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A Guerra Fria latino-americana revisitada, 1947-1991: continuidade, mudança e ruptura na agenda de pesquisa

The Latin America’s Cold War revisited, 1947-1991: Continuity, Change and Rupture in the Research Agenda

MUNHOZ, Sidnei J.. Guerra Fria: história e historiografia.Curitiba: Appris, 2020.

Foi publicado recentemente pelo historiador Sidnei J. Munhoz, professor da Universidade Estadual de Maringá e da Universidade Federal de Santa Catarina, o livro intitulado Guerra Fria: história e historiografia. Essa obra é relevante e merece ser objeto de atenção e consideração, principalmente por pesquisadores especializados na História das Relações Internacionais, bem como em história do Brasil e da América, além da história conceitual, da história comparativa e da história global. Estruturado em três partes e 10 capítulos, o livro oferece uma bem fundamentada análise interpretativa acerca das origens, da evolução, dos atores, dos processos, além do desfecho daquele conflito entre sistemas político-sociais antagônicos, que predominou durante quase todo o século XX, sobretudo entre 1947 e 1991.

Com efeito, a história contemporânea durante a segunda metade do século XX apresenta como um dos macrofenômenos centrais aquilo que convencionalmente acabou sendo denominado Guerra Fria. O conceito de Guerra Fria geralmente refere-se à competição, confrontação e tensão entre as superpotências e os sistemas sociais antagônicos da época (Estados Unidos, União Soviética, China; capitalismo-comunismo). Assim sendo, os estudos e as pesquisas sobre a Guerra Fria usualmente têm sido fundamentados em teorias ou doutrinas de política externa e inserção internacional tradicionais, tais como: a teoria da contenção do expansionismo soviético, a teoria do imperialismo, a teoria dos conflitos Norte-Sul, a teoria dos conflitos Leste-Leste e Oeste-Oeste, a teoria do complexo industrial-militar, para citar algumas das mais importantes.

Alicerçado em uma reconhecida experiência prática de pesquisa, publicação e docência na temática, bem como em uma cuidadosa revisão da literatura especializada publicada no Brasil e no exterior, Munhoz examina convincentemente e ajuda a avançar os desafios historiográficos colocados pelo macrofenômeno da Guerra Fria e seus desdobramentos. Portanto, a obra é muito oportuna, apropriada e pertinente. Ocorre que, a partir da abertura de arquivos em países da antiga comunidade socialista e de países em desenvolvimento - inclusive brasileiros -, isto é, desde inícios do século XXI, inovações teórico-metodológicas e empíricas têm permitido o surgimento de uma “nova” historiografia da Guerra Fria. Com efeito, contribuições de pesquisadores fundamentadas em evidência recentemente desclassificada tornaram possível avançar na formação de um conhecimento mais profundo, abrangente e detalhado da temática em questão.

A GUERRA FRIA LATINO-AMERICANA: UMA RENOVAÇÃO HISTORIOGRÁFICA EM DESENVOLVIMENTO

Para além da competição, da confrontação e da tensão entre superpotências e blocos antagônicos - capitaneados respectivamente pelos sucessivos governos de Washington e Moscou, bem como pela poderosa influência de Beijing e, em menor medida, de Paris e outras capitais -, a história da “nova” Guerra Fria também ausculta suas implicações e contradições no interior das sociedades e comunidades no mundo todo. Sendo assim, as relações econômicas, culturais, políticas e sociais influenciadas pela competição Leste-Oeste e as vicissitudes nas relações Norte-Sul - inclusive na região latino-americana - formam parte da agenda de pesquisa. Do mesmo modo, a formulação e a implementação das políticas externas dos países em desenvolvimento são centrais para muitos acadêmicos especializados. Além disso, a inserção internacional de atores estatais e não-estatais em confronto, inclusive o empresariado, as guerrilhas, os partidos políticos, os sindicalismos, os movimentos sociais e as instituições religiosas, precisa ser discutida e incorporada nos emergentes projetos de estudo.

