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Mitos, categorias e cristais: revisitando os clássicos do movimento homossexual brasileiro1 1 Principiei esta pesquisa em 2018. Ela gerou dois artigos e minicursos vários. Agradeço aos colegas que leram, socializaram fontes e artigos - Carlos Humberto Ferreira Silva-Júnior, Luiz Morando, Remon Bortollozi, Santiago Joaquín Insausti, Thiago Soliva, Vinícius Ferreira. Sou, porém, a única responsável pelo seu conteúdo.

RESUMO

Este artigo revisita a literatura clássica sobre o movimento homossexual brasileiro (MHB). Discute as dificuldades inerentes à categoria movimento social e demonstra como se deu a divulgação e a incorporação do mito fundador e da noção de que a imprensa gay artesanal, à exceção de Snob e Gente Gay, apenas conteria paródias e fofocas. Ao final, propõe uma metodologia para o exame da constituição de movimentos sociais cujos atores são marcados por dinâmicas de desqualificação (pessoas LGBTI+, negros, povos originários, mulheres, prostitutas), a qual, ademais de processual, contemple o esforço adicional para superar a identidade deteriorada. Apoia-se em Maria da Glória Gohn, E. P. Thompson, Peter Burke, Howard Becker, Pierre Bourdieu e Michel de Certeau.

Palavras-chave:
Movimento Homossexual Brasileiro; paradigmas teóricos; subjetividades

ABSTRACT

This paper revisits the classic literature on the Brazilian Homosexual Movement (Movimento Homossexual Brasileiro, MHB). It discusses the inherent difficulties of the social movement category and demonstrates how the dissemination and incorporation of the founding myth and the idea that the artisanal gay press, except for Snob and Gente Gay, contained only gossip and parodies. Lastly, it proposes a methodology for examining the constitution of social movements whose actors are marked by disqualification dynamics (LGBTI+ people, blacks, indigenous peoples, women, prostitutes) which, in addition to being procedural, contemplates the consistent challenge in overcoming the introjection of the deteriorated identity. Its theoretical approach is based on Maria da Glória Gohn, E. P. Thompson, Peter Burke, Howard Becker, and Michel de Certeau.

Keywords:
Brazilian Homosexual Movement; Theoretical Paradigms; Subjectivities

INTRODUÇÃO

Na literatura acadêmica consagrou-se a leitura sobre o Movimento Homossexual Brasileiro pautada na noção de evento fundador2 2 O mesmo ocorreu com o movimento internacional. Stonewall foi considerada deflagradora do movimento no mundo, invisibilizando-se todo o ativismo anterior, tanto nos EUA como durante a Confederação da Alemanha do Norte. - O Grupo Somos/SP. Cristalizou-se também a ideia de que sua historiografia estaria concluída, ainda que permaneçam por ser pesquisados vários grupos surgidos no mesmo contexto3 3 Em 1983 foram listados 25 grupos. Entre eles, três no Pará, um no DF, um em MG, um na PB e três em PE (Colaço, 1984, p. 64). . Da geração anterior, notadamente sua imprensa artesanal, examinada apenas parcialmente, fixou-se uma interpretação desqualificadora, diferente de quando são interpretadas ações semelhantes, empreendidas por ativistas dos EUA4 4 Aspectos trabalhados em Mitos, problemas e sinais: a imprensa gay, a provisoriedade da história e o ativismo antes de 1978 (2023). .

Há uma pesquisa em História sobre sociabilidade homossexual no Rio e em São Paulo em fins do século XX; estudos etnográficos nas ciências sociais sobre a estruturação das práticas sexuais entre homens; o grupo Somos/SP; o Corsa e as ONGs ativistas dos anos de 1990. Seus autores, quase todos ex-integrantes do Somos/SP, se descuidaram do aspecto processual, como da objetivação participante, nos termos de Bourdieu. Sem proceder à “ruptura das aderências e das adesões mais profundas e mais inconscientes”, e sem manter sob controle suas projeções, terminaram capturados pela tendência a utilizar as estratégias do campo acadêmico para a validação da visão nativa (Bourdieu, 2001BOURDIEU. Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001., pp. 51-8) - leitura recebida sem questionamento e/ou pesquisa, mesmo por historiadores (eu incluída, até o mestrado, cf. Rodrigues, 2006bRODRIGUES, Rita C. C. Poder, gênero, resistência, proteção social e memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b.). Essa visão, entretanto, começa a ser problematizada (Ferreira, 2019FERREIRA, Vinícius. Por uma história cultural da imprensa homossexual. In: RÊGO, Ana Regina et al. (Orgs.). Os desafios da pesquisa em história da comunicação: entre a historicidade e as lacunas da historiografia. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2019. pp. 405-439.).

Em meu doutoramento, registrei esse viés mítico. Entretanto, sem condições materiais ao aprofundamento da pesquisa e melhor reflexão, em minha tese classifiquei as ações anteriores como “protoativismo”, embora ali trabalhasse com o aspecto processual e destacasse, com Certeau (1995CERTEAU, Michel de. La toma de la palabra y otros escritos políticos. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, 1995.) e Bourdieu (2001BOURDIEU. Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001.; 2007BOURDIEU. Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira . São Paulo: Edusp, 2007.), algumas fases e alguns desafios implicados no processo de construção do Movimento Homossexual Brasileiro (Rodrigues, 2012RODRIGUES, Rita de Cassia Colaço. De Daniele a Chrysóstomo: quando travestis, bonecas e homossexuais entram em cena. Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012.). Neste artigo, corrijo aquele meu equívoco e proponho uma metodologia de pesquisa.

Antes, porém, de discutir as interpretações desses clássicos, destaco que não pretendo realimentar antigas tensões entre campos do conhecimento (Burke, 2002BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002., pp. 12-4; Reis, 2010REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: FGV, 2010., pp. 24-5). Ao problematizá-las, não minimizo sua importância ou a do evento consagrado. Foram e são importantes, e contribuíram na compreensão de parte dos fatos que levaram a um outro patamar o MHB.

Busco, ademais de destacar o caráter processual das mudanças, salientar os desafios intrínsecos à constituição de movimento político cujos atores são historicamente estigmatizados, e problematizar análises produtivistas inerentes ao capitalismo, que relegam ao limbo “os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores” (Thompson, 2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 13). Move-me o compromisso de retirar aqueles ativistas e suas ações pioneiras, tanto as impedidas pelos aparelhos de repressão estatal quanto as efêmeras, por força da introjeção da desqualificação, “dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade” (Thompson, 2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 13); e demonstrar a sua contribuição consciente para o processo histórico. Em síntese, honrar a dívida para com os mortos, livrando-os do esquecimento (Certeau, 2017CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 2017. pp. 45-111., passim), e não acompanhar o “cortejo triunfal dos dominantes, que marcham sobre aqueles que jazem hoje ao chão” (Benjamin, 2020BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Edição crítica, organização e tradução de Adalberto Müller, Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda, 2020., p. 74).

