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“A população precisa conhecer os perigos que corre!”: consumo cinematográfico e retóricas do medo no Rio de Janeiro da Belle Époque

RESUMO

Este artigo aborda a série jornalística Cinemas-arapucas, veiculada pelo jornal A Noite entre os dias 8 e 16 de agosto de 1912, que teve como foco a denúncia contra alguns cinemas das áreas centrais do Rio de Janeiro por conta do não-cumprimento de regras relativas à segurança do público. Pretendemos verificar como a série jornalística inseriu-se na disseminação de uma retórica do medo em relação ao consumo cinematográfico - e, por extensão, com quais outros medos dialogava e que mecanismos de poder acionava a partir disso. Como questão central, nossa proposta é analisar a série Cinemas-arapucas para verificar algumas relações entre imprensa, autoridades, donos de cinematógrafos e público de cinema no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. Para tanto, adotamos como metodologia em nossa pesquisa o paradigma indiciário, tal como proposto por Carlo Ginzburg.

Palavras-chave:
cinema; consumo; Belle Époque; Rio de Janeiro; imprensa

ABSTRACT

This article addresses the journalistic series Cinemas-arapucas (Trap-cinemas), published by the newspaper A Noite between August 8 and 16, 1912, which denounced some movie theaters in the central areas of Rio de Janeiro because of noncompliance with rules related to public safety. We intend to verify how the journalistic series was inserted in the dissemination of a rhetoric of fear regarding cinematographic consumption - and, by extension, with which other fears it engaged and what mechanisms of power it triggered from this. As a central question, our proposal is to analyze the Cinemas-arapucas series to verify some relations among the press, authorities, cinematographers, and cinema audiences in Rio de Janeiro in the first decades of the 20th century. To do so, we used the evidential paradigm methodology, as proposed by Carlo Ginzburg.

Keywords:
Cinema; Consumption; Belle Époque; Rio de Janeiro; Press

1. INTRODUÇÃO

Em uma noite fria de agosto de 1912, os leitores do jornal A Noite depararam-se, em sua capa, com uma reportagem bastante alarmista sobre alguns cinemas do Rio de Janeiro. Com o título-isca Alguns dos nossos cinemas são um gravíssimo perigo! e a foto de um cinema, eram descritos minuciosamente alguns riscos que essas casas de espetáculos impunham à vida de seus espectadores.

Possivelmente, a reação dos leitores de A Noite variou entre uma sensação de medo acionada pela matéria ou uma reação mais cautelosa em razão de seu conteúdo, mas não muito apavorada, ou mesmo uma atitude blasé (Simmel, 1973SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1973. p. 11-25.) diante de mais uma notícia abordando esses riscos, uma vez que já se encontravam habituados a esse tipo de conteúdo nos periódicos da época.

Entretanto, esses leitores não esperavam uma extensa cobertura dos perigos oferecidos pelo hábito de ir ao cinema em A Noite, que veicularia a série jornalística Cinemas-arapucas entre 8 e 16 de agosto de 1912, com repercussão em matérias isoladas nos meses seguintes. Tal fato deu origem a um amplo debate entre jornalistas, donos de cinematógrafos, autoridades policiais e leitores/espectadores sobre as condições de alguns cinemas no centro reformado do Rio de Janeiro ou nas áreas mais próximas a ele.

Embora A Noite tivesse produzido algumas séries jornalísticas, tal prática não era comum em outras publicações da época, que focavam em outros formatos como colunas, fait divers e editoriais. Somado a isso, o hábito de frequentar salas de cinema era recente, em razão de a primeira sala de cinema ter sido inaugurada em agosto de 1907 pelo empresário Giácomo Staffa, na Avenida Central (Araújo, 1985ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela Época do cinema brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1985.), embora a fruição de imagens em movimento já ocorresse desde um momento bem anterior.

Pretendemos situar nossa análise da série como uma tentativa do jornal A Noite de fidelizar seus leitores. Sendo relativamente nova no jornalismo brasileiro das primeiras décadas do século XX, é possível considerá-la um formato experimental da narrativa jornalística, operando em moldes bem similares aos gêneros narrativos no cinema, que também estava em busca de garantir a frequência do público.

Nesse contexto, podemos inferir que esta série é provavelmente a primeira a abordar a ida aos cinemas no Rio de Janeiro em tom de denúncia, embora notícias, cartas de leitores, charges e editoriais sobre esse hábito não sejam incomuns aos leitores de periódicos do momento analisado. Em um levantamento realizado desde 2009 nos periódicos guardados na Biblioteca Nacional, e tendo analisado cerca de 750 publicações editadas no Rio de Janeiro entre 1896 e 1916, não encontramos nenhum material similar a este.

Este artigo pretende explorar algumas fontes encontradas ao longo desse periódico para tentar verificar algumas expectativas do público no tocante à experiência de ir ao cinema. Mais precisamente, queremos investigar como a série jornalística inseriu-se na disseminação de uma retórica do medo em relação ao consumo cinematográfico - e, por extensão, com quais outros medos dialogava e que mecanismos de poder acionava a partir disso.

Como questão central, nossa proposta é analisar a série Cinemas-arapucas para verificar algumas relações entre imprensa, autoridades, donos de cinematógrafos e público de cinema no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX1 1 Em outra oportunidade (Lapera, 2019), avaliamos essa questão de modo secundário. . Nossa hipótese principal de trabalho é a de que a série se revelou uma cruzada moral (Becker, 2008BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.), no sentido de tentar constranger autoridades policiais, legisladores e donos de cinematógrafos a criarem e/ou aplicarem regras de segurança visando à proteção física dos espectadores durante a projeção cinematográfica2 2 Também já levantamos essa hipótese de modo secundário em outro momento (Lapera, 2019). Agora, em contrapartida, o fazemos de modo central à nossa reflexão. Além disso, ressaltamos que foram encontrados artigos em outros jornais sobre a série analisada. Porém, manteremos o foco no jornal A Noite, em razão dos limites impostos pela formatação da RBH. . Acreditamos que o foco nesta série pode ser revelador de algumas expectativas dos leitores em torno do ato de ir ao cinema e de processos sociais mais amplos, tais como a relação entre cidadãos, burocracia e hierarquização social em uma cidade que acabara de passar por uma reforma urbana radical.

Adotamos a definição de consumo como uma atividade ritual projetada no tempo e no espaço que “usa os bens para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos” (Douglas; Isherwood, 2004DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Trad. Plínio Dentizien. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004., p. 115), o que significa afirmar que o consumo deve ser avaliado tendo em vista sujeitos concretos imersos em relações sócio-históricas e não a partir de perspectivas idealistas ou moralistas em torno dele.

Incorporamos ao nosso trabalho a crítica de Miller à obra de Douglas e Isherwood, uma vez que estes “ignoram por completo os interesses e o poder das instituições comerciais. Tendem a invocar o vasto desejo por ordem cognitiva, e assim oferecem um modelo de cognição irrealisticamente coeso nele mesmo e que ignora problemas de ideologia e de estrutura” (Miller, 1987MILLER, Daniel. Material Culture and Mass Consumption. Oxford; Cambridge, MA: Basil Blackwell, 1987., p. 146). Neste sentido, o consumo é visto aqui não somente como o acionamento de categoriais interpretativas em uma cultura espacial e temporalmente localizada, mas também em consonância com os interesses e as ações do Estado e de agentes privados já mencionados.

