Acessibilidade / Reportar erro

Nação, infância e seus outros: literatura infantil brasileira do século XIX ao início do XX1 1 Este artigo teve o apoio da CHAM (NOVA FCSH/UAc), por meio do projeto estratégico patrocinado pela FCT (UIDB/04666/2020).

RESUMO

A literatura infantil brasileira tem sido um campo de poder disputado por diferentes projetos político-ideológicos desde o seu surgimento. Neste artigo, visamos evidenciar que, independentemente das variadas inclinações políticas de seus proponentes, a correspondência entre a “infância brasileira” e o fenótipo europeu foi hegemônica na produção dirigida aos futuros cidadãos. Paralelamente, o apagamento da diversidade populacional, por meio do embranquecimento da população de origem africana e da associação dos povos originários à selvageria - dentre outros artifícios textuais -, contribuiu para naturalizar a imagem de brasileiros e brasileiras como brancos. Malgrado a pouca atenção que a historiografia costuma dedicar à literatura infantil, o argumento apresentado aponta para o papel que as práticas de edição e mediação dessas leituras assume na manutenção do racismo estrutural, negando os mais fundamentais direitos e cidadania a considerável parte da população infantil e juvenil do Brasil.

Palavras-chave:
literatura infantil brasileira; infância nacional; racismo estrutural; cidadania; literatura cívica

ABSTRACT

Brazilian children’s literature has been a disputed field of power since it first emerged. This article intends to show that, regardless of the various political affiliations of its creators, the correspondence between “Brazilian childhood” and the European phenotype was hegemonic in the production aimed at future citizens. At the same time, erasing population diversity through the whitening of the population of African origin and the association of indigenous peoples with savagery - among other textual stratagems - contributed to naturalizing the image of Brazilians as white people. Notwithstanding the scant attention historiography usually pays to children’s literature, the argument presented highlights the role undertaken by editing and mediating this reading matter in the maintenance of structural racism, thereby denying fundamental rights and citizenship to a considerable part of the Brazilian child and youth population.

Keywords:
Brazilian children’s literature; National childhood; Structural racism; Citizenship; Civic literature

QUESTIONAR O CÂNONE, REPENSAR A HISTÓRIA2 2 Agradeço a Carina Martins pela leitura e pelos comentários a respeito do rascunho desse texto.

“Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral - e no físico, que feiura! [...] Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível - amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã [...].”

(Monteiro Lobato, 1944LOBATO, Monteiro. Carta de 3 de fevereiro de 1908. In: LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre: Quarenta anos de correspondência literária. 1. Ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. pp. 132-134. [1908])

Os parágrafos iniciais de A Menina do Narizinho Arrebitado, primeiro livro infantil de Monteiro Lobato, publicado em 1920LOBATO, Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. São Paulo: Revista do Brasil, 1920. , apresentam o cenário e algumas das principais personagens do livro que inaugura a sua vasta e conhecida obra. Em poucas linhas, leitores e leitoras são apresentados à Dona Benta, “uma triste velha, de mais de setenta anos”, que entretanto “vive feliz” graças à Lucia, a neta órfã que mora com ela e tem o apelido de “Narizinho Rebitado” referido no título. E a outras duas moradoras que formam essa família de mulheres: a “tia Anastácia”, a quem ele refere como “uma excelente negra de estimação”, e a “Excelentíssima Senhora Dona Emília, uma boneca de pano, fabricada pela preta”.

Foi preciso quase um século desde o lançamento deste livro para que vozes do movimento negro conseguissem chamar a atenção para os danos da linguagem racista sobre as crianças. Considerado o maior expoente da literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato possui a aura daqueles autores que pertencem ao cânone literário, ou seja, que são identificados na memória coletiva com o que há de melhor na identidade nacional. Por essa razão, não faltam acadêmicos, jornalistas e outros intelectuais que, para defenderem o escritor, tentam “explicar” e contextualizar o homem e seus livros, ignorando a pluralidade e o contexto dos leitores e de suas comunidades de leitura.

Muitos leitores de Lobato na infância simplesmente não admitem o racismo explícito do autor, o qual aparece na linguagem utilizada em seus textos e, de acordo com outras fontes, pontua também sua biografia. A adesão às teorias pseudocientíficas da superioridade branca, difundidas pelo discurso eugênico, e a simpatia pela Ku Klux Klan são algumas das manifestações documentadas pela correspondência de Lobato, analisada em teses e dissertações (Chiaradia, 2008CHIARADIA, Kátia. Ao amigo Franckie, do seu Lobato: estudo da correspondência entre Monteiro Lobato e Charles Franckie (1934-37) e sua presença em O Escândalo do Petróleo (1936) e O Poço do Visconde (1937). Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2008. ; Habib, 2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003. ). A existência dessas fontes sugere, inclusive, que ideias e imagens depreciativas poderiam ser lidas como vetores de um projeto político-intelectual. Uma hipótese mais produtiva que as variações do clichê do “homem do seu tempo” (Hansen; Gomes, 2016HANSEN, Patrícia Santos; GOMES, Angela de Castro. Intelectuais, mediação cultural e projetos políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In: HANSEN, Patrícia Santos; GOMES, Angela de Castro (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. pp. 7-37.; Velho, 2003VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 3. Ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2003.).

O que a polêmica tornou evidente foi que leitores de diferentes gerações e identidades raciais estabelecem afetos distintos com a obra lobatiana (Coli, 2019COLI, Jorge. Só quem não leu ou não entendeu livros de Lobato pode julgá-los racistas. Folha de São Paulo. 3 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/02/so-quem-nao-leu-ou-nao-entendeu-livros-de-lobato-pode-julga-los-racistas.shtml >. Acesso em: 28 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jo...
; Miguel, 2013MIGUEL, Adilson. Lobato e o racismo. Revista Emília. 16 fev. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/ >. Acesso em: 10 jul. 2022.
https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-...
; Reginaldo, 2019REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora. Folha de S. Paulo. 10 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml >. Acesso em: 4 nov. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
). E é fundamentalmente isso que permite colocar uma série de questões sobre as relações entre literatura infantil, identidade nacional e cidadania no Brasil: Existe literatura infantil ideologicamente neutra? Quem determina os autores e as obras que constituem o cânone dessa literatura? Que imagem da nação e da nacionalidade é apresentada? Como lidar com as diferentes leituras produzidas pelas mudanças nos contextos históricos em que essas obras serão recebidas? E, finalmente, o que permite que essa obra de literatura infantil, considerada um dos melhores expoentes produzidos pela cultura brasileira, venha propagando há 100 anos imagens potencialmente humilhantes para uma sociedade constituída, em sua maioria, por pessoas que se identificam como pretas ou pardas?

Ao buscar um caminho de reflexão sobre essas questões, o artigo procura oferecer uma análise de aspectos da produção, da circulação e da apropriação de livros para crianças, num momento em que esses eram considerados escassos ou mesmo inexistentes. Essa noção, que ganha impulso após a Proclamação da República, foi mobilizada pelo próprio Lobato, para se apresentar como o “criador” da literatura infantil brasileira décadas mais tarde (Lobato, 1933LOBATO, Monteiro. História do Mundo para as Crianças. O Tico-Tico, ano XXX, n. 1467, p. 31, 15 nov. 1933. ). Mais do que a impressão de ruptura radical que certas periodizações da história costumam criar, em geral focadas em eventos e personalidades criadoras, o que se propõe é considerar a literatura infantil brasileira no quadro das relações de poder que atravessam a produção, a circulação e a recepção desse tipo de bem cultural (Hansen, 2016HANSEN, Patrícia Santos. A literatura infantil no Brasil e em Portugal: problemas para a sua historiografía. Sarmiento, n. 20, pp. 133-161, 2016. ).