AGRURAS DA CATEGORIA ANALÍTICA

Uma das dificuldades no exame do processo de constituição do MHB, em minha percepção, decorre das instabilidades na própria categoria movimento social - envolta em teorias e paradigmas variados, instada a dar conta de ações e processos políticos os mais díspares, envolvendo diversidade de atores e contextos socioculturais, nos mais distintos tempos e realidades sociopolíticas (Doimo, 1995DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós 70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Anpocs, 1995., pp. 39-51; Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 242). Embora a maioria desses trabalhos não explicite com qual noção de movimento social está operando (eu incluída, em minha tese, cf. Rodrigues, 2012RODRIGUES, Rita de Cassia Colaço. De Daniele a Chrysóstomo: quando travestis, bonecas e homossexuais entram em cena. Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012.), é possível inferir que apenas consideram as ações vitoriosas, como se o processo de construção da mudança se desenrolasse numa dinâmica retilínea (Becker, 2007BECKER, Howard S. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.; Burke, 2002BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002.). No que diz respeito às diversas definições de movimento social propostas pelas Ciências Sociais, observa-se o subdimensionamento e/ou a desconsideração da tarefa histórica implicada para superar o peso da noção inferiorizante, assentada em noções religiosas, morais, jurídicas e médicas, tarefa que só se realiza no transcurso do tempo, exigindo, para o seu entendimento, o exame desse processo (Thompson, 2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004.; Certeau, 1995CERTEAU, Michel de. La toma de la palabra y otros escritos políticos. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, 1995.; Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]. [1997], pp. 249-250).

Ao discutir teorias e paradigmas dos movimentos sociais em livro clássico, a socióloga Maria da Glória Gohn demonstra a heterogeneidade de definições teóricas existentes (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., pp. 23-240, 242-4) e aponta a permanência, naquele momento, de cinco grandes lacunas, ou problemas, na produção acadêmica sobre o conceito (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 11). Citarei dois: O próprio conceito de “movimento social” - o que efetivamente seria um movimento social; e quais os elementos distintivos em relação a outras ações coletivas ou associações civis, como as ONGs.

Após negar reconhecimento, “a priori, de uma definição ou conceituação geral, única e universal”, Gohn esboça a sua própria compreensão, valorando as subjetividades e o processo histórico. Como primeira característica a ser observada, destaca o fato de os movimentos sociais se referirem “à ação dos homens na história”; ação que implica “um fazer - por meio de um conjunto de procedimentos - e um pensar - por meio de um conjunto de ideias que motiva e dá fundamento à ação” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 247). Em que pese colocar o pensar após o fazer, adiante ela destaca as “dimensões subjetivas da ação social” nos chamados “novos movimentos sociais” e a contribuição de três textos de quatro autores (Moore Jr, Castoriadis, Benedict e Thompson) “para a fundamentação da categoria dos movimentos, ao chamarem a atenção para essa dimensão subjetiva, construída ao longo de um processo histórico de luta no qual a experiência grupal de compartilhamento de valores socialmente comuns é um fator fundamental” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 249). Em seguida, leciona: as “necessidades” precisam se converter em “demandas”, que “poderão se transformar em reivindicações, por meio de uma ação coletiva”. E explicita: “O conjunto deste processo é parte constitutiva da formação de um movimento social” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 250). No entanto, ao formular sua definição, deixa de destacar o aspecto subjetivo e se refere superficialmente ao processo histórico envolvido:

Movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos [...], articuladas em certos cenários [...], criando um campo político de força social [...]. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos [...]. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum [...]. Essa identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., pp. 251-2).

E ao apresentar a sua proposta metodológica, embora faça frequentes referências ao processo histórico que envolve a constituição do movimento social, deixa de considerar o desafio adicional implicado quando se trata de atores marcados por desqualificação, como é o caso de LGBTI+, mulheres, prostitutas, negros e povos originários.

Ali, Gohn referencia dois ângulos sob os quais os movimentos sociais devem ser considerados: internamente, a construção e a organização do repertório de demandas, a organização das estratégias de ação, isto é, os repertórios de ações coletivas que geram ideologia, projeto, organização e prática; e, externamente, o contexto do cenário sociopolítico e cultural, os oponentes, as articulações e redes. Menciona as lutas que são travadas no plano simbólico e dos valores (etnias, nacionalidade, religião, geração, gênero etc.) e destaca que os repertórios são construídos, frutos da ação coletiva. Esclarece que a “força social” “é obtida a partir da análise do cenário do processo político mais amplo em que o movimento se desenrola”, e que, “nas Ciências Sociais”, [a “força social”] só será útil se for historicizada e politizada” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 258). No tópico “ideologia”, esclarece que ela “é captada por meio da análise dos discursos e mensagens dos líderes e de toda a produção material e simbólica dos movimentos”, mencionando que “muitos movimentos lutam [...] pela criação ou alteração de significados culturais”, como o “movimento negro, das mulheres, dos homossexuais etc.”. Mas Gohn não menciona a tarefa adicional exigida a esses atores na construção da consciência coletiva, do discurso político, da agenda de demandas e do repertório de ações, vez que eles têm que se haver, primeiro, com a superação da identidade deteriorada (Goffman, 1988GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª Ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.).

Em seguida, ela aborda a “cultura política” do movimento, destacando a sua construção “ao longo da trajetória” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 259). E, mais uma vez, cita Thompson, mencionando a sua contribuição, entre outras, para o fato de que a cultura política do movimento resulta de “processo político e cultural”. Ao tratar das “práticas”, menciona que as “não-organizadas” decorrem de movimentos “mais radicais” ou dos que estão “em fase embrionária de organização” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 259). Vale destacar que ela considera como movimento social, apropriadamente, mesmo aqueles “em fase embrionária de organização”.

Ao tratar das “fases de um movimento social”, parece-me fugidio o cuidado que Gohn dedica ao processo histórico, em sequência demasiado esquemática. A autora elenca, como a fase número um, uma obscura “situação de carência ou ideias e conjunto de metas e valores a se atingir” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 266); a número dois já trata da “formulação das demandas por um pequeno número de pessoas” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 266). Ao fixar as categorias de movimentos, inclui na segunda os grupos que se originaram “a partir das características da natureza humana: sexo, idade, raça e cor”, outra vez sem se referir ao desafio adicional de superar a autoimagem estigmatizada na construção da consciência política e a identidade coletiva (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 269). Mais adiante, reconhece que os pesquisadores brasileiros, ela incluída, se descuidaram de buscar a especificidade nacional, explicando nossa realidade a partir de categorias e contextos alienígenas, com o que incorreram em equívocos, como na leitura da participação das mulheres (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., pp. 292-3).

Reconhece como “brilhante”(s) as contribuições de Thompson, pois abordou “aspectos poucos estudados até então” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 203), como o uso central que faz da categoria “experiência”, oriunda do materialismo histórico (abarcando nela todo o universo cultural - ideias, sentimentos, valores, consciência, crenças, costumes etc.), e a demonstração de que a consciência, a identidade e os mecanismos de resistência são constituídos na luta, isto é, de forma contextualizada, relacional e em processo. No entanto, a definição que propõe não me parece considerar adequadamente esses aspectos (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., pp. 204-5).

Essa mesma dificuldade apresentada pela categoria movimento social, tanto nos aspectos apontados em Gohn quanto pela não relevância aos casos de atores intensamente marcados por processos de desqualificação, também pode ser encontrada nas hesitações presentes em clássicas interpretações sobre o movimento homossexual brasileiro. Nessas análises, ora são reconhecidas algumas das ações políticas dos atores da geração anterior ao Somos/SP, ora são desqualificadas ou minimizadas. Em todas, porém, prevalece a perspectiva do mito fundador. Embora não explicitem com qual definição de movimento social estão trabalhando, pode-se constatar, nas interpretações apresentadas, as marcas da lógica produtivista/utilitarista intrínseca ao capitalismo, ao apenas reconhecerem as ações “que tiveram sucesso, não [a]s que fracassaram” - visão já criticada por Howard Becker em Segredos e truques de pesquisa (2007BECKER, Howard S. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 14), na qual “os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores são esquecidos”, conforme destacado por Thompson em A formação da classe operária inglesa (2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 12).

