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A reforma administrativa portuguesa entre o Estado Novo e a Democracia: continuidades e rupturas (1967-1978)1 1 Esta investigação foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Bolsa de Pós-Doutoramento com referência SFRH/BPD/113250/2015. Trabalho realizado na Unidade de I&D Centre for Functional Ecology - Science for People & the Planet (CFE), com a referência UIDB/04004/2020, com apoio financeiro da FCT/MCTES por meio de fundos nacionais (PIDDAC).

The Portuguese Administrative Reform between the New State and Democracy: Continuity and Disruption (1967-1978)

RESUMO

Este artigo pretende refletir sobre as grandes linhas que caracterizaram os processos de reforma da Administração Pública portuguesa entre 1967 (data da criação do primeiro organismo responsável por ela) e 1978 (data da criação do primeiro Ministério da Reforma Administrativa). Para tal, serão analisados debates parlamentares, legislação, documentação arquivística, programas de governo e alguns dos documentos mais relevantes dos primeiros tempos da Democracia. Argumenta-se que o processo de reforma administrativa apresentou continuidades entre os dois regimes, em termos institucionais, metodológicos e no que concerne aos seus objetivos. Defende-se que os seus pressupostos testemunharam, antes e depois da revolução, um processo contínuo de adaptação a diferentes conjunturas e desafios. Por fim, afirma-se que o período democrático permitiu um maior enquadramento institucional da reforma administrativa, na esteira da preparação do país para os desafios da época, a exemplo da integração europeia.

Palavras-chave:
Portugal; Estado Novo; Democracia; Reforma administrativa

ABSTRACT

This article aims to reflect on the main lines that characterized the reform processes of the Portuguese Public Administration between 1967 (the date of creation of the first body responsible for it) and 1978 (the date of creation of the first Ministry of Administrative Reform). To this end, we will analyze parliamentary debates, legislation, archival documentation, government programs, and some of the most relevant documents from the early days of Democracy. We argue that the administrative reform process presented continuities between the two regimes, in institutional and methodological terms, and with regard to its objectives. We defend that its assumptions witnessed, before and after the revolution, a continuous process of adaptation to different conjunctures and challenges. Finally, we state that the democratic period allowed for a greater institutional framework for administrative reform, as the country prepared for the challenges of the time, such as European integration.

Keywords:
Portugal; New State; Democracy; Administrative reform

1. INTRODUÇÃO

A partir da segunda metade do século XX, vários autores desenvolveram estudos sobre as deficiências da Administração Pública portuguesa e as tentativas de a reformarem e/ou modernizarem. Porém, a maioria destes trabalhos incidiu sobre o período democrático, enquanto a realidade do Estado Novo começou apenas recentemente a ser analisada com maior profundidade. As últimas três décadas do século XX têm vindo, assim, a ser vistas como o período fértil das tentativas de reforma da Administração Pública (Madureira, 2015MADUREIRA, César. A reforma da Administração Pública Central no Portugal Democrático: do Período Pós-Revolucionário à Intervenção da Troika. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 49, n. 3, pp. 547-562, 2015.; Carvalho, 2008CARVALHO, Elisabete Reis de. Agendas e Reforma Administrativa em Portugal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, 2008. ; Araújo, 2005ARAÚJO, Joaquim Filipe Ferraz Esteves de. A Reforma Administrativa em Portugal: em busca de um novo paradigma (Working Paper). Repositorium Universidade do Minho. Braga: Universidade do Minho, pp. 1-11, 2005.; Salis Gomes, 2001SALIS GOMES, João. Perspetivas da Moderna Gestão Pública em Portugal. In: MOZZICAFREDDO, Juan; SALIS GOMES, João (Orgs.). Administração e Política: Perspectivas da Reforma da Administração Pública na Europa e nos Estados Unidos. Oeiras: Celta Editora, 2001. pp. 77-102. ; Cardoso, 2012CARDOSO, Júlio. Da Reforma Administrativa ao e-government 1974-2012: e-services no Município do Pombal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Documentação e Informação) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Lisboa, 2012. ), sendo a Revolução de Abril de 1974 e, posteriormente, a adesão de Portugal à Comunidade Econômica Europeia (CEE), entendidas como marcos neste processo (OCDE, 1995OCDE. Managing Administrative Reform: A Case Study of Portugal (1976-1994). Paris: Puma, 1995. ).

Contudo, não tem existido um consenso quanto à calendarização do desenvolvimento da reforma da Administração Pública no período democrático. Autores como César Madureira, Maria Asensio ou Miguel Rodrigues (2013MADUREIRA, César (Coord.); ASENSIO, Maria; RODRIGUES, Miguel. Análise da evolução das estruturas da Administração Pública Central portuguesa decorrente do PRACE e do PREMAC. Lisboa: Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, fev. 2013. ) defendem que as medidas tendentes à reforma administrativa no período democrático estiveram presentes em todos os programas de governo desde o final da década de 1970. Estes argumentam que, não obstante a inexistência de mudanças estruturais e orgânicas concretas, é possível identificar transformações sutis, mas relevantes, no processo de reforma da Administração Pública. Por outro lado, outros autores consideram que os processos de reforma administrativa se iniciam somente na década de 1980, encontrando-se bastante ligados ao processo de adesão de Portugal à CEE. A diminuta atuação governamental sobre a Administração Pública nos anos imediatos à Revolução de Abril é trazida à colação, sendo justificada pelas divergências sobre os objetivos que deveriam pautar a reforma e o receio de que esta pudesse alterar os equilíbrios de poder estabelecidos (Oliveira Rocha, 2006OLIVEIRA ROCHA, José; ARAÚJO, Joaquim. Administrative Reform in Portugal. Prospects and Dilemmas. In: EUROPEAN GROUP OF PUBLIC ADMINISTRATION ANNUAL CONFERENCE, 2006. Milão: Repositório da Universidade do Minho, Braga, 2006. pp. 3-31. , p. 11).

Existem, igualmente, estudos que advogam que a Revolução de Abril não implicou uma ruptura em termos da gestão da Administração Pública. Não só porque as heranças administrativas acabariam por marcar as políticas públicas implementadas no período democrático, mas também porque temas mais prementes - como a adequação do aparelho administrativo à consolidação do regime democrático e do Estado de direito; o desenvolvimento tardio do Welfare State; e a necessidade de o aparelho de Estado funcionar de forma eficiente, apesar da instabilidade política - acabariam por impedir uma ruptura na gestão pública (Carvalho, 2008CARVALHO, Elisabete Reis de. Agendas e Reforma Administrativa em Portugal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, 2008. , p. 155; Oliveira Rocha, 2001OLIVEIRA ROCHA, José António. Gestão pública e modernização administrativa. Oeiras: Instituto Nacional de Administração, 2001. , p. 151). Porém, apesar de realçar permanências entre os dois regimes, esta noção de continuidade não foi aprofundada no que diz respeito à temática da reforma administrativa. Um dos motivos para esta realidade parece resultar de uma opção metodológica, pois o fato de a Revolução de 1974 ser habitualmente usada como limite temporal, inicial ou final, das investigações, acaba por enfatizar as rupturas entre os dois regimes, obscurecendo as continuidades. É certo que, em alguns dos trabalhos que se dedicaram ao período democrático, é possível encontrar incursões à época anterior (Araújo, 2005ARAÚJO, Joaquim Filipe Ferraz Esteves de. A Reforma Administrativa em Portugal: em busca de um novo paradigma (Working Paper). Repositorium Universidade do Minho. Braga: Universidade do Minho, pp. 1-11, 2005.; Silva, 2012SILVA, Henrique Dias da. Reformas Administrativas em Portugal desde o século XIX. Jurismat, Portimão, n.1, pp. 65-97, 2012.). Porém, estas apresentam-se sobretudo como textos introdutórios ou de cariz comparativo, não privilegiando uma análise de continuidade entre os anos finais do Estado Novo e o período inicial da Democracia.