“LIVROS-NAÇÃO”, LITERATURA INFANTIL E FORMAÇÃO DE CIDADÃOS

“Aos meus jovens patrícios dedico”

(Coelho Netto, 1897COELHO NETTO, Henrique M. América: educação civica. Rio de Janeiro: I. Bevilacqua & C., 1897. ).

A moda internacional de uma literatura cívico-pedagógica dirigida às crianças é uma fase marcante na história da literatura infantil ocidental entre o final do século XIX e o início do XX. Esse fenômeno é produto da interseção de, pelo menos, cinco fatores relacionados ao nacionalismo oitocentista e aos seus meios de expressão cultural. São eles:

  • a produção e a difusão por artistas e intelectuais de representações das nações modernas voltadas para públicos diversos;

  • o entendimento da língua e da literatura como expressões das identidades nacionais;

  • a mudança na percepção do tempo, da qual resulta maior importância social conferida à infância, fase da vida que passa a encarnar o futuro da nação;

  • a expansão dos sistemas escolares e das reformas do ensino, fazendo da educação pública o principal meio pelo qual os Estados nacionais promovem a padronização da língua, a construção de um passado comum e a formação de cidadãos de acordo com os regimes políticos em vigor;

  • a maturidade da indústria e do comércio editorial, que permite a ampliação da circulação de mídias impressas pelos territórios nacionais.

Histórias da literatura infantil produzidas em vários países a partir do final da década de 1920 trataram essa literatura de forma distinta, incluindo ou excluindo títulos e autores conforme critérios variados. O uso didático ou o caráter pedagógico foi um argumento frequentemente mobilizado para a exclusão ou a desvalorização de textos em alguns países, o Brasil inclusive, embora títulos do gênero sejam considerados clássicos em outros lugares.

O gigantesco investimento intelectual e editorial nas literaturas infantis nacionais, durante a segunda metade do século XIX, veio acompanhado da criação e da expansão de sistemas e reformas educacionais e curriculares visando à nacionalização do ensino. Ambos os processos foram uma manifestação do que Philippe Ariès identificou como um novo “sentimento da infância” (Ariès, 2006ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 2006. ). Vale sublinhar, com Michelle Perrot, que esse sentimento ainda não contemplava a noção de “interesse da criança”, mas refletia a importância do seu recém-adquirido status enquanto “ser social”. Nesse sentido, o interesse do Estado sobrepunha-se ao das famílias seletivamente, com maior ou menor incidência sobre a privacidade doméstica, conforme o estatuto econômico e social daquela. Conforme sublinha a autora, o filho “não pertence somente aos pais: ele é o futuro da nação e da raça, produtor, reprodutor, cidadão e soldado do amanhã” (Perrot, 1999PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4., 1999. , p. 148).

Literaturas infantis nacionais exibiram ideais de nação na representação da infância e da juventude contida nos livros. O recorte do que chamo aqui de literatura cívica não se refere a textos produzidos no âmbito de associações ou instituições como a escola, as ligas cívicas ou o escotismo, mas é feito a partir da forma explícita pela qual textos e edições interpelam a criança leitora enquanto cidadã do futuro, de modo a imputar ao segmento infantil da população um compromisso com a realização de uma ideia de nação. Seu conteúdo ideológico, portanto, é evidente naquilo em que representa uma “infância nacional” (Creech, 2019CREECH, Stacy Ann. Blackness, Imperialism, and Nationalism in Dominican Children’s Literature. International Research in Children’s Literature, v. 12, issue 1, pp. 47-61, Jul. 2019. ; Darr, 2008DARR, Y. A Confrontation between Two Doctrines: The Birth of Struggle for Hegemony in Hebrew Children’s Literature during the 1930s and 1940s. International Research in Children’s Literature, v. 1, issue 2, pp. 139-154, Dec. 2008.; Hansen, 2007HANSEN, Patrícia Santos. Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. ).

Em termos de alcance, levando em conta os baixos índices de alfabetização, de acesso aos livros, mas também de representatividade, ou seja, de identificação das crianças leitoras com as personagens, os cenários sociais e regionais, as referências históricas e biográficas, o que se nota é que, sob o verniz unificador desse destinatário identificado pelos variados termos que remetem à noção de infância nacional, as representações veiculadas são sempre excludentes e hierarquizadas, nos moldes das “comunidades políticas imaginadas”, ou seja, as nações nas quais estão inseridas (Anderson, 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ).

No campo da literatura cívico-pedagógica ficcional, duas narrativas são consideradas fundadoras de uma nova categoria, designada por Cabanel como “romance escolar” (Cabanel, 2007CABANEL, Patrick. Le tour de la nation par des enfants: romans scolaires et espaces nationaux (XIXe-XXe siècles). Paris: Belin, 2007. ): Le tour de la France par deux enfants, da autora francesa Augustine Fouilée, publicado sob o pseudônimo de G. Bruno em 1877, e Cuore, do autor italiano Edmondo De Amicis, publicado em 1886, foram os principais modelos para romances infanto-juvenis nacionais em várias partes do mundo ocidental. A despeito de suas diferenças, eles inauguram um novo tipo de livro de leitura, adicionando conteúdos cívicos a esse tipo de livro escolar que em geral possuía o formato de antologia ou “seleta” de clássicos. Trata-se, portanto, de uma inovação em relação à estrutura tanto dos livros de leitura quanto dos manuais de instrução cívica, que, em geral, seguiam um formato enciclopédico. Essa mescla permitiu a incorporação do modelo pedagógico dos romances de formação, uma das influências dessas narrativas. Além disso, os livros remetiam seus leitores a experiências políticas e sociais recentes, sensíveis às respectivas populações, como a perda territorial decorrente da guerra franco-prussiana e o processo de unificação italiana.

A abordagem de temas políticos sensíveis, pela literatura cívica, foi uma novidade, ainda que o tratamento desses temas na ocasião fosse radicalmente distinto das formas pelas quais a literatura infantil mais recente aborda questões consideradas difíceis para crianças. Independentemente do caráter identitário que subjaz a todas essas abordagens, ao narrar a nação e a nacionalidade, a literatura cívica cristalizou imagens da infância nacional com as quais seus leitores e suas leitoras podiam ou não se identificar e, no mesmo processo, identificar os seus “outros” - subalternos ou superiores, aliados ou inimigos.

A fluidez dos contornos entre os tipos de livros dirigidos às crianças e as práticas de leitura a eles associadas é mais evidente na análise dos adereços que acompanham e servem de “protocolos de leitura” do texto principal do que no próprio texto (Chartier, 2001).

Veja-se o caso do livro A História do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, do conhecido intelectual sergipano Silvio Romero (1890ROMERO, Sylvio. A historia do Brasil ensinada pela biographia de seus heroes (Livro para as classes primárias). Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves & Comp. , 1890. ). A data é significativa. Em 1890, o regime republicano completava seu primeiro aniversário, e a abolição da escravidão, o segundo. Ainda era vigente o governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca e estava em discussão uma nova Constituição, que seria promulgada no ano seguinte. A situação política brasileira fazia com que nacionalidade e cidadania fossem campos abertos a diferentes projetos. O livro, apresentado na capa como destinado ao “ensino cívico” e às “classes primárias”, é somente um entre vários exemplos do forte engajamento de intelectuais consagrados com a produção de leituras para crianças naquele momento, em particular em Portugal e no Brasil, países nos quais a literatura infantil não havia crescido muito desde que Eça de Queirós denunciou sua inexistência na coluna “Cartas da Inglaterra”, dez anos antes (Queirós, 1881QUEIRÓS, Eça de. O Natal - a “Literatura de Natal” Para Crianças. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, Folhetim. n. 40, 9 fev. 1881, n.p., n.p.).