No tratamento das fontes, adotamos a metodologia do paradigma indiciário (Ginzburg, 2007GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras , 2007.), tal como já apresentada por nós em outro momento desta pesquisa (Lapera; Souza, 2010LAPERA, Pedro Vinicius Asterito Lapera; SOUZA, Bruno Thebaldi de. Cinematógrafo e espetáculos de massa através do acervo da Biblioteca Nacional: algumas notas metodológicas. In: BRAGA, José Luiz; LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; MARTINO, Luiz Claudio (Orgs.). Pesquisa empírica em Comunicação: livro Compós 2010. São Paulo: Paulus, 2010. pp. 381-401.). Embora tenha sido pensada no âmbito da historiografia, tal metodologia foi concebida tendo como horizonte questões etnográficas no trabalho do historiador e um diálogo com as Ciências Sociais, além de pretender conectar fatos historicamente incidentais a questões de ordem estrutural (Ginzburg, 2007GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras , 2007., pp. 143-179).

2. CRUZADA MORAL NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA: MEDOS ENTRE ESPECTADORES NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

Fundado por Irineu Marinho em julho de 1911, o jornal A Noite tinha uma pauta de fait divers a respeito do cotidiano no Rio de Janeiro e de debates sobre política e costumes (por exemplo, divórcio e campanha civilista tiveram espaço no periódico), muitas vezes angariando intelectuais para tal fim. Além disso, adotava um tom bastante crítico às autoridades legislativas, judiciárias e da administração pública, sobretudo à polícia, muitas vezes denunciando casos de corrupção, negligência das ações de agentes públicos, etc.

Segundo Carvalho (2012CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Irineu Marinho: imprensa e cidade. São Paulo: Globo, 2012., p. 83), a equipe de jornalistas de A Noite foi constituída a partir das relações de amizade de Irineu Marinho em sua trajetória profissional como repórter nos jornais Gazeta de Notícias e A Notícia, contando com a colaboração de nomes importantes do jornalismo e da caricatura, tais como João do Rio, Coelho Neto e Raul Pederneiras.

Antes de passarmos à discussão, precisamos fazer algumas considerações sobre a autoria da série. Em nenhuma reportagem veiculada há a assinatura do jornalista responsável por ela. Considerando o fluxo de trabalho de uma redação, a necessidade de verificação de um volume considerável de informações a partir de trabalhos de campo e entrevistas, o número de matérias veiculadas e a menção em alguns momentos aos jornalistas no plural, é possível deduzir que o trabalho em torno da série foi feito por mais de um profissional, embora obviamente passasse pelo crivo do editor-chefe. Então, iremos, ao longo do texto, denominar “autores” os jornalistas de A Noite3 3 Ainda precisamos destacar que, via de regra, apenas textos opinativos eram assinados, enquanto as reportagens vinham apócrifas. O fato de os artigos da série não serem assinados não remete a nenhum constrangimento por parte dos jornalistas em assiná-las, e sim a uma prática comum do jornalismo no período. .

Dentro desse tom crítico, a série Cinemas-arapucas apresentou aos leitores os perigos da ida ao cinema. Qualificando o cinema como o tipo de casa de espetáculos mais suscetível a um incêndio, a matéria inaugural de 8 de agosto de 1912 apontou para a possibilidade de curtos-circuitos nas instalações elétricas e de combustão e explosão da película4 4 O material fotográfico dos filmes do período tinha na base de sua composição nitrato de celulose, substância altamente inflamável que, inclusive, poderia entrar em combustão espontânea, se a película fosse mal armazenada. como os principais riscos. Além disso, apontou a necessidade de as salas de cinema oferecerem possibilidades de evacuação rápida em razão desses riscos. Inclusive, publicou fotos dos cinemas denunciados, como podemos ver abaixo:


Fachadas dos cinemas Popular e Ouvidor

Ao longo da série, esses argumentos seriam repetidos em todas as matérias. Mas, no artigo publicado no dia 10 de agosto de 1912, há a explicação mais didática para os leitores:

O fogo pode ter início em qualquer outro ponto da sala que não seja a cabine de projecções. Os theatros não possuem cabines de projecções nem focos incandescentes a pouca distância de um composto de algodão-polvora e todos elles se armam com numerosas saídas para a eventualidade de um incendio, sempre possível!

Porque o perigo não está precisamente no fogo, mas na confusão da debandada precipitada dos espectadores das salas de sessões, em busca de uma porta. Para se registrar uma debandada assim, não é preciso que haja ao menos principio de incendio inoffensivo: basta que, por pilheria, alguem se lembre de dar um falso alarme para que os frequentadores tenham de soffrer horrorosamente no atropelo da saída (A polícia chega a permittir cinemas..., 1912A POLÍCIA CHEGA A PERMITTIR cinemas em sobrados! É bom prevenir em tempo. A Noite , Rio de Janeiro, 10 ago. 1912, p. 1., p. 1).

Vemos aqui o acionamento alguns medos5 5 Já avaliamos esses aspectos em outro momento (Lapera, 2019, p. 67), e consideramos relevante retomá-los por conta da análise desta fonte. : o do contato com as novas tecnologias que passaram a ocupar a cena urbana; o medo de uma morte súbita e trágica; e, finalmente, o da falha dos mecanismos de autocontrole e de vigilância presentes na vida social moderna (Elias, 1994ELIAS, Norbert. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1994.). Ainda, os jornalistas contrastam a situação dos cinemas com a dos teatros, diversões que rivalizavam pela conquista do público em termos de conteúdo, atrações, artistas, gêneros narrativos, legitimidade cultural e, como acabamos de constatar, segurança das casas de espetáculos. Inclusive, a tecnologia do cinematógrafo foi acionada na disputa por público entre teatro e cinema, no sentido de ressaltar os perigos do último perante o primeiro em diversas oportunidades.

Por ser um ritual que envolvia um público composto de muitos indivíduos, o ato de ir ao cinema foi aos poucos construído por meio de uma série de mecanismos de autocontrole em termos de vestimenta, uso dos espaços comuns e dos assentos, tonalidade de voz, controle das emoções/reações diante dos filmes (Hansen, 1994HANSEN, Miriam. Babel and Babylon: Spectatorship in American Silent Film. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 1994.), que, no caso carioca, remetia a um ethos de contenção caro ao projeto de civilização da Primeira República, mais especificamente encampado pela elite e pelos setores médios (Benchimol, 1992BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992., pp. 268-271).

Todavia, esses mecanismos apresentavam falhas por parte dos indivíduos e também de órgãos regulatórios da vida nas cidades. Neste momento, a atuação da imprensa no período começa a se mostrar de modo mais claro, ficando destacados a finalidade e o conteúdo da cruzada moral dos jornalistas com a série avaliada: preservar a vida dos espectadores de cinema a partir da criação e da aplicação de normas de segurança para as casas de diversão cinematográfica. Precisamos recordar que a série se coadunava com a expectativa de seu editor-chefe, visto como “defensor de um projeto de nação mais inclusivo, [que] acompanhou os estratos médios urbanos em seus anseios por uma república antioligárquica” (Carvalho, 2012CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Irineu Marinho: imprensa e cidade. São Paulo: Globo, 2012., p. 14).

