da Silva Castro, não se enganavam quanto ao conteúdo humano daqueles que combatiam, ao compararem sua batalha àquela que o Estado travou contra os cabanos nas matas de Pernambuco a Alagoas. Segundo Marcus Carvalho, o exército cabano era constituído por agrupamento de escravos fugidos, os papa-méis, os índios que ocupavam as florestas da Marinha Imperial, além de posseiros, proprietários rurais e seus dependentes, lavradores e trabalhadores pobres (Carvalho, 2011CARVALHO, M. J. M. Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra os “jacubinos”: a Cabanada, 1832-1835. In: DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. pp. 167-200., p. 170). A esta composição multiétnica e plurirracial o autor chamou de “gentes da mata”, setor mais aguerrido e popular da Cabanada que protegia a floresta e a terra contra o avanço de um setor de grandes proprietários, após a quebra do monopólio do corte da madeira pela Marinha. Ao que parece, portanto, não havia exagero nessas aproximações: o lugar do Ribeirão era considerado um “covil de criminosos”, além de ser efetivamente um local onde a presença federalista parece ter feito parte dos atos de insurreição em Cachoeira, nos conturbados anos 30 do século XIX no recôncavo (Silva et al. 1834SILVA et al. Colonial e Provincial, Juízes, Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 2861; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 4 jul. 1834.).

Aliás, esse de fato é o pano de fundo político que proporcionou um olhar mais vigilante que o normal sobre esses grupos sociais subalternos. Os levantes federalistas, a Revolta dos Malês e a Sabinada, bem como todo um período regencial explosivo, deixavam o sistema político e policial atentos. Crime político e crimes comuns eram implicados em uma mesma trama, com o intuito de se reprimirem, genericamente, aqueles que incomodavam a implantação da ordem social centralizadora. Por exemplo, em maio desse mesmo ano, José Antonio de Souza Castro afirmou que mais de 330 homens em armas hostilizavam a nação em São Félix, Recôncavo baiano. E que constava entre eles muitos indígenas (Castro, 1834CASTRO, José Antonio de Souza. Seção Colonial e Provincial; Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 1861 (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 20 mai. 1834.). Em 1839, um grupo de salteadores de mais de trinta homens agia no lugar do Ribeirão. Eles estavam roubando e matando “até o Curralinho e Genipapo e mais circunvizinhanças” (Pereira, 1839PEREIRA, Francisco Xavier Oliveira. Colonial Provincial, Juízes, Cachoeira, 2273; Cachoeira (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 20 mar. 1839. ). Segundo diziam, aquela quadrilha era composta “em grande parte dos rebeldes que por esses lugares ficaram” (Pereira, 1839PEREIRA, Francisco Xavier Oliveira. Colonial Provincial, Juízes, Cachoeira, 2273; Cachoeira (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 20 mar. 1839. ).

Provavelmente, trata-se de uma sequela da unidade entre indígenas, homens pardos e negros, e da crise social e política daquele lugar. João Reis (2012REIS, João José. Cor, Classe, Ocupação etc.: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823-1833. In: REIS, João José; AZEVEDO, Elciene (Orgs.). Escravidão e suas Sombras. Salvador: EDUFBA , 2012. pp. 279-320.), ao analisar o perfil dos rebeldes dos levantes políticos da Bahia de 1824 até 1837, constatou uma incidência sempre acima de 50% de não brancos nesses movimentos8 8 Num outro texto de João Reis, ele diz: “diante da generalização das inquietações das camadas pobres (brancas e de cor), os zeladores da ordem teriam imprimido um cunho racial em seus apelos relativos ao controle dos movimentos sociais. E aqui seria interessante questionar, até que ponto a caracterização racial do enfrentamento social não fora uma estratégia política usada para barrar o desenvolvimento da dissidência dos homens brancos? Em outras palavras: o apelo ao temor generalizado dos brancos - ricos e pobres - sendo utilizado pela elite para acalmar a paciência dos não proprietários brancos, como se anunciasse: todos nós, como brancos, temos inimigos comuns que constituem essa enorme massa de negros da província” (Reis, 1976, p. 379). . Parte considerável deles era composta por militares ou ex-militares, como ressaltou Reis (2012)REIS, João José. Cor, Classe, Ocupação etc.: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823-1833. In: REIS, João José; AZEVEDO, Elciene (Orgs.). Escravidão e suas Sombras. Salvador: EDUFBA , 2012. pp. 279-320. e alguns outros pesquisadores das resistências no tempo da Independência. Os homens de cor eram sempre capturados pelo recrutamento forçado, às vezes de forma ilegal, como forma preventiva de combate ao crime ou à fuga escrava. A deserção era uma situação permanente entre as forças militares e, com ela, observava-se um rastro de assaltos, contrabandos, roubo de animais e violências diversas contra toda a população rural.

