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Mário Pinto de Andrade: vivências e ressignificações em torno do estudo do kimbundu (Luanda - Lisboa - Luanda, 1940-1950)

Mário Pinto de Andrade: Experiences and Re-Significations around the Study of Kimbundu (Luanda - Lisbon - Luanda, 1940-1950)

RESUMO

O artigo aborda o processo político e intelectual no âmbito do qual Mário Pinto de Andrade desenvolveu um projeto de pesquisa em torno do kimbundu. Tendo aprendido a língua do grupo etnolinguístico Ambundu ainda na infância, em Luanda, emigrou para Lisboa para estudar filologia clássica na universidade. Ali, viu-se atravessado por marcadores raciais e geográficos que reconfiguraram seus interesses de estudo para a linguística africana. Servindo-se de instrumentos, conhecimentos e acervos aos quais teve acesso em Lisboa, Andrade redigiu um ensaio sobre o kimbundu publicado em Luanda, combinando uma genealogia crítica de gramáticas e dicionário publicados desde o século XVII sobre o tema, a partir de um olhar anticolonial. Como demonstramos, esse movimento de encontro com as questões que o atravessavam foi realizado na metrópole, mas os resultados foram disseminados em seu país natal, afinados com o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola.

Palavras-chaves:
intelectuais; Angola; anticolonialismo; Kimbundu; salazarismo; assimilação

ABSTRACT

We address the political and intellectual process within which Mário Pinto de Andrade developed a research project around the Kimbundu language. Having learned the language of the Ambundu ethnolinguistic group while still a child in Luanda, he emigrated to Lisbon to study classical philology at the university. There he was crossed by racial and geographic markers that reconfigured his interests in African linguistics. Using the tools, knowledge, and collections he had access to in Lisbon, Andrade wrote an essay on Kimbundu published in Luanda, combining a critical genealogy of grammars and dictionaries published since the seventeenth century on the subject from an anti-colonial perspective. As we showed, this movement of encounter with the issues that crossed him was carried out in the metropolis, but the results were disseminated in his home country, in tune with the Movement of the New Intellectuals of Angola.

Keywords:
Intellectuals; Angola; Anticolonialism; Kimbundu; Salazarism; Assimilation

INTRODUÇÃO

Em 1953, no último ano em que viveu em Lisboa, Mário Pinto de Andrade posou para uma fotografia ao lado de um amigo. Ambos se alinham de frente para a câmera, dando as costas para a Exposição do Mundo Português (Mário Pinto de Andrade, 1953MÁRIO PINTO DE ANDRADE com (?) [fotografia]. 1953. Lisboa (Arquivo Mário Pinto de Andrade, Fundação Mário Soares). Disponível em: Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07223.002.011 . Acesso em: 10 dez. 2022.
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). Posicionado em primeiro plano, fitando um espaço-além, em contraste com o mau enquadramento da exposição ao fundo, ele se torna o centro do registro. Não obstante a sua reconhecida timidez, explicitada por aqueles que lhe eram próximos (Lopes, 2000LOPES, Carlos. Bibi, o intelectual orgânico. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura (Orgs.). Mário Pinto de Andrade: um intelectual na política. Lisboa: Edições Colibri, 2000. pp. 33-37., p. 34), é para a sua figura que convergem os olhares quando encarado o registro, e não para a tentativa celebratória da propaganda salazarista de monumentalização do império português. Talvez sem que o autor da fotografia tenha se dado conta, seus planos e recortes guardam uma pequena síntese do havia sido o percurso deste jovem intelectual de Angola naqueles anos em Lisboa: um movimento de demarcação dos valores coloniais, ao passo que seus interesses se voltavam para a afirmação de uma cultura nacional em Angola a partir das suas dinâmicas internas.

Embora, via de regra, os períodos de juventude ainda sejam relativamente pouco abordados para se tratar da formação política e intelectual de lideranças anticoloniais do espaço sob dominação colonial portuguesa na África, o caso de Mário Pinto de Andrade constitui um instigante exemplo, na escala do seu itinerário biográfico, de releitura das vivências em seu território de origem à luz de novas camadas adicionadas pelos seus anos no espaço metropolitano. Este artigo se propõe a analisar os itinerários geográficos, políticos e intelectuais de Mário Pinto de Andrade que resultaram nas suas pesquisas sobre o kimbundu, salientando como os marcadores de raça e as estratificações da sociedade colonial desempenharam um papel preponderante na reorientação dos seus interesses de estudo.

LUANDA: DO KIMBUNDU AO LATIM

Em outubro de 1948, contando vinte anos de idade, Mário Pinto de Andrade deixou pela primeira vez a Angola, tendo Lisboa como destino. A mudança para a capital do império se deu para que pudesse realizar seus estudos universitários, uma vez que, nesta altura, os territórios sob dominação colonial portuguesa na África não contavam com estabelecimentos de ensino superior (Castelo, 2015CASTELO, Cláudia. Casa dos Estudantes do Império: uma síntese histórica. In: ROSINHA, Maria do Rosário; FREUDENTHAL, Aida (Coord.). Mensagem - número especial, 1944-1994. 2ª. Edição. Lisboa: UCCLA, 2015. pp. 25-31.).

Até então, todo o seu percurso escolar fora realizado em estabelecimentos de ensino em Angola. Mário Pinto de Andrade nasceu em 1928, no Golungo Alto, a aproximadamente duzentos quilômetros a leste de Luanda, e entrou em contato com o kimbundu ainda na infância, como uma língua paralela aos ambientes oficiais:

O kimbundu era a língua do quintal, era a língua da minha madrasta, e do ajudante - não gosto da palavra criado: nós tínhamos um ajudante, um assistente, digamos, da casa, um homem de Catete, que falava bem o kimbundu; na época, havia muita gente de Catete que servia nas casas, ele estava integrado à família. O kimbundu ouvia-se na rua, nos jogos. Eu não falava de uma maneira muito correcta, mas falava-o e compreendia-o facilmente. O meu pai falava português, mas dirigia-se à minha madrasta em kimbundu (Andrade; Laban, 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997., p. 15).

Em sua tentativa de precisar a área kimbundu em Angola em seu estudo sobre o nacionalismo angolano em meados do século XX, John Marcum demonstra que o território conhecido como Mbundu (também por Ambundu ou Kimbundu) estava delimitado pelos Bakongo ao norte, pelos Tchokwe a oeste e pelos Nganguela e Ovimbundu ao sul (Marcum, 1969, p. 12MARCUM, John. The Angolan Revolution: The Anatomy of an Explosion (1950-1962). Vol. I. Cambridge, Massachusetts: The Massachusetts Institute of Technology Press, 1969.). Por se tratar de uma região em constante contato com a presença portuguesa em busca do alargamento da sua área de influência, no contexto do tráfico transatlântico de indivíduos escravizados, entre os séculos XVI e XIX, o contato entre as sociedades Mbundu e os portugueses foi fortemente marcado por conflitos, negociações e resistências (Marcum, 1969MARCUM, John. The Angolan Revolution: The Anatomy of an Explosion (1950-1962). Vol. I. Cambridge, Massachusetts: The Massachusetts Institute of Technology Press, 1969.; Miller, 1988MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988.), mas também por trocas culturais entre os dois lados, cuja intensidade variava nos fluxos e refluxos da temporalidade e na proximidade da costa atlântica. A despeito destas trocas e apesar das tentativas de proibições oficiais por parte das autoridades coloniais portuguesas até meados do século XIX, o kimbundu se manteve como a língua corrente da área Mbundu (Ferreira, 2006FERREIRA, Roquinaldo. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. Revista de História, São Paulo, n. 155, pp. 17-41, 2º-2006.). A este respeito, Jan Vansina salienta que, mesmo em Luanda, as elites locais se tornaram gradualmente bilingues apenas no oitocentos (Vansina, 2001VANSINA, Jan. Portuguese vs Kimbundu. Language use in the Colony of Angola (1575-c. 1845). Bulletin des Séances de l’Académie royale des Sciences d’Outre-Mer, v. 47, n. 3, pp. 267-281, 2001.), situação que se manteve no avançar do século XX, em Luanda e no interior do território Mbundu, a exemplo do que ocorreu com Mário Pinto de Andrade.