No prefácio, João Ribeiro, que se apresentava como um “patriota que se regozija em ver os seus grandes conterrâneos descerem à escola como Paul Bert, Sarmiento, Benjamin Franklin, Andrés Bello e falarem às crianças para mais de perto falarem ao futuro”, discorria sobre as dificuldades da instrução cívica. Entre os aspectos considerados, destacava a total falta de acordo sobre “que coisa” era a “instrução cívica”, ressaltando o caráter inovador do “gênero narrativo-biográfico” escolhido por Romero para promover o civismo entre as crianças brasileiras. Após uma discussão sobre a legislação em vários países, o prefaciador concluía:

A instrução cívica constitui um saber inclassificável: nem possui os caracteres de uma ciência, nem de uma arte. [...]

Uma das coisas mais curiosas e dignas de nota é justamente o fato de nenhuma legislação determinar a qualidade nem a quantidade do assunto: uma fala apenas de ações sobre as leis orgânicas, outra requer a história unida às noções da Constituição, ainda outra intromete uns rudimentos de economia política e não falta quem peça um pouquinho de heráldica.

Como se vê, ninguém sabe definir a matéria, e a instrução cívica fica reduzida a uma espécie de receituário doméstico onde se acotovelam mesinhas caseiras e doces em calda (Ribeiro, 1890RIBEIRO, João Prefácio. In: ROMERO, Sylvio. A historia do Brasil ensinada pela biographia de seus heroes (Livro para as classes primárias). Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves & Comp., 1890. pp. V-VIII, p. VI).

Também em 1890, José Veríssimo chamou a atenção para a “indiferença patriótica” dos livros de leitura existentes no Brasil, em seu influente texto A Educação Nacional (Veríssimo, 1890VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. Pará: Editores Tavares Cardoso & C., Livraria Universal, 1890. , p. 6). Essa ideia seria desenvolvida nos anos seguintes. A pretexto da publicação de Coração, Veríssimo publica o artigo “Educação Nacional (a propósito de um livro italiano)”, na Revista Pedagógica de fevereiro de 1892, incluindo-o posteriormente na 4ª edição do livro, em 1894. Nele, o caso italiano era tratado como um paradigma de unificação nacional pela educação.

Todo o mundo sabe que a obra da reconstituição da Itália é eminentemente um longo trabalho de educação nacional, feito pelos seus escritores, pelos seus poetas, pelos seus artistas, pelos seus oradores, pelos seus estadistas, como a obra da perfeita unificação está continuando a ser o esforço e ação não só desses como e sistematicamente da escola (Veríssimo, 1894VERÍSSIMO, José. In: AMICIS, Edmondo de. Coração. 4. Ed. Cuidadosamente corrigida, com um estudo sobre De Amicis por José Veríssimo. Rio de Janeiro: Alves, 1894. pp. IV-XIII., p. XI).

Adiante, o autor reflete acerca das possibilidades da utilização de Coração na formação moral e cívica das crianças brasileiras:

O livro de De Amicis é eminentemente italiano, na sua inspiração e na sua concepção, no seu objeto e no seu fim, no seu espírito e na sua ideia dominante e exclusiva. Eu não sei de nenhuma escola que possua hoje um tão acabado manual de educação moral e cívica, como esse perfeito singelo e despretensioso livro de leitura. [...] Ao escolar brasileiro, como ao escolar francês ou português, ele ensinará a moral mais elevada e simpática; mas não lhes falará senão de uma pátria que eles não conhecem nem podem amar e cuja vida e cujas glórias, cujas lutas e triunfos, lhe são indiferentes. Para a nossa escola fica, portanto, perdido o máximo valor desse livro. O que lhe convinha não era uma tradução, mas uma adaptação ou imitação (Veríssimo, 1894VERÍSSIMO, José. In: AMICIS, Edmondo de. Coração. 4. Ed. Cuidadosamente corrigida, com um estudo sobre De Amicis por José Veríssimo. Rio de Janeiro: Alves, 1894. pp. IV-XIII., p. XII).

Pode-se dizer que a primeira “adaptação” brasileira de Coração seria realizada por Coelho Netto. Publicado em 1897 com o título América, o livro faz uma provável referência ao colégio Americano, fundado e dirigido por Veríssimo no Pará (Gomes, 2009GOMES, Angela Maria de Castro. A educação nacional: república e educação patriótica. In: GOMES, Angela Maria de Castro. A República, a história e o IHGB. 1. Ed. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. pp. 99-105.). Cenário principal da narrativa, América é o nome do colégio descrito nas memórias do protagonista e narrador Renato como uma verdadeira utopia republicana.

Foi também nesse romance que o autor inaugurou, na ficção infantil brasileira, o ideal cívico da mulher/mãe republicana. O lugar das mulheres brancas na construção da nação foi um campo disputado nessa literatura. Autoras e autores reivindicaram a importância da educação das futuras “mães de família”, considerando seu papel numa necessária transformação do ambiente doméstico e na educação dos homens do futuro.

Coelho Netto põe o discurso de esclarecimento sobre os limites da educação doméstica na voz da mãe do menino Renato, logo no início de América.

- Eu podia continuar os meus estudos em casa com o Dr. Lima, balbuciei.

- Não, meu filho, é necessário que vivas algum tempo no colégio, é a tua iniciação na vida. [...] Vais como para uma estufa onde há todos os exemplares do homem ainda em rebento, [...] sobretudo vais lidar com os homens que, como tu, hão de ser os fatores da grandeza da Pátria. [...] Vivendo sempre ao meu lado sairás para a vida ingênuo, conhecendo apenas o coração; [...] esse sacrifício é para teu proveito. Quero que sejas como teu pai: digno sem altivez, sisudo sem atrevimento, parco sem avareza, meigo sem humildade, forte sem vanglória, modesto com simplicidade, discreto, caridoso e verdadeiro (Coelho Netto, 1897COELHO NETTO, Henrique M. América: educação civica. Rio de Janeiro: I. Bevilacqua & C., 1897. , p. 4).

Esse estereótipo é retomado com força em 1907, por Julia Lopes de Almeida, em Histórias de nossa terra, livro que rompe claramente com a amálgama entre patriotismo e masculinidade na literatura cívico-pedagógica. Publicado pela Francisco Alves & Cia., Histórias de nossa terra chegou à 6ª edição revista e aumentada em 1911, quase alcançando Contos Pátrios, livro de grande sucesso que estava na 7ª edição no mesmo ano, apesar de ter sido lançado três anos antes, em 1904.

Histórias de nossa terra tem seus primeiros capítulos ilustrados com fotografias de meninas vestidas com uniforme escolar, ao redor da bandeira nacional e em uma sala de aula (Almeida, 1915ALMEIDA, Júlia Lopes de. Histórias da nossa terra. 11. Ed. Corrigida e Aumentada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. , pp. 6; 10). Nos diversos textos, muitos no gênero epistolar, a autora apresenta um ideal alternativo de patriotismo e civismo, assim como da infância nacional, reforçando positivamente representações da amizade e do trabalho feminino assalariado, e imagens de masculinidade diferentes do estereótipo militar-espartano que era o mais frequente.

Em “Uma Pergunta”, um menino apresenta suas diversas opções à mãe quando desafiado a “tirar da nossa história uma página que nos fizesse bater o coração de entusiasmo e de orgulho”. Entre jesuítas combatendo a antropofagia e a resolução pelo “episódio da destruição da república dos Palmares, o fim de tudo, quando os negros vencidos preferem a morte à escravidão”, passando pelas “lutas dos abolicionistas, nos perfis inolvidáveis de Luiz Gama, de Ferreira de Menezes, de Joaquim Serra, de Patrocínio”, em comum suas personagens têm por característica o combate às injustiças ou a promoção de algum tipo de “progresso” não associado diretamente à violência3 3 Sobre o projeto educativo de Julia Lopes de Almeida, ver Rocha (2020). . Vale destacar a lista numerosa de heróis negros, composta principalmente por intelectuais abolicionistas, e a representação negativa dos povos indígenas, sempre tratados por “selvagens”. A mãe começa por lembrar dos “heróicos feitos” da insurreição pernambucana, mas logo ressalva: “detesto as guerras, abomino-as sob todos os aspectos. [...] Os labores da paz são os que engrandecem as nações”. De forma didática, a autora fecha o capítulo afirmando, através daquela “mãe” cívica, a sua concepção de patriotismo e masculinidade:

[...] ser forte e ser patriota não é saber matar, mas sim saber amar, honrar o seu nome e trabalhar sem ódios nem rancores por ninguém.