Ainda em 1839 e em 1844 houve refregas mais uma vez entre índios e autoridades locais, motivadas pela insatisfação com essas mesmas autoridades ou pela troca delas sem a consulta dos indígenas. Ambas foram sucedidas pelas acusações de que “os malvados comedores de gado das fazendas alheias” (Paraíso, 1985PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985., p. 42) estavam atacando novamente. Este poderia ser um artifício óbvio de criminalização, mas, como podemos notar em alguns outros documentos, essa realmente parecia ser uma tática de luta ou de sobrevivência desse grupo às invasões de suas terras, de seu sistema alimentar e de trabalho. Vejamos: em 1841, nas imediações de Pedra Branca, o juiz de paz pedia providências “pelo roubo que me fizeram os misturados dessa freguesia, moradores no lugar do Tabuleiro” (Santos, 1841SANTOS, José Henrique dos et al. Seção Colonial e provincial, Correspondência recebida de juízes - Pedra Branca. 1832-1889, 2530; Jibóia (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 05 de mar. 1841. ). Haviam roubado um boi manso do engenho dele, o que, somado a outros roubos, já perfazia três ou quatro. Afirmava que, se não houvesse providências, as propriedades seriam abandonadas, pois se estava trabalhando para sustentar velhacos.

Segundo Lara (2019LARA, Silvia Hunold. Pretos, Pardos e Mulatos: cor e condição social no Brasil da segunda metade do século XVIII. In: BALABAN, Marcelo; LIMA, Ivana Stolze; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (Orgs.). Marcadores da diferença: raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA , 2019. pp. 19-40. , pp. 23-24), no contexto de precarização das condições de vida dos indígenas no período colonial, os governos buscavam confundi-los com mulatos, pardos, entre outras caracterizações de menor definição em relação a deveres e direitos. No contexto analisado, dizer que eram “misturados” significava dizer que eram ao menos não índios, o que visava invalidar as políticas de proteção de terras para esse grupo social, além de permitir a repressão a todo modo de vida circundante da região, baseado na racialização. Aqui, como tantas outras vezes, a mistura racial (sanguínea) opera no intuito de negar direitos aos Kiriri Sapuyá, retirá-los da “proteção do Estado” e criminalizá-los.

As ações contra a propriedade muar e cavalar parecem ter sido uma prática contínua dos povos indígenas, pouco ou menos afeitos aos símbolos de riqueza e distinção da civilização branca. Voltavam-se a esses “delitos”, como já foi dito, devido à necessidade alimentar, mas também porque as conquistas dos sertões, que ainda avançavam no início do século XIX, com suas fazendas pecuaristas, invadiam seus territórios. Mas, a subtração do gado não era uma ação exclusiva dos indígenas. Pelo contrário, parece ter sido a modalidade de furto mais disseminada no cotidiano da população pobre rural (livre, escrava, liberta e aldeada, etc.) (Thompson Flores, 2014THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. “Gados Mal Havidos”: Os roubos de gado no espaço fronteiriço. In: Crimes de fronteira. A criminalidade na fronteira meridional no Brasil (1845-1889). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014.; Fraga Filho, 2006FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006., pp. 197-207) e também entre a população quilombola, como nos informa Gomes (1997GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (Secs. XVII-XIX). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. Campinas, 1997., pp. 54-55). Assim, a guerra contra o crime poderia ser, ao mesmo tempo, uma guerra contra as raças e vice-versa.

CANALHA DE TODA QUALIDADE

Notória região de indivíduos foragidos ou de comunidades de fugitivos, o chamado Médio São Francisco permitiu o surgimento de uma camada dirigente local habituada ao exercício da sua força através da cooptação desses sujeitos. Esses homens ficaram conhecidos como acoitadores. Como já destacamos acima, no cenário escravista era muito comum a presença desses acoitadores no funcionamento das comunidades de senzala e até mesmo do campesinato negro. No entanto, nessa região da Bahia, os proprietários de terra tinham uma proporção bem menor de escravizados e os negócios travados entre os fugitivos, os forasteiros e os facinorosos eram, muitas vezes, determinados pelo aluguel do gatilho e pelo exercício da formação de milícias de jagunços voltados à promoção das disputas eleitorais ou às demonstrações de poder que lhes garantiam ocupações na reorganização do Estado no pós-independência.