Da análise que apresentam, parecem entender que somente quando os repertórios de ação estão constituídos e em operação podem-se denominar as ações políticas de movimento social, descurando-se de todo o processo, e em rota de colisão com o proposto por Gohn, o qual expressamente reconhece que tanto a “força social” quanto o “repertório de ações” são construídos, e que esse processo de construção também integra o movimento social. E não se detêm a considerar a tarefa histórica adicional implicada para atores tão intensamente marcados pela desqualificação, para se constituírem como legítimos demandantes, em relação ao Estado e à sociedade. Terminam por produzir uma leitura semelhante ao modelo de mudança social apresentado pelo sociólogo inglês Herbert Spencer, o qual, segundo Burke, “faz poucas referências à mecânica da mudança”, o que engendra “a falsa premissa de unilinearidade, dando ao processo de mudança a aparência de uma sequência de estágios sem nenhum atropelo e praticamente automática, como se tudo o que uma sociedade tivesse a fazer fosse subir em uma escada rolante” (Burke, 2002BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002., p. 194).

Demonstrarei a seguir, naqueles trabalhos que exerceram influência determinante sobre o campo dos estudos sobre o MHB, como o estabelecimento e a reiteração do mito fundador, e a perspectiva produtivista/utilitarista subjacente, se fazem acompanhar, de momento a momento, de tentativas de reconhecer que o processo de constituição do movimento homossexual é anterior ao Grupo Somos/SP. Embora as fontes lhes apontem esse fato, a dificuldade com a categoria analítica - expressa na sua não explicitação e na noção produtivista/utilitarista latente -, somada à vinculação de seus autores ao evento fundador, à pouca atenção dedicada ao processo histórico e ao desafio da superação da identidade deteriorada, não lhes permite reconhecê-lo.

O QUE É HOMOSSEXUALIDADE

Em 1983, o antropólogo Peter Fry e o psicólogo Edward MacRae, com mestrado em sociologia da América Latina e então doutorando em antropologia, publicaram O que é homossexualidade, para a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense5 5 Agradeço a Thiago Soliva por me recordar a importância dessa publicação para a formação do campo. . Nas páginas 22 e 24, os autores estabelecem os marcos fundacionais do movimento homossexual brasileiro, que passaram a ser repetidos nos trabalhos acadêmicos seguintes: “Este ano de 1978 também viu o [...] surgimento dos primeiros núcleos do movimento homossexual no Brasil. Logo após o surgimento do jornal Lampião, um grupo de artistas, intelectuais e profissionais liberais [...], começou a se reunir semanalmente em São Paulo”; “A peculiaridade dos primeiros grupos do movimento homossexual...” (Sublinhamos). Entretanto nenhum dos dois empreendera pesquisa com o fim de investigar a constituição histórica da consciência política que fez surgir não apenas os militantes do Somos/SP e dos grupos que o seguiram, mas também dos leitores do Lampião da Esquina. MacRae realizava investigação etnográfica sobre o Somos. Fry pesquisara a estruturação das práticas sexuais entre homens no Brasil (1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., pp. 87-115).

Eles sustentam que o início do processo “de mudança” se dá na década de 1960, com o surgimento de uma estruturação igualitária nas práticas afetivo-sexuais homófilas de ambos os sexos, organizada a partir da identidade “entendida” (Fry; MacRae, 1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983., pp. 22-4). Mas não consideram esse fato parte integrante do processo de constituição do movimento político.

DA HIERARQUIA À IGUALDADE: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL

É nesse estudo que Peter Fry atribuiu o surgimento do modelo igualitário como intrínseco à identidade do “entendido”, que ele fixa “por volta dos fins da década de 1960, nas classes médias das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo”, a partir da etnografia de Carmen Dora Guimarães, embora a rede examinada por ela fosse dos anos de 1970 (Fry, 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., p. 93; Guimarães, 2004)6 6 Ele também registra que as ações de Ulrichs e Hirschfeld eram tidas como “os primórdios dos movimentos de liberação homossexual de nossos dias”. No entanto, afirma que “a instituição dos movimentos de libertação homossexual nos Estados Unidos e na Europa [se deu] no final de 1960”. Em relação ao Brasil, fala de “movimentos” no plural, e, na página 110, no singular. Na 108, se posiciona contrário à ideia difusionista, e registra que “grande parte das atividades desses movimentos [no Brasil] concentrou-se em discussões internas sobre a ‘identidade homossexual’ nos chamados ‘grupos de identificação’”, isto é, no enfrentamento da estigmatização introjetada (1982, pp. 104-6, 108, 110). . Ele prossegue:

O surgimento desse novo sistema é documentado por Carmen Dora Guimarães, que estudou uma rede social de “homossexuais” da alta classe média do Rio de Janeiro, e [...] descreve como esse grupo de rapazes passou do modelo hierárquico [...] para o modelo simétrico. [...] Dez anos antes, os membros dessa rede social teriam aderido ao modelo hierárquico, mas não foi esse o caso no início da década de 1970 (Fry, 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., pp. 94-5).

Logo no início do seu ensaio, Fry destaca que a sexualidade masculina no Brasil varia “de região para região, de classe para classe social e, sobretudo, de um momento histórico para outro”, sendo suas formas de percepção social “muitas vezes contraditórias e conflitantes”, e constata que tais sistemas de conhecimento (estruturação) “não são produzidos num vácuo social”; isto é, “para entender a forma e o conteúdo dos sistemas de representações sobre a sexualidade[,] é fundamental perceber que eles são produzidos num contexto político muito mais amplo”, o que “leva forçosamente ao estudo da sociedade brasileira como um todo.” Três páginas adiante, ele reconhece que o modelo hierárquico não é exclusivo de Belém, mas presente “em toda a sociedade brasileira, coexistindo, e às vezes competindo, com outros sistemas” (Fry, 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., pp. 88 e 91. Sublinhei).

No caminho de “descobrir as raízes sociais e políticas da identidade de ‘entendido’” no Brasil (Fry, 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., p. 95), Fry traz estudos europeus nos quais a transexualidade é tida como um tipo de homossexualidade, sem problematizá-los. E cita John Marshall (1981MARSHALL, John. Pansies, Perverts and Macho-Men: Changing Concepts of Male Homosexuality. In: PLUMMER, Kenneth. (Ed.). The Making of the Modern Homosexual. London: Hutchinson, 1981. pp. 138-145.): “nas décadas de 1940, 1950 e 1960”, psiquiatras e psicólogos trabalharão “minimizando gradualmente a importância da distinção entre ‘atividade’ e ‘passividade’ [...] e desenvolvendo uma nova identidade do ‘homossexual’, baseada na orientação sexual do indivíduo”. Com essa “mudança radical de perspectiva” que, entretanto, não é recepcionada pelos médicos brasileiros, como o próprio Fry aponta, ele pretende demonstrar a origem do “entendido” no Brasil, sem trazer dados empíricos representativos que a sustentem (Fry, 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., pp. 102-3).