Lembra-te, em todos os tempos, de que a minha aspiração materna é esta, esta só: que meus filhos sejam homens de bem, e pelo bem úteis à sua pátria (Almeida, 1915ALMEIDA, Júlia Lopes de. Histórias da nossa terra. 11. Ed. Corrigida e Aumentada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. , pp. 155-158).

No capítulo seguinte, “República”, um pai esclarece ao filho as diferenças entre o novo regime e a monarquia, a partir de informações sobre o evento da proclamação que o menino traz da escola, ilustrando o papel da educação doméstica na promoção do civismo:

- A diferença principal é esta: a República é o governo do povo todo, e a monarquia é o governo de uma só família. Nas monarquias há uma família privilegiada, que se julga e se diz investida de um direito divino, que a autoriza a governar por todo o sempre a nação, [...].

- E na República?

- Na República não é assim. A República moderna tem esta divisa ou lema: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Ora, como todos os homens são livres, iguais e irmãos, o povo escolhe livremente entre os mais competentes, os mais honrados, os mais sábios, aquele que há de governá-lo e dirigi-lo, e que deve ser o seu representante direto e a maior autoridade da nação; [...] (Almeida, 1915ALMEIDA, Júlia Lopes de. Histórias da nossa terra. 11. Ed. Corrigida e Aumentada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. , pp. 159-161).

O uso da representação da mãe ou do pai como agentes da educação cívica, ou ainda de um “tio” ou “avô”, aparece em textos com diferentes vieses políticos e sugere meios de inscrever a pátria no domínio familiar e doméstico, seja na forma de o autor ou a autora dedicarem o livro aos seus filhos, seja na voz de personagens.

Esse é um dado interessante para pensar que, apesar da presença de elementos gráficos, materiais ou textuais sinalizando o uso de muitos desses livros nas escolas, a circulação de leituras cívicas não foi restrita à instrução e ao ensino. As possibilidades de práticas de leitura, em sintonia com essas representações familiares, são amparadas por fontes que registram a leitura de conteúdos cívicos e patrióticos como entretenimento ou como parte da educação familiar.

O livro mais famoso da literatura infantil patriótica, Porque me ufano do meu país, de Afonso Celso, é um que não se apresenta como um livro para uso escolar. Na edição francesa, por exemplo, aparece indicado como “obra de vulgarização” (Celso, 1912CELSO, Affonso. Pourquoi je m’enorgueillis de mon pays. Paris: Garnier, Frères 1912. ), uma categoria que não implicava o uso do livro a um espaço pré-definido ou a uma idade/fase escolar. Não quer dizer que não tenha sido adotado nas escolas, e há fontes que referem esse uso, apenas que não foi escrito ou editado visando esse público.

O autor utilizou uma fórmula literária comum aos livros infantis, a de apresentá-lo como escrito para seus filhos. Mas as variadas práticas de leitura desses livros podiam ocorrer em qualquer ambiente, assim como a sua associação com outras leituras servia também para informar um certo modo de ler e apreender seus conteúdos. Segundo Maria Helena Câmara Bastos, Gastão Pernalva “recorda de umas férias longínquas, em que pôs na mala de viagem o Cuore, de Amicis, a Volta ao Mundo, de Júlio Verne, as Poesias, de Castro Alves, o Porque me ufano do meu país, de Affonso Celso - ‘o livro mais patriótico que se tem divulgado no Brasil’” (Bastos, 2002BASTOS, Maria Helena Câmara. Amada pátria idolatrada: um estudo da obra Porque me ufano do meu país, de Affonso Celso (1900). Educar em Revista, n. 20, pp. 245-260, 2002. , p. 14).

Já Coelho Netto, que dedica América a seus “jovens patrícios”, em 1910 dedica Alma, educação feminina, a suas filhas. No primeiro parágrafo da nota prefacial, o autor caracteriza o livro como “um conjunto de pequenas narrativas, à maneira de conselhos, apoiadas em ditames morais e cívicos” (Coelho Netto, 1928COELHO NETTO, Henrique M. Alma: educação feminina. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos , 1928. ). O capítulo Pátria é ilustrativo da relação que ele fazia entre educação feminina e patriotismo:

Não penses que o patriotismo consiste apenas no sacrifício de sangue feito pelo soldado... a guerra é o lance extremo. [...]

E à mulher, minha filha, o ser fraco, cabe a responsabilidade maior nesse trabalho, porque, como o Senhor, no dizer dos livros, criou a alma do Homem infundindo-lhe no corpo o seu hálito divino, a mulher mãe deve inspirar ao coração do filho o bom exemplo que é o gérmen da perfeição.

Por isso convém que a educação da mulher seja guiada com todo escrúpulo, [...] (Coelho Netto, 1919COELHO NETTO, Henrique M. Alma: educação feminina. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1919. , pp. 139-141).

A importância da mulher e de sua educação, portanto, ao menos na visão de Coelho Netto, estava subordinada à sua responsabilidade na criação dos filhos homens para a pátria4 4 Sobre as “mães de família futuras”, ver Patroclo (2019). .

A nacionalidade da literatura oferecida às crianças não se colocava somente em relação ao conteúdo dos livros, mas à própria produção/edição destes objetos em função da percepção da existência de leitores “nacionais”. Na medida em que a escassez ou a inexistência de leituras para esse público tornava-se tema onipresente em prefácios e notas desde o final do século XIX, quase todos que faziam algo para suprir aquela carência destacavam-se ou eram destacados nas críticas elogiosas, como tendo cumprido uma “missão”, “dever” cívico ou, no mínimo, um “serviço” à pátria.

Alberto Figueiredo Pimentel, por exemplo, um dos cronistas mais influentes da Belle Époque e responsável pela coleção de livros infantis da Livraria do Povo de Pedro Quaresma, diz o seguinte sobre suas Histórias da Avozinha, de 1896:

Em verdade, ambos esses livros - dizemo-lo com orgulho - vieram preencher sensível lacuna: [...].

As crianças brasileiras, às quais destinamos e dedicamos esta série de livros populares, encontrarão nas Histórias da Avozinha agradável passatempo, [...].

E, só com a satisfação que experimentamos de sermos úteis aos nossos jovens patrícios, damo-nos por bem pagos de nosso trabalho (Pimentel, 1896PIMENTEL, Figueiredo. Histórias da avozinha. Livro para crianças. Rio de Janeiro: Livraria do Povo; Quaresma & C. - Livreiros-Editores, 1896. ).

Livros como os de Figueiredo Pimentel para a Biblioteca Infantil da Livraria do Povo eram edições populares e não tinham por objetivo a utilização nas escolas. Mas a exaltação do espírito cívico e patriótico na feitura de uma obra, naquele momento de “lacuna”, valorizava o produto. Em outros livros, referências à pátria ou aos símbolos nacionais eram incluídas ao lado de contos, poemas e textos com assuntos os mais diversos, com frequência variável. Em Alma Infantil: versos para uso das escolas, dos irmãos Francisca Julia e Júlio da Silva, de 1912JULIA, Francisca; SILVA, Julio da. Alma infantil (versos para uso das escolas). São Paulo; Rio de Janeiro: Editora Livraria Magalhães, 1912. , um “Hino à Pátria” figura ao lado de outros três “hinos” dedicados respectivamente ao “estudo”, à “escola” e ao “trabalho”. No “Hino à Pátria”, a grandeza do Brasil era atribuída à graça divina, conforme o ufanismo católico que teve sua expressão mais bem acabada no famoso livro de Afonso Celso:

Pátria amada, onde a luz tanto brilha,

Esplendores são tantos os teus,

Que tu és a maior maravilha

Das que existem criadas por Deus (Julia; Silva, 1912JULIA, Francisca; SILVA, Julio da. Alma infantil (versos para uso das escolas). São Paulo; Rio de Janeiro: Editora Livraria Magalhães, 1912. , pp. 172-173).