Em outro artigo publicado em 13 de dezembro de 1912, o jornalista acrescentou mais um risco à vida dos espectadores, também relacionado à natureza da película cinematográfica: “o deposito de fitas precisa tambem ser construido de modo a não apresentar perigo de incendio. Para salientar a necessidade de obrigar os proprietarios de cinemas a installal-os em logar apropriado, basta que se diga que o incendio do Cinema Rio Branco teve inicio no deposito de fitas” (Os Cinemas-arapucas. Uma Pretoria..., 1912OS CINEMAS-ARAPUCAS. UMA PRETORIA sobre um cinematographo!. A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 13 dez. 1912., p. 1), aludindo ao recente traumático incêndio do Cinema Rio Branco, que teve ampla cobertura midiática ao longo das semanas seguintes, inclusive concernente ao inquérito policial e ao processo ao qual foram submetidos seus proprietários e seu gerente.

Ao abordar o desenvolvimento da tecnologia cinematográfica na historiografia do cinema norte-americano, Musser (1990MUSSER, Charles. The Emergence of Cinema: The American Screen to 1907. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1990., pp. 181-183) apontou para o fato de que os incêndios acidentais por conta dos projetores, que muitas vezes produziam um número significativo de vítimas fatais, chamaram a atenção das autoridades administrativas, legislativas e judiciárias nos EUA. Assim, é possível inferir que os inconvenientes causados pelo aparato cinematográfico não eram uma questão local, mas estavam inseridos na mesma escala global da sua disseminação.

Outro ponto a ser abordado é a presença dos cinemas na reforma urbana do Rio de Janeiro, pensada pelo prefeito Pereira Passos e levada a cabo entre 1902 e 1906, ano de inauguração da Avenida Central, pensada como a artéria da nova cidade. Dentro da “civilização tropical”, a capital do então novo regime republicano deveria assumir a liderança na produção e no consumo de bens culturais e de luxo (Needell, 1993NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras , 1993.). A afirmação do domínio cultural do Rio de Janeiro caminhava pari passu com a necessidade de legitimação da república e, neste cenário, os espetáculos desempenharam um papel fundamental na conformação das redes de sociabilidade, dos padrões de consumo cultural e na afirmação dos valores ligados às classes dirigentes (Benchimol, 1992BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992.).

Tendo surgido logo após a reforma de Pereira Passos, as salas de cinema mostraram-se casas de diversões importantes para a consolidação da imagem do Rio de Janeiro como polo cultural nacional e internacionalmente, relacionando-se inclusive com outros hábitos de consumo cultural, tais como a ida a teatros, a leitura de jornais e de revistas ilustradas, a frequência a cafés, dentre outros. Isso significa afirmar que os cinemas estavam imersos na lógica de espetacularização do espaço urbano presente na proposta de reforma urbana levada a cabo por Pereira Passos, uma apropriação nítida do modelo parisiense de cidade. É nesta intersecção entre hábitos de consumo que a série Cinemas-arapucas precisa ser compreendida.

A matéria de 14 de agosto de 1912 retrata um interessante panorama:

A exploração do cinematographo tomou ultimamente no Rio um grande incremento. Já não é somente no centro da cidade que elles se apresentam festivamente illuminados, bocas hyantes, tragando, de sessão para sessão, um numero elevadissimo de pessoas, que nos “guichets” deixam, aos mil réis, uma soma fabulosa que os emprezarios vão digerindo, commodamente, arriscando muito pouco, pois que se acautelam com o seguro de incendio. Arriscam um pequeno capital e ganham fortunas.

A formação recente de duas sociedades anonymas, com elevado capital e dirigidas por pessoas que só costumam entrar em negocios de grandes proporções, é a prova cabal de que não há melhor negocio actualmente do que é a exploração do cinema.

Já se apontam fortunas ganhas nesses “guichets”.

Os lucros fabulosos deviam dar margem aos emprezarios para introduzir melhoramentos nas installações de modo a garantir efficientemente a vida do publico.

Em vez de se registrar esse facto, o que se vê, por quasi todo o Rio de Janeiro, é o cinema-arapuca, funccionando com a imprescindível licença, e até com elogios, da nossa criminosa policia, um carater ignobil (A exploração do cinema-arapuca..., 1912A EXPLORAÇÃO DO CINEMA-ARAPUCA é ignóbil. O que a gente vê e a polícia não quer ver. A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 14 ago. 1912., p. 1).

Além disso, o texto destaca o cinema alvo da denúncia como as outras matérias, como podemos averiguar na foto abaixo:


Fachada do cinema Central

Dessa forma, são expostos os alvos da cruzada moral: os proprietários dos cinemas veiculados na série. Descritos como gananciosos e inescrupulosos, são personagens de um cosmopolitismo predatório que permearam os negócios do Rio de Janeiro à época e se tornaram um dos símbolos “da consagração olímpica do arrivismo agressivo sob o pretexto da democracia e o triunfo da corrupção destemperada em nome da igualdade de oportunidades” (Sevcenko, 1983SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 26).

Curiosamente, só há a exposição dos cinemas por meio de menções e descrições no texto e de uma foto veiculada junto às matérias. Não houve a menção ao nome de nenhum proprietário destes cinemas ou funcionários responsáveis pelos mesmos6 6 Na matéria do dia 10 de agosto, há um comunicado assinado pela empresa de Angelino Stamile, mas o nome só foi mencionado em razão da assinatura da nota, e não no corpo do texto da matéria. . Isso contrasta com os anúncios que divulgavam sua programação, com as notas sociais sobre festas, palestras e outros eventos, ou mesmo com notícias sobre fatos negativos pontuais ocorridos, nas quais a menção aos proprietários era uma prática recorrente.

Algumas especulações são possíveis quanto a este fato. A ocultação do nome dos proprietários pôde ter se dado em razão do receio de algum processo ou em razão das redes de sociabilidade, que impediriam a exposição de seus nomes, ou também a cautela se deu para que não houvesse perdas de potenciais anúncios nos jornais, visto que casas de espetáculo costumavam comprar espaços do verso das folhas para nelas inserirem a sua programação7 7 Precisamos pontuar que o verso do jornal era um espaço valorizado por conta da disposição física do mesmo. O leitor virava o jornal e já lia os anúncios sem precisar ver o restante de seu conteúdo. .

Em comum, todos os cinemas alvos da série estavam localizados nas áreas nobres do centro reformado ou em áreas próximas a ele (a exemplo de Lapa e Tijuca). Isso remete diretamente ao tipo de controle almejado pela reforma urbana dos anos anteriores, isto é, um controle baseado na racionalidade técnica, na territorialidade e no acesso privilegiado pelas classes superiores e médias8 8 Nomeamos classes médias um conjunto de setores da população que, embora não correspondessem à maioria da população, eram uma minoria significativa da mão-de-obra disponível no período e detinham um capital considerável, englobando funcionários públicos civis e militares, comerciantes, empregados do comércio (incluindo caixeiros) e de serviços como bancos, casas de jogos, jornais, profissionais liberais, etc. ao centro.

Sevcenko (1983SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 34) atentou para o fato de que as forças policiais se pautavam por essa dimensão territorial, vendo sua atuação nas áreas centrais como primordial para um sentimento de segurança nos cidadãos cariocas das classes superiores, sobretudo em razão das turbulências sociais, políticas e econômicas que a cidade atravessara recentemente. Não era coincidência que o raio de ação da cruzada moral dos jornalistas tenha sido justamente a região do Rio de Janeiro mais valorizada pela reforma recente.

Ao analisarmos os anúncios de cinemas veiculados em A Noite, verificamos que apenas dois o faziam com regularidade antes da publicação da série. No verso do jornal, é possível verificar anúncios da programação dos cinemas São José e Rio Branco a partir da edição do dia 1 de julho de 1912. Tal padrão se manteve até o dia 22 de agosto de 1912, quando o Cinema Parisiense também passou a anunciar no jornal e manteve seu anúncio pelo menos até o fim do mês seguinte.