Neste artigo argumenta-se que esta opção, apesar de compreensível, dadas as rupturas testemunhadas e os enormes impactos da revolução na Administração Pública, tem ocultado alguns fenômenos importantes no estudo do tema. De fato, um olhar estanque sobre cada um dos períodos não permite verificar de que modo estruturas, programas, objetivos e atores fizeram, ou não, a transição para a Democracia, acabando por viabilizar uma ideia de ruptura que é mais fruto da metodologia utilizada do que da realidade. É necessário não esquecer que uma certa noção de continuidade já se encontra presente em autores como José Oliveira Rocha (2001OLIVEIRA ROCHA, José António. Gestão pública e modernização administrativa. Oeiras: Instituto Nacional de Administração, 2001. ), que apresentam o Estado Novo como uma primeira fase dos esforços de reforma administrativa. Também Walter Opello Jr. (1983OPELLO JR., Walter. Portugal’s Administrative Elite: Social Origins and Political Attitudes. West European Politics , London: Taylor & Francis , v. 6, n. 1, pp. 63-74, 1983., p. 64) pondera que a nova elite política da Democracia revitalizou um movimento de reforma que, a par da política de saneamentos, pretendia desenvolver uma revolução administrativa. Contudo, defende-se neste artigo que integrar a Revolução de 1974 num processo de análise mais longo permite entender melhor as transformações, as rupturas e as permanências de um processo que, argumenta-se, atravessou os dois regimes, adaptando-se às mudanças da conjuntura democrática, tal como já antes sucedia relativamente às conjunturas do final do Estado Novo.

Assim, este artigo pretende analisar as grandes linhas do processo de reforma da Administração Pública portuguesa entre 1967, data de criação do primeiro organismo central responsável por ela, o Secretariado da Reforma Administrativa, e 1978, data de criação do primeiro Ministério da Reforma Administrativa. Num primeiro momento, será feita uma breve contextualização dos esforços de reforma da Administração Pública durante o Estado Novo, centrando-se a análise nos organismos centrais responsáveis por ela e nos objetivos incluídos no programa de reforma administrativa. Em seguida, acompanhar-se-á a evolução dos órgãos responsáveis pela reforma administrativa entre abril de 1974 e 1978. Por fim, será feita uma análise dos objetivos e do discurso sobre a reforma da Administração Pública ao longo dos vários Governos Provisórios e dos dois primeiros Governos Constitucionais. Para tal, serão analisados debates parlamentares, legislação, documentação arquivística, programas de governo e alguns dos documentos mais relevantes dos primeiros tempos da Democracia.

2. A REFORMA ADMINISTRATIVA NOS ÚLTIMOS ANOS DO ESTADO NOVO

O reconhecimento das deficiências apresentadas pela Administração Pública portuguesa adquiriu uma nova importância na segunda metade do século XX. Nesta época, as diligências do Plano Marshall, as lógicas do planeamento econômico e as novas funções atribuídas ao Estado, enquanto promotor do desenvolvimento econômico e social, chamam a atenção para a necessidade de uma Administração Pública eficiente que pudesse ser garantidora das lógicas desenvolvimentistas. Frutos desse reconhecimento, são realizados, na década de 1950, alguns estudos sobre as principais deficiências da Administração Pública, fomentando-se ações parciais tendentes a eliminar as suas principais manifestações. No entanto, estes estudos apenas adquirem um maior impulso em meados da década de 1960, quando é criado o Grupo de Trabalho n. 14 (GT 14), no seio da Comissão Interministerial de Planeamento e Integração Econômica. O grupo desenvolveu estudos bastante pormenorizados sobre a situação da Administração Pública, concluindo sobre a necessidade de ser iniciado um verdadeiro programa integrado de reforma administrativa, dirigido por um órgão técnico central.

A decisão política de criar um organismo que vinha sendo adiada há vários anos prende-se à conjuntura do ano de 1967. A Lei de Autorização de Receitas e Despesas para este ano havia incumbido o governo de promover a conclusão dos estudos em curso para a reforma administrativa (Lei n. 2131, 1966LEI N. 2131. Diário do Governo , Lisboa, pp. 2317-2319, 26 dez. 1966. ), considerada essencial para a execução do III Plano de Fomento (1968-1973). Além disso, o ano de 1967 marcaria um período particular, no qual o regime “ensaiaria um último fôlego de adaptação às circunstâncias econômicas e políticas do mundo contemporâneo” (Brandão, 2012BRANDÃO, Tiago. A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967- 1974): Organização da ciência e política científica em Portugal. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2012. , p. 201), e no qual o III Plano de Fomento e a reforma da Administração Pública tinham um papel essencial. O Secretariado da Reforma Administrativa (SRA) seria, assim, criado, na Presidência do Conselho de Ministros, a 23 de novembro de 1967 (Decreto-lei n. 48058, 1967DECRETO-LEI N. 48058. Diário do Governo , Lisboa, pp. 2050-2057, 23 nov. 1967.).

De acordo com o que vinha sendo afirmado nos estudos desenvolvidos desde os anos de 1950, o SRA defende que a reforma administrativa não poderia ser imposta por uma alteração brusca das estruturas e do status quo, nem por meio de medidas legislativas ou ações avulsas. Era necessário definir um programa integrado de reforma, com caráter evolutivo, concretizado em programas anuais, capaz de implementar as medidas necessárias à melhoria da eficiência da Administração Pública (Palavras do diretor-geral…, 1968PALAVRAS DO DIRETOR-GERAL do Secretariado da Reforma Administrativa na cerimónia de tomada de posse - 1.ª versão. Lisboa (Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros - APCM).). O primeiro programa anual foi apresentado no início de 1968, e continha os quatro eixos de ação sobre os quais deveria ser desenvolvida a reforma administrativa. Em primeiro lugar, surgiam as condições econômicas e sociais do funcionalismo público. Relacionado, sobretudo, com os vencimentos e as regalias sociais dos servidores do Estado, este eixo manteve a primazia sobre os restantes durante todo o Estado Novo, na sequência do que vinha já sendo defendido nos estudos desenvolvidos desde a década de 1950. Na verdade, a própria orgânica do GT 14 refletia a prioridade atribuída ao tema, estando dois dos cinco subgrupos de trabalho encarregados do seu estudo. Surgiam depois os restantes eixos, relativos à orgânica dos serviços; aos métodos de trabalho utilizados - tema que incluía as questões de Organização e Métodos (O&M); e às relações entre a administração e o público.

