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Uma nota sobre os textos e as seções das revistas acadêmicas na área de História1 1 Agradeço as leituras e as sugestões feitas por Marcos Eduardo de Sousa (Fórum de Editores - ANPUH) e Renato Franco (UFF).

A Note on the Texts and Sections of Academic Journals in the Field of History

Geralmente, paramos para olhar os critérios que determinam os tipos e os tamanhos dos textos das revistas acadêmicas quando temos a intenção de submeter alguma contribuição, ou quando estamos diante do preenchimento de algum currículo ou formulário, e devemos optar pelo tipo de produção no qual queremos inserir o que publicamos. No caso do Brasil, nosso sistema nacional de inserção da produção acadêmica, a plataforma Lattes, não é propriamente claro acerca da categoria que devemos eleger se publicamos em um periódico qualquer texto que fuja às categorias de artigo. Mas olhando para as revistas da área, as opções seriam várias: notícias de pesquisa, textos de debate, editoriais, apresentações de dossiês, entrevistas, resenhas, traduções, documentos históricos, e até mesmo pareceres, que começam a ser publicados impulsionados por uma agenda de abertura de avaliação. O fato de a plataforma Lattes manter as opções de modo genérico poderia até ser visto como positivo, se entendemos que cabe a cada área, ou pesquisador, a adoção de critérios de classificação de acordo com a cultura consolidada no campo. No entanto, o fato de estar em jogo o sistema de avaliação por pares, que termina determinando um ranqueamento da produção acadêmica e a distribuição de recursos - para pesquisadores, grupos de pesquisa ou programas de pós-graduação - faz com que a questão seja bem mais sensível, e mesmo disputada.

Nossa intenção aqui é tão somente levantar aspectos que nos chamam mais a atenção acerca dos tipos de textos, formatos, seções que têm sido um padrão mais ou menos recorrente em nossas revistas; o fazemos por acreditar que eles revelam, ao mesmo tempo que moldam, hábitos de produção que subliminarmente vão sendo reproduzidos sem nos darmos conta. Por isso, a reflexão sobre os mesmos merece ser continuamente partilhada. Quem já fez parte de alguma equipe editorial, ou mesmo participou da criação e/ou da reformulação de um periódico, já viveu de perto o quanto a definição do projeto do periódico passa pela criação das seções de textos, das estratégias de captação dos mesmos, da definição dos critérios de titulação para envio dos textos, entre outros tantos aparentes detalhes. Uma rápida pesquisa sobre os modelos adotados por outras revistas no campo é recorrente nessas horas, prática que indica em si mesma o espelhamento da experiência consolidada e/ou um processo de retroalimentação da própria comunidade de pesquisa, muito mais do que uma cultura de ruptura com os padrões vigentes.

Basta um rápido olhar para nossas revistas para que se veja a adoção, quase irrestrita, de um modelo baseado em artigos livres, artigos de dossiês e resenhas (ainda que estas apareçam em quantidades muito variáveis). Seja por padrões internacionais, seja por indução da própria avaliação, não se pode negar a valorização dos artigos nas últimas décadas, reverberado no crescimento expressivo dos periódicos no campo (o qual tendeu a crescer menos nos últimos anos em função da visível diminuição dos financiamentos). Ousamos dizer que definimos, mesmo sem que tenha existido uma ampla discussão na área, o que entendemos por artigo em seu sentido genérico: um texto inédito, ou que apresente pesquisa original (que pode ser fruto de tese ou, mais recentemente, até depositado em algum repositório de preprint), que varie entre quinze e trinta páginas - chegando a cerca de doze páginas em algumas revistas (algo como 28.000 toques), e mesmo a cerca de trinta e cinco em outras (perto de 80.000 toques) -, evitando-se notas de rodapé muito extensas. Portanto, tem sido cada vez mais comum a publicação de resultados parciais de pesquisas como artigos, o que parece se coadunar com a concepção de que os mesmos devem servir de veículos aos resultados mais imediatos, a serem testados pela comunidade científica; pesquisas essas que podem ser posteriormente consolidadas na forma que segue sendo a mais consagrada de produção pela área: os livros autorais.