Como assinalado, ainda durante a infância do intelectual angolano, seu pai se estabeleceu na capital da colônia, em decorrência de um acidente que o levou a perder uma das pernas. De funcionário do Gabinete das Finanças do governo colonial, um posto de prestígio para um indivíduo definido como “assimilado” no esquema de diferenciação estabelecida pelos processos legais vigentes no império português (Meneses, 2010MENESES, Maria Paula. O “indígena” africano e o colono “europeu”: a construção da diferença por processos legais. E-cadernos CES, n. 7, pp. 68-93, 2010.), José Cristiano Pinto de Andrade teve de se aposentar, feito que impactou sensivelmente a situação econômica da família. A solução encontrada foi estabelecer residência em Luanda, no bairro das Ingombotas, conhecido na altura por ser habitado sobretudo por “assimilados” (Andrade; Laban, 1997, p. 53ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.).

Sob a Ditadura Nacional e o Estado Novo, a legislação colonial definiu reiteradamente quem eram os indígenas no Estatuto Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique (1926)ESTATUTO CIVIL E CRIMINAL DOS INDÍGENAS DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE. Decreto 12.533. Diário do Governo , Lisboa, 1ª. Série, n. 237, 23 out. 1926., no Código do Trabalho Indígena (1928)CÓDIGO DO TRABALHO INDÍGENA. Decreto 16.199. Diário do Governo, Lisboa, 1ª. Série, n. 281, 6 dez. 1928. e no Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas das Colônias Portuguesas de África (1929)ESTATUTO POLÍTICO, CIVIL E CRIMINAL DOS INDÍGENAS DAS COLÔNIAS PORTUGUESAS DE ÁFRICA. Decreto 16.473. Diário do Governo, Lisboa, 1ª. Série, n. 30, 6 fev. 1929.. Em comum, os três diplomas definem os considerados “indígenas” como “indivíduos da raça negra ou dela descendentes, que pela sua ilustração e costumes não se distinguem do comum daquela raça”. Portanto, os indígenas eram os africanos “pretos” e “mestiços”, como definia o censo colonial”, que viviam de acordo com a sua cultura originária. Apenas a última destas legislações, o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas das Colônias Portuguesas de África (1929)ESTATUTO POLÍTICO, CIVIL E CRIMINAL DOS INDÍGENAS DAS COLÔNIAS PORTUGUESAS DE ÁFRICA. Decreto 16.473. Diário do Governo, Lisboa, 1ª. Série, n. 30, 6 fev. 1929., traz um complemento após este trecho para delimitar aqueles que não se enquadravam nesta condição: “e não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nestas condições” (Moreno, 2022MORENO, Helena Wakim. Intelectuais de Angola na Casa dos Estudantes do Império: itinerâncias, mediações e redes de apoio (Lisboa, 1944-1965). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2022.). Assim, a condição de “assimilado” significava, aos olhos das autoridades, a adoção de hábitos e costumes da cultura portuguesa, encarados como contrapartida do abandono dos da sua cultura de origem. Entre os principais requisitos para a aquisição do estatuto de assimilado estava saber falar a língua portuguesa de acordo com a “norma culta” estabelecida na metrópole.

Com a assimilação vinha o estatuto de cidadão, prerrogativa que os “indígenas não possuíam. Entretanto, na prática, eram considerados no máximo cidadãos de segunda classe, uma vez que era palpável a desigualdade de oportunidades frente aos colonos e o usufruto destes direitos nem sempre era assegurado. Estas clivagens eram parte do cotidiano e se faziam presentes desde a infância, como mostram as lembranças de Joaquim Pinto de Andrade:

Às vezes eu estava a ler e de repente escutava a voz do meu pai “Oh, Joaquim traz mais uma cadeira!”. Por vezes era para lhe levarmos água ou cum café, de modo que tínhamos, eu e o meu irmão Mário, de ficar muito atentos às chamadas do meu pai. E, no acto de ficarmos atentos às chamadas, escutávamos as suas reclamações sobre as desigualdades em termos de oportunidades entre os nativos e os colonos. Importa dizer que eles, os mais velhos, defendiam que a competição e a igualdade só seriam possíveis se do nosso lado tivéssemos quadros com qualidade para poder ombrear com os do outro lado [grifo nosso]. Estas ideias repetiam-se diariamente (Andringa; Almeida; Sousa, 2017ANDRINGA, Diana; ALMEIDA E SOUSA, Victória de (Orgs.). Joaquim Pinto de Andrade: uma quase autobiografia. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 16).

A família Pinto de Andrade exercia um papel de saliência entre as famílias de “assimilados”: José Cristiano Pinto de Andrade, junto a Gervásio Ferreira Viana, Manuel Inácio Torres Vieira Dias e Sebastião José da Costa, além da participação de António de Assis Júnior, entre outros, foi um dos fundadores da Liga Nacional Africana (LNA). Para garantir seu funcionamento regular e legal, a LNA foi definida nos marcos do governo colonial como uma “associação recreativa e cultural” (Rodrigues, 2003RODRIGUES, Eugénia. A geração silenciada: a Liga Nacional Africana e a representação do branco em Angola na década de 30. Porto: Edições Afrontamento , 2003., pp. 53-54). Entretanto, apesar das ambivalências políticas e culturais que atravessavam os “assimilados” neste contexto, a LNA era uma associação majoritariamente composta por indivíduos considerados assimilados e pretendia ser um espaço de congregação e defesa deste grupo.

Isto também significou cultivar elos com gerações anteriores de algumas das antigas famílias tidas como a “elite” deste grupo, que em fins do oitocentos haviam publicado seus primeiros escritos literários ou de caráter ensaístico na imprensa de Luanda e do ultramar, alguns deles contestando a presença colonial portuguesa em Angola. Durante o período da monarquia constitucional em Portugal, sobretudo até à década de 1880, num sentido contrário às expectativas dos “filhos do país” em Angola, havia um ambiente de relativa liberdade de expressão na colônia, em decorrência de brechas na legislação ainda inspirada pelos ventos da Revolução Liberal do Porto (1820)1 1 Em sua origem, o termo “filhos do país” foi utilizado pelos portugueses para designar os africanos mestiços e negros nascidos nos territórios com presença colonial portuguesa na África, cuja origem mesclava elementos da cultura portuguesa e das sociedades africanas em questão, estabelecendo um diálogo com ambos os universos culturais, mas não pertencendo propriamente a nenhum deles. No caso do território que hoje corresponde à Angola, em meados do século XIX, “filhos do país” passou a ser assumido pelos indivíduos considerados deste grupo como uma forma de diferenciação a partir de um marcador identitário. Cabe salientar que, apesar de assumirem este marcador comum - os contatos com estes dois universos -, este pequeno grupo foi marcado por heterogeneidades internas no que concerne aos marcadores raciais, culturais, econômicos e geográficos (Dias, 1984; Andrade, 1997; Bittencourt, 1999; Moreno, 2014). .