Os motivos para essa formação de classe, segundo alguns autores, entre eles Pinho (2018PINHO, José Ricardo Moreno. Escravos, quilombolas ou meeiros? Escravidão e cultura política no Médio São Francisco. Salvador: EDUNEB, 2018.), Lins (1983LINS, Wilson. O Médio São Francisco: uma Sociedade de Pastores Guerreiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasiliana, 1983.) e Rocha (2004ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco Fator Precípuo da Existência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.), seria a decomposição dos latifúndios coloniais e as disputas de terras resultantes dessa situação; o empobrecimento de parte dessa mesma população, agravado por secas; a tradição de organização de milícias que abrigavam forasteiros na luta dos povoadores contra os indígenas, incluindo o abrigo para o elemento negro fugido. Para agravar, a política liberal após a independência permitiu dar-se vazão à sede de poder e obtenção de rendas e prestígio desses senhores fazendeiros, através da Guarda Nacional e das eleições turbulentas a cargos públicos, os quais foram despudoramente usados para acobertar criminosos, proteger jagunços, alistar criminosos em destacamentos militares ou transformar milícias privadas em destacamento oficial e vice-versa.

A Comarca do São Francisco era um roteiro possível para os fora da lei devido a essa formação histórica, às fronteiras delimitadas pelo próprio rio, que corria entre províncias, e à dificuldade de se dar caçada aos bandidos por conta dos diversos afluentes do rio. O caso de José Marcos da Cunha é muito evidente para visualizarmos essa situação. Após cometer crimes de modo reincidente desde 1835, nas Comarcas de Jacobina e Barra do Rio de São Francisco, ele havia retornado a Vila Nova da Rainha, onde assaltou vários moradores e autoridades, rendendo-os dentro de suas próprias casas. Nessa oportunidade, o juiz municipal escreveu que aquele homem vinha promovendo a mesma “correria” de Minas até o Rio de São Francisco, lugares onde ele já tinha se “tornado célebre, notável na prática de quantas sortes de atrozes crimes se possam imaginar” (Maia, 1848MAIA, José Pereira. Colonial Provincial, Justiça, Juízes - Jacobina 1847-1854, 2432; Vila Nova da Rainha (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 13 de maio de 1848.). Nessas andanças por essas regiões era fácil, segundo o juiz, que ele obtivesse 50 homens “de todas as qualidades” (grifamos), para praticar suas ações armadas.

Numa dessas correspondências sobre esses crimes, o juiz destacou a geopolítica bandoleira quando afirmou que as autoridades provinciais, se quisessem combater as desordens e os crimes naquela região, deveriam atentar para o fato de que aquela Vila e outras que estavam entre margens de rios desembocavam no Rio São Francisco. Aquela posição era providencial para que os “facinorosos” cometessem crimes e rapidamente se evadissem para algum “distrito pertencente a outra justiça”. Para finalizar, o juiz de paz suplente escreveu que a população daquela Vila crescia contínua e rapidamente, sobretudo pelo seu porto, que recebia gente e mercadoria de várias províncias e outras vilas baianas. Mas, para a infelicidade dele, aquele crescimento populacional era feito maciçamente através de “canoas com [a] canalha de toda a qualidade” (Abrantes, 1830ABRANTES, Manuel Dantas Barbosa. Colonial e Provincial, Juízes - Barra de São Francisco 1830-1886, 2250, Vila da Barra (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 28 ago. 1830. , grifamos). Os historiadores conhecem a composição racial dos ribeirinhos canoeiros, a forma como as autoridades qualificavam os canoeiros e o fato de elas saberem que as canoas transportavam não apenas gente suspeita, mas também os frutos dos delitos dessas pessoas. Os canoeiros eram sempre acusados de fazer parte dos conluios delituosos, e porção desse imaginário vinculava-se a algum tipo de solidariedade racial e de classe que as autoridades suspeitavam existir entre esses canoeiros e a canalha, afinal, eram eles mesmos parte dela: gente de cor, em sua grande maioria indígena e popular.