Ironicamente, um dos anunciantes - Cinema Rio Branco - foi alvo de uma das matérias ao longo da série, o que nos faz questionar se um interesse comercial direto estava mesmo por trás do esforço da cruzada moral. Apesar de os cinemas alvos da série estarem situados nas áreas centrais, não eram tão próximos entre si, o que amplia nosso questionamento em torno desse suposto interesse comercial, uma vez que a localização era um dos fatores-chave na disputa pelo público de entretenimento. Ainda, o Cinema Rio Branco continuou a anunciar no jornal mesmo depois da matéria negativa a ele, o que nos afasta ainda mais de uma vinculação estrita entre os anúncios e a escolha dos cinemas a serem expostos na série.

Em resumo, a maioria das queixas contra os “cinemas-arapucas” remetia-se a questões técnicas do espaço físico dos mesmos: passagens e corredores estreitos; portas de saída estreitas ou em pouca quantidade; grades que separavam os ambientes dos cinemas inseridas de forma inadequada à movimentação do público; salas de espera pequenas ou inexistentes; guichês localizados de modo a dificultar a entrada e a saída do público nas salas; salas de exibição compridas e estreitas; disposição inadequada das fileiras de cadeiras nas salas de exibição; galerias com pé direito baixo e sem acesso às saídas de modo direto, e sim pelas escadas.

Havia críticas à escolha de determinados espaços para as salas de cinema - principalmente quando estas eram situadas em sobrados - e também ao tratamento dos filmes pelos cinemas: isolamento insuficiente das cabines de projeção; armazenamento inadequado dos filmes. Além disso, foram apontados fatores ligados à mão-de-obra, como a contratação de projecionistas em regime de trabalho precário, com muitas horas trabalhadas e mal remunerados, tendo sido descoberto inclusive a exploração de trabalho infantil em um dos cinemas, no qual o projecionista tinha apenas 12 anos (A vida do publico entregue..., 1912A VIDA DO PUBLICO ENTREGUE A UMA CRIANÇA! A policia continua criminosamente indiferente. A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 10 dez. 1912., p. 1).

Há outro elemento comum entre todas as reportagens da série cinemas-arapucas: a veiculação na capa do jornal com fotos dos cinemas denunciados. Na economia visual dos jornais, ocupar a capa era central para demonstrar a relevância de um assunto para sua linha editorial. Ainda, as fotos que acompanhavam as matérias atestavam a identidade do alvo e funcionavam como uma reiteração visual do estigma (Goffman, 1981GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1981.). É possível inferir que o uso de fotografias pelos jornais à época também visava incluir leitores com grau de letramento menor no fluxo narrativo proposto por eles, uma vez que elas tinham a função de reiterar o conteúdo dos artigos.

O uso das fotos na série pode ser visto como investimento na oralidade, na medida em que elas remetem às redes de sociabilidade para a veiculação das notícias, incluindo mesmo analfabetos no circuito de sua disseminação. Ademais, há um apelo ao sensacionalismo como forma de comunicação (Lapera, 2019LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. “Fitas em chamas”: cinema, imprensa e sensacionalismo na Belle Époque carioca. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 80, pp. 61-85, 2019. , p. 69), visto que essas fotos operam como a reafirmação do medo propagado nas matérias e se relacionam diretamente às manchetes alarmantes das notícias.

Martins e De Luca (2006DE LUCA, Tania Regina; MARTINS, Ana Luiza. Imprensa e cidade. São Paulo: UNESP, 2006., pp. 42-43) argumentam que a incorporação dos serviços de fotografia aos jornais deu-se de forma lenta, em razão dos custos elevados e de lacunas na legislação de direitos autorais que deixavam as publicações em uma situação instável e passível de ser judicialmente questionada. Assim, podemos inferir que o investimento de A Noite em uma série com fotografias em todos os artigos era uma tentativa de concorrer com as revistas ilustradas, que vinham conquistando leitores entre as classes superiores e médias da população carioca por conta de seu layout moderno comparado aos jornais da época (Lins; Oliveira; Velloso, 2010LINS, Vera; OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

Além disso, Oliveira destacou que as fotografias veiculadas pelas revistas ilustradas - aqui acrescentamos os jornais - remetem aos estratos superiores e médios da população e aos espaços frequentados por eles (Oliveira, 2010OLIVEIRA, Cláudia de. A iconografia do moderno: a representação da vida urbana. In: LINS, Vera; OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond , 2010. pp. 111-249. , pp. 185-186).

Em todos os argumentos veiculados pelos artigos da série, há a preocupação, por parte dos jornalistas, de se destacar a dimensão técnica e impessoal de sua investida contra esses cinemas, coadunada com a racionalidade moderna. A pretensão universalista de sua demanda é apresentada a partir de um horizonte de argumentos que destacam o perigo à vida dos espectadores, acionando o medo pelo contato com as novas tecnologias e um ressentimento voltado à negligência de agentes públicos e à ganância de empresários.

3. A IDA AO CINEMA NO RIO DE JANEIRO PÓS-REFORMA URBANA DE 1905 E OS LIMITES NA RELAÇÃO ENTRE IMPRENSA, BUROCRACIA E CIDADÃOS

É interessante observar que a série jornalística analisada encontra-se inserida em uma contradição-base da modernidade pretendida pelos ideólogos da Primeira República: ao mesmo tempo em que as possibilidades de experimentações estéticas e perceptivas eram ampliadas pelos meios massivos presentes na cena pública, esta era estruturada a partir de uma cultura política bastante autoritária, que desestimulava a participação de muitos grupos sociais nas decisões de cunho administrativo, técnico e político.

Tal contradição perpassou a veiculação da série. O medo das novas tecnologias foi caro à modernidade, mas a dimensão classista da demanda no caso concreto tendeu a aparecer em razão dos cinematógrafos eleitos como alvos da denúncia e, consequentemente, a qual tipo de público era exposta a reivindicação. Embora o público de cinema tenha uma dimensão heterogênea, não é necessária muita boa vontade para inferir que os cinemas das áreas centrais tinham como público mais assíduo os setores médios e a elite carioca, em razão dos ingressos mais caros9 9 Em 1907 e 1908, quando os primeiros cinematógrafos foram instalados na Avenida Central e em outras áreas nobres, o preço médio de um ingresso de cinema nas áreas centrais era de 500 réis para a segunda classe e mil réis para a primeira classe. A título de comparação, o preço de capa de uma edição da revista Fon-fon: semanário alegre, politico, critico e esfusiante (ilustrada, colorida e com quase 30 páginas por edição) era de 400 réis no Rio de Janeiro e de 500 réis em outros estados. Essas tendências no preço do ingresso de cinema e na divisão do público em duas classes se mantiveram estáveis ao longo da primeira década dos cinematógrafos no Rio de Janeiro. , da precariedade do transporte público, de um código de vestimentas que demandava acessórios caros para os padrões de consumo das classes mais baixas (Needell, 1993NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras , 1993.) e do esforço de afastar as classes mais baixas dessas regiões mais valorizadas.