Entretanto, após a Proclamação da República e o crescente fluxo migratório de colonos para Angola, os embates entre as autoridades e os “filhos do país” cresceram sensivelmente (Ribeiro, 2012RIBEIRO, Maria Cristina Portella. Ideias republicanas na consolidação de um pensamento angolano urbano (1880 c.-1910 c.): convergência e autonomia. Dissertação (Mestrado em História de África) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Lisboa, 2012.). Acusados de fomentarem levantes e conspirarem contra o governo colonial português em Angola, suas associações foram reprimidas, os cargos públicos para posições intermediárias passaram a exigir o ensino secundário, fazendo com que esta camada intermediária fosse preterida para assumir tais posições. As tensões deste processo se agudizaram durante o governo Norton de Matos em Angola, no início da década de 1920 (Rodrigues, 2003RODRIGUES, Eugénia. A geração silenciada: a Liga Nacional Africana e a representação do branco em Angola na década de 30. Porto: Edições Afrontamento , 2003., pp. 33-37). Assim, é possível compreender as expectativas de José Cristiano Pinto de Andrade e seus pares sobre a necessidade de se formar “quadros com qualidade” para concorrer com os colonos (Andringa; Almeida; Sousa, 2017ANDRINGA, Diana; ALMEIDA E SOUSA, Victória de (Orgs.). Joaquim Pinto de Andrade: uma quase autobiografia. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 16).

Além disso, algumas das primeiras tentativas de reflexão sobre a língua kimbundu realizada por “filhos do país” vieram à público pela pena de articulistas da imprensa periódica de Luanda nas últimas décadas do século XIX, entrelaçadas à postura contestatória desta geração. Sobre estas questões, o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e o livro Voz d’Angola clamando no deserto: offerecida aos amigos da verdade pelos naturaes contém escrituras notáveis dos primeiros jornalistas “filhos do país” de Angola (David, 2016DAVID, Débora Leite. Almanach de Lembranças: Colaborações africanas no século XIX. Miscelânia, Assis, v. 19, pp. 353-368, jan.-jun. 2016.; Moreno, 2014MORENO, Helena Wakim. Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.). Décadas mais tarde, Mário Pinto de Andrade ainda se recordava destes títulos integrarem o pequeno acervo literário do pai. “Digamos que fomos [nutridos] um pouco pelas ideias desta geração”2 2 Tradução nossa do original em francês: “Disons que nous étions [nourris] un peu par les idées de cette génération”. , afirmou ao passear pelas lembranças da sua formação política e intelectual dos tempos de menino nas Ingombotas (Messiant; Andrade, 1999MESSIANT, Christine; ANDRADE, Mário Pinto de. Sur la première génération du MPLA: 1948-1960. Mario de Andrade, entretiens avec Christine Messiant (1982). Lusotopie, n. 6, pp. 185-221, 1999., p. 189). As lembranças de Joaquim Pinto de Andrade sobre estes tempos convergem com as do irmão:

Desde pequeno (tinha eu os meus 14 anos) que tomei contacto com esta ínclita geração do fim do século XIX e início do século XX, porque meu pai nos falava frequentemente (a mim e a meu irmão Mário) dessa plêiade de vigorosos polemistas e nos dava a ler A voz de Angola clamando no deserto (sic.), num dos raros exemplares então existentes [...]. Esta defesa apaixonada dos filhos de Angola ou filhos da terra (como então se dizia) marcou profundamente a minha geração e teve grande influência nos movimentos associativos como a Liga Nacional Africana de que meu pai foi um dos fundadores (1929) juntamente com Gervásio Viana e outros, e posteriormente no movimento literário “Vamos descobrir Angola” e sua revista Mensagem (Andringa; Almeida; Sousa, 2017ANDRINGA, Diana; ALMEIDA E SOUSA, Victória de (Orgs.). Joaquim Pinto de Andrade: uma quase autobiografia. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 16).

Se as origens familiares, bem como vivências no sítio em que residia, propiciaram o contato com o kimbundu, o espaço escolar conferiu a Mário Pinto de Andrade uma formação em bases completamente distintas. Diferente do que era a regra para aqueles que reuniam condições de prosseguir nos estudos em Luanda, ele não frequentou o Liceu Salvador Correia, mas o Seminário de Luanda, na companhia do seu irmão Joaquim Pinto de Andrade. Esta opção se deu uma vez que ali o ensino era gratuito para os “filhos de africanos que provassem a falta de recursos financeiros”. Além disso, Mário Pinto de Andrade estabeleceu uma grande afinidade com o cônego Frota, pároco de Igreja do Carmo e um dos únicos religiosos negros de Luanda no início da década de 1940. Pelo relato do intelectual angolano, o cônego Frota foi “um dos primeiros padres preocupados com a sua formação e também com a sua condição de padre africano, até aos (sic.) limites do racismo nas suas relações com os outros padres brancos” (Andrade; Laban, 1997, pp. 18-19ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), evidenciando como a clivagem racial que sustentava o edifício do colonialismo também estava presente no seio da Igreja Católica, bem como uma embrionária tomada de consciência destas estruturas, elemento latente neste contexto em Angola.

Em meio ao cotidiano de disciplina do corpo e da mente, no Seminário de Luanda Mário Pinto de Andrade estudou exaustivamente o latim, tido como uma espécie de língua franca dos internos. Ali, realizava exames orais na língua da Igreja e recitava de cor cantos inteiros da Eneida, tal como nos originais de Virgílio (Andrade; Laban, 1997, p. 24ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.). A partir desse contato se deu a sua opção pelo estudo de filologia clássica para o ensino universitário, escolha pouco habitual entre os jovens de Angola da sua idade que costumavam seguir para os cursos de medicina, direito ou engenharia (Faria; Boavida, 2017FARIA, Margarida Lima de; BOAVIDA, Sara. Os associados da Casa dos Estudantes do Império: breve análise sociográfica. In: CASTELO, Cláudia; JERÓNIMO, Miguel Bandeira (Orgs.). Casa dos Estudantes do Império: dinâmicas coloniais, conexões transnacionais. Lisboa: Edições 70, 2017. pp. 35-88.).

Apesar da prerrogativa do pai para que permanecesse em Luanda por um tempo para reunir economias empregado em uma função pública, como faziam muitos rapazes à época antes de ingressarem nos estudos universitários na metrópole, seu ímpeto o conduziu na direção oposta e, antes de completar 19 anos, garantiu a passagem com destino à Lisboa. É importante frisar que a ida para a metrópole para assegurar o diploma universitário era um feito que transcendia o perímetro da escala individual. Tratava-se de um processo que envolvia e, de certa, forma ratificava a família, o bairro e o grupo social aos quais o indivíduo pertencia. Mostra disso pode ser encontrada na revista Angola, publicação periódica da LNA que, em 1938, anunciava a criação de um fundo “destinado a manter e auxiliar, desde já, estudantes angolanos […] aplicados, que tenham dificuldades em prosseguir na sua vida acadêmica” (Angola, 1938, p. 49ANGOLA - Revista mensal de doutrina, estudo e propaganda instrutiva, ano V, n. 23-24, jul.-ago. 1938.), visando contribuir com as despesas da vida universitária de jovens “assimilados”.