A pátria estava referida nos prefácios, sumários, títulos e nas ilustrações dos livros publicados naquele momento. Mais que um tema tratado em textos específicos, a presença de pátria acaba por se constituir em chave de leitura, a partir da qual assuntos e temas diversos, como o trabalho ou a escola, por exemplo, ganhavam o sentido “patriótico” que isoladamente não possuíam.

Esse diálogo intertextual aparece claramente em Poesias Infantis de Olavo Bilac, publicado pela primeira vez em 1904. Nele, o famoso poema “Pátria”, ao lado de outros sobre o trabalho, as estações do ano, as fases da vida, a família e a natureza, deixa transparecer o projeto político, intelectual e laico de transformação social que se desdobra por toda a obra do autor.

A primeira metade do poema expressa o deslumbramento ufanista pontuado por exclamações:

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

Criança! Não verás nenhum país como este!

Olha que céu! Que mar! Que rios! Que floresta!

A natureza, aqui, perpetuamente em festa,

Já a segunda metade expõe a visão utilitária da natureza, marca do viés capitalista e liberal presente em grande parte desses textos, ao lado de ideias como o valor da ciência como inovação, da indústria, do progresso, e, nesse caso, do trabalho e da meritocracia:

Vê que grande extensão de matas, onde impera

Fecunda e luminosa, a eterna primavera!

Boa terra! Jamais negou a quem trabalha

O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

Quem com o seu suor a fecunda e umedece,

Vê pago o seu esforço, é feliz, e enriquece!

Criança! Não verás país nenhum como este:

Imita na grandeza a terra em que nasceste! (Bilac, 1904BILAC, Olavo. Poesias infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904. , p. 339).

No prefácio à 1ª edição, Bilac dizia: “O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o trabalho de um artista, mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças do seu país.” (Bilac, 1904BILAC, Olavo. Poesias infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904. ).

Os textos cívicos não eram um conjunto homogêneo em gênero ou ideologia. Ao contrário, essa literatura foi uma arena em que podemos observar disputas pela memória coletiva, pelos significados de cidadania e patriotismo, e identificar diferentes projetos em jogo na forma de poemas, contos, romances e outros. A ideologia mais destacada foi representada pelo ufanismo, compreendido por vezes como um “espírito da época”, mas que corresponde especificamente às projeções excessivamente otimistas do segmento de autores e autoras que associavam as riquezas naturais da pátria à graça divina. Seu maior expoente foi Afonso Celso, cujo livro dá origem ao termo. Essa visão, que expressava projetos de cunho religioso e conservador, encontrava um contraponto laico e liberal em autores e autoras que entendiam que seus livros tinham uma função a cumprir na transformação de crianças em agentes do progresso. Entre esses entusiastas da educação republicana muitas vezes o Brasil era referido como um país novo, “onde tudo ainda está por fazer”, enunciado repetido em diversos lugares (Hansen, 2012HANSEN, Patrícia Santos. Sobre o conceito de “país novo” e a formação de brasileiros nas primeiras décadas da República. Iberoamericana, v. XII, n. 45, pp. 7-22, 2012. ).

Escritores com uma visão liberal e utilitarista da natureza, preocupados em superar o atraso com o bom aproveitamento das riquezas do território, percebiam que as ideias do ufanismo católico e conservador eram um obstáculo à valorização do trabalho e da indústria, assim como ao propósito de uma educação guiada pela ciência e pela promoção do mérito individual. Nas palavras de Olavo Bilac, o ufanismo era um “patriotismo mal pensado, que pode ser funesto à pátria e ao patriota” (Bilac, 1996BILAC, Olavo. Obra reunida. 1. Ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996. , pp. 681-693).

INFÂNCIA BRASILEIRA E SEUS OUTROS NO PAÍS DO FUTURO

“O esquecimento, e mesmo o erro histórico, são um fator essencial da criação de uma nação, e é por isso que frequentemente o progresso dos estudos históricos representa um perigo para a ideia de nação. De fato, a investigação histórica traz de volta à luz os fatos de violência que ocorreram à origem de todas as formações políticas, mesmo daquelas cujas consequências foram as mais benéficas. A unidade se faz sempre por meios brutais; [...].”

(Ernst Renan, 2015 [1882])

América, como o restante da literatura cívica republicana da época, adotou o “branqueamento” como forma de narrar a integração de crianças afrodescendentes à representação da infância brasileira. Essa vertente republicana também associou os valores da elite aristocrática dos proprietários de terras e escravos ao atraso.

No episódio mais marcante da narrativa, o diretor da escola é confrontado com uma briga entre um menino descrito como “muito rico”, chamado Castro, que “insulta” outro aluno caracterizado como “mulatinho” e “muito pobre”, chamado Libânio, pois teria dito que ele era “um negro” e que sua “mãe era escrava”. Apesar de Libânio ter respondido fisicamente à agressão verbal, o diretor dá razão a ele, assim como todos os colegas que testemunham que ele havia sido insultado, e esclarece que, naquele colégio, do “portão para dentro só o mérito estabelece distinções entre os meus alunos: aqui não há castas e se há uma superioridade essa é a que pode alegar o senhor Libânio que, sendo um dos meninos de mais brio que tenho conhecido, é um dos melhores estudantes do meu colégio” (Coelho Netto, 1897COELHO NETTO, Henrique M. América: educação civica. Rio de Janeiro: I. Bevilacqua & C., 1897. , pp. 54-55).

Como se percebe pela reação da maior autoridade do colégio, que entendeu ser a violência verbal mais grave que a violência física, chamar alguém de “negro” e filho de “escrava” deveria ser considerado grave ofensa e, portanto, esse tipo de prática precisava ser fortemente repreendida, de forma que os preconceitos aos poucos pudessem ser corrigidos pela educação.

É interessante que a punição de Castro fosse, ao mesmo tempo, uma solução pedagógica e uma solução narrativa, nos moldes das lições sobre datas nacionais sob diversos pretextos que pontuam os livros cívicos. É o único exemplo de uma situação de reparação de ofensa racista na literatura cívica brasileira do período. Além do pedido de desculpas a Libânio, Castro é obrigado a fazer uma redação sobre o “Treze de Maio”, que dá nome ao capítulo. De forma coerente com o projeto que atravessa o romance, a visão de história apresentada no texto minimiza o protagonismo da família real na abolição e imprime ao evento um conteúdo nacionalista, republicano e democrático: “Essa Lei, posto que se afirme ter derivado do coração imperial, saiu da vontade imperativa do Povo: foi a Nação que a impôs ao trono e já não era possível conter a violência da vaga quando foi corrida a represa - e desde esse dia desapareceu da Pátria o preconceito, todos os homens confraternizaram […]” (Coelho Netto, 1897COELHO NETTO, Henrique M. América: educação civica. Rio de Janeiro: I. Bevilacqua & C., 1897. , p. 58).

Mais de uma década depois, em 1910, aparece outra personagem que cumpre o papel de representar a confraternização entre crianças brancas e mestiças. Juvêncio, de Através do Brasil, de autoria de Olavo Bilac e Manoel Bomfim, serve como instrumento para a construção do pertencimento de Carlos e Alfredo, os protagonistas, a uma mesma “comunidade política imaginada”. Na descrição, que reforça sua alteridade em relação aos meninos, Juvêncio é apresentado, no capítulo XIII, como: “um rapazinho de dezesseis ou dezessete anos, vestido à moda do sertão: camisa de algodão grosso branco, paletó e calças de algodão riscado, sapatos e chapéu de couro vermelho. O tipo era simpático, moreno, entre caboclo e mulato − de rosto largo, boca rasgada, olhos vivos e inteligentes” (Bilac; Bonfim, 1917BILAC, Olavo; BONFIM, Manoel. Através do Brasil: narrativa. 3. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1917. , p. 69).

