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A independência do Brasil por meio de Leopoldina, Maria, Pedro e Thomas

The Independence of Brazil through Leopoldina, Maria, Pedro e Thomas

PRIORE, Mary Del. . A viajante inglesa, o senhor dos mares e o imperador na independência do Brasil. São Paulo: Vestígio, 2022.

Mary Del Priore é o tipo de autora que, como se diz, dispensa apresentações. Publicou mais de 50 livros, tem carreira acadêmica intensa e é consultora técnica de documentários e produções da televisão brasileira. Enfim, é defensora, na prática, de uma história menos academicista, e, portanto, mais palatável para o grande público. Uma das historiadoras mais conhecidas hoje no país, tem publicado livros numa proposta histórico-romanceada que, se por um lado suscita críticas, por outro desperta admiração e atrai leitores. Sua mais recente publicação, aqui resenhada, não é uma exceção.

Logo no sumário é possível perceber que A viajante inglesa, o senhor dos mares e o imperador na independência do Brasil se trata de uma discussão baseada em pessoas, não em subdivisões de temáticas acadêmicas. O livro traz 17 capítulos, todos com os nomes de Leopoldina, Maria, Pedro e/ou Thomas. A primeira foi imperatriz do Brasil, esposa de Pedro, ou melhor, D. Pedro I. Maria foi uma britânica que viajou tanto acompanhada quanto sozinha por distâncias incomuns para uma mulher no início do século XIX e permaneceu no Brasil durante as lutas pela independência. Foi onde conheceu o lendário almirante Thomas Cochrane, nobre escocês que, tendo relações problemáticas com a Marinha Britânica, acabou participando das lutas pela independência de alguns países latino-americanos, inclusive do Brasil.

A independência do Brasil é, assim, tratada de acordo com a ótica pessoal desses estrangeiros. O primeiro capítulo, “Maria”, fala sobre sua chegada ao Recife e a Salvador, em meio aos conflitos pela libertação em relação a Portugal. “Pedro” é um resumo das articulações do filho de Dom João VI para a independência do Brasil e traz informações interessantes, aproximando o leitor de um cotidiano não comum em livros sobre temas tão densos. Os capítulos 3 e 4 na verdade deveriam se tornar apenas um, até porque têm o mesmo nome, “Thomas”, de modo que serão tratados conjuntamente. Passa-se várias páginas sem entender qual a relação deste almirante com a independência do Brasil, tema do livro, debruçando-se apenas em sua vida e em suas aventuras. Ademais, em alguns trechos de descrição geográfica o leitor fica um pouco perdido na espacialidade e na dinâmica dos fatos.

Em “Pedro e Maria” vemos a instabilidade do Brasil, cujos grupos políticos se enfrentavam em torno da independência em relação a Portugal, e a viagem de Maria rumo ao Chile. “Maria e Thomas” é sobre a viuvez da primeira em Valparaíso e suas expectativas em relação ao seu ídolo e conterrâneo, que divide com ela o título do capítulo.

Chegando em “Pedro e Thomas”, temos a apresentação de um imperador próximo até demais da população, de modo que assustaria os estrangeiros com sua falta de distinção, mas que estava totalmente comprometido com a independência do Brasil. Também é mencionada a postura dos soldados da Marinha, e como o imperador e o almirante estrangeiro lidavam com eles.

“Maria e Leopoldina” começa com as angústias da primeira sobre a partida de Thomas para comandar as forças brasileiras contra a resistência portuguesa na Bahia. Apesar do nome da Imperatriz no título, a mesma aparece pouco e se mostra em toda sua subjetividade, seus conflitos pessoais e sua melancolia. É uma sessão belíssima do livro, quando vemos a história não apenas por meio de fatos, mas de sentimentos. A inglesa se vê só, viúva e estrangeira num país que, apesar da fama de hospitaleiro, se lhe mostra arredio, como deve ter sido, de fato, para muitas mulheres sozinhas naquele tempo. Fica claro o preço que uma mulher, dois séculos atrás, precisou pagar por não viver sua vida de acordo com aquilo que a sociedade exigia dela, submissa às vontades e conveniências alheias. Nem a sua origem inglesa serviu para atenuar esta carga em localidades que estavam em ebulição por novos tempos, na América, e onde seus conterrâneos, homens, eram tão respeitados.

Com uma narrativa bastante envolvente, colhendo boa parte das informações do diário do capelão do navio de guerra Pedro I, o frei Manuel da Paixão e Dores, “Thomas e a Bahia” narra as aventuras de Cochrane, idolatrado pelo religioso. Nesta seção do livro, definitivamente, se soube dosar história, aventura, boa escrita e criticidade. Poderia ter citações menos longas (algumas ocupam parágrafos inteiros!), e elas certamente seriam melhor aproveitadas se explicadas na linguagem da autora, já que se tratam por vezes de descrições de operações náuticas pouco inteligíveis para um leitor do século XXI.