Embora no início de seu texto Fry tenha chamado a atenção para as variações das práticas conforme a classe e os contextos, ele deixa de considerar que as mudanças verificadas na rede estudada por Guimarães ocorreram no curso da mobilidade social conquistada por seus integrantes, e da dinâmica e da variabilidade verificadas constantemente no seu interior; fato que vem operando “modificações no estilo de vida, no pensamento e na prática homossexual[,] bem como no sistema simbólico como um todo”, conforme destacado pela própria autora logo no início de seu trabalho (Guimarães, 2004, pp. 24-5).

Já James Green fixa a origem do “entendido”, no Brasil, nos anos de 1940, “ou mesmo antes, como indicam as cartas publicadas em Homossexualismo masculino, de Jaime Jorge” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 308). E o sociólogo José Fábio Barbosa da Silva, estudando um grupo “da classe média homossexual” na cidade de São Paulo, entre 1958 e 1959, identificara formas de interação afetiva e sexual igualitárias, onde “a dupla representa tanto papéis masculinos quanto femininos” (Silva, 2005SILVA, José Fábio Barbosa da. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo (Orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Unesp , 2005. pp. 41-212., pp. 87-8, 127-142).

Entretanto, como vimos acima, em O que é homossexualidade, Fry e MacRae fixaram a noção de que o modelo igualitário surgiu nos anos de 1960, com a identidade do “entendido” verificada no interior da rede examinada por Guimarães nos anos de 1970. E os trabalhos posteriores a repetiram.

A CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE

No seu doutoramento em antropologia, defendido em 1986, Edward MacRae empreendeu a “observação participante” sobre o grupo Somos/SP. No livro da tese, publicado inicialmente em 1987, ele não explicita os conceitos de movimento social e militância política com os quais está trabalhando (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018.). Talvez isso, juntamente com a sua vinculação ao Somos/SP, explique a dúbia interpretação produzida. Ali, afirmou que, “desde meados de 1979, têm existido no Brasil, com níveis de atividade variáveis, grupos dedicados a mudar a forma preconceituosa com que são encarados os homossexuais e combater a sua marginalização” (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 67). E mais adiante, assevera que, no ano de 1979, “os aspectos políticos” presentes na subcultura homossexual da Europa e dos EUA estariam “chegando” ao Brasil (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., pp. 107-109), e essa chegada teria feito eclodir grupos dedicados a modificar os modos de visão da homossexualidade, engendrando o movimento homossexual brasileiro.

Ao abordar os periódicos artesanais produzidos por homossexuais, MacRae repete, sem problematizá-la, a afirmação desqualificadora de dois dos seus mais expressivos editores (Anuar Farah e Agildo Guimarães): eram “trabalhos ingênuos” (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 137). Mais adiante, no entanto, após “ressaltar as diferenças no estilo da atuação homossexual”, registra que os grupos constituídos em torno dessas publicações “também tiveram uma atuação política embrionária, como a criação da Associação Brasileira de Imprensa Gay, que existiu entre 62 e 64, e que, como diz Farah (apud Míccolis, 1980MÍCCOLIS, Leila. “Snob”, “Le Femme”... Os bons tempos da imprensa guei. Lampião da Esquina, n. 28, pp. 6-7, set. 1980., pp. 6-7), tinha o ideal de lutar para mostrar ‘que éramos pessoas normais’ [...]”. Na transcrição que faz da entrevista de Farah à Leila Míccolis, MacRae acrescenta que Farah reconhecia que eles, os integrantes da geração anterior ao Lampião, também eram vitoriosos, pela visibilidade conquistada, “uma das [suas] maiores contribuições” (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 139). Mas não problematiza essas visões contraditórias e conclui essa seção do livro com a afirmação de Peter Fry, no Lampião, defendendo essas ações e reconhecendo que “o importante é que ele[s] f[izeram] alguma coisa em prol de sua própria libertação e para a libertação dos outros”.

Abrindo o capítulo sobre o Somos/SP, MacRae afirma que “a formação de grupos homossexuais não é nenhuma novidade [no Brasil] e vem ocorrendo há muitas décadas”. Contudo, diz ele, o “único objetivo” desses grupos anteriores ao Somos era “a diversão e seus aspectos críticos”; e que eles “se limitavam à bem-humorada paródia dos acontecimentos mundanos da alta sociedade”. No parágrafo imediato, porém, aponta “a grande novidade” deles: “o surgimento de uma nova atitude que, deixando de lado um certo sentimento de culpa, até então bastante comum mesmo entre os homossexuais mais notórios, passou a reivindicar um espaço de respeitabilidade pública para a homossexualidade” (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 165). Na página seguinte, sustenta que, “a partir de 1978, começam a surgir grupos de indivíduos dispostos a se declarar como homossexuais em público e que, recusando a pecha de ‘marginais’ ou ‘doentes’, passam a reivindicar o status de ‘discriminados’, procurando alianças políticas com outros setores em situação similar” (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 166). No parágrafo imediatamente posterior, ele registra: “existem relatos considerados apócrifos por alguns, mas importantes por serem indicadores do surgimento de novas ideias, de duas tentativas de convocação de um Congresso de Homossexuais no Rio de Janeiro em 1976 e 1977” - informação a qual lhe teria sido transmitida por João Antônio Mascarenhas (2018, p. 166 e n. 1). Também registra as iniciativas do escritor João Silvério Trevisan na criação de “grupo de discussão homossexual”7 7 Uma dessas tentativas ocorreu em algum momento de 1976, e teria durado cerca de três semanas; a outra foi “no fim de 1976”, quando “entre cinco e dez” participantes, “durante certo tempo”, estudaram “um artigo sobre machismo”, no entanto, “depois de algumas semanas, o grupo se dissolveu”. O próprio Trevisan, em Devassos no paraíso (1986), nas entrevistas que concede e, recentemente, no curso virtual ministrado, afirma que teria sido apenas uma experiência antes do Somos. Ele também valoriza apenas as “iniciativas de sucesso”. Nem MacRae, nem Trevisan mencionam quantas pessoas participaram dessas reuniões e continuaram depois, no Somos/SP. Essa informação obtive de Trevisan, por correspondência eletrônica, durante o doutoramento. Ali, embora persistisse na desqualificação de ações efêmeras e de parcos ou nenhum resultado público, Trevisan falou sobre dois personagens que integraram ambos os grupos. Apenas um retornou a minha tentativa de contato: o médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira, de importância singular na política de enfrentamento ao HIV anos depois, inclusive no âmbito na ONU (Rodrigues, 2012, p. 162). , tratando-as, entretanto, como “tentativas”, “pré-história”8 8 “Afirmação da identidade homossexual: seus períodos e sua importância”, originalmente publicado em Tronca (1987) e republicado em MacRae (2018, p. 67). , e não como ações políticas e integrantes do processo de constituição do movimento homossexual brasileiro.

No final do Epílogo, MacRae conclui: “É inegável a eficácia dos grupos homossexuais em vários sentidos. Talvez, a principal tenha sido a construção de redes de sociabilidade, unindo - e também promovendo - um novo tipo de homossexual, que não é dominado por sentimento de culpa e não se considera doente ou anormal” (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 368). Como não pesquisou a imprensa alternativa homossexual além dos dois periódicos editados por Anuar Farah e Agildo Guimarães, e não se ateve à discussão sobre ela no próprio Lampião, MacRae descuida tanto das ações empreendidas quanto do processo implicado, não podendo reconhecer que esses mesmos atributos estavam presentes nos coletivos que se organizavam em torno daqueles periódicos9 9 Examino estes aspectos em detalhes no artigo inédito já referido. .