Isso não significa afirmar que as camadas populares não vissem no cinema uma forma de lazer. É necessário apenas ressaltar que a renda destinada a elas não lhes permitia transformar a ida ao cinema em um hábito de consumo pautado pela regularidade, pela frequência e pela proporção (em termos de público total) na ocupação dos cinematógrafos, sobretudo os das áreas nobres. Desse modo, em razão de terem pouca renda destinada a atividades de lazer, por conta de um cenário de desemprego estrutural (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2012.), de serem repelidas das áreas nobres da cidade recém-reformada pelas autoridades policiais e administrativas e, ainda, de não serem bem vistas pelos donos dos cinematógrafos como parte integrante de seu público, o acesso dessas classes populares ao cinematógrafo dava-se de forma irregular e, em várias ocasiões, mediado por membros das classes médias e superiores.

Além disso, a leitura de jornais era vista como um fator de distinção, se considerarmos as altas taxas de analfabetismo do período e a valorização social do ato de ler jornais como uma forma de se inserir nos debates políticos e sociais da época. Evidentemente, não afirmamos que sujeitos das classes mais baixas não liam jornais, mas apenas que é possível inferir que o estilo e o conteúdo dos textos em parte considerável dos jornais - nos quais incluímos A Noite - eram preferencialmente dirigidos às classes médias e altas. Mesmo que houvesse o esforço de incluir leitores com grau de letramento menor para ampliação de seu público, tal como detectado por Carvalho (2012CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Irineu Marinho: imprensa e cidade. São Paulo: Globo, 2012., p. 27), essa iniciativa do editor do jornal encontrava limites nas questões estruturais aqui expostas.

Inclusive, Süssekind (2006SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras , 2006.) apontou na relação entre cultura visual e escrita um vestígio da tensão entre níveis de letramento, que podemos compreender como uma tentativa, por parte de uma elite intelectual, de conservar sua hegemonia no plano da criação cultural. Segundo a autora, os periódicos eram marcados por uma “obsessão por um vocabulário rico, por uma redação enfática, ornamental, pela dramatização retórica do narrado. Como uma espécie de resistência pela ênfase, pela superornamentação e pelo preciosismo verbal frente ao privilégio crescente da ilustração” (Süssekind, 2006SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras , 2006., p. 37).

O uso de argumentos tecnicistas para obliterar uma dimensão classista nas reivindicações em torno da fruição do espaço urbano não era um fenômeno propriamente novo. Ao analisar a burocracia da segunda metade do século XIX voltada à saúde pública no Rio de Janeiro, Chalhoub (1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996., pp. 15-59) ponderou que a dimensão técnica da discussão sobre o tema das doenças tropicais e de sua propagação apagava a escolha de determinadas doenças em detrimento de outras e naturalizava a perseguição às “classes perigosas”, uma espécie de prólogo que seria radicalizado no início do século seguinte.

Apropriando-nos dessa discussão, podemos dizer que os contornos da cruzada moral dos jornalistas de A Noite começam a ficar mais nítidos em termos de classes sociais em ação. Para compreender melhor este aspecto, precisamos nos debruçar sobre os agentes a quem a demanda era direcionada, ou seja, a quem caberia fiscalizar e cumprir as regras.

Desde a primeira matéria da série, são constantes as queixas contra a polícia que, segundo os jornalistas, deveria ser o órgão responsável por autorizar a abertura e fiscalizar o funcionamento dos cinemas segundo regras que não eram cumpridas. Em todas as matérias, a polícia é apontada como negligente e incompetente no cumprimento de sua função, e o tom contra ela é bem ácido, a ponto de ser afirmado, em várias dessas matérias, que a polícia seria a principal responsável em caso de uma tragédia ocorrer.

Na reportagem do dia 12 de agosto de 1912, há uma análise sobre a ineficiência da polícia no caso que vale a pena ser destacada:

A permissão criminosa concedida pela policia para o funccionamento de cinematographos que constituem uma ameaça á vida de quem os frequenta, só encontra uma explicação na anarchia que se vae estendendo por todos os serviços publicos. O filhotismo impera em todas as repartições públicas, desorganisando, anarchisando tudo.

No caso dos cinemas arapucas, a existencia dessas installações criminosas é devida exclusivamente á protecção dispensada pelos que tudo podem aos seus afilhados.

A policia não mantem permanentemente um serviço technico organisado para fiscalisação de estabelecimentos de diversões. Apparece, por exemplo, na Chefatura, um requerimento pedindo á policia para o funccionamento de um novo cinema. São nomeados dous peritos que tanto podem ser engenheiros, como pharmaceuticos, como desocupados. O proprietario do cinema a se vistoriar tem de desembolsar em proveito de cada um a quantia de 10$000, de modo que ha um verdadeiro assedio em torno do delegado auxiliar que tem de fazer a designação. Os mais protegidos é que são os mais nomeados.

É verdade que, de vez em quando essas vistorias são realisadas por engenheiros. A maior parte dos cinemas tem sido vistoriada pelos protegidos.

A inepcia da policia chega ao ponto de descer aos elogios ás installações que estão longe de offerecer ao publico a necessaria segurança em caso de perigo (De como se demonstra a cegueira da polícia, 1912DE COMO SE DEMONSTRA A CEGUEIRA DA POLÍCIA. A população precisa conhecer os perigos que corre! A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 12 ago. 1912., p. 1).

É importante destacar que, na Primeira República, não havia concursos de acesso universal para preenchimento dos postos no serviço público, tal como os que passaram a ser realizados a partir da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) por Getúlio Vargas, em 1938, salvo para alguns postos específicos10 10 Em seu livro sobre a polícia do Rio de Janeiro, Bretas (1997, p. 52) relatou a grande mobilidade nos cargos policiais - mesmo com a existência de concursos -, destacando a falta de racionalidade na promoção de agentes como o principal motivo. . Isso tornava a nomeação a cargos burocráticos muito dependente dos interesses de políticos e administradores locais (e aqueles que tinham em suas redes de sociabilidade mais acesso a essas figuras)11 11 No âmbito literário, Lima Barreto desenvolveu esse ponto em Recordações do escrivão Isaías Caminha, no qual há o relato das dificuldades de um jovem recém-migrado para o Rio de Janeiro de conseguir nomeação para um cargo público. Para sobreviver, consegue emprego em um jornal. .

Dessa forma, as relações de cunho clientelista e patrimonialista descritas na reportagem permeavam a vida social tanto dos funcionários quanto dos cidadãos que precisavam recorrer a serviços públicos. Assim, podemos dizer que o medo acionado nas narrativas jornalísticas sobre incêndios em cinematógrafos remete diretamente a outro medo bastante difundido entre os cidadãos cariocas do início do século XX: o de ser vítima de algum tipo de arbitrariedade por ação ou omissão de um agente público.

Solicitava-se uma vistoria técnica nas salas de cinema como uma forma de sanar o temor de que regras abstratas fossem mal aplicadas pelos agentes públicos. Isto é, na argumentação dos jornalistas, estava evidente que a fonte de legitimidade racional-burocrática deveria prevalecer sobre a tradicional-patrimonialista (Weber, 2000WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Brasília: Ed. UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000., pp. 141-158) nas justificativas das ações de funcionários públicos.

Em uma reportagem publicada posteriormente em razão da repercussão da série, é apontada uma violação a um dever considerado fundamental por parte do Estado: a guarda de documentos. Com o título Uma pretoria sobre um cinematographo!, o jornal A Noite assim descreve a bizarra situação:

O criminoso funccionamento de cinematographos, que outra coisa não são senão armadilhas contra a vida do publico, tem aspectos escandalosissimos. [...]

Mas a cousa chegou ao ponto de se installar até repartições officiais sobre as salas de projecções cinematographicas! a 4ª pretoria civel funcciona no sobrado do Cinema Excelsior, rua do Cattete, esquina da rua Dois de Dezembro.