O confronto entre o extenso programa de reforma administrativa e a carência de técnicos evidenciou a defasagem entre os objetivos e os meios de ação do SRA. Esta realidade acabaria por ser agudizada a partir de 1969, quando o fim dos trabalhos do GT 14, cuja equipe vinha sendo partilhada com o SRA, conduziu à saída de alguns elementos que vinham colaborando com o processo de reforma administrativa. Porém, o SRA continuaria a sua atividade até ao final do ano de 1970, altura em que o Decreto-lei n. 622/70DECRETO-LEI N. 622/70. Diário do Governo , Lisboa, pp. 1904-1911, 18 dez. 1970. determina a sua fusão com a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho (SGPC). A justificação para a fusão entre os dois organismos prende-se ao processo de reorganização desta secretaria-geral apostando-se numa concepção de reforma administrativa que, entendida como um processo contínuo e de responsabilidade de todos os funcionários, não implicava na existência de um organismo com os poderes do SRA. Como tal, o novo órgão de reforma - a Direção de Serviços da Reforma Administrativa (DSRA) - passaria a estar somente incumbido da realização dos estudos que lhe fossem solicitados pelo Presidente do Conselho; da apresentação de propostas ao governo que visassem o aperfeiçoamento dos processos e das condições de trabalho; e da apreciação dos projetos enviados à Presidência do Conselho por vários serviços do Estado (Secretaria-Geral da Presidência..., 1972SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA do Conselho. Administração Pública: Boletim de Informação Administrativa, Lisboa: Secretaria-Geral da Presidência do Conselho, n. 1, pp. 10-11, out./dez. 1972., pp. 10-11).

Esta opção acabaria, contudo, por demonstrar-se inadequada, verificando-se que a DSRA não conseguia dar resposta às tarefas a realizar. Desta forma, o governo acabaria por optar por uma nova autonomização das tarefas ligadas à reforma administrativa, constituindo o Secretariado da Administração Pública (SAP). O SAP foi criado, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, pelo Decreto-lei n. 265/73DECRETO-LEI N. 265/73. Diário do Governo , Lisboa, pp. 897-901, 29 mai. 1973., de 29 de maio, e apresenta uma importância particular neste estudo, pelo fato de se ter mantido em funções após a Revolução de Abril. A sua estrutura orgânica era bastante próxima daquela que havia sido apresentada pelo SRA. Contudo, apresentava uma preocupação particular com temáticas que vinham adquirindo uma importância relevante na década de 1970, e que transitariam para a Democracia, como a informática, a formação, ou a criação dos serviços sociais do funcionalismo público (Comissão Interministerial de Informática, 1973COMISSÃO INTERMINISTERIAL DE INFORMÁTICA. Grupo de Coordenação; Ata-resumo n. 1/73, 26 de junho de 1973.).

Apesar do processo de reforma iniciado não ter tido como consequência uma transformação consistente das estruturas e dos métodos de trabalho na Administração Pública, muito foi feito nestes anos, sobretudo no que concerne a estudos de base, que seriam prosseguidos posteriormente e, também, no que diz respeito à melhoria das condições econômicas e sociais do funcionalismo público. Além disso, a primazia atribuída ao primeiro eixo da reforma administrativa acabaria por evidenciar uma das características deste programa: a sua evidente ligação às etapas conjunturais do Estado Novo e aos objetivos do regime.

Ao longo da vigência dos três organismos, a reforma administrativa não se afasta dos eixos que a definiram desde 1968. Porém, as suas ações, sendo dependentes de uma decisão política, acompanham as várias fases do Marcelismo, na sua tentativa de melhorar a eficácia administrativa, construir o Estado Social e evitar a fuga dos melhores funcionários para o setor privado. Na fase final do Estado Novo, acaba por ser feita uma aposta na reforma administrativa como suporte das últimas tentativas de manutenção do regime.

Súmula dos principais objetivos do programa de reforma administrativa Fator humano - Melhoria da assistência na doença aos servidores civis do Estado - criação da ADSE; - Revisão do regime de abono de família; - Revisão das remunerações; - Atualização das ajudas de custo; - Concessão de subsídios de residência; - Fomento da habitação econômica; - Instalação de cantinas subsidiadas; - Melhoria e atualização das pensões de aposentadoria, invalidez e sobrevivência; - Preparação de um projeto de diploma sobre a criação de serviços sociais; - Estudos sobre as necessidades de formação administrativa; - Preparação do Estatuto dos Servidores do Estado; - Revisão de quadros e categorias do funcionalismo público; Orgânica dos serviços - Elaboração de projetos de diploma de criação ou reorganização de serviços; - Preparação de um projeto de diploma sobre desconcentração de competências; - Criação de empresas públicas; - Elaboração de um projeto de Código de Processo Administrativo Gracioso; Métodos de trabalho - Simplificação de procedimentos; - Preparação de uma publicação sobre organização e métodos; - Constituição de núcleos experimentais de organização e métodos; - Realização de um inquérito sobre a aplicação de computadores na Administração Pública; - Aumento da rapidez e melhoria da produtividade do trabalho no setor público; Relações com o público - Preparação de um Guia da Administração Pública; - Criação de serviços de informação. Fonte: elaboração própria, a partir dos programas anuais de reforma administrativa e dos relatórios de execução do III Plano de Fomento (Execução do III Plano de Fomento, s.d.; Informação sobre o programa de atividades..., s.d.; Quadros-síntese dos relatórios..., s.d.; Relatório anual de execução..., s.d.a; Relatório anual de execução... s.d.b; Secretariado da reforma administrativa, 1968).

3. A REFORMA ADMINISTRATIVA EM DEMOCRACIA: ORGANISMOS E ATORES

A 25 de abril de 1974, um golpe militar poria fim a várias décadas de ditadura. Com um programa que prometia descolonizar, democratizar e desenvolver o país, o Movimento das Forças Armadas (MFA) apressa-se a desmantelar as estruturas mais ligadas ao regime deposto, como a Assembleia Nacional, o partido único ou a polícia política. Seguir-se-iam outras ações, como o saneamento dos indivíduos mais conotados com o Estado Novo, quer na Administração Pública, quer nas empresas privadas.

Porém, apesar da conflituosidade do período e da radicalização de certos setores da Função Pública (Lobo, 2000LOBO, Marina Costa. Governos partidários numa democracia recente: Portugal, 1976-1995. Análise Social, Lisboa: ICS-UL , v. 35, n. 154-155, pp. 147-174, 2000., p. 163), não se daria uma ruptura na estrutura administrativa do Estado. Da mesma forma, também não se vislumbra uma ruptura no que concerne ao órgão responsável pela reforma administrativa. O SAP permaneceu ativo após a Revolução de 1974, transitando da Presidência do Conselho para o Ministério da Administração Interna (Decreto n. 250/74DECRETO N. 250/74. Diário do Governo, Lisboa, p. 701, 12 jun. 1974.). Ao longo do ano, são vários os diplomas legais que continuam a enquadrar a sua missão. Como exemplo, em junho, uma Resolução do Conselho de Ministros encarrega o SAP da preparação de relatórios de síntese sobre as providências de reforma administrativa que se encontravam em curso no contexto revolucionário, as quais diziam respeito à reestruturação da Função Pública, dando primazia às questões do recrutamento, de carreira e à situação jurídica dos funcionários públicos; à Segurança Social; ao regime de associação profissional; e ao desenvolvimento de formas de participação dos funcionários nas tomadas de decisão que afetassem o seu estatuto (Resolução do Conselho de Ministros, 1974RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS. Diário do Governo , Lisboa, pp. 763-764, 29 jun. 1974.). Da mesma forma, em agosto, o decreto-lei que reajusta os vencimentos do funcionalismo público determina que o SAP “proceda ao estudo e organização de um registo central de pessoal, com vista à criação de um esquema de diuturnidades a conceder durante o ano de 1975” (Decreto-lei n. 372/74DECRETO-LEI N. 372/74. Diário do Governo , Lisboa, pp. 913-917, 20 ago. 1974., p. 917).