MacRae deixa de considerar que, mesmo entre os integrantes dos Somos/SP, grande era o nível de incertezas e divergências, tendo o grupo permanecido quase um ano em discussões sobre qual deveria ser a sua forma de ação, o seu nome, e mesmo se aquela era uma luta política válida10 10 Dificuldades destacadas no manifesto do Grupo Somos/SP, publicado no jornal Lampião da Esquina (1979, p. 2), as quais foram mencionadas por Fry em 1982, como já citado. (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., pp. 170-2, 174-7). E se esquece, também, que quem escrevia e editava os periódicos anteriores a Lampião integrava os coletivos informais constituídos em torno deles. Aqueles em busca apenas de diversão também liam os boletins e os textos de viés ativista ali presentes - como, por exemplo, o jornal Baby (1969BABY, n. 1, pp. 5, 2 e 6, fev. 1969., pp. 5, 2 e 6). A participação dos homossexuais discutindo em nome próprio, durante a Semana do Movimento da Convergência Socialista, em São Paulo, ele lê como ação “antes mesmo da constituição do movimento homossexual”. Embora afirme esse evento como tendo sido “a primeira vez em público” que “levantava-se [...] a ideia de que os esforços dos homossexuais para obter um melhor posicionamento dentro da sociedade se inscreviam legitimamente na luta mais ampla por uma sociedade democrática e socialista”, e trate tais atores como militantes, logo no início do parágrafo seguinte registra a existência de “uma certa dificuldade no relacionamento entre militantes da causa negra e da causa homossexual” (MacRae, 2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 170).

ALÉM DO CARNAVAL

James Green, historiador brasilianista e oriundo do mesmo mito fundador, é o autor do igualmente clássico Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (2000). Fruto do doutoramento, a obra visava, segundo o próprio, demonstrar a existência de uma subcultura homossexual masculina nos centros urbanos do Rio e de São Paulo, tarefa em muito beneficiada pelo trabalho pioneiro realizado por João Silvério Trevisan em Devassos no Paraíso, de 1986TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986. (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 33). No entanto, ele se reconhece tributário apenas da pesquisa de John D’EmilioD’EMILIO, John. Sexual Politics, Sexual Communities: The Making of a Homosexual Minority in the United States, 1940-1970. Chicago: Chicago University Press, 1983., em Sexual Politics, Sexual Communities: The Making of a Homosexual Minority in the United States, 1940-1970, por sua vez influenciado por E. P. Thompson. Ali, D’Emilio trata da constituição de uma minoria homossexual nos EUA entre 1940 e 1970, focando também os ativismos anteriores a Stonewall (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., pp. 39-40).

Em vários momentos, Green ensaia produzir uma análise do processo de constituição da consciência política, citando algumas fontes, a exemplo da entrevista concedida por Rogéria (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 418), e de alguns dos periódicos artesanais da imprensa gay (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., pp. 253; 297-328; 421-426). Todavia, apenas examina Snob e Gente Gay. Demarca o início desse processo como estabelecido por Peter Fry: o surgimento da identidade “entendida”, mas o localiza em 1966, nas páginas do artesanal Snob (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 306). No entanto, no conjunto, sua interpretação do que encontra nas fontes também resulta vacilante. No seu caso, atribuo mais às dificuldades em construir o necessário distanciamento crítico, dada a sua vinculação ao Somos/SP, que a uma noção subjacente de movimento social que apenas o considera como tal quando ele é dotado de “repertório de ações”. Outro aspecto que me parece problemático é a afirmativa de um evento como sendo o inaugural - também presente em MacRae, como vimos -, sem que fossem realizadas pesquisas que sustentem a alegação. Examinemos em detalhe.

Ainda na Introdução, esclarece que o seu estudo “teve como referência” a sua própria participação “nos acontecimentos em torno da fundação e das atividades do movimento de gays politizados nos anos [19]70” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 38. Sublinhei). Considera que “Na época em que vivi em São Paulo, de 1977 a 1981, meu papel como ativista e líder da ala progressista do movimento, em seus controversos anos de formação [sic], colocou-me no centro do furacão” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 38, sublinhei), ou seja, estabelece como fato histórico a priori que a fundação do “movimento gay” se deu com o Somos/SP, sem pesquisa que o sustente. No que concerne às disputas no interior do grupo, promove uma interpretação autocentrada e obliterativa do contexto sócio-histórico e das visões políticas do outro bloco de ativistas. Como as feministas, essa parcela entendia o pessoal como político, e, tributária do anarquismo e da geração beat, investia numa práxis libertária, solidária e afetuosa, sem hierarquias ou representação de tipo partidária (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., pp. 56-57; Rodrigues, 2012RODRIGUES, Rita de Cassia Colaço. De Daniele a Chrysóstomo: quando travestis, bonecas e homossexuais entram em cena. Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012., passim; Rodrigues, 2006aRODRIGUES, Rita C. C. Dez voltas ao redor do sol: a emergência do homossexual como sujeito político. Exame de qualificação (Doutorado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2006a. Mimeo., passim; Rodrigues, 2006bRODRIGUES, Rita C. C. Poder, gênero, resistência, proteção social e memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b., p. 130).

Na página seguinte, Green declara que o seu estudo “começou por um exame das dinâmicas que levaram ao surgimento de um movimento politizado de gays e lésbicas no fim dos anos 70”. Porém, “logo ficou evidente que qualquer análise do ativismo por parte de homossexuais sob a ditadura militar requeria uma investigação mais ampla da formação de complexas subculturas urbanas encadeadas no transcorrer do século XX” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., pp. 39-40). Em função disso, “em vez de tentar abranger um tópico demasiadamente amplo, optei por concentrar-me nas interações eróticas, românticas e sexuais entre os homens” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 40). Como esclarecido pelo historiador brasilianista numa entrevista em 2021, ele não dispunha das condições ideais para a pesquisa, tendo que dividir o seu tempo com um trabalho paralelo o qual lhe garantisse a subsistência, realidade que, infelizmente, acomete vários pesquisadores também no Brasil, o que se reflete no produto final apresentado11 11 Caso também da autora, e resultante da lógica produtivista implantada nas instituições de pós-graduação brasileiras, ao reduzir o prazo de conclusão dos cursos e o número de bolsas, as quais, além disso, são inacessíveis a quem tenha vínculo empregatício. Entrevista concedida em 2021, aos historiadores Augusta da Silveira e Rhanielly Pereira, em evento da Rede de Historiadorxs LGBTQI (2021). Ali, Green também esclareceu não ter lido E. P. Thompson. .

É no exame dessas dinâmicas realizado por James que se constata a continuidade do seu ir e vir de marcos fundacionais do movimento: se na Introdução constata que o movimento surge no fim dos anos 1970 (Somos/SP), logo em seguida reconhece a necessidade de uma pesquisa mais ampla; na página 314, fixa o início do MHB em 1976, com o surgimento do artesanal Gente Gay, “a primeira de uma onda de novas publicações que marcaram o início de um movimento politizado de gays e lésbicas no país” (sublinhei) - ou seja, o surgimento de Gente Gay, em 1976, integra o início do movimento politizado de gays e lésbicas, implicitando-se que todas as ações e publicações anteriores não seriam políticas.