É o cúmulo! Numa pretoria os papeis de importancia se amontoam junto aos autos. A destruição desses papeis representa um prejuizo incalculavel, não só para os particulares, como também para o governo. É natural, pois, que se use de todas as cautellas na guarda dos autos. E ninguém dirá que se usa de cautella, que se usa de uma precaução, guardando papeis da importancia de uns autos em uma sala que tem por baixo um foco electrico projetado sobre uma camada de celluloide, um explosivo por excellencia, uma ameaça constante de incendio (Os Cinemas-arapucas. Uma Pretoria..., 1912OS CINEMAS-ARAPUCAS. UMA PRETORIA sobre um cinematographo!. A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 13 dez. 1912., p. 1).

Há a apresentação do valor dos documentos a partir de seu aspecto probatório e, consequentemente, como garantia de bens e de direitos. Nesse caso específico, a localização de um cartório em um sobrado de um prédio que abriga um cinema é uma ameaça ao direito de propriedade garantido por esses documentos. Logo, além do medo de uma morte trágica e repentina, ainda existe a possibilidade de uma “morte social”, traduzida pela perda da posse de bens e de garantias legais, o que, em um momento de grandes mudanças sociais e políticas, poderia gerar um intenso sentimento de insegurança nos espectadores de cinema e nos leitores do jornal, além de mais um vestígio a respeito do público-alvo do jornal.

Em outro trecho da matéria, a justificativa para a cruzada moral é ressaltada: a existência de vítimas fatais em razão de incêndios em cinematógrafos. E o incêndio no Cinema Brasileiro, em 9 de dezembro de 1912, deu mais ânimo ao ataque aos cinemas promovido pela publicação: “antes tarde do que nunca, porque si se tivesse tomado em consideração a campanha feita pela A Noite, não se registraria com certeza o incendio da rua Marechal Floriano e a morte do Dr. Sá Rego e a do infeliz operador Antonio Campos”12 12 Essa fonte foi extensamente analisada em Lapera, 2019, pp. 71-74. [grifo nosso].

Durante a publicação da série, os jornalistas de A Noite apresentaram-se como legítimos porta-vozes das demandas dos leitores e dos espectadores às autoridades públicas e aos donos de cinemas, usando termos como “serie” e “campanha” para definir o próprio trabalho, o que é revelador tanto da dimensão de conjunto de sua intervenção quanto na crença da legitimidade do próprio ofício.

Em vários momentos, os jornalistas chegam a se colocar como substitutos da polícia na fiscalização, adotando até uma postura pedagógica com ela: “emquanto a policia com a molleza que lhe é caracteristica reflecte sobre a necessidade de agir nesse grave caso de cinematographos-arapucas, nós continuamos a nossa inspecção a essas casas de diversão, mostrando á autoridade as que não offerecem a necessaria segurança para o publico [...]”.

A respeito da imprensa no Rio de Janeiro, a expansão das técnicas de impressão no final do século XIX (Süssekind, 2006SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras , 2006., p. 24), o incremento da estrutura estatal, da qual passaram a fazer parte alguns órgãos públicos em razão das demandas do regime republicano, e o aumento do contingente populacional que chegava à então Capital Federal - fundamental para a formação de um público leitor - foram alguns dos fatores que propiciaram uma circulação maior de jornais e revistas na virada dos séculos XIX e XX.

Barbosa (2007BARBOSA, Marialva Carlos. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.) avaliou que esses periódicos desempenharam papel central na vida pública da cidade, disseminando ideias liberais e republicanas, em sua maioria, mas havendo espaço também para plataformas mais conservadoras. Completando este panorama, Carvalho (1997CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1997.) destacou a atuação de jornais operários de diferentes linhas (anarquistas, socialistas) e de movimentos dissidentes politicamente dos rumos da república.

O espaço público no qual se projetou a cruzada moral dos jornalistas de A Noite contra os cinemas-arapucas era, portanto, marcado por uma grande legitimidade ocupada pelos jornais e pelos debates propostos por eles. A isso, podemos acrescentar que o número de reportagens feitas ao longo da série e a retomada posterior do tema em várias edições no ano seguinte revelam um interesse dos leitores sobre o tema, na medida em que muitos destes provavelmente também eram frequentadores de cinema, e a série assumiu desde o princípio esse ponto de vista.

Desse modo, a pensée bourgeoise (Sahlins, 2004SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ , 2004., p. 191) combinou algumas variações em torno do consumo relacionado tanto ao meio impresso quanto ao cinema para tentar impor seus valores e suas práticas a respeito do mundo social, transformando-se em ação social voltada contra a negligência da burocracia e a ganância dos empresários.

Investidos pela legitimidade da posição social que ocupavam e pelo prestígio que o meio impresso tinha à época, uma vez que “as cruzadas morais são em geral dominadas por aqueles situados nos níveis superiores da estrutura social” (Becker, 2008BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008., p. 155), os jornalistas foram parcialmente bem sucedidos em alavancar um engajamento em tal cruzada: entrevistas com autoridades policiais e donos de cinematógrafos, que buscavam se defender das acusações, e cartas de leitores relatando seus medos foram divulgadas ao longo da série e nos meses seguintes.

No artigo publicado em 20 de agosto de 1912 há o relato da reação das autoridades policiais à série:

Os peritos da policia visitaram, depois de denunciarmos a existencia dessas armadilhas, alguns dos cinematographos que tinhamos apontado.

Dessa visita levaram a impressão do perigo visivel a que se expõe o publico que frequenta as taes arapucas. A policia já teve conhecimento dessa vistoria, mas quanto a providencias que estavam na sua alçada tomar para segurança do publico, até hoje não são ainda conhecidas de ninguém.

A exploração continua com o mesmo espalhafato de sempre, com a mesma imprudencia degradante, como antes da vistoria.

Beatificamente, a policia continua a atollar-se nas defezas que está fazendo nos “a pedidos” das suas inhabilidades indefensaveis, inhabilidades que vão se amontoando assustadoramente dia a dia, como que para fazer render as despezas, e não tem tempo para cuidar dos mais comesinhos deveres, cujo cumprimento nossa organisação administrativa lhe confiou (Os cinemas-arapucas. A polícia..., 1912OS CINEMAS-ARAPUCAS. A POLÍCIA, beatificamente, continua de braços cruzados. A Noite , Rio de Janeiro, p. 1, 20 ago. 1912., p. 1).

O jornal destaca que as autoridades policiais tentaram apresentar alguma ação pública contra o problema apontado, mas mostraram-se mais uma vez ineficientes em coibir o problema. Assim, o jornal explora outro medo em seus leitores: o de ser alvo da indiferença no tratamento por parte da burocracia, dentro do que já foi analisado por Herzfeld (1993HERZFELD, Michael. The Social Production of Indifference: Exploring the Symbolic Roots of Western Bureaucracy. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1993., pp. 1-7). Como já abordamos aqui, além de apontar a pessoalidade nas escolhas do corpo burocrático, agora os jornalistas também o mostram na relação entre burocracia e cidadãos. Na análise dessa relação, Herzfeld pontua que a primeira é “um sistema que demanda responsabilidade, e responsabilidade é um amálgama culturalmente saturado, socialmente produzido de ideias sobre pessoa, assistência e política” (1993, p. 47).