Interessante é, também, verificar que o SAP receberia incumbências no âmbito dos saneamentos da Administração Pública, devendo realizar os trabalhos que permitissem estabelecer medidas de ação concretas sobre o saneamento das estruturas (Rezola, 2019REZOLA, Maria Inácia. Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático: O caso dos saneamentos. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, v. 45, n. 3, pp. 24-38, 2019., p. 32). Como tal, não só os poderes instituídos não extinguiram imediatamente este organismo herdado do Estado Novo, como lhe atribuíram um papel na criação de uma nova ordem democrática. É, igualmente, visível que, enquanto algumas das prerrogativas do SAP decorrem do contexto revolucionário, outras são herdadas do período anterior. O mesmo é possível dizer sobre a missão de alguns dos órgãos setoriais da reforma administrativa, como os núcleos de modernização administrativa que deveriam ser constituídos em todos os ministérios até ao início de 1975 (Decreto-lei n. 691/74DECRETO-LEI N. 691/74. Diário do Governo , Lisboa, p. 1502, 5 dez. 1974., p. 1502). A lógica subjacente à sua ação não se afasta daquela que se encontrava presente nos núcleos de O&M constituídos em vários serviços do Estado antes de 1974.

Denota-se que a legislação promulgada a partir de abril de 1974 pretende viabilizar a ação do SAP. Em várias ocasiões, são criticadas a falta de vontade política e a carência de meios, das quais este organismo e os seus antecessores padeceram durante o Estado Novo, e é enfatizada a sua importância para a colocação em prática do Programa do Movimento das Forças Armadas, no que diz respeito à administração do Estado (Decreto-lei n. 746/74DECRETO-LEI N. 746/74. Diário do Governo , 1.º suplemento, Lisboa, pp. 3-6, 27 de dez. 1974.). A mesma tendência de continuidade encontra-se presente no próprio momento da extinção do SAP, em dezembro de 1974. No dia 26, o Decreto-lei n. 745/74DECRETO-LEI N. 745/74. Diário do Governo , Lisboa, pp. 2-3, 27 dez. 1974. determina a adoção de algumas medidas tendentes a prover o SAP com os meios estruturais e humanos necessários à conclusão das suas tarefas, para que não fossem cometidos os mesmos erros que inviabilizaram a atividade dos organismos que o antecederam. O decreto-lei afirma ainda que estes meios deveriam ser atribuídos independentemente da necessária e próxima reforma do organismo. Esta seria definida no mesmo dia, pelo decreto-lei n. 746/74, que, no contexto da reorganização da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, extingue o SAP, desdobrando-o em duas direções-gerais: a da Função Pública e a da Organização Administrativa (DGOA).

A sequência dos decretos-lei parece indicar que, ao invés de uma ruptura com o organismo criado no Estado Novo, o que se encontra em causa é somente uma reorganização do órgão responsável pela reforma administrativa, à luz daquelas que vinham tendo lugar desde 1970. Também a missão dos novos organismos aponta no mesmo sentido, sobretudo no que diz respeito à DGOA, a quem passa a competir o aperfeiçoamento das estruturas administrativas e do funcionamento dos serviços; a definição dos critérios para a criação e a reorganização de serviços públicos; a proposta de medidas tendentes à melhoria da produtividade, a simplificação do trabalho administrativo e a racionalização das instalações e equipamentos; a definição dos sistemas de participação e representação do pessoal nos serviços; a realização dos estudos necessários ao desenvolvimento da utilização da informática; e a coordenação dos núcleos de O&M dos diferentes ministérios (Decreto-lei n. 746/74DECRETO-LEI N. 746/74. Diário do Governo , 1.º suplemento, Lisboa, pp. 3-6, 27 de dez. 1974.). Com exceção das tarefas ligadas ao enquadramento da participação e da representação do pessoal, bastante relacionadas à nova conjuntura política, os restantes objetivos seriam herdados dos últimos anos do Estado Novo.

Apesar da DGOA ter sido criada no final de 1974, o diploma que a estrutura é promulgado apenas em 1979, no contexto da publicação da lei orgânica da Secretaria de Estado da Administração Pública (SEAP) (Direção-Geral de Organização..., 1980DIREÇÃO-GERAL DE ORGANIZAÇÃO Administrativa. Lei orgânica da SEAP abre portas à da DGOA que, finalmente, se concretiza. Informação & Organização: Boletim informativo da Direção-Geral de Organização Administrativa, Lisboa: DGOA, ano 5, n. 1, p. 1, jan./fev. 1980., p. 1). Porém, um ano antes, com a tomada de posse do II Governo Constitucional, foi criado o Ministério da Reforma Administrativa (MRA) (Decreto-lei n. 41-A/78DECRETO-LEI N. 41-A/78. Diário da República, Lisboa, pp. 1-3, 7 mar. 1978.), que passaria a superintender a SEAP e os serviços dela dependentes, como a DGOA. Esta foi, talvez, uma das principais rupturas operadas na época. Pela primeira vez, os assuntos ligados à reforma administrativa eram assumidos por um ministério próprio.

Além das continuidades verificadas ao nível da organicidade destes organismos e dos seus objetivos, existe, também, uma certa permanência de alguns dos atores ligados à reforma administrativa. Como exemplo, é possível destacar Duarte Nuno Vasconcelos, chefe de divisão da DSRA e vogal da Comissão Interministerial de Informática no SAP (1973, fls. 1-2), que surge como diretor de serviços da DGOA em 1976 e como Diretor-Geral da Organização Administrativa em 1980 (Despacho, 1976DESPACHO. Diário do Governo , Lisboa, pp. 128-134, 23 jan. 1976.; Despacho, 1980DESPACHO. Diário da República , II série, Lisboa, p. 259, 21 jan. 1980.). Ou Rui Pessoa de Amorim, diretor de serviços no SRA e no SAP entre 1968 e 1975, que se manteve até 2001 ininterruptamente ligado a serviços da Administração Pública. Porém, é, também, evidente que, paralelamente aos exemplos de continuidade, existem exemplos de imediato ou progressivo afastamento da Função Pública após a Revolução de Abril. Diogo de Paiva Brandão, Secretário-Geral da Presidência do Conselho desde 1957 e presidente do GT 14 até 1969, manteve o seu cargo na Presidência do Conselho de Ministros somente até 1975, altura em que foi exonerado com base no decreto-lei n. 215/75DECRETO-LEI N. 215/75. Diário do Governo , Lisboa, p. 626, 29 abr. 1975.. E António Pedrosa Pires de Lima, Diretor-Geral da Administração Política e Civil, que, durante o Estado Novo, havia sido vogal da Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência dos Serviços Públicos e membro do Conselho Coordenador da Administração Pública, pede a aposentadoria em 1974, por “não poder colaborar com os governos de coligação com os movimentos terroristas do Ultramar” (Lima, 2017LIMA, José Augusto Pires de. Era uma vez... no centenário do nascimento de Elisa Sellés Paes de Villas Boas e António Pedrosa Pires de Lima, 1910-2010. [S.l.]: Fernando Silva Miguel, 2017., p. 513. Grifado no original).