A partida de Mário Pinto de Andrade para a metrópole a fim de ingressar nos estudos universitários deve ser percebida também pelo prisma das estruturas da sociedade colonial. “Em Angola eu tinha a ilusão […] de que seria professor de filologia. […] O que é preciso compreender, é que todo estudante que ia fazer os estudos a Lisboa tinha naturalmente a ambição de ocupar um lugar na sociedade angolana”, afirmou Mário Pinto de Andrade ao recordar-se da sua mudança de Luanda (Andrade; Laban, 1997, p. 89ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.). Com ele não era diferente. Neste sentido, a opção por filologia clássica adiciona camadas de imbricamento às complexidades sociais e psíquicas da dinâmica colonial (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.). Entre os protestos contra o enraizamento do estado colonial português em Angola proferidos pelos jornalistas “filhos do país” em Voz d’Angola clamando no deserto (1901) - obra, que como mencionado, constava na biblioteca de seu pai - estava a denúncia de que o governo passara a exigir conhecimentos em latim para se ocupar postos de trabalho de pouca qualificação nos serviços públicos, como o de telegrafista. Como os próprios autores asseveravam, era evidente que se tratava de uma manobra das autoridades para preterir os “filhos do país” em favor dos colonos portugueses nas funções públicas, uma vez que na altura não existia ensino de latim em Angola (AAVV, 1901, p. 69AAVV. Voz d’Angola clamando no deserto - offerecida aos amigos da verdade pelos naturaes. 1ª. Edição. Lisboa: s.n, 1901.; Moreno, 2014MORENO, Helena Wakim. Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014., p. 65). Ainda assim, o conhecimento do latim se tornava, para além do verniz da erudição, uma espécie de passaporte - ainda que com fronteiras bem delimitadas - para postos de trabalho quase vedados aos “não-brancos”, a exemplo do que se passava com o cônego Frota. Em suma, saber latim simbolizava “ser civilizado” em um contexto social que a mimese colonial (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.) vigorava como um forte traço de ascensão social entre os assimilados. Contudo, foi na metrópole que este edifício de certezas da “ambição”, para repor o termo utilizado por Mário Pinto de Andrade, se defrontou com os limites estruturais de sua realização no mundo imperial.

LISBOA: DO LATIM AO KIMBUNDU

Em outubro de 1948, Mário Pinto de Andrade deixou pela primeira vez Angola, tendo Lisboa como destino (Andrade; Laban, 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997., p. 53). Na companhia de seu irmão Joaquim Pinto de Andrade, a viagem a bordo do navio Colonial durou 31 dias, com escalas em Freetown e Casablanca (Dáskalos, 1993DÁSKALOS, Sócrates. A Casa dos Estudantes do Império: fundação e primeiros anos de vida. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1993.), antes de chegar ao território português. Em Lisboa, desembarcou no cais de Alcântara e seguiu para uma pensão em Santo Amaro, dirigida por uma senhora angolana que lhe fora recomendada por Licínio de Assis, filho de António de Assis Júnior, com quem Mário Pinto de Andrade se correspondia (Andrade; Laban, 1997, p. 56ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.). Esta sua característica merece ser destacada: quando vivia na capital de Angola, se correspondia com jovens de famílias “assimiladas” que estudavam em Lisboa, ao passo que quando fixou residência na capital do império, manteve contato com alguns amigos e colegas que permaneceram em Luanda. Para os fins desta exposição, merecem destaque suas trocas com António Jacinto e Viriato da Cruz.

Entretanto, antes de adentrar os contornos destas missivas, cabe tratar do ambiente encontrado por Mário Pinto de Andrade em Lisboa. A pensão em Alcântara, um bairro lisboeta frequentado por embarcadiços pela localização do cais, remontava um ambiente familiar na companhia de Licínio de Assis e de Humberto Machado, irmão de Ilídio Machado, o que acabava por compensar a distância da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa3 3 Desde 1911, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa funcionava em um complexo anexo à Academia de Ciências de Lisboa. Entretanto, após diferentes projetos e extensos debates em torno da criação da Cidade Universitária, a Faculdade de Letras foi locada no prédio em que permanece até os dias atuais, no Campo Grande (Pedrosa, 2009). . Contrapondo a ausência dos laços do seu território de origem e servindo de apoio em meio aos códigos de metrópole e às dificuldades materiais não raro enfrentadas, estes pequenos grupos de jovens do espaço sob dominação colonial portuguesa estabeleceram fortes laços, por vezes decisivos em seus percursos biográficos.

O espaço de referência destes jovens era a Casa dos Estudantes do Império (CEI), fundada em 1944, em Lisboa, contando, a partir do ano seguinte, com uma delegação em Coimbra. Em poucas palavras, sua criação foi um projeto endossado pelo Estado Novo, a fim de formar uma elite colonial afinada com os preceitos políticos e ideológicos do regime, que servisse de correia de transmissão dos valores oficiais ao regressar aos seus territórios de origem após a conclusão do curso universitário. Porém, a historiografia sobre a CEI converge ao afirmar que, ainda nos seus primeiros anos, associação se tornou um espaço de encontros e trocas de ideias conotadas com a oposição ao regime e, de forma mais pormenorizada, ao império colonial português, consoante as especificidades do contexto em questão (Castelo, 2010CASTELO, Cláudia. A Casa dos Estudantes do Império: lugar de memória anticolonial. In: CONGRESSO IBÉRICO DE ESTUDOS AFRICANOS, 7º, 2010, Lisboa. 50 anos das independências africanas: desafios para a modernidade: actas Lisboa: CEA, 2010. pp. 1-18., 2015; Rosas, 2015ROSAS, Fernando. A CEI no contexto da política colonial portuguesa. In: ROSINHA, Maria do Rosário; FREUDENTHAL, Aida (Coord.). Mensagem - número especial, 1944-1994 . 2ª. Edição., 2015. pp. 15-24.; Moreno, 2016MORENO, Helena Wakim. A Casa dos Estudantes do Império: histórias e embates (1944-1965). Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, pp. 188-204, jul.-dez. 2016.; 2022). O destaque para a associação no percurso de Mário Pinto de Andrade ocorre pelo fato de ela ter possibilitado a construção de vínculos com outros jovens “mestiços” e “negros” dos territórios sob dominação colonial portuguesa na África com anseios políticos muito próximos aos seus, dado que contribuiu significativamente para o seu amadurecimento político e intelectual.

LIMITES DE LISBOA

A chegada de Mário Pinto de Andrade em Lisboa ocorreu em meio a um contexto emblemático, durante a campanha para as eleições presidenciais que teriam lugar em 1949. O regime se via diante de sua primeira crise de proporções consideráveis, pressionado pelas rebeliões e greves que emergiam em Portugal em decorrência dos efeitos econômicos da Segunda Guerra Mundial - ainda que o país não tivesse enviado tropas para os campos de batalha - e do ambiente de opressão política. De acordo com Fernando Rosas (1994ROSAS, Fernando. Mudanças “invisíveis” do pós-guerra. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal: o Estado Novo. Vol. 7. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. pp. 368-370.), tais contestações extrapolavam a escala dos descontentamentos pontuais, ameaçando promover uma escalada em direção aos fundamentos políticos e econômicos do Estado Novo. Perante este cenário, entre as concessões políticas que as autoridades se viram compelidas a realizar estava a legalização do Movimento da Unidade Democrática (MUD), primeira frente ampla de massas de oposição ao regime salazarista, que congregava de democratas moderados à comunistas na clandestinidade (Silva, 1994SILVA, Maria Isabel Mercês de Melo de Alarcão e. O Movimento de Unidade Democrática e o Estado Novo: 1945-1948. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 1994. ; Madeira, 2013MADEIRA, João. História do PCP: das origens ao 25 de abril. Lisboa: Edições Tinta da China, 2013.).

Assim como muitos dos jovens sócios da CEI, Mário Pinto de Andrade se engajou na distribuição de panfletos e chegou a participar de manifestações pacíficas promovidas pelo Movimento da Unidade Democrática Juvenil (MUDJ), a frente de juventude do MUD. Ainda que não possuísse vínculos orgânicos com nenhum dos movimentos, foi detido e permaneceu preso por “ordens superiores” no Forte de Caxias em 1950, quando, junto a um grupo de estudantes conotados com o MUDJ, levava flores ao Monumento dos Mortos da Grande Guerra, atitude considerada transgressora pelo regime (Nome e Alcunha, 1950NOME E ALCUNHA. Fundo: PIDE-DGS; Localização: SC, PC, 281/50, UI 5048, fl. 6. Lisboa (ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo). 10 nov. 1950.).