CONCLUSÃO

As primeiras décadas do século XIX não foram de tranquilidade para os moradores da província da Bahia. Rebeliões de diversos grupos sociais abalavam a confiança de que aquela província podia se manter em paz durante grandes períodos. As elites - neste caso, as classes senhoriais e seus prepostos burocráticos - medravam a cada anúncio de pólvora e confusão. As famílias ligadas aos senhores da cana de açúcar rapidamente migravam para o Recôncavo em busca de refúgio dos abalos políticos da capital, mas se deparavam com outras rebeldias e ameaças que lhes pareciam tão pavorosas quanto os conflitos políticos que já lhes amedrontava: as insurreições escravas.

Essas insurreições já experimentavam uma licenciosidade para os homens de cor. A maior parte desses levantes tinha uma base social intermediária, composta por homens pardos, negros e mesmo escravos. Não eram, necessariamente, as lideranças dos movimentos, mas eram importantes para as tomadas de decisão e para a definição dos rumos dos revoltosos. Quando não foi uma insurreição protagonizada pelos próprios escravos, a escravidão era o pano de fundo das grandes discussões dos programas e manifestos, mesmo quando tais textos eram reveladoramente mudos sobre o tema.

O pavor dos escravizados armados em luta por qualquer causa - mesmo às dos brancos -, ou por causa nenhuma, foi também abordado neste artigo em um segundo plano. Todavia, um segundo plano gritante, pois tentei revelar como o pavor das ações armadas dos escravos produziu um deslizamento lexical - embora não apenas lexical - que comunicava às autoridades aspectos das resistências negras relacionados aos criminosos. Esquadras, mocambos, quilombos, capitães do mato são alguns dos termos usados para associar os homens cujo controle os senhores já haviam perdido - os salteadores - aos homens cujo controle eles não queriam perder - os escravos e indígenas “civilizados”.

Dessa forma, não apenas se combatiam os Kiriri Sapuyá, mas toda a canalha, a gentalha que orbitava em torno de suas terras e que podia transformar aqueles levantes numa Cabanada - ou em algo tão ruim quanto; uma rebelião escrava como a de 1835, que estava para acontecer em devir.

Racializar os sujeitos delituosos, atribuir-lhes alianças com os escravos e índios, ou relacionar o mundo da escravidão aos sujeitos armados, proporcionava um pacote repressivo inequívoco. Cuidava-se, num só tempo, do combate aos sujeitos que afrontavam o Estado devido à sua vida sem trabalho e sem patrão, daqueles que se negavam ao trabalho, fugindo. O banditismo sempre foi um convite a uma possível invenção da liberdade para os escravizados e, ao explicitar esse risco, através de elementos da resistência negra, as autoridades policiais chamavam a atenção das classes dirigentes, sempre preocupadas com sua força de trabalho, para assuntos que lhes escapavam às vistas.

Essa tecnologia de repressão ainda faz escola, não obstante com formas mais sofisticadas e complexas, mas ainda sem conseguir disfarçar seu ódio racial, nas manchetes e nas redes sociais do Brasil atual. Não à toa, no Brasil, o lema “bandido bom é bandido morto” sempre está casado com o “se foi morto na troca de tiro, coisa boa não estava fazendo”, mesmo que os mortos sejam jovens negros em seus carros, indo ao trabalho ou se divertir, ou crianças indo à escola. Afinal, o que se quer ainda hoje, como ontem, é se mirar o modo de vida da suposta “canalha” e mantê-la sob repressão preventiva e permanente, sob a nuvem de fumaça da criminalização dos seus modos de vida.