Esta realidade não é, também, imune aos saneamentos políticos desencadeados após a revolução. O Programa do Movimento das Forças Armadas, apesar de se referir apenas a saneamentos no interior da estrutura militar, acabaria por abrir caminho ao seu alargamento a outras instituições (Carmo, 1987CARMO, Hermano. Os dirigentes da Administração em Portugal. Estudos Políticos e Sociais, Lisboa, v. 15, n. 3-4, pp. 159-368, 1987.). Numa primeira fase, iniciada logo em maio de 1974 (Rezola, 2019REZOLA, Maria Inácia. Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático: O caso dos saneamentos. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, v. 45, n. 3, pp. 24-38, 2019., p. 29), a legislação possibilitava o saneamento do funcionalismo público nos casos de comportamento antidemocrático no desempenho de funções após a revolução, incapacidade de adaptação ao novo regime, ou incompetência, com as penas a oscilarem entre a transferência de serviço e a demissão da Função Pública. Contudo, as penas máximas acabariam por ser, sobretudo, aplicadas à elite governamental do Estado Novo, àqueles que tinham sido acusados de colaboração com a polícia política e àqueles que tinham pertencido à direção de milícia, ao partido único ou à comissão de censura.

A legislação seria alterada em março de 1975, passando os saneamentos a incluir o comportamento individual anterior à instauração da Democracia (Pinto, 2006PINTO, António Costa. O legado do Autoritarismo e a Transição Portuguesa para a Democracia, 1974-2004. In: LOFF, Manuel; PEREIRA, Maria da Conceição Meireles (Coords.). Portugal: 30 anos de Democracia (1974-2004). Porto: Editora da Universidade do Porto, 2006. pp. 37-70., p. 46). De fato, o decreto-lei n. 123/75DECRETO-LEI N. 123/75. Diário do Governo , Lisboa, pp. 375-378, 11 mar. 1975. afirmava que as perturbações e o fraco rendimento da Função Pública eram o resultado “da permanência no seu seio de funcionários altamente colocados e gravemente comprometidos com o fascismo”. Isto impedia que a Administração Pública constituísse um elemento dinamizador do processo de democratização. No final de 1975, o fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC) acabaria por dar início à última fase dos saneamentos políticos, sendo lançadas novas diretrizes tendentes a rever os processos anteriores e a abrir a possibilidade de reintegração dos funcionários públicos saneados (Rezola, 2019REZOLA, Maria Inácia. Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático: O caso dos saneamentos. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, v. 45, n. 3, pp. 24-38, 2019., pp. 30-36). Autores como Constantine Danopoulos (1991DANOPOULOS, Constantine P. Democratizing the Militar: Lessons from Mediterranean Europe. West European Politics, London: Taylor & Francis, v. 14, n. 4, pp. 25-41, 1991., p. 34) e Walter Opello Jr. (1983OPELLO JR., Walter. Portugal’s Administrative Elite: Social Origins and Political Attitudes. West European Politics , London: Taylor & Francis , v. 6, n. 1, pp. 63-74, 1983., p. 68) defendem que, apesar de terem apresentado um importante impacto no pessoal administrativo, os saneamentos tiveram consequências mínimas na Administração Pública. Contudo, é interessante verificar que Opello Jr. (1983OPELLO JR., Walter. Portugal’s Administrative Elite: Social Origins and Political Attitudes. West European Politics , London: Taylor & Francis , v. 6, n. 1, pp. 63-74, 1983., p. 64) não deixa de apresentar a política de saneamentos como um mecanismo da revolução administrativa encetada pela nova elite política da Democracia. Um mecanismo cuja outra face seria a revitalização do movimento de reforma administrativa, que havia sido iniciado no Estado Novo.

4. OBJETIVOS E PRIORIDADES DA REFORMA ADMINISTRATIVA NA DEMOCRACIA

Nos primeiros anos após a revolução, sobretudo durante o período pré-constitucional, as ações de reforma administrativa mantiveram-se, grosso modo, estagnadas. A conflituosidade do período e as várias e mais urgentes solicitações colocadas aos governos assim o obrigaram. Contudo, isto não significa que a temática estivesse completamente afastada dos objetivos e do discurso da Democracia. Tal como o SAP seria integrado ao novo regime, também a problemática da reforma da Administração Pública e a necessidade de sua adequação ao novo regime se encontram presentes no discurso da época.

Logo após o golpe militar, o MFA manifestou a intenção de assegurar uma continuidade administrativa que permitisse manter o funcionamento do aparelho de Estado até o estabelecimento dos órgãos democráticos (Leal, 1982LEAL, António. A organização do Estado depois da Revolução de 1974. Análise Social, Lisboa: ICS-UL, v. 18, n. 72-73-74, pp. 927-945, 1982., p. 929). Apesar do Programa do MFA não se referir à reforma administrativa, vários diplomas legais consideraram a eficiência da Administração Pública um elemento essencial para a sua aplicação. De fato, a lentidão e a excessiva burocracia da máquina do Estado não se adequavam à dinâmica do processo revolucionário (Forças Armadas Portuguesas, 1975FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS. Plano de Ação Política do MFA. Movimento 25 de Abril. Boletim Informativo das Forças Armadas, Lisboa: 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, n. 23, p. 5, 11 jul. 1975., p. 5), nem ao aumento do papel do Estado na economia e na sociedade, ou ao desenvolvimento e ao alargamento de políticas sociais (Oliveira Rocha, 2002OLIVEIRA ROCHA, José António. Papel do Estado e Administração Pública. In: QUADROS, Elias (Org.). A reinvenção da Função Pública: da burocracia à gestão. Lisboa: Instituto Nacional de Administração, 2002. pp. 145-147., pp. 146-147). Tal como havia sucedido durante o Estado Novo, as características da Administração Pública colocavam em risco os projetos de desenvolvimento econômico e social. Era, assim, necessário manter a procura de uma administração para o desenvolvimento, agora centrada na transformação política e social desejada pelos novos decisores.

Em maio de 1974, tomava posse o I Governo Provisório. Tendo como objetivo reestabelecer a autoridade do Estado e assegurar estabilidade política e econômica (Trindade, 2013TRINDADE, Luís (Ed.). The Making of Modern Portugal. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2013. , p. 299), o programa de governo inclui vários objetivos que, apesar de não constituírem um programa de reforma administrativa e testemunharem as preocupações inerentes à nova conjuntura, acabam por incluir elementos herdados do Estado Novo.

Programa do I Governo Provisório (súmula relativa à Administração Pública) Fator humano - Dignificação da Função Pública, com garantia da sua independência política; - Regulamentação do direito de associação; - Revisão imediata do sistema de remunerações; Orgânica administrativa - Estruturação e revisão da orgânica da Administração Central, de forma a corresponder aos objetivos das novas instituições políticas; - Rápida reforma das instituições administrativas; Métodos de trabalho - Revisão dos métodos de administração econômica, de modo a dotá-los de eficiência e celeridade de decisão. Fonte: elaboração própria a partir do programa do I Governo Provisório (Programa do I Governo Provisório, 1974).