Este episódio parece ter sido um marco para as reflexões de Mário Pinto de Andrade sobre sua ação política. A partir dali, começou a se questionar no que aquelas manifestações lhe diziam respeito (Andrade; Laban, 1997, pp. 105-106ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.). No quadro geral da oposição progressista ao regime salazarista, particularmente entre os círculos vinculados ao Partido Comunista Português (PCP), havia um entendimento de que as independências das colônias portuguesas na África e na Ásia viriam a reboque de um processo cujo primeiro passo era a derrubada do Estado Novo na metrópole (Madeira, 2003MADEIRA, João. O PCP e a Questão Colonial: dos fins da guerra ao V Congresso (1943-1957). Estudos do Século XX: Colonialismo, anticolonialismo e identidades nacionais. Coimbra: Minerva, n. 3, pp. 209-243, 2003. ; Sousa, 2016SOUSA, Julião Soares. Do envolvimento na luta “antifascista” em Portugal à militância anticolonialista. In: SOUZA, Julião Soares. Amílcar Cabral (1924-1973): Vida e morte de um revolucionário africano. Ed. revista, corrigida e aumentada. Coimbra: Edição do autor, 2016. pp. 115-176.). Some-se a isso o fato de que o nome para a candidatura representando a oposição nas eleições presidenciais (1948) fora Norton de Matos, antigo alto comissário e governador de Angola. Como assinalado, no seu governo em Angola, a imprensa e as associações dos “filhos do país” foram alvo de uma dura repressão sob a alegação de se tratar de “organizações nativistas”, o que configurava crime em todo o espaço sob dominação colonial portuguesa em África (Freudenthal, 2001FREUDENTHAL, Aida. Angola. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (Dirs.); MARQUES, A. H. de Oliveira. (Coord.). Nova História da Expansão Portuguesa: O Império Africano: 1890-1930. 1ª. Ed. Vol. XI. Lisboa: Editorial Estampa, 2001. pp. 259-468., p. 259). A memória das pesadas investidas de Norton de Matos sobre os “filhos do país” chegara à geração de jovens de famílias “assimiladas” de Angola, como era o caso de Mário Pinto de Andrade, que não podia ignorar a trama ambivalente em torno da figura do representante da oposição ao regime nas eleições presidenciais (Andrade; Laban, 1997, p. 58ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.).

Concomitante a este contexto, e sob o seu impacto, Mário Pinto de Andrade começou a realizar uma espécie de operação inversa daquela que o levara à Lisboa: uma imersão cada vez mais acentuada nas questões que o atravessavam, conjugando marcadores raciais e geográficos em uma sociedade colonial. Importa assinalar as complexidades desta itinerância. Com a vivência no território metropolitano, se deu conta de que a pobreza extrema e a miséria também acometiam os portugueses, dadas as opressões do regime salazarista (Andrade; Laban, 1997, p. 53ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), cenário que não se apresentava em Angola na altura, em função de certos entrelaçamentos entre marcadores raciais e sociais. Em contrapartida, o fato de se deparar, por diferentes frentes, com a sua condição de “mestiço”, originário de Angola e africano no território metropolitano, parece tê-lo reforçado um movimento de encontro com as suas questões. Em outras palavras, os variados encontros e circunstâncias experimentadas em Lisboa, articulados às suas experiências prévias em Angola, conformaram arranjos que tornaram a capital portuguesa uma “metrópole anti-imperial”, na expressão de Michael Goebels (2015GOEBELS, Michael. Anti-imperial metropolis: Interwar Paris and the seeds of Third World Nationalism. University of Cambridge: Cambridge University Press, 2015.). Vale salientar que este movimento se dava na contramão do intuito do regime de promover a ida de jovens do espaço sob dominação colonial para realizarem o curso universitário em Portugal.

Em fins da década de 1940, Mário Pinto de Andrade tomou gosto por obras de escritores africanos, como o romance Pleure, ô pays bien-aimé, do sul-africano Alan Paton, ou caribenhos, como Batouala, de René Maran (Andrade; Laban, 1997, p. 90ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), obras que trazem à tona violências e desmandos do sistema colonial. Impulsionado pelas novas descobertas literárias, construiu uma pequena biblioteca no quarto em que habitava. A poeta originária de São Tomé, Alda Espírito Santo, com quem iniciou uma grande amizade naquela altura, se recordava que não tardou para que seus aposentos se tornassem um ponto de encontro de jovens provenientes do espaço sob dominação colonial na África. Ali, dissertava sobre diferentes assuntos relativos ao continente, indicava e emprestava livros e fornecia explicação de conteúdos de ensino aos estudantes do liceu (Espírito Santo; Laban, 2002, pp. 71-72ESPÍRITO SANTO, Alda; LABAN, Michel. Entrevista com Alda Espírito Santo. In: LABAN, Michel. São Tomé e Príncipe: encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 2002. pp. 61-104.), projetando-se como uma figura de proeminência intelectual no seu jovem círculo.

Segundo suas recordações, seus questionamentos incidiram também sobre a sua opção pelos estudos de filologia clássica. Os dois primeiros anos do curso transcorreram sem grandes dificuldades, dado os seus conhecimentos de latim adquiridos no Seminário de Luanda. Entretanto, dali em diante, deparou-se com os limites do ensino universitário em um país sob uma ditadura, cujo conteúdo lhe parecia “muito elementar, muito escolar”: não eram ministradas noções de filologia geral, tampouco havia uma disciplina de linguística. Insatisfeito com os rumos do curso, ao passo que os temas relativos ao continente africano o instigavam cada vez mais, começou a obter obras de linguística africana na Livraria Buchholz (Andrade; Laban, 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997., p. 90). Na capital portuguesa, era possível obter com menos dificuldade obras que chamavam a atenção dos censores em Angola, graças aos circuitos de livreiros que comercializavam estes impressos de forma clandestina ou semiclandestina (Pinto, 2011PINTO, José Filipe. Segredos do Império da Ilusitânia: a censura na metrópole e em Angola. Coimbra: Almedina, 2011.; Melo, 2016MELO, Daniel. A censura salazarista e as colónias: um exemplo de abrangência. Revista de História da Sociedade e da Cultura, v. 16, pp. 475-496, 2016.). Ali comprou e passou a se dedicar ao estudo de obras de linguística africana de Lilias Homburger e Marcel Cohen, na altura um militante do partido comunista e docente da Escola Prática de Altos Estudos. Os escritos de Hermann Baumann e Diedrich Westermann, antropólogos alemães que desenvolviam estudos sobre a África buscando diálogos interdisciplinares com a linguística, assim como as publicações da School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, também ganharam espaço na sua biblioteca (Andrade; Laban, 1997, pp. 90-91ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.).