REFERÊNCIAS

  • ABRANTES, Manuel Dantas Barbosa. Colonial e Provincial, Juízes - Barra de São Francisco 1830-1886, 2250, Vila da Barra (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 28 ago. 1830.
  • ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição, raça e cidadania no Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 2009.
  • ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
  • ARNIZAU, José Joaquim de Almeida. Memória Topográfica, histórica, comercial e política da vila de Cachoeira da província da Bahia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 25, pp. 127-142, 1862.
  • AULETE, F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881.
  • BALDO, Mario. O Capitão-do-Mato. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Curso de Pós-Graduação em História do Brasil, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1980.
  • CARVALHO, M. J. M. Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra os “jacubinos”: a Cabanada, 1832-1835. In: DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. pp. 167-200.
  • CASTRO, José Antonio de Souza. Seção Colonial e Provincial; Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 1861 (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 20 mai. 1834.
  • COUTO, João Pedreira. Colonial e Provincial; Governo da Província, Juízes - São Gonçalo, 1829-1889, 2600, São Gonçalo dos Campos (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 16 jul. de 1830.
  • CUNHA, Herculano Antonio Pereira da. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 402. Rio de Contas (Arquivo Nacional, AN). 17 de janeiro de 1846.
  • FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
  • GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (Secs. XVII-XIX). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. Campinas, 1997.
  • GOMES, Flávio dos Santos. História de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzala no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
  • GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um Fio: História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 1996.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Cor e Raça: raça, cor e outros conceitos analíticos. In: PINHO, Osmundo Araújo; SANSONE, Livio (Orgs.). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • LARA, Silvia Hunold. Do Singular ao Plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos. In: GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um Fio: História dos quilombos no Brasil . São Paulo: Companhia das Letras , 1996. pp. 81-109.
  • LARA, Silvia Hunold. Quem eram os negros do Palmar? In: RIBEIRO et al. (Orgs.). Escravidão e Cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. Campinas - SP: Editora da Unicamp, 2017. pp. 57-85.
  • LARA, Silvia Hunold. Pretos, Pardos e Mulatos: cor e condição social no Brasil da segunda metade do século XVIII. In: BALABAN, Marcelo; LIMA, Ivana Stolze; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (Orgs.). Marcadores da diferença: raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA , 2019. pp. 19-40.
  • LEITÃO, Souza. Seção Colonial e provincial, Juízes - Vila Nova da Rainha 1830-1856, 2639 (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 23 de dezembro de 1831.
  • LINS, Wilson. O Médio São Francisco: uma Sociedade de Pastores Guerreiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasiliana, 1983.
  • LOPES, Juliana Serzedello Crespim. Identidades Políticas e Raciais na Sabinada (Bahia-1837-1838). São Paulo: Alameda , 2013.
  • MAIA, José Pereira. Colonial Provincial, Justiça, Juízes - Jacobina 1847-1854, 2432; Vila Nova da Rainha (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 13 de maio de 1848.
  • MEIRELES, Manuel João de. Governo da Província, Colonial e Provincial, Polícia-subdelegados 1842-1859, 3004; Engenho Timbó (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 12 de maio de 1851.
  • MENDES, Jany Kerly. Esquadras do Mato: atualização e oficialização do posto de Capitão do Mato no Maranhão. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Estadual do Maranhão - Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais. São Luiz, 2012.
  • MIKI, Yuko. Fugir para a escravidão: as geografias insurgentes dos quilombolas brasileiros, 1880-1881. In: GOMES, Flavio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio (Orgs.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014. pp. 35-68.
  • PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro de Estudos Baianos. Vol. 112. Salvador: CEB-UFBA. 1985.
  • PEREIRA, Francisco Xavier Oliveira. Colonial Provincial, Juízes, Cachoeira, 2273; Cachoeira (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 20 mar. 1839.
  • PEREIRA, José Bernardino. Seção Colonial Provincial, Governo da Província, Polícia, 6151; Vila de Abadia (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 17 ago. 1833.
  • PINHO, José Ricardo Moreno. Escravos, quilombolas ou meeiros? Escravidão e cultura política no Médio São Francisco. Salvador: EDUNEB, 2018.
  • PIRES, Maria de Fátima Novaes. O Crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Anablume; FAPESP, 2003.
  • REGO, André de Almeida. Cabilda de facinorosos moradores (uma reflexão sobre a revolta dos Índios da Pedra Branca de 1834). Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009.
  • REIS, João José. Cor, Classe, Ocupação etc.: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823-1833. In: REIS, João José; AZEVEDO, Elciene (Orgs.). Escravidão e suas Sombras. Salvador: EDUFBA , 2012. pp. 279-320.
  • REIS, João José. A Elite Baiana Face os Movimentos Sociais, Bahia: 1824-1840. Revista de História (USP), v. 54, n. 108, pp. 341-384, 1976.
  • ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco Fator Precípuo da Existência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.
  • SANTOS, Igor Gomes. A Horda Heterogênea: crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da nação, Bahia (1822-1853). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2017.
  • SANTOS, José Henrique dos. Seção Colonial e Provincial, Juízes - Pedra Branca 1832-1889, 2530; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 23 abr. 1834.
  • SANTOS, José Henrique dos et al. Seção Colonial e Provincial, Correspondência recebida de juízes - Pedra Branca 1832-1889, 2530; Caranguejo (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 12 jun. 1834.
  • SANTOS, José Henrique dos et al. Seção Colonial e provincial, Correspondência recebida de juízes - Pedra Branca. 1832-1889, 2530; Jibóia (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 05 de mar. 1841.
  • SEM AUTOR. Colonial e Provincial: Governo da Província, Juízes - São Gonçalo 1829-1889, 2600; São Gonçalo dos Campos (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 11 set. 1839.
  • SILVA et al. Colonial e Provincial, Juízes, Revolta dos índios de Pedra Branca 1834, 2861; Pedra Branca (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 4 jul. 1834.
  • SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda , 2012.
  • THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. “Gados Mal Havidos”: Os roubos de gado no espaço fronteiriço. In: Crimes de fronteira. A criminalidade na fronteira meridional no Brasil (1845-1889). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014.
  • VÁRIOS AUTORES (Abaixo assinado). Colonial Provincial, Polícia 3114; Nazaré (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 22 mai. 1837.
  • 1
    Agradeço ao Grupo de Pesquisa “Escravidão e Invenção da Liberdade” pela discussão do texto em uma de suas reuniões, e à Flaviane Ribeiro pela leitura e pelas sugestões ao longo da reorganização dos argumentos.
  • 2
    Chegamos a essas constatações com base, primordialmente - mas não exclusivamente -, em leituras dos chamados “Mapas” produzidos pelas autoridades, que foram lidos nos acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Estado da Bahia. Usamos “mapas” de presos, de julgados, de foragidos, de cadeias da província, entre outros. Esses “mapas” são, na verdade, tabelas que indicam informações concernentes, por exemplo, aos crimes praticados, ao local onde foram julgados e se foram absolvidos ou não, bem como qual é a cor, a qualidade, o estado civil, a idade, entre outros atributos dos sujeitos ali expostos.
  • 3
    Essa é a sugestão de Hill (1987) quando discute as ações de defesa das florestas pelo rei no final do século XVII inglês. Drenar os pântanos, cercar a floresta e desmatá-la, apesar da retórica de segurança e produtividade, implicava, deliberadamente, na “destruição de todo um modo de vida, em brutal desconsideração pelos direitos da plebe” (Hill, 1987, p. 69).
  • 4
    Formulação ideológica que caracterizava o sujeito passível de repressão preventiva pela ação, sobretudo, do recrutamento. Eram homens negros ou pardos, e/ou que viviam em relação com escravos, que não tinham trabalho e eram caracterizados visivelmente pela sua pobreza (Santos, 2017SANTOS, Igor Gomes. A Horda Heterogênea: crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da nação, Bahia (1822-1853). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2017.).
  • 5
    Para esse assunto, ver Pires, 2003PIRES, Maria de Fátima Novaes. O Crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Anablume; FAPESP, 2003., pp. 49-59.
  • 6
    A rejeição tão enfática daquelas autoridades relacionava-se à racialização do ofício, que era normalmente ocupado pela própria gente de cor e por indígenas. Tal racialização estava entranhada no mundo mais vil da escravidão, o da violência quase que direta contra os negros fugidos. A este respeito, ver Lara (1996)LARA, Silvia Hunold. Do Singular ao Plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos. In: GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um Fio: História dos quilombos no Brasil . São Paulo: Companhia das Letras , 1996. pp. 81-109. .
  • 7
    Sobre esse tema, ver, em destaque, o livro de Almeida (2010)ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010., especialmente o capítulo 6 Ver também Sposito, 2012SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda , 2012..
  • 8
    Num outro texto de João Reis, ele diz: “diante da generalização das inquietações das camadas pobres (brancas e de cor), os zeladores da ordem teriam imprimido um cunho racial em seus apelos relativos ao controle dos movimentos sociais. E aqui seria interessante questionar, até que ponto a caracterização racial do enfrentamento social não fora uma estratégia política usada para barrar o desenvolvimento da dissidência dos homens brancos? Em outras palavras: o apelo ao temor generalizado dos brancos - ricos e pobres - sendo utilizado pela elite para acalmar a paciência dos não proprietários brancos, como se anunciasse: todos nós, como brancos, temos inimigos comuns que constituem essa enorme massa de negros da província” (Reis, 1976REIS, João José. A Elite Baiana Face os Movimentos Sociais, Bahia: 1824-1840. Revista de História (USP), v. 54, n. 108, pp. 341-384, 1976., p. 379).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2021
  • Aceito
    14 Jul 2021
Associação Nacional de História - ANPUH Av. Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, Caixa Postal 8105, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel. / Fax: +55 11 3091-3047 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbh@anpuh.org