O ensaísta afirma, depois, que “as fundações para a construção de um movimento gay” foram dadas em 1978, com o Lampião da Esquina e o Grupo Somos/SP:

Como as feministas, os homossexuais aproveitaram o mesmo “espaço de oportunidade” no intuito de lançar as fundações para a construção de um movimento gay. Em 1978, um pequeno grupo de intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo fundou o Lampião da Esquina [...]. Muitos meses depois, um grupo de homens em São Paulo formou o Somos, a primeira12 12 Reitero a dificuldade em se falar de ações inaugurais, sem pesquisa com tal escopo. E, dos periódicos artesanais, Green denota ter pesquisado apenas Snob e Gente Gay. organização pelos direitos gays do país (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 395).

Em nota, Green remete a “diferentes interpretações do movimento gay brasileiro”, entre as quais outros textos dele próprio, o seminal Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan (1986TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986.), e a pesquisa de MacRae (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., pp. 395, 437, nota 14). Repete a leitura de Fry e MacRae, de que as modificações “no comportamento sexual e social anteciparam o surgimento de um movimento gay politizado no Brasil - o segundo ponto principal a ser enfocado neste capítulo” -, e tal surgimento “era também resultante da consolidação de uma nova identidade ‘entendida’” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 396, sublinhei).

Mais adiante, ao tratar da imprensa gay artesanal, afirma a disseminação, “por volta da década de 1970”, de uma nova identidade na “subcultura homossexual no Rio de Janeiro e em São Paulo” (a “entendida”), mas considera que o processo teve início nos anos 1950 e 1960 (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 424). Menciona a importância da imprensa artesanal gay nesse fato, bem como “peças e obras literárias” que discutiam a homossexualidade (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 424). Não obstante, conclui demarcando o “surgimento” em fins da década de 1970 - “este trabalho termina com o surgimento de um movimento brasileiro pelos direitos de gays e lésbicas no fim dos anos 70” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 454) -, destacando, logo em seguida, que “algumas publicações no início dos anos 70 conseguiram escrever sobre o ‘Gay Power’ e sugerir caminhos para a organização política de homossexuais” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 455).

SOPA DE LETRINHAS

Outro clássico da literatura sobre o MHB é o livro de Regina Facchini Sopa de letrinhas? (2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005.), fruto de sua dissertação em antropologia. Graduada em sociologia e política e doutora em ciências sociais, Facchini fez uma “observação participante”, como MacRae. Entre 1997 e 2008, pesquisou o grupo Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor, de Campinas (Corsa), e buscou compreender a dinâmica interna do movimento homossexual (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., pp. 21-7). Na apresentação do seu tema de pesquisa, ela destaca a produção da identidade como questão central “para a compreensão da dinâmica interna de um movimento social”. Concorda com a sua centralidade para o exame dessa dinâmica e registra que é uma questão presente na pesquisa sobre os chamados movimentos alternativos ou libertários, como a de MacRae sobre o homossexual (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., pp. 27; 70-1).

Ela apoia-se em três dos livros analisados acima, a saber, Fry & MacRae (1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983.), MacRae (2018)MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018. e Green (2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000.), embora comente outros mais, como os de Trevisan e o do historiador Cláudio Roberto da Silva, que trabalha com história oral. Mas opta por não enfrentar a questão do processo histórico, as experiências anteriores, ainda que efêmeras, o lema dos movimentos e estudos libertários de que “o pessoal é político”. Limita-se a repetir o mito fundador estabelecido na literatura: “[o] grupo Somos [é] reconhecido como a primeira organização do movimento homossexual brasileiro”; “a fundação do primeiro grupo reconhecido na bibliografia como tendo uma proposta de politização da questão da homossexualidade, o Somos, de São Paulo, ocorreu em 1978” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 27).

Em sua percepção, as ações políticas da geração do Somos/SP não constituiriam um movimento social, dada a inexistência de organização formal que as coordenasse e desse orientação (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 25). No entanto, na medida em que os seus participantes assim se reconhecem e são reconhecidos, adota a nomenclatura:

Entendo que o que se convencionou chamar de “movimento homossexual” é um recorte em uma rede de relações sociais, no qual estão presentes indivíduos e organizações da “sociedade civil”, diferenciáveis pelo fato de compartilharem e atuarem com vistas a um mesmo objetivo geral com relação ao tema da “homossexualidade”: a “emancipação” ou a obtenção de “cidadania plena” para “os (as) homossexuais” ou outras identidades sexuais tomadas como sujeito do movimento. Utilizo a ideia de rede de relações porque não há uma organização formal que reúna e oriente a atuação de todos os grupos, ONGS, associações e ativistas independentes que se reconhecem ou são reconhecidos como parte do MHB e porque, apesar da instabilidade dos grupos e da saída ou morte de vários militantes, esse movimento se manteve e atravessou a marca de vinte anos de existência.” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 25).

Ela define “rede” como uma categoria para o exame e a descrição “de processos sociais que envolvem conexões que transpassam os limites do movimento homossexual propriamente dito, ou seja, cumpre o papel de identificar quais os atores que compõem o campo, ainda que não sejam reconhecidos como militantes” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 72).

Ao proceder ao debate teórico sobre movimento social e ONGs, Facchini menciona a diversidade de classificações e caracterizações presentes nos então vinte anos de estudos nacionais que tentaram dar conta da extrema variedade nas formas da ação coletiva (diversos objetivos, atores, contextos etc.): “movimentos populares, movimentos sociais urbanos, novos movimentos sociais, movimentos sociais contemporâneos, antigos movimentos sociais, movimentos baseados na luta de classes, movimentos alternativos, movimentos libertários, associações civis, ONGs, redes de movimentos sociais, campos ético-políticos” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 47). Ela discorda que, no Brasil, “conceitos e abordagens” europeus tenham sido simplesmente “importados”, entendendo que eles não teriam sido possíveis de aplicação caso inexistissem condições em nossa realidade sociocultural (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 49). Menciona as transformações na teoria com a entrada de diferentes atores sociais na Europa pós-1968, trazendo demandas e conflitos não incluídos, exclusiva ou diretamente, na luta de classes, o que fez desmoronar a diferenciação então prevalente, que via como “movimentos políticos” aqueles organizados em torno de partidos políticos e/ou entidades de classe, e como “pré-políticas” as ações coletivas que não apresentavam esse modelo de intermediação (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 49-50). E faz referência a “mito de origem” apenas para destacar a existência de várias datas na literatura sobre o surgimento de uma nova nomenclatura associativista, as organizações não governamentais (as associações civis sem fins lucrativos, segundo a legislação da época), as ONGs - “anos 1970, 1960 e até 1950, conforme o autor e a abordagem” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 53).

A intelectual recorda que uma das marcas para pontuar as especificidades dos “movimentos alternativos” (aqueles que não guardavam relação necessária com a luta de classe, isto é, o feminista e o homossexual, notadamente) era a noção de que “o pessoal é político” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 57), ideia que funcionou como palavra de ordem, com a qual buscavam demonstrar o quanto as questões tidas como pessoais, privadas (sexualidade, dominação de gênero, estruturação da família heterossexual etc.) na verdade eram estabelecidas e estruturadas política e culturalmente. Entretanto, como já destacado, ela não problematiza o fato de MacRae e Green não aplicarem essa noção em suas análises, embora tal percepção já estivesse incorporada nos estudos sobre esses movimentos sociais.