Alinhavando as novas leituras aos conhecimentos de filologia geral, Mário Pinto de Andrade começou a se dar conta de que o instrumental que adquirira nas salas de aula da Faculdade de Letras poderia ser útil ao estudo do kimbundu, língua com que tivera contato desde a primeira infância em Angola. Teve como ponto de partida a Torre do Tombo, onde realizou um levantamento abrangente sobre o tema. Deparou-se com os primeiros estudos sobre o kimbundu, realizados no século XVII por religiosos no Brasil4 4 A partir da referência do marcador temporal no século XVII, muito provavelmente Mário Pinto de Andrade se reportava ao livro A arte da língua de Angola, publicado em Lisboa em 1697 e redigido, na Bahia, pelo jesuíta Pedro Dias. Trata-se de uma das primeiras gramáticas conhecidas do kimbundu (Fundação da Biblioteca Nacional, [1657] 2006). , e se deu conta de que a composição desta gramática tomava por base as regras do latim. Entre as suas pesquisas, conseguiu recolher os escritos dispersos de Joaquim Dias Cordeiro da Matta, lembrado como um “filho do país” pioneiro nos estudos do kimbundu. Entre os estudos de sua autoria, encontrou uma cartilha para o aprendizado do kimbundu e o Ensaio de Diccionário Kimbundu-Portuguez (1893), além de provérbios (Andrade; Laban, 1997, p. 92ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.)5 5 Acerca destas menções, cabem alguns esclarecimentos. A entrevista concedida por Mário Pinto de Andrade a Michel Laban é o mais extenso e completo testemunho que o intelectual angolano concedeu sobre seu itinerário biográfico, com encontros decorridos entre 19 de março de 1984 e 20 de junho de 1987. Ao listar os materiais de Joaquim Dias Cordeiro da Matta encontrados em suas pesquisas empreendidas na capital portuguesa, na fala de Mário Pinto de Andrade aparece elencada “uma Cartilha para Aprender a Língua de Angola” (Andrade; Laban, 1997, p. 92), indicando que se tratava de um escrito deste “filho do país” com este título. Entretanto, nas obras conhecidas de Joaquim Dias Cordeiro da Matta não consta uma publicação com esta nomeação, mas sim a Cartilha racional para se aprender a ler o kimbundu, publicada em 1892 (Chatelain, 1964, p. 64). Assim, muito provavelmente a referência ao título da cartilha foi um lapso de compreensão da fala, ou até do próprio Mário Pinto de Andrade ao mencionar a referência. .

Neste contexto, Mário Pinto de Andrade também passou a frequentar o Centro de Estudos Filológicos, coordenado por Rodrigo Sá Nogueira, filólogo português que vivia em Salamanca e passava os verões em Lisboa. Este contato possibilitou que aprofundasse seus conhecimentos em linguística e filologia africana, áreas de interesse do antigo professor, que pouco depois passou a se dedicar aos estudos do ronga, atendendo ao pedido da Escola Colonial6 6 As memórias de Mário Pinto de Andrade auxiliam a compreender um pouco mais do reducionismo do olhar colonial: naquela altura, a instituição estudava o kimbundu e o ronga, identificando-os respectivamente como línguas de Angola e Moçambique (Andrade; Laban, 1997, p. 91), por serem faladas pelas sociedades africanas cujos territórios abrangiam as antigas capitais de ambas as colônias. Neste enquadramento, as línguas das demais sociedades destas geografias eram desconsideradas. . Acerca deste contato e das impressões gerais sobre os estudos de linguística africana em Portugal naquela altura, Mário Pinto de Andrade conservou a seguinte lembrança:

Na época, ele fazia estudos sobre as onomatopeias, pedia-me para eu procurar onomatopeias em kimbundu, eu dava-lhe exemplos, mas não tinha o enquadramento científico para estudar a linguística africana. Na Escola Colonial eram amadores, e na Faculdade de Letras havia só Filologia Clássica. Era um domínio completamente virgem, em Portugal inteiro (Andrade; Laban, 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997., p. 93).

Percebendo esta ausência, começou a esboçar suas primeiras impressões sobre o tema. A consolidação deste itinerário, que conjugou vivências em duas geografias, construção do conhecimento pela oralidade, estudo e pesquisa marcados pela especificidade dos diferentes marcadores que atravessaram o percurso de Mário Pinto de Andrade, ganhou forma em Lisboa, mas foi publicada na revista Mensagem - A voz dos naturais de Angola, em Luanda. Assim, antes de seguir com a explanação sobre o conteúdo dos escritos do intelectual angolano, importa compreender a escolha pelo veículo de publicação do seu ensaio e sua localização na paisagem política e cultural de Angola.

LUANDA: O REGRESSO PELA PARTILHA

Em 1948, enquanto no território metropolitano os estudantes provenientes do espaço sob dominação colonial portuguesa engajavam-se na campanha das eleições presidenciais junto à oposição ao regime, em Luanda alguns estudantes do Liceu Salvador Correia começavam a organizar aquele que ficou conhecido como Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA). Para fins desta exposição, cabe delinear brevemente como o movimento tem sido identificado. O intuito do grupo era buscar conhecer Angola para além do olhar colonial, mapeando e difundindo a pluralidade de sociedades, culturas e línguas originárias do território. Ao apontar estas multiplicidades e particularidades, o MNIA contrapunha-se ao discurso oficial homogeneizante do regime de um império “uno e indivisível, do Timor ao Minho”, que, sob a roupagem do lusotropicalismo, conferia o protagonismo destes processos ao elemento colonizador português.

De acordo com José Luís Pires Laranjeira (1995LARANJEIRA, José Luís Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Edições Afrontamento, 1995., pp. 105-106), alguns dos mais destacados expoentes do movimento em Angola eram Leston Martins, Humberto da Sylvan, Carlos Ervedosa, Mário de Alcântara Monteiro, António Cardoso, Mário António Fernandes de Oliveira, Viriato da Cruz e António Jacinto. Este último, com mais idade que seus companheiros, fazia as vezes de mentor intelectual e cedia o quarto em que vivia para as reuniões do grupo. Ainda segundo o mesmo autor, havia ainda um grupo alargado, conhecido como Círculo Silvério Ferreira, que congregava elementos do MNIA, da ANANGOLA e Sidónio Castelbranco de Carvalho, antigo secretário da Sociedade Cultural de Angola (Laranjeira, 1995, p. 106SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.). Apesar de pouco assinalado pelos estudiosos do tema, a eleição do nome deste círculo revela um dado que não pode passar despercebido: Augusto Silvério Ferreira foi um “filho do país” e articulista de relevo da imprensa de Luanda entre fins do século XIX e início do século XX, tendo sido um dos autores da obra Voz d’Angola clamando no deserto (1901) e um dos fundadores do jornal O Angolense (1907-1911), importante órgão noticioso da imprensa de Luanda (Moreno, 2014MORENO, Helena Wakim. Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014., p. 28). Esta escolha põe em evidência que a valorização da memória contestatária dos “filhos do país” não se restringia a casos pontuais, mas parecia ser uma questão que permeava a geração dos chamados novos intelectuais de Angola.

A proposta do MNIA encontrou ecos em diferentes formas de expressão, como o teatro, a exemplo das iniciativas do grupo Gexto, e a música, por meio do grupo Ngola Ritmos (Moorman, 2008MOORMAN, Marissa J. In the Days of Bota Fogo: Culture and the Early Nationalist Struggle, 1947-1961. Intonations: A Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, from 1945 to Recent Times. Athens: Ohio University Press, 2008. pp. 56-80.). Contudo, seu principal veículo de expressão e dinamização foi a revista Mensagem - A voz dos naturais de Angola, publicada pelo Departamento Cultural da Associação Regional dos Naturais de Angola, mais conhecida pela sigla ANANGOLA, composta sobretudo por “mestiços” assimilados. Entre os conteúdos da publicação constavam poemas, contos, ensaios e notícias das atividades e propostas do movimento. Mensagem - A voz dos naturais de Angola contou com apenas dois números, uma vez que, por ordem das autoridades, teve de ser descontinuada, mas foi o suficiente para deixar uma marca incontornável na literatura angolana, pelo seu teor identificado com a busca por uma identidade nacional angolana.