Eis a origem da assim chamada Guerra Fria latino-americana. Mutatis mutandis, trata-se de um renovado conjunto de pesquisas impulsionadas principalmente por historiadores das relações internacionais e da história contemporânea que, a partir do acesso a documentação recentemente desclassificada e outras fontes primárias - história oral -, bem como a outras disciplinas auxiliares, conseguiram formular e disponibilizar enfoques inovadores “na”, “desde” e “para” a História da região. Nesse contexto, Sidnei J. Munhoz e outros autores brasileiros e latino-americanos sustentam corretamente que o assunto é transcendente. Note-se que, até recentemente, os pesquisadores interessados nessa importante temática geralmente tinham que se aproximar dos seus respectivos problemas-objetos sob perspectivas teórico-metodológicas importadas de centros hegemônicos - com graves implicações epistemológicas. Outrossim, durante muitas décadas, o acesso a certos acervos documentais sensíveis e pertinentes à temática ficaram restritos. De fato, alguns arquivos públicos continuam - virtualmente - restritos a pesquisadores civis interessados na história da Guerra Fria latino-americana.

Em poucas palavras, a Guerra Fria latino-americana procura incentivar uma aproximação teórico-metodológica mais rigorosa, pertinente e historicamente verificável para a pesquisa sobre a Guerra Fria “na”, “desde” e “para” o continente latino-americano. Cumpre sublinhar que Sidnei J. Munhoz e outros historiadores brasileiros foram pioneiros nesse esforço conjunto. Eis os casos de Luiz Alberto Moniz Bandeira (1998BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.), Amado L. Cervo (2001CERVO, Amado. Relações Internacionais da América Latina. Brasília: Funag; Ibri, 2001.), Hugo R. Suppo, Flávio Combat, Roberto Moll, Ângelo Segrillo, Felipe Loureiro, ou Elizabeth Cancelli.

Também é possível observar afinidades eletivas entre o livro de Munhoz e as contribuições de pesquisadores de outros países latino-americanos, bem como de “latino-americanistas” de terceiros países e/ou outros acadêmicos interessados nos cold war studies. Eis os casos de Ariel Armony, Hal Brands (2010BRANDS, Hal. Latin America’s Cold War. Cambridge: Harvard University Press, 2010.), Greg Grandin, Tanya Harmer (2011HARMER, Tanya. Allende’s Chile and the Inter-American Cold War. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.) e Carlo Patti (2021PATTI, Carlo. Brazil in the Global Nuclear Order, 1945-2018. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2021.). Também de Odd Arne Westad (2005WESTAD, Odd Arne. The Global Cold War: Third World Interventions and the Making of our Times. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.), John Lewis Gaddis (2005GADDIS, John Lewis. The Cold War: A New History. Nova York: The Penguin Books, 2005.), Piero Gleijeses (1991GLEIJESES, Piero. Shattered Hope: The Guatemalan Revolution and the United States, 1944-1954. Princeton: Princeton University Press, 1991.) ou Vanni Pettinà (2018PETTINÀ, Vanni. Historia mínima de la Guerra Fría en América Latina. México: Colmex, 2018.).

Mesmo reconhecendo-se as dificuldades de pensar a América Latina como um espaço único, bem como as limitações operativas para realizar pesquisas sobre história e historiografia comparativa, esse conjunto de pesquisadores procura superar gradualmente tanto as limitações nacionais e locais (paroquialismo), quanto os reducionismos e os vieses ideológicos sem fundamentação em evidência que possa ser replicada. Igualmente, procura-se recuperar as percepções, interpretações e os processos de tomada de decisão de certos atores - estatais e não-estatais - com vínculos e interesses no devir do problema-objeto, especialmente nos acontecimentos catalogados como críticos. Dentre eles, os casos da Guatemala de 1954, de Berlim, entre 1947-1948 e 1961-1990, de Cuba, entre 1961-1963, do Brasil, entre 1964-1966, do Chile de 1973, da Argentina de 1955 e 1974-1982, e da América Central de 1979 a 1990.