Apesar de não serem apresentados como tal, surgem elementos relativos a três dos eixos do programa estadonovista de reforma administrativa. A primazia parece manter-se ligada ao fator humano, aliando as preocupações verificadas no Estado Novo relativamente às condições econômicas e sociais da Função Pública às novas pressões sociais e aos objetivos do período revolucionário. Da mesma forma, são também evidentes as permanências quanto à necessidade de revisão dos métodos de trabalho, tendo em vista o aumento de sua eficiência e rapidez.

Porém, o nível de aplicação deste programa seria praticamente nulo, até porque, em julho, o executivo caía, sendo substituído pelo II Governo Provisório. Este, contando com uma maior representação do MFA, mas ensombrado por divisões internas, seria marcado pela indefinição e pelo impasse, à medida que a situação econômica e social se deteriorava (Noronha, 2018NORONHA, Ricardo. “A Banca ao Serviço do Povo”: Política e Economia durante o PREC (1974-75). Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2018. , p. 90). Concomitantemente, a reforma administrativa não seria mencionada nas suas linhas programáticas. Esta situação iria inverter-se poucos meses depois, quando o III Governo Provisório toma posse e o novo executivo atribui uma maior importância à reforma da Administração Pública. É durante a sua vigência que se inicia o processo de reorganização do órgão central responsável pela reforma, sendo o SAP substituído pela DGOA. Esta preocupação é visível no respectivo programa de governo, que apresenta uma secção totalmente destinada à Administração Pública. Desenvolvendo as referências feitas pelo I Governo Provisório, mantém-se a prioridade atribuída ao fator humano, sendo recuperados alguns dos objetivos e estudos em curso na ditadura, apesar de adequados à nova realidade.

Esta crescente preocupação com a eficácia da Administração Pública e com as condições dos seus funcionários relaciona-se, igualmente, aos desafios da época. Por um lado, evidenciava-se a radicalização política e a deterioração da situação econômica, enquanto surgia uma nova vaga de conflitos sociais, e a própria Administração Pública se tornava num campo de batalha partidário e num local de luta reivindicativa (Spínola, 1974SPÍNOLA, António de. Portugal e o Futuro: análise da conjuntura nacional. Lisboa: Arcádia, 1974. , p. 146). Por outro, aumentava a necessidade do intervencionismo estatal, não só devido ao avanço das nacionalizações, mas também como forma de prevenir uma queda abrupta da produção e o aumento do desemprego (Trindade, 2013TRINDADE, Luís (Ed.). The Making of Modern Portugal. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2013. , p. 299). Simultaneamente, voltava a estar sobre a mesa o processo de integração europeia (Cunha, 2013CUNHA, Alice da Conceição Monteiro Pita Brito da. O alargamento ibérico da Comunidade Econômica Europeia: a experiência portuguesa. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2013., p. 64). Todas estas questões tornam essencial a existência de uma Administração Pública com mais elevados níveis de produtividade.

Programa do III Governo Provisório (súmula relativa à Administração Pública) Fator humano - Institucionalização de formas de participação dos trabalhadores; - Eliminação de diferenças entre categorias da Função Pública; - Uniformização dos vencimentos; - Elaboração de um estatuto unificado da Função Pública; - Reformulação de quadros, carreiras e categorias; - Criação de Serviço Central de Pessoal; - Inquérito à situação econômica dos funcionários públicos; - Programa de formação profissional; - Regulamentação do direito à greve e à associação sindical; - Aperfeiçoamento de todos os esquemas de Segurança Social e progressiva equiparação com o setor privado; - Introdução do regime de diuturnidades; Orgânica administrativa - Reorganização da administração central e regionalização dos serviços; - Adequação da estrutura do Governo; - Reformulação de normas orientadoras do funcionamento e estrutura da administração; - Evitar a duplicação de serviços e simplificação de processos; - Reforço do trabalho interdepartamental; Métodos de trabalho - Aperfeiçoamento de métodos de trabalho; - Novos processos de avaliação dos resultados; - Direção por objetivos. Fonte: elaboração própria a partir do Programa do III Governo Provisório (Programa do III Governo Provisório, 1975).

A realidade do período revolucionário iria obrigar a um interregno neste percurso, que só teria fim com a tomada de posse do I Governo Constitucional, após as eleições de 1976. Entre março e novembro de 1975, o ambiente radicaliza-se e as estruturas de poder transformam-se, com a dissolução da Junta de Salvação Nacional, do Conselho de Estado e da Comissão Coordenadora do MFA, e a criação do Conselho da Revolução (Rosas, 2006ROSAS, Fernando. A revolução portuguesa de 1974/75 e a institucionalização da Democracia. In: LOFF, Manuel; PEREIRA, Maria da Conceição Meireles (Coords.). Portugal: 30 anos de Democracia (1974-2004). Porto: Editora da Universidade do Porto , 2006. pp. 15-34., p. 27). A agitação social e política agudiza-se, bem como as dissensões internas do MFA e a sua nem sempre fácil relação com os partidos que vão ganhando visibilidade no espectro político. No verão de 1975, o poder dilui-se, o Estado encontra-se quase paralisado e a reforma da Administração Pública deixa de surgir nos programas de governo. Porém, a necessidade de melhorar a eficácia da Administração Pública continua presente. É disso prova o Plano de Ação Política do MFA, publicado pelo Conselho da Revolução a 21 de junho de 1975. Este afirmaria a inadequação da máquina burocrática nacional e a necessidade de esta ser reformada através da descentralização administrativa, da constituição gradual de um novo aparelho de Estado, de uma política correta de reclassificação e da eliminação de procedimentos demasiado complicados e burocráticos (Forças Armadas Portuguesas, 1975FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS. Plano de Ação Política do MFA. Movimento 25 de Abril. Boletim Informativo das Forças Armadas, Lisboa: 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, n. 23, p. 5, 11 jul. 1975., p. 5).

Com os Governos Constitucionais, a necessidade de reforma da Administração Pública adquire um renovado impulso e torna-se cada vez mais evidente. Era agora necessário consolidar a Democracia, estabilizar e fortalecer as instituições, dar resposta à crise econômica e financeira e enveredar decisivamente pelas políticas de desenvolvimento necessárias para o país. Da mesma forma, a preparação para a integração econômica europeia deveria ser efetuada, adequando a Administração Pública à futura necessidade de coordenação com a burocracia de Bruxelas e dos restantes Estados-Membros (Correia, 1980CORREIA, José. Para uma Perspetiva Social-Democrata da Reforma Administrativa em Portugal. Lisboa: Instituto Democracia e Liberdade, [1980]., p. 7). Neste contexto, a 23 de julho de 1976 tomava posse o I Governo Constitucional.

Durante o seu mandato, dá-se uma progressiva normalização das condições de funcionamento da economia e o caminho rumo à integração europeia aprofunda-se (Cunha, 2013CUNHA, Alice da Conceição Monteiro Pita Brito da. O alargamento ibérico da Comunidade Econômica Europeia: a experiência portuguesa. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2013., p. 67; Pinto, 2011PINTO, Fernanda Maria Reis da Fonseca Ferreira. A integração de Portugal nas Comunidades Europeias. Dissertação (Mestrado em Estudos Europeus) - Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra. Coimbra, 2011. , pp. 37-38). Ultrapassada a instabilidade revolucionária, existiam novas condições para rumar à Europa. Porém, colocava-se a questão da preparação interna, quer do setor econômico, quer da Administração Pública. O I Governo Constitucional teria de lidar com vários problemas administrativos, não só no que diz respeito à reestruturação de serviços e à preparação da administração periférica, mas também no que concerne às dificuldades causadas pelo alargamento dos quadros. Consequentemente, o programa de governo volta a integrar elementos relativos à reforma administrativa, com uma ênfase relevante no fator humano.