Essa indiferença assume um aspecto estruturante na situação dos espectadores e da ida ao cinema, o que pode ser verificado na conclusão a que chega o cronista: “quanto a providencias que estavam na sua alçada tomar para segurança do publico, até hoje não são ainda conhecidas de ninguém”. Aqui, ela é traduzida na inércia e na falta de publicidade das decisões burocráticas a que são submetidos os espectadores, com os quais os jornalistas se identificam ao longo de toda a série.

Em um momento posterior, é publicada uma entrevista com um delegado a respeito dessas vistorias e dos critérios para autorização ao funcionamento de um cinema. O delegado entrevistado fez alusão somente aos aspectos técnicos na avaliação das salas de cinema e deu respostas evasivas ao repórter quanto a casos concretos, em uma postura claramente defensiva. O apelo à dimensão técnica descolada da apreciação quanto à vida dos espectadores mostrou-se, neste momento, na manifestação da indiferença, por meio da linguagem, do agente público perante os mesmos (Os cinemas-arapucas talvez não consigam..., 1913OS CINEMAS-ARAPUCAS TALVEZ NÃO CONSIGAM licença para funccionar. O que nos disse o Dr. Ferreira de Almeida. A Noite , Rio de Janeiro, p. 2, 8 jan. 1913., p. 2).

Entretanto, algumas semanas depois, houve uma resposta da polícia no sentido de condenar os cinemas-arapucas, revelando um sucesso parcial da cruzada moral. Na notícia veiculada em 24 de janeiro de 1913, há menção à nomeação de uma comissão de peritos que condenou os Cinemas Popular e Ouvidor, julgou inadequada a localização do Cinema 11 de Junho - em um sobrado (cinemas classificados na série como “arapucas”) -, além de solicitar providências em relação a outros sete cinemas (Os cinemas-arapucas estão no index, 1913OS CINEMAS-ARAPUCAS ESTÃO NO INDEX. A Noite , Rio de Janeiro, p. 2, 24 jan. 1913., p. 2).

Um sentimento de indiferença também foi replicado na resposta dos exibidores ao jornal. Ao narrar o encontro, na redação do jornal, com um fiscal da Companhia Cinematographica Internacional, responsável pelo Cinema Ouvidor (exposto dois dias antes como um dos cinemas-arapucas e que, ironicamente, seria alvo de uma condenação alguns meses depois), o jornalista destaca que houve, por parte deste, um esforço de dissuadir a redação de A Noite de publicar mais críticas sobre o cinema.

A carta-resposta enviada pelo fiscal deteve-se apenas em um aspecto de ordem técnica: o fato de a sala ser quase toda revestida de ferro e não de madeira, à exceção das cadeiras e do estrado, o que tornaria mais difícil de o fogo se propagar em caso de um incêndio. Inclusive, atribuiu a denúncia feita pelo jornal a um desentendimento provocado “por algum despeitado ou interessado em deprimir um dos mais velhos e frequentados cinemas desta capital” (A polícia chega a permitir..., 1912A POLÍCIA CHEGA A PERMITTIR cinemas em sobrados! É bom prevenir em tempo. A Noite , Rio de Janeiro, 10 ago. 1912, p. 1., p. 1).

No caso do outro cinema que respondeu ao jornal, a indiferença mostrou-se ainda mais flagrante. Após relatar um teste de alarme bem-sucedido no restaurado Cinema Rio Branco13 13 O mesmo cinema que pegou fogo em 8 jul. 1910, funcionando nesse momento em outro edifício. , elogiado inclusive pela polícia, o cronista faz a seguinte ressalva: “um dos proprietarios do Cinema Rio Branco, em conversa com um nosso companheiro, deixou escapar que varias pessoas, quando se deu a alarma a que nos referimos, se atiraram, tomadas de panico, das galerias á plateia”.

Dos dois exemplos, pode-se deduzir que as respostas das empresas foram motivadas meramente pelo receio de perder público e ter a sua reputação comercial manchada - logo, prejuízo financeiro e, com ele, a possibilidade de falir -, não havendo preocupação quanto à vida e o bem-estar do seu público. A resposta pública inseriu-se nas estratégias de divulgação dos cinemas como uma tentativa de minimizar o impacto da série jornalística na frequência a eles.

Finalmente, por meio de três cartas de leitores publicadas, foi possível verificar minimamente o engajamento destes na cruzada moral proposta pela série. A carta apócrifa publicada em 17 de agosto de 1912, sob o título A falta de policiamento nos cinemas, tem como alvo um dos cinemas denunciados. Os proprietários do Cinema Central são retratados como inescrupulosos, “que só querem vender entradas e não se importam a quem”, e desleixados com a higiene da sala de cinema. Mais adiante, descreveu a cena que o obrigou a se retirar do cinema com sua família: “o gerente franqueou entrada a umas mulheres completamente embriagadas, que iam em companhia de uns ‘chauffeurs’ não menos vagabundos que ellas e começaram a dirigir ‘chulas’ aos demais espectadores e a profferir palavras que offendem á moral, fazendo com que as familias se retirassem” (A Falta de policiamento nos cinemas, 1912A FALTA DE POLICIAMENTO NOS CINEMAS. A Noite , Rio de Janeiro, p. 4, 17 ago. 1912., p. 4).

Nesse trecho, há a revelação do medo do contato com outros grupos sociais que não se comportassem com a mesma contenção requerida pelos espectadores no ato de ir ao cinema, e que os submetessem a constrangimentos, um indício de como era imaginado o público de cinema das primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro, e, mais uma vez, a que classes essa diversão se voltava preferencialmente - como destacamos anteriormente, aos setores médios e à elite.

Um tom bem parecido é o de outra carta publicada em 9 de janeiro de 1913. Nela, há a denúncia contra o Cinema Bijou, em São Cristóvão. O leitor se apropria da expressão do jornal e também designa o cinema como uma “arapuca”, destacando o risco de incêndio pelo fato de este funcionar em um estreito barracão de madeira, bem como por possuir entradas estreitas e bilheteria atrapalhando a circulação do público. Além disso, continua: “não tem agua nem apparelhos sanitarios, verdadeira imundicie, que pode se considerar um foco de infecção” (Os cinemas-arapucas. Uma carta..., 1913OS CINEMAS-ARAPUCAS. UMA CARTA às autoridades competentes. A Noite , Rio de Janeiro, p. 2, 9 jan. 1913., p. 2).

O medo de doenças transmissíveis por más condições de higiene também estava presente entre a população da cidade, tal como já avaliou Chalhoub (1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.). Inclusive, esta foi uma das principais justificativas para a reforma urbana de Pereira Passos, que tornou ainda mais rígidas as hierarquias de classe, raça, gênero e nacionalidades no espaço urbano das áreas centrais e próximas a elas no Rio de Janeiro.

A terceira carta, publicada em 13 de dezembro de 1912, é de autoria do leitor Guilherme Chelen, o qual se apresentou como testemunha de incêndio de um cinema para fazer um pedido às autoridades: que designassem um bombeiro para cada cinema da cidade, que estivesse de prontidão durante o espetáculo. Continua o seu depoimento: “fui espectador do incendio da Rua Larga desde o primeiro grito e se esta medida vigorasse, certamente não teria tido tão lamentáveis consequencias e a prova é que, começando na cabine que ficava á entrada, diversas pessoas entravam e saiam a salvar filas de cadeiras, sob o fogo” (Chelen, 1912CHELEN, Guilherme. Os cinemas-arapucas. Providencias que se impõem. A Noite , Rio de Janeiro, p. 2, 13 dez. 1912., p. 2) - aludindo à vítima do incêndio no Cinema Brasileiro, ocorrido quatro dias antes.