Além disso, a renovada historiografia em questão tende a destacar os efeitos globais decorrentes da inserção internacional brasileira e de alguns outros países latino-americanos, principalmente em termos extracontinentais. Eis os casos do internacionalismo cubano na África, das transferências de armas de fabricação latino-americana a outros continentes, de missões de paz com participação latino-americana no mundo afro-asiático, da história nuclear global (criação de zona desnuclearizada ou modelo de Tlatelolco), da participação latino-americana no movimento dos países não-alinhados, da cooperação Sul-Sul, da diplomacia cultural, da sociedade civil transnacional, de questões civilizacionais, da economia política internacional, das relações bilaterais e multilaterais brasileiras, entre outros tópicos.

Em termos cronológicos, Sidnei J. Munhoz e outros pesquisadores especializados geralmente propõem trabalhar a partir de quatro subperíodos que interagem tanto com a história global da Guerra Fria quanto com a história contemporânea brasileira e da América Latina: a) primeira fase da Guerra Fria latino-americana, 1947-1954 (rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética, Terceira posição peronista, nacional-desenvolvimentismo, doutrina Truman, Figuerismo costarriquenho, stalinismo, operações encobertas na Guatemala e Irã); b) segunda fase da Guerra Fria latino-americana, 1955-1968 (modernização, operação pan-americana, regionalismo cepalino, revolução cubana, coexistência pacífica, política externa independente Quadros-Goulart, história nuclear, fronteiras ideológicas, polarização direita-esquerda, “doutrina Betancourt”); c) terceira fase da Guerra Fria latino-americana, 1968-1979 (distensão/Détente, autocratização, golpe no Chile, violência política, autonomia mexicana, doutrinas da segurança nacional, Nova Ordem Econômica Internacional, cooperação Sul-Sul, “sub-imperialismos”); e d) quarta fase da Guerra Fria Latino-americana (redemocratização, não-alinhamento, universalismo, pragmatismo, liberalismo, neorrepublicanismo)2 2 No livro de Sidnei J. Munhoz, essas quatro fases cronológicas da Guerra Fria coincidem plenamente com a segunda e a terceira partes da obra - isto é, com os capítulos 6 a 10. .

SIDNEI J. MUNHOZ E A “NOVA” HISTORIOGRAFIA DA GUERRA FRIA LATINO-AMERICANA: VICISSITUDES NA RECOMPOSIÇÃO DO PROBLEMA-OBJETO

Bem no meio desse movimento de renovação teórico-metodológica, empírica e mesmo epistemológica, a obra de Sidnei J. Munhoz se destaca claramente no triplo esforço de produzir conhecimento fundamentado em evidência sobre a Guerra Fria “na”, “desde” e “para” a América Latina. Acontece que o referido problema-objeto é de interesse de historiadores e de outros acadêmicos especializados, inclusive internacionalistas, politólogos, sociólogos, antropólogos e economistas; quer de origem latino-americana, quer latino-americanistas de terceiros países e/ou cold war scholars estrangeiros. Ao mesmo tempo, em uma perspectiva societal, a renovação e a inovação impulsionadas pela “nova” historiografia da Guerra Fria latino-americana procuram ir ao encontro das demandas das sociedades do continente por um conhecimento científico próprio, alicerçado em evidência e propositivo.

Mesmo sem cair em tentações paroquiais ou nacionalistas, está claro na análise interpretativa proposta por Sidnei J. Munhoz que muitos atores latino-americanos - individuais, coletivos e institucionais - tiveram autonomia relativa e agência própria no momento de formular e implementar suas respectivas inserções internacionais. Além disso aparecem na referida obra as dinâmicas político-social, econômica, cultural e de segurança doméstica e subnacional. Em consequência, auscultar criticamente a referida autonomia relativa, a agência e a interdependência complexa desses atores locais com potências e atores equivalentes externos é outra das tarefas próprias desta emergente micro-comunidade epistêmica. Afinal, lembre-se de que, para ter alguma relevância e transcendência, a formação, a revisão e a convalidação de conceitos, interpretações e conhecimentos historiográficos precisa dialogar com a experiência regional, nacional ou local.