Programa do I Governo Constitucional (súmula relativa à Administração Pública) Fator Humano - Incremento da formação profissional e atualização por meio de visitas, estágios e frequência de uma Escola de Administração Pública; - Incentivo à motivação e empenho permanentes no trabalho; - Responsabilização quanto às tarefas; - Participação na gestão do pessoal; - Justa remuneração; - Medidas adequadas à proteção dos aposentados; - Correção progressiva das distorções em matéria de vencimentos e de regalias sociais; - Elaboração do Estatuto da Função Pública; - Regulamentação dos direitos, deveres e garantias dos trabalhadores; - Regime geral de reclassificação e atualização de vencimentos; Orgânica administrativa - Racionalização dos serviços de informação e inventário. Fonte: elaboração própria a partir do Programa do I Governo Constitucional (Programa do I Governo Constitucional, 1976).

Na prática, porém, a concretização da reforma administrativa continuava a tardar, dadas as vicissitudes da conjuntura e as dificuldades causadas pela falta de uma maioria parlamentar. É com o II Governo Constitucional que a reforma administrativa adquire um impulso renovado, sendo apresentado, pela primeira vez após a revolução, um verdadeiro programa reformista. De fato, as deficiências da Administração Pública, diagnosticadas desde a década de 1950, tinham-se agravado face às novas funções que o Estado era chamado a desempenhar e aos desafios da conjuntura. Como tal, a reforma administrativa adquire um maior detalhe em termos programáticos, sendo apresentado um programa extenso de objetivos e realizações a alcançar, e um maior nível de organização institucional, que se consubstanciou na criação do primeiro Ministério da Reforma Administrativa, encabeçado por Rui Pena.

Programa do II Governo Constitucional (súmula relativa à Administração Pública) Fator Humano - Criação da Lei da Bases da Função Pública; - Melhoria das condições econômicas e sociais do funcionalismo público; - Paridade entre as remunerações públicas e privadas de cargos análogos; - Estruturação de carreiras; - Definição de política salarial; - Reforço da proteção social do funcionalismo público; - Definição e regulamentação da representação do pessoal; - Criação de um registro central de pessoal; - Definição de uma política de emprego; - Racionalização e melhoria dos processos de recrutamento e seleção de pessoal; - Incremento da formação e aperfeiçoamento profissional dos funcionários; - Revisão do Estatuto da Aposentação e atualização das pensões; - Revisão dos sistemas de assistência médica e medicamentosa; Orgânica administrativa - Estudo da estrutura e orgânica de organismos públicos; - Descentralização, valorização e revitalização dos serviços periféricos; - Definição dos regimes de autonomia administrativa e financeira; - Transformação de serviços burocráticos em empresas públicas; - Revisão do estatuto legal dos contratos administrativos; - Intensificação das relações horizontais e de coordenação entre os diversos ministérios; - Revisão dos regimes de desconcentração de competências; - Extensão dos princípios de organização aos setores autárquico e autônomo da administração; - Adoção das medidas necessárias para a correção da situação da informática; - Apoio ao processo de regionalização; - Apoio à organização autárquica; Métodos de trabalho - Incremento da mecanização dos serviços públicos; - Análise e racionalização dos diversos circuitos administrativos; - Desenvolvimento de estudos de produtividade do setor público; - Incentivos à prática de simplificação do processo administrativo e à recolha de sugestões; - Contribuição para o estudo e a revisão do direito financeiro; - Sistematização e divulgação de compilações oficiais de legislação; - Ultimação do código de procedimento administrativo; - Desburocratização dos serviços e atividades administrativas; - Instituição de adequados sistemas de controle da eficiência da ação administrativa; - Estudo e aplicação de sistemas de análise do custo e eficiência dos serviços públicos; - Generalização da obrigatoriedade de publicação de relatórios anuais, orçamentos e contas dos diversos ministérios e departamentos autônomos; - Controle jurídico e da moralidade administrativa; - Acatamento da ação do Serviço do Provedor de Justiça no que concerne ao combate às deficiências da administração; - Criação, tratamento e manutenção de estatísticas oportunas e corretas; Relações com o público - Promoção e desenvolvimento das atividades de informação geral do público acerca das estruturas, atividades, localização e de outros elementos suscetíveis de melhorarem as suas relações com os serviços; - Aumento de comodidade do público na utilização dos serviços; - Generalização dos serviços de informação ao público. Fonte: elaboração própria a partir do Programa do II Governo Constitucional (Programa do II Governo Constitucional, 1978).

O extenso programa de reforma administrativa e as prerrogativas atribuídas ao novo ministério deflagraram um debate intenso na Assembleia da República. O caráter global do programa da reforma e o fato do MRA apresentar poderes de intervenção sobre toda a estrutura administrativa causou temores de ingerência e autoritarismo entre os partidos mais à esquerda. Curiosamente, temores semelhantes àqueles que tinham adiado a criação do SRA até o final da década de 1960 (Azevedo, 2020AZEVEDO, Ana Carina. A caminho da reforma administrativa. O Grupo de Trabalho n. 14 e a criação do Secretariado da Reforma Administrativa (1965-1969). Revista Portuguesa de História, Coimbra, Universidade de Coimbra, v. 51, pp. 223-242, 2020., p. 239). O deputado Veiga de Oliveira, do Partido Comunista Português (PCP), é o principal arauto destas preocupações, alertando para o fato de o MRA poder surgir como um superministério, cujo caráter tentacular lhe daria a capacidade de se imiscuir e, de certa forma, controlar os vários departamentos e serviços da Administração Pública (Diário da Assembleia da República, 1978DIÁRIO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, Lisboa, Série I, I Legislatura, Sessão Legislativa 02, n. 39, pp. 1412-1414, 13 fev. 1978., pp. 1412-1414). As reticências apresentadas pelo PCP têm, obviamente, também origem em questões partidárias, pois Rui Pena pertencia ao Partido do Centro Democrático Social (CDS). Relacionam-se, igualmente, com o fato de alguns dos nomes chamados a colaborar no programa de reforma administrativa serem conotados com o Estado Novo. O principal visado era Diogo Freitas do Amaral, líder do CDS, discípulo de Marcelo Caetano em matéria de Direito Administrativo. Fortalecendo estas desconfianças encontravam-se as semelhanças entre o programa de reforma administrativa do Estado Novo e aquele que seria apresentado pelo II Governo Constitucional.

A análise das publicações da DGOA revela que, apesar de não ter sido alcançada uma reforma estrutural da Administração Pública, várias medidas foram colocadas em prática nesta fase, sobretudo aquelas que se relacionavam com o fator humano (Lopes, 1979LOPES, António Figueiredo. Editorial. Revista da Administração Pública, Lisboa, ano 2, n. 3, p. 5, jan./mar. 1979., p. 5). Na verdade, tal como durante o Estado Novo, esta realidade é explicada por uma contínua adaptação e tentativa de resposta à conjuntura. O novo contexto político e social; a crescente pressão dos sindicatos da Função Pública; a agitação social decorrente das exigências de melhoria de salários e apoios sociais; ou os problemas políticos decorrentes da legislação sobre os direitos de associação, greve e negociação coletiva obrigaram a uma maior atenção à problemática. A análise da documentação do período revela ainda as muitas permanências relativamente aos objetivos do programa de reforma administrativa desenvolvido no Estado Novo, com a manutenção e a progressiva afirmação dos quatro eixos nos quais tal reforma se encontrava baseada, e a permanência da primazia que, desde os estudos desenvolvidos nos anos de 1950, era atribuída ao fator humano.