Mesmo residindo em Lisboa na altura, Mário Pinto de Andrade estava informado das iniciativas do movimento, principalmente devido à sua correspondência com António Jacinto e Viriato da Cruz, e ocupou um lugar de destaque na Mensagem - A voz dos naturais de Angola, tendo assinado um conto e um ensaio sobre o kimbundu, único texto do periódico dividido entre os dois números. Seu conto “Eme Ngara, Eme Muene”, do kimbundu “Eu senhor(a), Eu mesmo”, veio a lume no segundo número do periódico. O conto trazia marcas da oralidade e tramas do cotidiano, ao apresentar ao leitor a história de Zuzé e sua mãe, Dona Xica. O rapaz, de comportamento austero e muito responsável, falecera precocemente. Ao averiguarem os escritos aos quais tanto se dedicava, são encontradas críticas incisivas à estratificação social na sociedade colonial. O conto termina com Carlota, a namorada de Zuzé, criando uma pequena escola na qual Dona Xica torna-se aluna, marcando o lugar que o acesso ao ensino possuía na percepção dos “assimilados” como elemento não só de ascensão social, mas de tomada de consciência da sua condição subalterna (Andrade, 1952a, p. 27ANDRADE, Mário Pinto. Eme Ngara, Eme Muene. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, p. 27, 1952.). “Eme Ngara, Eme Muene” foi distinguido com uma menção honrosa no 1º Concurso Literário Bienal, promovido em 1951 pelo Departamento Cultural da ANANGOLA (Mensagem, 1952, p. 2Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, p. 2, 1952. ).

Contudo, o destaque maior de Mário Pinto de Andrade na Mensagem - A voz dos naturais de Angola ficou a cargo do seu ensaio “Questões de linguística bantu - Da posição do kimbundu nas línguas de Angola”. Publicado no primeiro número da revista, em 1951, a primeira parte traça um panorama crítico de alguns estudos sobre as línguas bantu realizados desde o século XVII, avaliando suas opções e seus escopos metodológicos. Ao analisar o caso do kimbundu, são apresentados equívocos e acepções na compreensão do termo “ambundu” por cronistas e viajantes. A primeira parte do ensaio tem como desfecho a constatação da ausência de gramáticas históricas sobre o kimbundu, afirmando que “o que está feito neste campo dirige-se a apenas ao conhecimento prático de umas regras elementares, muitas vezes mal expostas. Nem sequer uma pequena alusão histórica”. E nas linhas finais, arremata: “se de facto (sic) há um interesse imediato na elaboração destas gramáticas, não é destituída de razão a defesa da língua, da sua história e, pelo menos, uma localização dos pontos onde ela se fala, dos dialetos que compreende e das relações com as línguas que a rodeiam” (Andrade, 1951, p. 6ANDRADE, Mário Pinto. Questões de linguística bantu - Da posição do “Kimbundu” nas línguas de Angola. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 1, p. 27, 1951.). Subjacente às suas constatações está a percepção dos fins que levavam os elementos colonizadores a se interessarem pelo kimbundu: tratava-se de um fim instrumental em prol da colonização e da escravatura, deixando de lado uma compreensão mais aprofundada da língua e de suas conexões como um veículo de cultura e conhecimento.

Na segunda parte do ensaio, Mário Pinto de Andrade se dedicou a uma análise comparativa do kimbundu nas gramáticas do século XVII a fim de, pela ortografia, identificar as mudanças na língua. O autor tece duras críticas à Colleção de observações gramaticaes sobre a língua bunda ou angolense (1805), do capuchinho Bernardo Maria Cannecatim, arrematando seus apontamentos com a seguinte passagem: “se alguns dados históricos que Cannecattim apresenta estão certos, nada na sua obra é construtivo. Nem sua gramática. Pretendeu simplesmente destruir e afinal a sua colecção saiu confusa, perdendo-se nas observações latinas que nada tem a ver com o Kimbundu” (Andrade, 1952, p. 31ANDRADE, Mário Pinto. Questões de linguística bantu - Da posição do “Kimbundu” nas línguas de Angola. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, pp. 31-32, 1952.). O trecho em questão evidencia sua percepção da inadequação de como as antigas gramáticas do kimbundu eram concebidas, partindo das regras do latim. Além de perceber os resultados limitados dessa operação, ela revela um amadurecimento intelectual de Mário Pinto de Andrade. Era preciso que esta reflexão partisse de uma base endógena, pensando a língua e suas estruturas a partir de suas especificidades.

Pelo seu olhar, o ponto de virada nos estudos ocorre com os trabalhos do missionário suíço Heli Chatelain, em suas recolhas cuidadosas e mapeamento da área onde se falava o kimbundu, outras línguas de Angola e suas variações. Os estudos subsequentes, para o autor, partiram desta base assentada por este conjunto. Mário Pinto de Andrade ainda destaca as contribuições dos trabalhos de António de Assis Júnior, em particular do seu Dicionário Kimbundu - Português, além dos estudos de Renato de Mendonça e Jacques Raimundo sobre a influência do kimbundu na língua portuguesa falada no Brasil (Andrade, 1952, p. 32ANDRADE, Mário Pinto. Questões de linguística bantu - Da posição do “Kimbundu” nas línguas de Angola. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, pp. 31-32, 1952.).

Contudo, algumas das reflexões mais instigantes do ensaio consistem nas suas apreciações sobre o trabalho de Heli Chatelain. São destacados trechos nos quais o missionário suíço ressaltou que a ausência de recolhas de fábulas, contos e elementos das culturas do território conhecido como Angola, diante das centenas de anos de presença “europeia” - expressão do autor -, poderia levar à equivocada conclusão de que se tratavam de sociedades desprovidas de cultura. Heli Chatelain constatava com surpresa o contrário: a rica diversidade cultural das sociedades locais (Andrade, 1952ANDRADE, Mário Pinto. Questões de linguística bantu - Da posição do “Kimbundu” nas línguas de Angola. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, pp. 31-32, 1952., p. 32). Não pode passar despercebido como estes apontamentos se coadunam com as diretrizes do MNIA, merecendo um estratégico destaque no ensaio.

Mário Pinto de Andrade também ressalta o destaque conferido pelo missionário suíço aos estudos de Joaquim Dias Cordeiro da Matta sobre o kimbundu, como mostra esta passagem:

Chatelain diz-nos que Cordeiro da Matta abandonou a musa portuguesa para consagrar o seu talento a uma nascente literatura nacional. E de facto (sic), essa literatura teve somente nascimento. Não a deixaram vingar, infelizmente, afogaram-na e mantêm-se sempre atentos para que ela não venha à superfície, escrita, sã, cheia de vida e de filosofia (Andrade, 1952ANDRADE, Mário Pinto. Questões de linguística bantu - Da posição do “Kimbundu” nas línguas de Angola. Mensagem - A voz dos naturais de Angola, Luanda, n. 2, pp. 31-32, 1952., p. 32).

Além de endossar o vínculo intelectual e a afirmação da memória com a geração dos “filhos do país”, Mário Pinto de Andrade traça, de forma implícita, uma crítica à censura que se fazia em torno das formas literárias que se descolavam dos ditames coloniais, valorizando a oralidade e as línguas das sociedades africanas originárias. Após o detalhado mapeamento, o ensaio é encerrado com um convite ao estudo do kimbundu, que se mostra também como um apelo para a retomada da literatura produzida que comportasse as marcas das culturas africanas de Angola, para além do olhar colonial. Um desafio cujos caminhos começavam a ser tateados por este jovem intelectual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso de Mário Pinto de Andrade em torno da confecção do ensaio “Questões de linguística bantu - Da posição do kimbundu nas línguas de Angola” pode ser compreendido levando-se em conta algumas vertentes de análise. A primeira delas diz respeito à sobreposição das suas vivências em Luanda e, posteriormente, em Lisboa, em torno da conformação do seu tema de pesquisa. Diante da realidade social com a qual se deparou em Lisboa em fins da década de 1940, marcada pela ascensão da oposição ao regime salazarista, o qual ainda guardava posições que reafirmavam uma atitude colonial, o jovem intelectual angolano se vê diante das suas opções acerca do estudo da filologia clássica. Mesmo o prestígio em torno de um “assimilado” realizar um curso universitário na metrópole é esgarçado perante as evidentes restrições do curso. Confrontado com estes atravessamentos, ele passou a se valer de suas pesquisas individuais e dos instrumentos teóricos e metodológicos que lhe foram transmitidos nas salas de aula da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para arquitetar uma pesquisa sobre o kimbundu. Esta operação, segundo a qual um sujeito histórico originário de um espaço sob dominação colonial seleciona, traduz e ressignifica ferramentas fornecidas pelo colonizador para conformar uma nova forma de conhecimento, apresentando resultados cujos sentidos percorrem direções opostas àquelas conferidas no ato da transmissão, capazes de questionar aquilo que está assentado no paradigma euro-ocidental, pode ser entendida como o que Edward Said nomeou “apropriação criativa” (Said, 2011SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 22).