As diferenças entre as personagens ficam claras desde o início. No capítulo em que é introduzido, o sertanejo afasta uma cobra com naturalidade, para a surpresa dos irmãos, que não tinham qualquer intimidade com a natureza. Logo em seguida, porém, em trecho que pode ser lido como sendo sobre a ignorância da população do sertão, representada por Juvêncio, ou sobre a ausência do Estado no meio rural, a personagem, não por acaso, é corrigida pelo mais novo dos irmãos:

- Eh! − exclamou Juvêncio − aqui ninguém mora... Mas, já agora, pousaremos aqui mesmo; daqui não saio, nem por ordem do rei!

Alfredo, já mais animado com a perspectiva do descanso que ia gozar, não pôde deixar de rir:

- Qual rei! Não há mais rei no Brasil! Agora quem pode dar ordens é o presidente da República!

- Pois seja lá quem for − disse, rindo também, o rapaz. − Não saio daqui hoje! (Bilac; Bonfim, 1917BILAC, Olavo; BONFIM, Manoel. Através do Brasil: narrativa. 3. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1917. , p. 72).

No caso do irmão mais velho, a subalternidade de Juvêncio é recorrentemente lembrada. Apesar do menino ser mais novo que ele, Juvêncio só o trata por “Seu Carlinhos”, e em momento algum isso é posto em questão. A representação da amizade e do companheirismo em Através do Brasil, portanto, difere da que é feita na utopia republicana de Coelho Netto, em cujo cenário principal todas as crianças são identificadas pela condição de estudantes. Em América havia resistência da personagem a uma subalternidade condicionada pela cor da pele e pela pobreza, e a igualdade de Libânio era reconhecida pela autoridade do colégio e pela maioria dos alunos, ainda que o caráter excepcional de sua inclusão fosse a todo instante lembrado como resultado de mérito individual, sendo o único estudante referido pelo marcador de raça.

Bilac e Bomfim, por sua vez, ao descreverem a amizade dos irmãos Carlos e Alfredo com Juvêncio como “fraternal”, fazem com que o reconhecimento desse sentimento seja sempre feito pelos rapazes brancos. A relação é representada ao longo do livro de forma assimétrica, e a desigualdade entre eles é expressa a todo momento por Juvêncio ou evidenciada pelas situações descritas. A amizade entre diferentes, nesse e em outros livros cívicos, segue a dinâmica que subjaz a percepção da nação enquanto “comunidade imaginada”, a qual permite que “independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possa existir dentro” da nação, segundo Benedict Anderson, ela seja “sempre concebida como uma profunda camaradagem horizontal” (Anderson, 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. , p. 34).

Para esse efeito, autores de “livros-nação” utilizaram amplamente o “erro histórico” e o “esquecimento”, conforme os conselhos de Renan (1882). Vale notar, nesse sentido, o paradoxo disciplinar estabelecido nesse contexto, que testemunha o desenvolvimento do método crítico de uma história-ciência comprometida com a verdade, e a reivindicação do ensino de história como “pedagogia do cidadão” (Furet, 1990FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, 1990.). Em outras palavras, o enquadramento nacional, que conferia sentido ao conhecimento histórico e ao seu ensino-aprendizagem, teria sua existência ameaçada pelo progresso disciplinar.

A história tinha lugar central nos livros cívicos, em seu propósito de construir a nação, pois o passado narrado como história era alicerce da “grande solidariedade” que ligava passado, presente e futuro, criando um espaço-tempo comum imaginado e sua existência política.

O conto “Mãe Maria”, de Olavo Bilac, é uma dessas narrativas em que a descrição das personagens evidencia o modo como um republicano liberal, ao mesmo tempo em que hierarquizava raça e gênero, percebia o descompasso entre os valores e as regras vigentes nas esferas pública e privada nos últimos anos da escravidão. Sob o imperativo da construção da unidade nacional, todo o ambiente doméstico e as suas práticas assentes na escravidão são descritos como algo que pertencia a um passado distante, fazendo com que os elementos daquela composição parecessem anacrônicos. Essa impressão é reforçada pela estratégia do autor em pontuar o texto com interpelações ao leitor, do tipo: “É ainda esta, no fim de minha longa vida, [...] a recordação mais funda que guardo dentro da alma” (Bilac; Coelho Netto, 1904BILAC, Olavo; COELHO NETTO, Henrique M. Contos patrios: para os alunos das escolas primarias. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904., p. 15).

Numa ponta, o próprio narrador, menino rico, “sinhô-moço” criado por uma mulher negra, a mãe Maria do título, como tantas gerações de crianças brancas. Na outra ponta, a “velha” mãe Maria, sua “verdadeira mãe”, mulher escravizada lembrada em sua extrema bondade, que substitui a mãe “bonita”, mas “imóvel” e “paralítica”. Nas memórias de sua infância, o narrador Amâncio se mostra como uma criança que, desde sempre, seria dotada de poder e autoridade sobre outros, o que é expresso no tratamento de “sinhô” que lhe é reservado. Esse atributo, por sua vez, derivado de sua posição social e familiar de herdeiro, não é objeto de qualquer crítica.

Assim, a velha Maria foi minha verdadeira mãe. [...]

Quando tive de ir para o colégio - um internato sério de onde os alunos só saíam uma vez por ano −, chorei muito tempo, abraçando Mãe Maria, agarrado à sua grossa saia de riscado azul. [...]

Um ano de colégio bastara para me transformar. E, agora, eu aparecia à velha ama-seca, como um novo sinhô-moço - um sinhô-moço que tinha onze anos, que já sabia ler e escrever, que já se julgava um homem, e que às histórias atrapalhadas e tolas de mãe Maria preferia a malha e a ginástica [...] (Bilac; Coelho Netto, 1904BILAC, Olavo; COELHO NETTO, Henrique M. Contos patrios: para os alunos das escolas primarias. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904., pp. 17-34).

Explica o narrador que, não sabendo nada sobre o passado de mãe Maria, sabia “apenas que era africana”, pois: “Comprar e vender escravos era, naquele tempo, uma coisa natural. Ninguém perguntava a um negro comprado o seu passado, como ninguém procurava saber de onde vinha a carne com que se alimentava ou a fazenda com que se vestia.” (Bilac; Coelho Netto, 1904BILAC, Olavo; COELHO NETTO, Henrique M. Contos patrios: para os alunos das escolas primarias. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904., p. 16).

Associar pessoas escravizadas à origem africana e diferenciar os tons de pele, valorizando a pele mais clara, era uma forma de condicionar a nacionalidade e a cidadania ao branqueamento e à miscigenação. Na produção de Bilac e Coelho Netto, com uma única exceção5 5 O conto “A borboleta negra” relata o resgate de um bebê abandonado por duas crianças brancas. Para uma análise deste conto e das representações dos negros em Olavo Bilac, ver França; Mello (2008). , todas as pessoas de pele escura eram africanas, “velhas” e foram escravizadas. Essa caracterização permitia aos autores de textos cívicos evitarem lidar com a identificação de crianças brasileiras com fenótipos que se afastassem do branco.

As famílias patriarcais alargadas, com a forte presença de escravizados e agregados, eram representadas negativamente na literatura cívica republicana. Uma das principais razões era a noção de que o contato com “escravos” ou “criados” prejudicava a formação das crianças, incutindo, por exemplo, “medos” e “superstições”, como as estórias de mãe Maria. A educação da infância era então um assunto sobre o qual os pais deviam estar atentos, e isso era mais factível nas famílias nucleares urbanas.