A partir dos medos narrados - o de contato com membros das classes inferiores, o de risco de infecções por falta de higiene, o da indiferença de tratamento por parte da burocracia -, bem como dos apelos às autoridades policiais e bombeiros, da linguagem utilizada pelos leitores e do tom de proximidade com os jornalistas de A Noite, inferimos que as três cartas são oriundas dos estratos médios ou da elite, embora duas delas sejam apócrifas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do artigo, podemos verificar que a cruzada moral proposta pelo jornal A Noite contra os cinemas-arapucas foi parcialmente bem-sucedida em suscitar o engajamento de quem era interpelado, a saber: autoridades policiais, donos de cinematógrafos e leitores/público do cinema.

No decreto 9.048, de 18 de agosto de 1911, que regulamentava a atuação do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, havia algumas obrigações impostas aos teatros, tais como: a necessidade expressa de ter um bombeiro em cada teatro para atuar caso houvesse algum incêndio, uma vistoria prévia para o seu funcionamento, um registro com água para incêndios e a necessidade de haver comunicação direta com o Corpo de Bombeiros. Esta última obrigação era extensível a qualquer centro de diversões “onde se aglomere habitualmente muito povo” (art. 185 do decreto).

Não havia a menção expressa aos cinematógrafos e, desta brecha legal, derivaram tanto o debate sobre a necessidade de estes cumprirem ou não a legislação vigente quanto a interpretação de que a polícia (em vez dos Bombeiros) seria o agente desta fiscalização. Essa menção só ocorreria no decreto 16.274, de 20 de dezembro de 1923, que deu nova regulamentação ao Corpo de Bombeiros, na qual havia expressamente a obrigação, por parte das salas de cinema, de realizar os mesmos procedimentos reservados aos teatros.

Ao acionar alguns medos em virtude do ato de ir ao cinema, a série jornalística foi aos poucos revelando a que tipo de público se dirigia, ao se relacionar a outros medos, tais como o de tratamento arbitrário ou indiferente por parte dos membros da burocracia, algo visto como vexatório para os setores médios e superiores ou, ainda, o medo de uma morte social advinda da perda de documentos que comprovassem propriedades e direitos.

Esse lugar de classe também foi possível de ser verificado pela escolha dos cinemas alvos da denúncia - situados nas áreas centrais recém-reformadas do Rio de Janeiro ou próximos a elas -, pela posição dos jornalistas como intelectuais, em sua pretensão de intervir no debate e nos rumos da ação da burocracia frente aos cinemas, pela resposta dos leitores, por meio das cartas publicadas no jornal, e, enfim, pela legitimidade conferida por este ato aos medos relatados por esses leitores. É preciso ressaltar que tanto o cinema quanto o jornalismo inseriam-se na espetacularização da experiência urbana moderna, e que a disseminação de medos por esses meios dava-se de forma complementar e sincrônica.

Finalmente, precisamos destacar que a série analisada estava inserida em uma pedagogia do jornalismo em relação aos leitores, da mesma forma que o cinema também era usado em sua dimensão de instrução. Em suma: a vida moderna precisava ser ensinada àqueles que a pretendessem fruir, o moderno possuía uma pedagogia constitutiva que era veiculada e reafirmada pelos meios massivos. Certamente, o medo foi um de seus instrumentos mais eficazes.

REFERÊNCIAS

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  • WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Brasília: Ed. UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.
  • 1
    Em outra oportunidade (Lapera, 2019LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. “Fitas em chamas”: cinema, imprensa e sensacionalismo na Belle Époque carioca. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 80, pp. 61-85, 2019. ), avaliamos essa questão de modo secundário.
  • 2
    Também já levantamos essa hipótese de modo secundário em outro momento (Lapera, 2019LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. “Fitas em chamas”: cinema, imprensa e sensacionalismo na Belle Époque carioca. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 80, pp. 61-85, 2019. ). Agora, em contrapartida, o fazemos de modo central à nossa reflexão. Além disso, ressaltamos que foram encontrados artigos em outros jornais sobre a série analisada. Porém, manteremos o foco no jornal A Noite, em razão dos limites impostos pela formatação da RBH.
  • 3
    Ainda precisamos destacar que, via de regra, apenas textos opinativos eram assinados, enquanto as reportagens vinham apócrifas. O fato de os artigos da série não serem assinados não remete a nenhum constrangimento por parte dos jornalistas em assiná-las, e sim a uma prática comum do jornalismo no período.
  • 4
    O material fotográfico dos filmes do período tinha na base de sua composição nitrato de celulose, substância altamente inflamável que, inclusive, poderia entrar em combustão espontânea, se a película fosse mal armazenada.
  • 5
    Já avaliamos esses aspectos em outro momento (Lapera, 2019LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. “Fitas em chamas”: cinema, imprensa e sensacionalismo na Belle Époque carioca. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 80, pp. 61-85, 2019. , p. 67), e consideramos relevante retomá-los por conta da análise desta fonte.
  • 6
    Na matéria do dia 10 de agosto, há um comunicado assinado pela empresa de Angelino Stamile, mas o nome só foi mencionado em razão da assinatura da nota, e não no corpo do texto da matéria.
  • 7
    Precisamos pontuar que o verso do jornal era um espaço valorizado por conta da disposição física do mesmo. O leitor virava o jornal e já lia os anúncios sem precisar ver o restante de seu conteúdo.
  • 8
    Nomeamos classes médias um conjunto de setores da população que, embora não correspondessem à maioria da população, eram uma minoria significativa da mão-de-obra disponível no período e detinham um capital considerável, englobando funcionários públicos civis e militares, comerciantes, empregados do comércio (incluindo caixeiros) e de serviços como bancos, casas de jogos, jornais, profissionais liberais, etc.
  • 9
    Em 1907 e 1908, quando os primeiros cinematógrafos foram instalados na Avenida Central e em outras áreas nobres, o preço médio de um ingresso de cinema nas áreas centrais era de 500 réis para a segunda classe e mil réis para a primeira classe. A título de comparação, o preço de capa de uma edição da revista Fon-fon: semanário alegre, politico, critico e esfusiante (ilustrada, colorida e com quase 30 páginas por edição) era de 400 réis no Rio de Janeiro e de 500 réis em outros estados. Essas tendências no preço do ingresso de cinema e na divisão do público em duas classes se mantiveram estáveis ao longo da primeira década dos cinematógrafos no Rio de Janeiro.
  • 10
    Em seu livro sobre a polícia do Rio de Janeiro, Bretas (1997BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro (1907-1930). Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 52) relatou a grande mobilidade nos cargos policiais - mesmo com a existência de concursos -, destacando a falta de racionalidade na promoção de agentes como o principal motivo.
  • 11
    No âmbito literário, Lima Barreto desenvolveu esse ponto em Recordações do escrivão Isaías Caminha, no qual há o relato das dificuldades de um jovem recém-migrado para o Rio de Janeiro de conseguir nomeação para um cargo público. Para sobreviver, consegue emprego em um jornal.
  • 12
    Essa fonte foi extensamente analisada em Lapera, 2019LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. “Fitas em chamas”: cinema, imprensa e sensacionalismo na Belle Époque carioca. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 80, pp. 61-85, 2019. , pp. 71-74.
  • 13
    O mesmo cinema que pegou fogo em 8 jul. 1910, funcionando nesse momento em outro edifício.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    22 Jul 2022
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