De cara, pode-se dizer que os artigos vêm diminuindo de tamanho em relação a um padrão mais extenso, com apresentação volumosa de fontes documentais e mesmo demonstração de erudição. O que se pode atribuir ao gargalo dos custos das revistas, que, mesmo eletrônicas, terminam sendo caras pelo valor do trabalho dos envolvidos - o que inclui, hoje, as aplicações tecnológicas necessárias (indexação, marcação XML, manutenção das páginas dos periódicos) -, mas também a um certo produtivismo (não nos podemos enganar), que tende a ser exacerbado sem a imposição de alguns limites. Nessa lógica, faz sentido supor que artigos mais densos caminhariam para serem parte de livros, até mesmo parte de coletâneas, as quais seguem sendo muito utilizadas no nosso campo, a despeito das muitas críticas feitas à falta de projetos editoriais de muitas delas (Slemian; Franco, 2022SLEMIAN, Andréa; FRANCO, Renato. É possível pensar em uma nova política editorial para as Revistas na área de História? (editorial). Revista Brasileira de História, v. 42, n. 91, pp. 7-14, set.-dez. 2022.). Um sintoma disso está no fato de ser comum, ultimamente, que as coletâneas adotem um formato de artigo utilizado pelas revistas, mais curto e enxuto, sem propriamente estabelecerem um modelo diferenciado que justifique a sua existência como livros.

Mas há revistas que se preocupam em incentivar a produção de artigos de caráter específico, com o intuito de mobilizar a reflexão na área: como artigos de revisão, ensaios ou textos provenientes de debates. Trata-se de uma visão mais ampla e integradora das possibilidades das revistas acadêmicas, que reconhece as particularidades do trabalho intelectual envolvido na produção das diferentes seções de um periódico acadêmico. Sobre os artigos de revisão, a nomenclatura costuma ser amplamente usada em outras áreas para tratar de textos que façam a revisão crítica sobre determinado tema, mesmo sem apresentar novos resultados de pesquisa. Entre nós, poder-se-ia argumentar que a prática da discussão historiográfica já cumpre esse papel; no entanto, esforços mais sistemáticos para incentivo de textos com esse escopo devem ser vistos como positivos, tendo em vista o dinamismo e o volume da produção historiográfica em muitos campos de investigação. Sendo assim, a produção de artigos de “estado da arte” pode ser um ponto importante para a valorização dos periódicos como espaços de debate historiográficos de maior magnitude. Nesse sentido, cabe destacarem-se igualmente os textos e as seções das revistas dedicadas a discussão de temas, com artigos com caráter de opinião, presentes aqui e acolá.

No documento sobre os critérios para os periódicos indexados no sistema SciELO, estão presentes os seguintes tipos de documentos, entre os quais os textos publicados podem ser caracterizados ao entrarem na plataforma: “adendo, artigo de pesquisa, artigo de revisão, artigo de dados, carta, comentário de artigo, comunicação breve, comunicação rápida, diretrizes ou normas, discurso, discussão, editorial ou introdução, ensaio, entrevista, errata, métodos, obituário ou registro, parecer de artigo aprovado, posicionamento ou pensamento coletivo, relato de caso, resenha crítica de livro, resposta, retratação, retratação parcial e ‘outro’” (SciELO, 2022SCIELO. Critérios, política e procedimentos para admissão e a permanência de periódicos na Coleção SciELO Brasil. Set. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/media/files/20220900-criterios-scielo-brasil.pdf . Acesso em: 06 jan. 2023.
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, p. 14). Tendo em vista que seus parâmetros acabam tendo alguma influência sobre todas as revistas acadêmicas no país, ainda que um número pequeno esteja indexado neste repositório, vale pensar a diversidade apontada. Ciente dessa diversidade, igualmente a SciELO deixa a possibilidade da escolha de “outro”, quando “o documento tem conteúdo científico que justifica sua indexação, mas nenhum dos tipos anteriores se aplica”. Ora, tendo consciência de que os tipos consolidados estão longe de esgotar outras possibilidades, nosso gargalo parece ser o que a área concebe, diretamente ou indiretamente, como produção “intelectual” ou “técnica” - que é a forma como, no Brasil, se avaliam os pesquisadores e as pesquisadoras. É verdade que cada país estabelece seus critérios de avaliação em função de alguns padrões internacionais, mas o fato é que são as áreas nacionais que decidem o que se deve levar em conta.

No geral, nossa área tende a colocar os textos de pesquisa, revisão, ensaios e discussão como artigos com o mesmo estatuto de produção acadêmica. Alguma dúvida pode surgir quando tratamos de apresentações de dossiês, que, no caso da RBH, são verdadeiros artigos sobre o “estado da arte” do tema em questão. Em função disso, passamos a chamá-las de “artigo introdutório”, e as indexamos como tal. Não deixou de nos surpreender uma solicitação que recebemos de um autor para que não usássemos o termo “apresentação” no texto, pois temia que sua produção não fosse valorizada como acadêmica. No mesmo sentido, ainda iremos saber como a área lidará com a publicação de pareceres, já que uma primeira experiência foi feita recentemente pela revista História da Historiografia (Silveira, 2023SILVEIRA, Pedro Telles da. O que é uma ferramenta historiográfica? História da Historiografia, Ouro Preto, v. 15, n. 40, pp. 219-231, 2022.). O texto, que possui o formato de um artigo, faz uma ampla e fundamentada discussão acerca do tema do artigo que avalia, em diálogo com obras clássicas e mais recentes. Se textos como esse vierem a ser considerados “produção técnica”, talvez se aborte a disseminação de iniciativas semelhantes, que teriam como notável vantagem o incentivo à criação de um espaço de discussão nas nossas revistas - o que vem ocorrendo em periódico de outras áreas.