Logo no início do capítulo “Movimento homossexual: recompondo um histórico”, a autora repete o estabelecido: “O movimento homossexual surgiu, no Brasil, no final dos anos 1970, definindo seu projeto de politização da questão da homossexualidade em contraste com as alternativas presentes ‘no gueto’ e em algumas associações existentes no período anterior ao seu surgimento” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 88). Argumenta que “essas associações, apesar de reunirem homossexuais, possuíam uma atuação qualificada pelos militantes como ‘não politizada’, por estar exclusivamente [sic] voltada para a ‘sociabilidade’. Essas primeiras formas de associação de homossexuais” - prossegue - “especialmente o jornal O Snob [sic] (1963-1969) e a Associação Brasileira de Imprensa Gay (1967-1968), são mencionadas nos trabalhos de MacRae (1985) e Green (1998 e 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000.)” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 88. Sublinhei). Sem problematizar o quanto se trata de uma interpretação marcada pela pertença desses autores aos fatos que examinam. Ao destacar o rico material de pesquisa trazido por James Green, deixa de comentar que boa parte dele havia sido apresentada nos pioneiros trabalhos de Trevisan (1986TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986.) e de Peter Fry (1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115.), aqui já referidos.

Mais adiante sustenta que o processo de constituição da consciência e da identidade políticas nos anos de 1960 e início de 1970 significa “uma movimentação homossexual [...] inclusive com uma disputa entre identidades [...] e o movimento surge apenas no final dos anos 1970” (Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2005., p. 92).

O MOVIMENTO LGBTI NO BRASIL

Embora seus trabalhos não integrem as publicações consideradas clássicas para o estudo do MHB, Sérgio Carrara, graduado em ciências sociais, mestre e doutor em antropologia, sustenta, em artigo recente, que em 2018 foram comemorados os “40 anos do movimento [homossexual] brasileiro e os 50 anos do movimento internacional” (Carrara, 2019CARRARA, Sérgio Luis. O movimento LGBTI no Brasil, reflexões prospectivas. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 3, pp. 450-456, 2019., p. 3). Ele repete que, no Brasil, o movimento começa em 1978, com o Somos/SP, quando se “inicia entre nós a luta contra o preconceito e a discriminação baseados na orientação sexual e na identidade ou expressão de gênero”, e, no mundo, com a revolta de Stonewall (Carrara, 2019CARRARA, Sérgio Luis. O movimento LGBTI no Brasil, reflexões prospectivas. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 3, pp. 450-456, 2019., p. 3. Sublinhei). Tais marcos, que chama de “efemérides”, seriam resultados de “escolhas e convenções sociais [...] que definem [...] o que deve ou não ser considerado ‘político’” (Carrara, 2019CARRARA, Sérgio Luis. O movimento LGBTI no Brasil, reflexões prospectivas. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 3, pp. 450-456, 2019., p. 3).

Carrara também não pesquisou a imprensa gay artesanal, atendo-se aos fundos dos grupos Outra Coisa e Triângulo Rosa, segundo suas referências. Tampouco considerou as ações anteriores, frutos da pesquisa de Luiz Morando (2018MORANDO, Luiz Gonzaga Morando. Vestígios de protoativismo LGBTQIA em Belo Horizonte (1950-1996). REBEH, v. 1, n, 4, pp. 62-76, out.-dez., 2018.), apresentadas em minha tese, cuja banca de defesa ele integrou, em 2012. Leitura, talvez, resultante de sua vinculação geracional - oriundo de família católica praticante, ele relatou o impacto vivido aos 19 anos, quando foi estudante na Unicamp e experimentava as primeiras miradas para “fora do armário”, ao assistir à marcha promovida pelo Somos/SP contra o delegado Wilson Richetti, na São Paulo de 197813 13 Em palestra no Seminário Painel Estadual “Diálogos e Respostas Intersetoriais sobre Violência contra a População LGBTI+: Fortalecendo a Rede de Proteção Social no Rio de Janeiro”, promovido pela Aliança Nacional LGBTI+ (2020; Carrara, 2019). .

CONCLUSÃO

Como demonstrado, prevalece na literatura sobre o Movimento Homossexual Brasileiro a ideia do mito fundador (Grupo Somos/SP). Ela se institui com Peter Fry (1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115.), é repetida por Fry e MacRae (1983)FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983., pelo próprio MacRae (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018. [1986]), e segue sendo repetida nos trabalhos subsequentes. Entretanto, nenhum deles cuidou de investigar o processo de constituição da consciência política/identidade coletiva, tampouco os periódicos artesanais além do Gente Gay e Snob. MacRae e Green esforçam-se por demarcar o Grupo Somos/SP, ao qual são biograficamente vinculados, como mito fundacional, mesmo quando suas fontes teimam em lhes mostrar o contrário - como, por exemplo, o comentário de Green sobre o periódico mencionado por José Fábio Barbosa da Silva (presente numa rede de relações em fins dos anos 1950 em São Paulo): “A publicação refletia um desenvolvimento significativo da organização dessa minoria” (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 325, n. 115 in fine) e “a ideia de se realizar o Primeiro Congresso de Jornalistas Entendidos”, divulgada no Snob em 1967 (Green, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 308). Como, ainda, os registros dos congressos frustrados de homossexuais, durante a ditadura militar, referidos por Edward MacRae. Além da ideia do mito fundacional, trazem subjacente a noção produtivista/utilitarista, intrínseca do capitalismo, que considera componentes do movimento social apenas as ações políticas não abortadas, seja pelo sistema de governo, seja pela força mesma da introjeção da estigmatização desencadeada sobre esses atores. Assim, descuidam do processo histórico tanto quanto do aspecto subjetivo.

Gohn (2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997].), em sua proposta conceitual para movimentos sociais, destaca que se trata de ações políticas construídas por agentes coletivos e articuladas em determinado cenário, criando uma força social. Essas ações constroem uma identidade coletiva e se estruturam por meio de repertórios que se instauram a partir de temas e questões conflitivas. Ela não afirma ou propõe que apenas a partir da institucionalização, do momento em que já dispõem de repertórios de ação e agenda bem definida, quando a identidade coletiva já está consolidada, é que essas ações devam ser consideradas enquanto tal. Embora sua proposição não considere expressamente o esforço adicional colocado para atores marcados pela estigmatização, sua formulação e a metodologia proposta deixam clara a importância da dimensão subjetiva na definição da categoria. Baseando-se em Moore Jr, Castoriadis, Benedict e Thompson, além de destacar a presença do aspecto subjetivo ao longo do processo histórico de luta, Gohn ressalta que a totalidade desse processo é parte integrante de um movimento social.

Assim, apoiando-me na metodologia proposta por Gohn e na de Certeau, aplicada para o maio de 1968 francês (1995CERTEAU, Michel de. La toma de la palabra y otros escritos políticos. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, 1995.), e na pesquisa de Thompson, proponho uma metodologia de análise que: (1) contemple o processo histórico; (2) inclua a dimensão subjetiva e, nela, examine o esforço para superar a inferiorização introjetada (Thompson, 2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 16; Rodrigues, 2006bRODRIGUES, Rita C. C. Poder, gênero, resistência, proteção social e memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b.; Colaço-Rodrigues, 2023COLAÇO-RODRIGUES, Rita de Cássia. Mitos, problemas e sinais: a imprensa gay, a provisoriedade da história e o ativismo antes de 1978. SciELO Preprints, 2023.); (3) considere as etapas e os desafios da construção da consciência política, da identidade coletiva, do discurso, da agenda de demandas, do repertório de ações e da força social (Certeau, 1995CERTEAU, Michel de. La toma de la palabra y otros escritos políticos. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, 1995.; Rodrigues, 2006bRODRIGUES, Rita C. C. Poder, gênero, resistência, proteção social e memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b.), de todo o processo histórico, enfim, com suas idas e vindas, incertezas, contradições, como “parte constitutiva da formação de um movimento social” (Gohn, 2008GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2008 [1997]., p. 250; Colaço-Rodrigues, 2023COLAÇO-RODRIGUES, Rita de Cássia. Mitos, problemas e sinais: a imprensa gay, a provisoriedade da história e o ativismo antes de 1978. SciELO Preprints, 2023.); e, finalmente, (4) integre as ações “fracassadas” ao processo, como ensinam Becker e Thompson (Rodrigues, 2006bRODRIGUES, Rita C. C. Poder, gênero, resistência, proteção social e memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b.).