As memórias de Amâncio, assim como as palavras da mãe de Renato em América, descrevem o contraste entre as experiências do menino no ambiente doméstico e no colégio interno. Em ambos os textos, a ideia é que a presença feminina, dominante no cotidiano da casa, era prejudicial à formação dos rapazes. O ideal de masculinidade republicano era cada vez mais o modelo espartano, imagem, aliás, que será explorada nos textos introdutórios do Manual do Escoteiro Brasileiro (Guinle; Pollo, 1922GUINLE, A.; POLLO, M. Manual do escoteiro brasileiro. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1922. ), escritos por Bilac e Coelho Netto.

O modo de vida das elites econômicas tradicionais, ligadas ao latifúndio e à exploração do trabalho escravo, tornaram-se sinônimo do atraso na obra desses autores. Em contrapartida, as novas elites das burguesias industrial e comercial, tidas por produtivas e empreendedoras, e os profissionais liberais e especializados em áreas técnicas e científicas, eram agora associados ao progresso. Marcadores como idade, gênero, raça, grau de instrução, origem, saúde física, classe, são reposicionados na escala de valores dessa literatura. Mudanças de sentido que ocorrem no contexto de construção da “comunidade nacional”, entendida como um “sistema cultural”, e de disputas políticas e ideológicas pelo seu futuro6 6 Sigo aqui Benedict Anderson, que propôs “o entendimento do nacionalismo alinhando-o não a ideologias políticas conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam, e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para combatê-los”. Esses “sistemas culturais” seriam: “a comunidade religiosa e o reino dinástico. Pois ambos, no seu apogeu, foram estruturas de referência incontestes, como ocorre atualmente com a nacionalidade. Portanto, é fundamental analisar o que conferiu uma plausibilidade autoevidente a esses sistemas culturais [...]” (Anderson, 2008, p. 39). .

A redução de pessoas, portadoras de determinados marcadores sociais de gênero, raça e classe, ao seu valor econômico como força produtiva, também afetou o trabalho doméstico ao qual as mulheres negras foram destinadas. Este foi ainda mais depreciado por autores do sexo masculino, que viam na sua presença um efeito pernicioso sobre a educação da infância brasileira, com ênfase na influência sobre as meninas.

Décadas após a Abolição, textos e imagens da literatura cívica ainda fixavam para as crianças o lugar subalterno das pessoas negras na sociedade brasileira, os trabalhos aos quais estavam destinados, o pouco ou nenhum valor desses tipos de trabalho e a associação entre superioridade intelectual e pessoas de pele clara.

CONCLUSÃO

“Por isso é esperado que crianças reproduzam de maneira natural as tratativas que o escritor tinha com sua personagem. Como eu sei? Porque estava lá em Taubaté durante a década de 90, estudando em escolas públicas que se alimentavam da obra de Monteiro Lobato o ano todo.

As ofensas raciais ganhavam um sentido doloroso para mim e a maioria dos alunos negros. Não havia variação de cor para o racismo impregnado, todos eram o “negro carvão” ou “cor de lodo” como Tia Nastácia já foi referida [...]”.

(Ale Santos, 2018SANTOS, A. Impacto do racismo de Monteiro Lobato sob uma visão histórica e pessoal. Diário do Centro do Mundo. 23 jun. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/impacto-do-racismo-de-monteiro-lobato-sob-uma-visao-historica-e-pessoal-por-ale-santos/ >. Acesso em: 18 ago. 2018.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br...
)

Diferentemente de países em que a edição para crianças já estava consolidada, o que permitia a especialização de editoras, autores e a diversidade temática na oferta, a literatura infantil brasileira surgiu junto ao crescimento do nacionalismo que conduziu o mundo à Primeira Guerra, um nacionalismo que se expressou na produção abundante de bens culturais e simbólicos que disputavam significados e identidades no quadro de referências desse novo “sistema cultural”. É nesse campo que se insere a fase cívico-pedagógica da literatura infantil, com variados tópicos e características. Alguns estereótipos e clichês serão cristalizados na cultura material e imaterial infantil desde o fim do século XIX, espraiando-se pelo mundo organizado em nações: inválidos veteranos de guerra, soldados que dão a vida pela pátria, meninos que “agem como homens”, “viris”, “honrados”, “trabalhadores”, muitas vezes provedores precoces em situação de orfandade; meninas e mulheres virtuosas, mães educadoras e republicanas.

Respondendo aos contextos nacionais, esses papéis serão preenchidos por personagens caracterizados por marcadores tais como cor da pele, classe, instrução, etnia, religião, origem familiar, gênero etc., os quais contribuirão para naturalizar preconceitos, desigualdades e exclusões. O uso de marcadores da diferença na imaginação de uma infância brasileira e seus outros pela literatura infantil operou nesse sentido, aliado muitas vezes a usos da história. Autores da literatura cívica seguiram a receita de Renan sobre esquecimento e lembrança em seus projetos de nação, no contexto da república recém-instaurada e do trabalho livre. Muitos pareciam acreditar na extinção progressiva das práticas, dos valores e das experiências da sociedade escravista, monárquica e aristocrática pela educação escolar das crianças brancas, modificando nelas as atitudes e os valores, ao mesmo tempo em que traços do passado de origem africana seriam diluídos aos poucos pela mestiçagem.

Essa literatura cívica permaneceu sendo produzida e reeditada, mesmo com a concorrência de textos que foram vistos como o seu completo oposto, como os de Monteiro Lobato.

Para retomar a discussão no início deste artigo, se a polêmica em torno do racismo de Lobato e em outros livros infantis pode nos dar uma lição, é a de que a literatura infantil é sempre um lugar de poder. A seleção de alguns textos como definidores da nacionalidade faz com que outros sejam excluídos por critérios de “valor literário” e gosto, censura política ou decisões comerciais, motivos muitas vezes entrelaçados. No atual contexto, em que determinados atores investem numa “guerra cultural”, é preciso atentar aos processos de canonização, aos valores cristalizados de determinados autores e títulos e aos mecanismos de silenciamento, que operaram no passado e ainda informam leituras no presente. A discussão e o questionamento desses processos trazem consigo um potencial de mudança.