Nosso receio espelha-se na experiência que tivemos no Brasil em relação às resenhas: sabe-se que, depois que elas foram consideradas pela área como produção técnica, seu número tendeu a diminuir fortemente, diante dos maiores pontos atribuídos pela avaliação nacional ao que se refere à produção acadêmica. No entanto, praticamente todas as revistas de história hoje seguem mantendo sua seção de resenhas, além de fazer esforços para incentivá-las, devido ao valor (real e/ou simbólico?) que as mesmas têm ainda entre nós. O que observamos olhando os critérios adotados pelas revistas hoje é que tem se desenhado uma certa divisão do trabalho em relação aos tipos de textos das revistas que envolvem as resenhas. Se uma boa parte dos periódicos, sobretudo os que tocam os altos estratos de avaliação, tendem a publicar apenas textos de doutores, não é incomum os mesmos aceitarem textos de doutorandos e mesmo de mestrandos para a seção de resenhas. O que talvez altere ligeiramente o modelo de resenhas, cujos textos costumam estar um pouco mais vinculados à apresentação das obras, do que a um debate de ideias a partir de textos críticos que incluam também livros produzidos por pesquisadoras e pesquisadores sêniores.

Em geral, quanto menor o estrato da revista, mais ela tende a aceitar textos de doutorandos, mestres e mestrandos. Obviamente não se inclui aqui o caso das revistas discentes, cujas iniciativas são muito louváveis e merecem ser valorizadas na sua especificidade. Vale dizer que o citado documento da SciELO não coloca nenhum óbice em relação à titulação para publicação de textos, e são as áreas e os projetos editoriais das revistas que acabam por criar alguns consensos. O alto custo de avaliação e processamento termina fazendo com que muitas revistas consolidadas, que habitualmente costumam receber mais artigos, acabem privilegiando os mais titulados. Mas somos legítimos defensores que esse critério não deve valer para analisar a qualidades de distintos projetos editoriais.

Como se vê, a aparentemente banal e burocrática definição dos critérios dos tipos de textos das revistas toca em questões de fundo, grande parte em aberto. Uma delas passa pela intenção de tornar nossas revistas veículos mais dinâmicos de debates no campo, valorizando-as como veículos de discussão. Não à toa, nesse mesmo número, publicamos, entre artigos de fluxo e resenhas, mais uma edição da seção RBH DebatesRBH DEBATES: O que a História tem a dizer sobre Sustentabilidade e a Crise Energética Atual?. 14 set. 1922. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qUEmCKE9Y_o . Acesso em: 18 jan. 2023.
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, com o tema O que a História tem a dizer sobre Sustentabilidade e a Crise Energética atual?, que conta com artigos de Leila Mourão (UFPA), Leonardo Marques (UFF) e de Dernival Venâncio Ramos Júnior (Universidade Federal do Norte do Tocantins), enviados após a realização de uma mesa de debate em setembro de 2022, que pode ser vista no Canal da ANPUH (https://www.youtube.com/watch?v=qUEmCKE9Y_o). Com isso, desejamos a todas e todos uma ótima leitura.

REFERÊNCIAS

  • RBH DEBATES: O que a História tem a dizer sobre Sustentabilidade e a Crise Energética Atual?. 14 set. 1922. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qUEmCKE9Y_o Acesso em: 18 jan. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=qUEmCKE9Y_o
  • SCIELO. Critérios, política e procedimentos para admissão e a permanência de periódicos na Coleção SciELO Brasil. Set. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/media/files/20220900-criterios-scielo-brasil.pdf Acesso em: 06 jan. 2023.
    » https://www.scielo.br/media/files/20220900-criterios-scielo-brasil.pdf
  • SLEMIAN, Andréa; FRANCO, Renato. É possível pensar em uma nova política editorial para as Revistas na área de História? (editorial). Revista Brasileira de História, v. 42, n. 91, pp. 7-14, set.-dez. 2022.
  • SILVEIRA, Pedro Telles da. O que é uma ferramenta historiográfica? História da Historiografia, Ouro Preto, v. 15, n. 40, pp. 219-231, 2022.
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    Agradeço as leituras e as sugestões feitas por Marcos Eduardo de Sousa (Fórum de Editores - ANPUH) e Renato Franco (UFF).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023
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