Se a construção da identidade da classe trabalhadora (experiência e consciência) precisou, primeiro, se haver com a ideia introjetada de que os operários não teriam a prerrogativa de demandar seus direitos (Thompson, 2004THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 16), por que a constituição da consciência política e da identidade coletiva de atores historicamente marcados como doentes, imorais, criminosos e pecadores ocorreria num tempo curto, com um único evento e/ou supostamente por meio da incorporação automática de uma dada experiência estadunidense?

REFERÊNCIAS

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    » https://aliancalgbti.org.br/2020/09/10/seminario-painel-estadual-dialogos-e-respostas-intersetoriais-sobre-violencia-contra-a-populacao-lgbti-fortalecendo-a-rede-de-protecao-social-no-rio-de-janeiro/
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  • TRONCA, Italo A. (Org.). Foucault vivo. Campinas: Pontes, 1987.
  • TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986.
  • 1
    Principiei esta pesquisa em 2018. Ela gerou dois artigos e minicursos vários. Agradeço aos colegas que leram, socializaram fontes e artigos - Carlos Humberto Ferreira Silva-Júnior, Luiz Morando, Remon Bortollozi, Santiago Joaquín Insausti, Thiago Soliva, Vinícius Ferreira. Sou, porém, a única responsável pelo seu conteúdo.
  • 2
    O mesmo ocorreu com o movimento internacional. Stonewall foi considerada deflagradora do movimento no mundo, invisibilizando-se todo o ativismo anterior, tanto nos EUA como durante a Confederação da Alemanha do Norte.
  • 3
    Em 1983 foram listados 25 grupos. Entre eles, três no Pará, um no DF, um em MG, um na PB e três em PE (Colaço, 1984COLAÇO, Rita. Uma conversa informal sobre homossexualismo. Rio de Janeiro: R. Colaço, 1984., p. 64).
  • 4
    Aspectos trabalhados em Mitos, problemas e sinais: a imprensa gay, a provisoriedade da história e o ativismo antes de 1978 (2023).
  • 5
    Agradeço a Thiago Soliva por me recordar a importância dessa publicação para a formação do campo.
  • 6
    Ele também registra que as ações de Ulrichs e Hirschfeld eram tidas como “os primórdios dos movimentos de liberação homossexual de nossos dias”. No entanto, afirma que “a instituição dos movimentos de libertação homossexual nos Estados Unidos e na Europa [se deu] no final de 1960”. Em relação ao Brasil, fala de “movimentos” no plural, e, na página 110, no singular. Na 108, se posiciona contrário à ideia difusionista, e registra que “grande parte das atividades desses movimentos [no Brasil] concentrou-se em discussões internas sobre a ‘identidade homossexual’ nos chamados ‘grupos de identificação’”, isto é, no enfrentamento da estigmatização introjetada (1982, pp. 104-6, 108, 110).
  • 7
    Uma dessas tentativas ocorreu em algum momento de 1976, e teria durado cerca de três semanas; a outra foi “no fim de 1976”, quando “entre cinco e dez” participantes, “durante certo tempo”, estudaram “um artigo sobre machismo”, no entanto, “depois de algumas semanas, o grupo se dissolveu”. O próprio Trevisan, em Devassos no paraíso (1986TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986.), nas entrevistas que concede e, recentemente, no curso virtual ministrado, afirma que teria sido apenas uma experiência antes do Somos. Ele também valoriza apenas as “iniciativas de sucesso”. Nem MacRae, nem Trevisan mencionam quantas pessoas participaram dessas reuniões e continuaram depois, no Somos/SP. Essa informação obtive de Trevisan, por correspondência eletrônica, durante o doutoramento. Ali, embora persistisse na desqualificação de ações efêmeras e de parcos ou nenhum resultado público, Trevisan falou sobre dois personagens que integraram ambos os grupos. Apenas um retornou a minha tentativa de contato: o médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira, de importância singular na política de enfrentamento ao HIV anos depois, inclusive no âmbito na ONU (Rodrigues, 2012RODRIGUES, Rita de Cassia Colaço. De Daniele a Chrysóstomo: quando travestis, bonecas e homossexuais entram em cena. Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012., p. 162).
  • 8
    “Afirmação da identidade homossexual: seus períodos e sua importância”, originalmente publicado em Tronca (1987)TRONCA, Italo A. (Org.). Foucault vivo. Campinas: Pontes, 1987. e republicado em MacRae (2018MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade - Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018., p. 67).
  • 9
    Examino estes aspectos em detalhes no artigo inédito já referido.
  • 10
    Dificuldades destacadas no manifesto do Grupo Somos/SP, publicado no jornal Lampião da Esquina (1979LAMPIÃO DA ESQUINA, n. 12, p. 2, maio 1979., p. 2), as quais foram mencionadas por Fry em 1982FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. pp. 87-115., como já citado.
  • 11
    Caso também da autora, e resultante da lógica produtivista implantada nas instituições de pós-graduação brasileiras, ao reduzir o prazo de conclusão dos cursos e o número de bolsas, as quais, além disso, são inacessíveis a quem tenha vínculo empregatício. Entrevista concedida em 2021, aos historiadores Augusta da Silveira e Rhanielly Pereira, em evento da Rede de Historiadorxs LGBTQI (2021)REDE HISTORIADORXS LGBTQI. Memórias pioneiras. James N. Green. 24 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/EHHv0TBtAK8 . Acesso em: 24 maio 2021.
    https://youtu.be/EHHv0TBtAK8...
    . Ali, Green também esclareceu não ter lido E. P. Thompson.
  • 12
    Reitero a dificuldade em se falar de ações inaugurais, sem pesquisa com tal escopo. E, dos periódicos artesanais, Green denota ter pesquisado apenas Snob e Gente Gay.
  • 13
    Em palestra no Seminário Painel Estadual “Diálogos e Respostas Intersetoriais sobre Violência contra a População LGBTI+: Fortalecendo a Rede de Proteção Social no Rio de Janeiro”, promovido pela Aliança Nacional LGBTI+ (2020ALIANÇA NACIONAL LGBTI+. Seminário Painel Estadual Diálogos e Respostas Intersetoriais sobre Violência contra a População LGBTI+: Fortalecendo a Rede de Proteção Social no Rio de Janeiro (atividade para inscritos, via Google Meet). 25 set. 2020. Disponível em: Disponível em: https://aliancalgbti.org.br/2020/09/10/seminario-painel-estadual-dialogos-e-respostas-intersetoriais-sobre-violencia-contra-a-populacao-lgbti-fortalecendo-a-rede-de-protecao-social-no-rio-de-janeiro/ . Disponível em: 20 ago. 2022.
    https://aliancalgbti.org.br/2020/09/10/s...
    ; Carrara, 2019CARRARA, Sérgio Luis. O movimento LGBTI no Brasil, reflexões prospectivas. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 3, pp. 450-456, 2019.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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