Como todos os textos e objetos reconhecidos como expressão de determinada comunidade nacional, a literatura infantil medeia a representação de grupos sociais de acordo com o poder que têm de se fazerem representar. Seu potencial de transformação, no caso brasileiro, a urgente desvinculação entre representações da nação e supremacia branca, articula-se aos movimentos dos sujeitos, os quais abalam os referenciais sobre os quais assentam hierarquias sociais estabelecidas. A emergência e a disseminação de uma maior diversidade de vozes no espaço público, por meio das redes e plataformas, têm sido o principal fator na transformação dos públicos leitores. Se estes nunca foram passivos na apropriação, na significação e na ressignificação dos textos e das imagens, agora encontram novas formas de participar da criação, da produção e da circulação dos bens culturais que consomem.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Júlia Lopes de. Histórias da nossa terra. 11. Ed. Corrigida e Aumentada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915.
  • ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
  • BASTOS, Maria Helena Câmara. Amada pátria idolatrada: um estudo da obra Porque me ufano do meu país, de Affonso Celso (1900). Educar em Revista, n. 20, pp. 245-260, 2002.
  • BILAC, Olavo. Obra reunida. 1. Ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.
  • BILAC, Olavo. Poesias infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904.
  • BILAC, Olavo; BONFIM, Manoel. Através do Brasil: narrativa. 3. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1917.
  • BILAC, Olavo; COELHO NETTO, Henrique M. Contos patrios: para os alunos das escolas primarias. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1904.
  • CABANEL, Patrick. Le tour de la nation par des enfants: romans scolaires et espaces nationaux (XIXe-XXe siècles). Paris: Belin, 2007.
  • CELSO, Affonso. Pourquoi je m’enorgueillis de mon pays. Paris: Garnier, Frères 1912.
  • CHIARADIA, Kátia. Ao amigo Franckie, do seu Lobato: estudo da correspondência entre Monteiro Lobato e Charles Franckie (1934-37) e sua presença em O Escândalo do Petróleo (1936) e O Poço do Visconde (1937). Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2008.
  • COELHO NETTO, Henrique M. Alma: educação feminina. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1919.
  • COELHO NETTO, Henrique M. Alma: educação feminina. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos , 1928.
  • COELHO NETTO, Henrique M. América: educação civica. Rio de Janeiro: I. Bevilacqua & C., 1897.
  • COLI, Jorge. Só quem não leu ou não entendeu livros de Lobato pode julgá-los racistas. Folha de São Paulo. 3 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/02/so-quem-nao-leu-ou-nao-entendeu-livros-de-lobato-pode-julga-los-racistas.shtml >. Acesso em: 28 out. 2021.
    » https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/02/so-quem-nao-leu-ou-nao-entendeu-livros-de-lobato-pode-julga-los-racistas.shtml
  • CREECH, Stacy Ann. Blackness, Imperialism, and Nationalism in Dominican Children’s Literature. International Research in Children’s Literature, v. 12, issue 1, pp. 47-61, Jul. 2019.
  • DARR, Y. A Confrontation between Two Doctrines: The Birth of Struggle for Hegemony in Hebrew Children’s Literature during the 1930s and 1940s. International Research in Children’s Literature, v. 1, issue 2, pp. 139-154, Dec. 2008.
  • FRANÇA, Luiz Fernando de; MELLO, Franceli Aparecida da Silva, A personagem negra na literatura infanto-juvenil de Olavo Bilac: valores ideológicos. Signótica, v. 18, n. 1, pp. 113-130, 2008.
  • FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, 1990.
  • GOMES, Angela Maria de Castro. A educação nacional: república e educação patriótica. In: GOMES, Angela Maria de Castro. A República, a história e o IHGB. 1. Ed. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. pp. 99-105.
  • GUINLE, A.; POLLO, M. Manual do escoteiro brasileiro. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1922.
  • HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.
  • HANSEN, Patrícia Santos. Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
  • HANSEN, Patrícia Santos. A literatura infantil no Brasil e em Portugal: problemas para a sua historiografía. Sarmiento, n. 20, pp. 133-161, 2016.
  • HANSEN, Patrícia Santos. Sobre o conceito de “país novo” e a formação de brasileiros nas primeiras décadas da República. Iberoamericana, v. XII, n. 45, pp. 7-22, 2012.
  • HANSEN, Patrícia Santos; GOMES, Angela de Castro. Intelectuais, mediação cultural e projetos políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In: HANSEN, Patrícia Santos; GOMES, Angela de Castro (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. pp. 7-37.
  • JULIA, Francisca; SILVA, Julio da. Alma infantil (versos para uso das escolas). São Paulo; Rio de Janeiro: Editora Livraria Magalhães, 1912.
  • LOBATO, Monteiro. Carta de 3 de fevereiro de 1908. In: LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre: Quarenta anos de correspondência literária. 1. Ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. pp. 132-134.
  • LOBATO, Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. São Paulo: Revista do Brasil, 1920.
  • LOBATO, Monteiro. História do Mundo para as Crianças. O Tico-Tico, ano XXX, n. 1467, p. 31, 15 nov. 1933.
  • MIGUEL, Adilson. Lobato e o racismo. Revista Emília. 16 fev. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/ >. Acesso em: 10 jul. 2022.
    » https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/
  • PATROCLO, Luciana Borges. As mães de famílias futuras: a Revista o Tico-Tico e a formação das meninas brasileiras (1905-1925). Cadernos de História da Educação, v. 18, n. 3, pp. 731-748, 2019.
  • PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4., 1999.
  • PIMENTEL, Figueiredo. Histórias da avozinha. Livro para crianças. Rio de Janeiro: Livraria do Povo; Quaresma & C. - Livreiros-Editores, 1896.
  • QUEIRÓS, Eça de. O Natal - a “Literatura de Natal” Para Crianças. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, Folhetim. n. 40, 9 fev. 1881, n.p.
  • REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora. Folha de S. Paulo. 10 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml >. Acesso em: 4 nov. 2019.
    » https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml
  • RENAN, Ernest. O que é uma nação? Conferência realizada na Sorbonne, em 11 de março de 1882. Tradução de Glaydson José da Silva. Revista Aulas, n. 2, pp. 1-21, 2006.
  • RIBEIRO, João Prefácio. In: ROMERO, Sylvio. A historia do Brasil ensinada pela biographia de seus heroes (Livro para as classes primárias). Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves & Comp., 1890. pp. V-VIII
  • ROCHA, Mateus Vinícios Afonso. Como a poesia das laranjeiras: o projeto político e pedagógico da intelectual Júlia Lopes de Almeida. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2020.
  • ROMERO, Sylvio. A historia do Brasil ensinada pela biographia de seus heroes (Livro para as classes primárias). Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves & Comp. , 1890.
  • SANTOS, A. Impacto do racismo de Monteiro Lobato sob uma visão histórica e pessoal. Diário do Centro do Mundo. 23 jun. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/impacto-do-racismo-de-monteiro-lobato-sob-uma-visao-historica-e-pessoal-por-ale-santos/ >. Acesso em: 18 ago. 2018.
    » https://www.diariodocentrodomundo.com.br/impacto-do-racismo-de-monteiro-lobato-sob-uma-visao-historica-e-pessoal-por-ale-santos/
  • VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 3. Ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2003.
  • VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. Pará: Editores Tavares Cardoso & C., Livraria Universal, 1890.
  • VERÍSSIMO, José. In: AMICIS, Edmondo de. Coração. 4. Ed. Cuidadosamente corrigida, com um estudo sobre De Amicis por José Veríssimo. Rio de Janeiro: Alves, 1894. pp. IV-XIII.
  • 1
    Este artigo teve o apoio da CHAM (NOVA FCSH/UAc), por meio do projeto estratégico patrocinado pela FCT (UIDB/04666/2020).
  • 2
    Agradeço a Carina Martins pela leitura e pelos comentários a respeito do rascunho desse texto.
  • 3
    Sobre o projeto educativo de Julia Lopes de Almeida, ver Rocha (2020ROCHA, Mateus Vinícios Afonso. Como a poesia das laranjeiras: o projeto político e pedagógico da intelectual Júlia Lopes de Almeida. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2020. ).
  • 4
    Sobre as “mães de família futuras”, ver Patroclo (2019PATROCLO, Luciana Borges. As mães de famílias futuras: a Revista o Tico-Tico e a formação das meninas brasileiras (1905-1925). Cadernos de História da Educação, v. 18, n. 3, pp. 731-748, 2019. ).
  • 5
    O conto “A borboleta negra” relata o resgate de um bebê abandonado por duas crianças brancas. Para uma análise deste conto e das representações dos negros em Olavo Bilac, ver França; Mello (2008FRANÇA, Luiz Fernando de; MELLO, Franceli Aparecida da Silva, A personagem negra na literatura infanto-juvenil de Olavo Bilac: valores ideológicos. Signótica, v. 18, n. 1, pp. 113-130, 2008.).
  • 6
    Sigo aqui Benedict Anderson, que propôs “o entendimento do nacionalismo alinhando-o não a ideologias políticas conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam, e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para combatê-los”. Esses “sistemas culturais” seriam: “a comunidade religiosa e o reino dinástico. Pois ambos, no seu apogeu, foram estruturas de referência incontestes, como ocorre atualmente com a nacionalidade. Portanto, é fundamental analisar o que conferiu uma plausibilidade autoevidente a esses sistemas culturais [...]” (Anderson, 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. , p. 39).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Jun 2022
Associação Nacional de História - ANPUH Av. Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, Caixa Postal 8105, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel. / Fax: +55 11 3091-3047 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbh@anpuh.org