Dispondo destes recursos delineados a partir das especificidades do seu olhar, qual seja, o de um indivíduo que falava o kimbundu desde a infância, Mário Pinto de Andrade apresenta um ensaio que vai além de uma genealogia dos estudos da língua, realizando também uma análise crítica dos seus conteúdos. Neste sentido, assinalar e valorizar os estudos do kimbundu produzidos por “filhos do país”, como Joaquim Dias Cordeiro da Matta e António de Assis Júnior, adquire um sentido de sistematização do conhecimento sobre a língua pelos seus próprios falantes. Inserir membros desta camada cultural e socialmente intermediária neste escol cumpria um duplo papel: ao mesmo tempo que destacava sua agência no manejo de formas de sistematização do conhecimento habituais do ocidente, denunciava o silenciamento e a censura das autoridades sobre este grupo. Ademais, vale reforçar como, ao reclamar a memória contestatária dos “filhos do país” diante dos desmandos do governo colonial, selecionando como esta geração anterior seria lembrada (Pollak, 1992POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, pp. 200-212, 1992.), Mário Pinto de Andrade e seus companheiros davam ensejo a uma narrativa histórica legitimadora da agência política e intelectual do grupo ao qual pertenciam perante os desmandos do poder colonial.

Por fim, cabe salientar o percurso do autor e da produção do ensaio. O contato com o kimbundu se deu a partir das suas vivências no espaço sob dominação colonial, contudo, foi também a partir do vivido na metrópole que Mário Pinto de Andrade o elegeu como tema de pesquisa. Para além disso, este acúmulo, somado às conexões com outros jovens intelectuais de Angola que o mantiveram informado sobre o ambiente intelectual e cultural no seu território de origem, parece ter desempenhado um papel preponderante na sua opção por publicar os resultados dos seus estudos sobre o kimbundu, assim como um imaginário de uma espécie de retomada de escrituras produzidas sobre Angola identificadas com as sociedades africanas. O espaço sob dominação colonial e o próprio sujeito histórico em questão ganharam novos contornos à luz da experiência na metrópole. Ao se embrenhar no coração do império, teve início um processo de descolamento daquilo que se esperava de um “assimilado” diante do postulado pelos valores coloniais. Talvez uma boa síntese para estas itinerâncias esteja guardada nas palavras de Ruy Duarte de Carvalho (2007CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 93): “Ao fim e ao cabo o que mais nos toca, ou o que mais nos interessa, não é o que mais ou melhor diz, mas onde nos vemos”.

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  • 1
    Em sua origem, o termo “filhos do país” foi utilizado pelos portugueses para designar os africanos mestiços e negros nascidos nos territórios com presença colonial portuguesa na África, cuja origem mesclava elementos da cultura portuguesa e das sociedades africanas em questão, estabelecendo um diálogo com ambos os universos culturais, mas não pertencendo propriamente a nenhum deles. No caso do território que hoje corresponde à Angola, em meados do século XIX, “filhos do país” passou a ser assumido pelos indivíduos considerados deste grupo como uma forma de diferenciação a partir de um marcador identitário. Cabe salientar que, apesar de assumirem este marcador comum - os contatos com estes dois universos -, este pequeno grupo foi marcado por heterogeneidades internas no que concerne aos marcadores raciais, culturais, econômicos e geográficos (Dias, 1984DIAS, Jill R. Uma questão de identidade: respostas intelectuais às transformações econômicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930. Revista Internacional de Estudos Africanos, n. 1, pp. 61-94, 1984.; Andrade, 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.; Bittencourt, 1999BITTENCOURT, Marcelo. Dos jornais às armas: trajectórias da contestação angolana. Lisboa: Vega, 1999.; Moreno, 2014MORENO, Helena Wakim. Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.).
  • 2
    Tradução nossa do original em francês: “Disons que nous étions [nourris] un peu par les idées de cette génération”.
  • 3
    Desde 1911, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa funcionava em um complexo anexo à Academia de Ciências de Lisboa. Entretanto, após diferentes projetos e extensos debates em torno da criação da Cidade Universitária, a Faculdade de Letras foi locada no prédio em que permanece até os dias atuais, no Campo Grande (Pedrosa, 2009PEDROSA, Patrícia Santos. Cidade Universitária de Lisboa (1911-1950): génese de uma difícil territorialização. Lisboa: Edições Colibri - IHA; Estudos de Arte Contemporânea; FSCH; Universidade Nova de Lisboa, 2009.).
  • 4
    A partir da referência do marcador temporal no século XVII, muito provavelmente Mário Pinto de Andrade se reportava ao livro A arte da língua de Angola, publicado em Lisboa em 1697 e redigido, na Bahia, pelo jesuíta Pedro Dias. Trata-se de uma das primeiras gramáticas conhecidas do kimbundu (Fundação da Biblioteca Nacional, [1657] 2006FUNDAÇÃO DA BIBLIOTECA NACIONAL. Apresentação. In: DIAS, Pedro. A arte da língua de Angola. Edição Facsimilar. Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Nacional, [1697] 2006. pp. 7.).
  • 5
    Acerca destas menções, cabem alguns esclarecimentos. A entrevista concedida por Mário Pinto de Andrade a Michel Laban é o mais extenso e completo testemunho que o intelectual angolano concedeu sobre seu itinerário biográfico, com encontros decorridos entre 19 de março de 1984 e 20 de junho de 1987. Ao listar os materiais de Joaquim Dias Cordeiro da Matta encontrados em suas pesquisas empreendidas na capital portuguesa, na fala de Mário Pinto de Andrade aparece elencada “uma Cartilha para Aprender a Língua de Angola” (Andrade; Laban, 1997, p. 92ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), indicando que se tratava de um escrito deste “filho do país” com este título. Entretanto, nas obras conhecidas de Joaquim Dias Cordeiro da Matta não consta uma publicação com esta nomeação, mas sim a Cartilha racional para se aprender a ler o kimbundu, publicada em 1892 (Chatelain, 1964CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1964. , p. 64). Assim, muito provavelmente a referência ao título da cartilha foi um lapso de compreensão da fala, ou até do próprio Mário Pinto de Andrade ao mencionar a referência.
  • 6
    As memórias de Mário Pinto de Andrade auxiliam a compreender um pouco mais do reducionismo do olhar colonial: naquela altura, a instituição estudava o kimbundu e o ronga, identificando-os respectivamente como línguas de Angola e Moçambique (Andrade; Laban, 1997, p. 91ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), por serem faladas pelas sociedades africanas cujos territórios abrangiam as antigas capitais de ambas as colônias. Neste enquadramento, as línguas das demais sociedades destas geografias eram desconsideradas.
  • **
    As reflexões apresentadas neste artigo foram desenvolvidas com apoio da Capes e da Fundação Calouste Gulbenkian.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2023
  • Aceito
    22 Abr 2023
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