É evidente, porém, que a nova conjuntura não deixa de se fazer sentir nos objetivos da reforma administrativa, tendo introduzido novos elementos, como a institucionalização de formas de participação dos trabalhadores; a descentralização administrativa - com o desenvolvimento das administrações públicas autárquica e regional -; a regulamentação do direito à greve e à associação sindical. De fato, tal como durante o Estado Novo uma Administração Pública eficaz era garantidora dos objetivos políticos, econômicos e sociais do regime, também na Democracia deveria ser suporte dos planos de crescimento econômico e de estabilização política nos quais os novos governos se encontravam empenhados.

5. CONCLUSÃO

Os primeiros anos do regime democrático não testemunharam o desenvolvimento de uma reforma administrativa consistente. As mudanças implementadas foram superficiais, a importância atribuída ao tema oscilou ao sabor das agendas governamentais e da instabilidade política, e não foi definida uma estratégia clara para a melhoria da eficiência da Administração Pública. Porém, no que concerne ao discurso, esta continuou a ser considerada fundamental para a execução dos programas de governo e para os objetivos da democratização e do desenvolvimento do país.

Num estudo realizado em 1995, a OCDE (1995OCDE. Managing Administrative Reform: A Case Study of Portugal (1976-1994). Paris: Puma, 1995. , p. 17) concluiu que, independentemente das orientações políticas e partidárias, foi visível desde 1974 um consenso relativamente às deficiências da Administração Pública e às reformas necessárias para as ultrapassar. Este artigo advoga que este reconhecimento se inicia no Estado Novo. De fato, a análise dos principais traços dos processos de reforma administrativa antes e após a Revolução de Abril de 1974 demonstra importantes permanências, quer em termos das estruturas e da orgânica dos órgãos centrais responsáveis pela reforma, quer dos objetivos e das prioridades da mesma. O SAP manteria as suas funções ao longo do ano de 1974, gozando da confiança política necessária para, inclusivamente, lhe serem estregues os estudos referentes ao saneamento das estruturas da Administração Pública. Da mesma forma, a legislação de dezembro de 1974 não permite entender a sua extinção como uma ruptura, mas como um processo de reorganização do órgão responsável pela reforma, na esteira daqueles que vinham tendo lugar no Estado Novo. Depois do SRA, da DSRA e do SAP, nasceria a DGOA. Entre estes organismos mantêm-se semelhanças na organicidade e continuidades nos objetivos.

Também o programa de reforma administrativa apresentado em 1968 manteria a sua validade, pelo menos até 1978. Apesar das tênues concretizações, da prioridade atribuída aos desafios mais urgentes do novo regime e do fato de a instabilidade do período ter imposto um caráter intermitente à sua ação, mantêm-se os objetivos, os eixos reformistas, a prioridade ao fator humano e, inclusivamente, a mesma concepção de reforma administrativa. Ao invés de uma mudança no programa de reforma, verificam-se acréscimos que derivam da nova situação política. No fundo, trata-se da mesma adequação constante à realidade que caracterizara o processo de reforma administrativa durante o Marcelismo. Esta permanência em termos programáticos é ainda evidenciada pelas variadas referências às investigações desenvolvidas durante o Estado Novo. De fato, os estudos feitos na década de 1950 pelo Ministério das Finanças e, particularmente, aqueles que foram desenvolvidos pelo GT 14, bem como os trabalhos de administrativistas ligados aos esforços de reforma administrativa desenvolvidos antes da revolução, como Laureano López Rodó - amigo próximo de Caetano -, continuariam a ser usados como referência no final da década de 1970 (Silva, 1978SILVA, Fernando. A reforma administrativa no âmbito dos recursos humanos. Revista de Administração Pública , Lisboa, ano 1, n. 2, pp. 200-201, out./dez. 1978., pp. 200-201). Na verdade, o próprio Marcelo Caetano tinha construído conhecimento em termos de Direito Administrativo que se mantinha atual e que persistia no pensamento dos administrativistas da época (Leal, 1982LEAL, António. A organização do Estado depois da Revolução de 1974. Análise Social, Lisboa: ICS-UL, v. 18, n. 72-73-74, pp. 927-945, 1982., p. 935).

As permanências continuam no que concerne à metodologia da reforma administrativa, mantendo-se os quatro eixos de reforma utilizados desde 1968, na esteira das lógicas internacionais. A realidade do período democrático voltaria a comprovar que os mesmos métodos e princípios podem ser utilizados em prol de objetivos políticos opostos. Nas décadas de 1950-60, os quatro eixos de reforma foram usados, internacionalmente, como forma de construir Administrações Públicas eficientes e capazes de promover o desenvolvimento econômico, o progresso do Welfare State e de preservar a paz e a Democracia. O Estado Novo usaria os mesmos métodos para manter a ditadura e as Províncias Ultramarinas. Após a Revolução de 1974, os mesmos quatro eixos seriam suporte da democratização do país, dos desafios da descolonização, do desenvolvimento econômico e social e da integração europeia. Como Diogo Freitas do Amaral afirmaria em 1980, a reforma administrativa é, como sempre foi, aquilo que as circunstâncias exigirem (A reforma administrativa e os seus objetivos…, 1981A REFORMA ADMINISTRATIVA E OS SEUS OBJETIVOS, síntese da palestra proferida pelo Prof. Diogo Freitas do Amaral no Instituto Nacional de Administração, Oeiras, 21 de maio de 1981. Guimarães (Arquivo Municipal de Guimarães - AMG). 1981., fls.1-2.).

É necessário, porém, ter-se em conta que a reforma administrativa deveria atuar num quadro político, institucional, econômico, social e mental substancialmente diferente. Da mesma forma, em Democracia, acabaria por acompanhar as orientações políticas e ideológicas dos partidos no poder e o ritmo do desenvolvimento econômico. Tal como no Estado Novo, no Portugal Democrático a reforma da Administração Pública continuaria a ser entendida como garantidora do fomento socioeconômico e dos objetivos do governo. E, tal como no Estado Novo, não deixaria de ser continuamente conduzida pela conjuntura. Uma conjuntura que tanto a bloqueava como a estimulava, pautando as decisões sobre o caminho a seguir.

REFERÊNCIAS

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  • AZEVEDO, Ana Carina. A caminho da reforma administrativa. O Grupo de Trabalho n. 14 e a criação do Secretariado da Reforma Administrativa (1965-1969). Revista Portuguesa de História, Coimbra, Universidade de Coimbra, v. 51, pp. 223-242, 2020.
  • BRANDÃO, Tiago. A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967- 1974): Organização da ciência e política científica em Portugal. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2012.
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    Esta investigação foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Bolsa de Pós-Doutoramento com referência SFRH/BPD/113250/2015. Trabalho realizado na Unidade de I&D Centre for Functional Ecology - Science for People & the Planet (CFE), com a referência UIDB/04004/2020, com apoio financeiro da FCT/MCTES por meio de fundos nacionais (PIDDAC).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2021
  • Aceito
    17 Nov 2022
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