Nesse mesmo diapasão, sugere-se que futuras edições do livro de Munhoz ou de trabalhos equivalentes de outros pesquisadores poderiam ser aprimorados com um preâmbulo teórico-metodológico ainda mais exaustivo. Entende-se que, para além das correntes historiográficas relacionadas ao estudo e à pesquisa da Guerra Fria citadas na obra - isto é, a Ortodoxia estadunidense (teoria da contenção), a Ortodoxia soviética (teoria do imperialismo), o Revisionismo e o Pós-revisionismo -, uma análise teórica ampliada e aprofundada poderia vir a incluir outras alternativas, como as mencionadas em parágrafos anteriores, além de eventualmente vir a propor inferências, modelos interpretativos ou tipos ideais de inspiração kolleckiana/weberiana. Igualmente, é cada vez mais importante reconhecer as conexões e contribuições do problema-objeto com tópicos em história econômica (modelos de desenvolvimento e economia política internacional), história cultural (mentalidades, ideologias, identidades), história social (atores e movimentos sociais), história política (regimes, partidos, legitimidade do Estado, institucionalismo, relações de poder), e da segurança internacional (questões estratégicas contemporâneas).

Por último, mas não menos importante, futuros empreendimentos poderiam dialogar com as histórias de vida e biografias de personalidades com vínculos e interesses diretos na formulação e na implementação de políticas externas, de inserção internacional ou até de política internacional. Eis os casos de lideranças brasileiras da época, quer governantes, como Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Emilio G. Médici, Ernesto Geisel ou José Sarney; quer seus respectivos interlocutores domésticos, hemisféricos e globais. Rememore-se que esses líderes políticos e sociais tiveram que interagir com acontecimentos continentais e mundiais sumamente complexos, inclusive com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, a corrida nuclear, a guerra das Malvinas/Falklands, as ondas de democratização e autocratização, a dinâmica da economia política internacional (questão do desenvolvimento nacional), ou os processos de descolonização e libertação nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, Sidnei J. Munhoz oferece-nos uma magnífica obra de síntese, uma pequena história da Guerra Fria global “desde”, “na” e “para” a América Latina. Trata-se de uma bem-sucedida contribuição à historiografia brasileira acerca de um período turbulento, dramático, complexo e que ainda nos convida à reflexão - especialmente no contexto dos recentes acontecimentos na Ucrânia e no leste europeu. Certamente, temos em mãos uma alvissareira obra. Em termos de estilo e forma, destaca-se o primoroso resultado do trabalho editorial - ainda que alguns mapas e imagens correlacionados ao problema-objeto poderiam ser acrescentados no futuro. Nesse sentido, o livro atende integralmente aos critérios de confiabilidade, validez, objetividade, autenticidade e rigor historiográfico. Tendo dito isso, o manuscrito acaba sendo do interesse de acadêmicos, profissionais, estudantes e do público em geral - até mesmo das coortes usualmente denominadas como a geração do ferro, a dos anos dourados ou baby boombers, a geração de 1968 e as gerações X, Y e Z; isto é, quase todo mundo!

REFERÊNCIAS

  • BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
  • BRANDS, Hal. Latin America’s Cold War. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
  • CERVO, Amado. Relações Internacionais da América Latina. Brasília: Funag; Ibri, 2001.
  • GADDIS, John Lewis. The Cold War: A New History. Nova York: The Penguin Books, 2005.
  • GLEIJESES, Piero. Shattered Hope: The Guatemalan Revolution and the United States, 1944-1954. Princeton: Princeton University Press, 1991.
  • HARMER, Tanya. Allende’s Chile and the Inter-American Cold War. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
  • MUNHOZ, Sidnei J. Guerra Fria: história e historiografia. Curitiba: Appris, 2020.
  • PATTI, Carlo. Brazil in the Global Nuclear Order, 1945-2018. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2021.
  • PETTINÀ, Vanni. Historia mínima de la Guerra Fría en América Latina. México: Colmex, 2018.
  • WESTAD, Odd Arne. The Global Cold War: Third World Interventions and the Making of our Times. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
  • 2
    No livro de Sidnei J. MunhozMUNHOZ, Sidnei J. Guerra Fria: história e historiografia. Curitiba: Appris, 2020., essas quatro fases cronológicas da Guerra Fria coincidem plenamente com a segunda e a terceira partes da obra - isto é, com os capítulos 6 a 10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2022
  • Aceito
    17 Ago 2022
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