Em “Maria, Pedro e Leopoldina” vemos a melancolia da britânica por conta de sua viuvez abrir espaço paulatinamente à animação e às conjecturas para se tornar governanta da família imperial brasileira, enquanto continua tentando acompanhar, ainda que à distância, as façanhas de Cochrane. “Thomas e o Maranhão” é uma sessão construída na mais perfeita narrativa para instigar o leitor, contando suas façanhas sem abrir mão de cuidadosa criticidade sobre a participação inglesa na economia e na política brasileiras. Explicita-se como ele foi importante para o movimento de independência no Maranhão, liderando a luta no mar, mas fica claro que não foi o único protagonista: as lutas aconteceram sobretudo por terra, encabeçadas pelos brasileiros das mais diversas origens étnicas.

O capítulo seguinte desvela como a corrupção, a velhacaria e o oportunismo estão entranhados na origem do Brasil como país independente. Em “Thomas, Maria e Leopoldina” é possível perceber como toda sorte de artifícios foram usados para se construir politicamente o país, e o seu principal governante é apresentado como um homem infiel não só à sua esposa estrangeira. “Thomas e Maria” é sobre a participação de ambos para conter o movimento republicano, de resistência ao governo do Rio de Janeiro, em Pernambuco. O capítulo termina com algumas insinuações que poderiam ser melhor explicadas, como a necessidade que Thomas teria sentido de deixar claro, junto à comunidade britânica, que suas relações com Maria não eram de amizade. Ele teria medo de que a fama de Maria poderia prejudicar sua reputação, mas a que exatamente se refere? Naturalmente, é dito, ao longo do texto, que Maria não gozava de amizades junto a tal comunidade por ser mulher, viúva, sozinha, e por não ter um perfil adequado, ou melhor, não de acordo com os ditames da época para uma senhora. Desse modo, é insinuado que Thomas trabalhou para não ser associado a ela ou, de maneira mais clara, não ser tomado como seu amante. Tais insinuações careceriam de uma abordagem menos rasa.

“Maria e Leopoldina” trata do retorno de Maria ao Rio de Janeiro, depois de ter passado quase um ano na Inglaterra, e de sua adaptação à rotina da família real e às intrigas do Palácio de São Cristóvão, quando assume o cargo de governanta da princesa Maria da Glória. É narrada a sua breve estadia e as circunstâncias do seu pedido de demissão ao imperador. Digna de nota é a habilidade narrativa da autora que, no final do capítulo, relaciona a trama cotidiana ao processo da independência do Brasil, relacionando a aparente indisposição do imperador em relação a Maria com a política externa em execução, configurada no triângulo Portugal - Inglaterra - Brasil.

Em mais um capítulo intitulado com o nome do almirante, “Thomas”, se vê a continuação do suporte dado por este britânico no processo de pacificação das províncias que resistiam ao processo de consolidação da independência do país. São descritas as suas verdadeiras grandes batalhas, a saber, receber o que julgava lhe ser de direito pelos serviços prestados ao império, as chamadas presas de guerra. São retomadas também as discussões sobre suas lutas e tramas políticas no Maranhão, bem como suas tentativas frustradas de pedir demissão de suas obrigações junto ao império. Foi nomeado marquês do Maranhão, e a autora levanta a possibilidade de que seu comportamento nesta província tenha relação com o fato de se sentir, legitimamente, seu conquistador, dono do Maranhão, como o seria um marquês na Europa. Tendo recebido apenas parte do que lhe era devido, voltou para a Europa em 1825. É atribuída a Thomas e alguns outros marinheiros britânicos a unidade do país e a adesão das províncias do Norte ao Brasil independente. Priore explica a pouca referência a eles nos estudos sobre a independência, devido a um anti-britanismo que teria se desenvolvido em meados do século XIX, mas sequer especula o porquê. A principal causa, entretanto, é sabida: a pressão britânica pela emancipação dos escravizados, como nos lembra Chalhoub (2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).

Em “Maria” é latente uma tentativa de fechamento narrativo de seu ciclo no Brasil, discutindo a sua, justificada ou não, má fama, tanto entre ingleses quanto portugueses e brasileiros. Muito habilmente não se chega a conclusões, deixando em aberto a dúvida sobre se Maria era arrogante, esperta, agia em busca de reconhecimento, era simplesmente uma mulher tentando ser mulher numa terra dominada por homens, em meio a guerras e intrigas, ou se ela era, na verdade, um pouco de tudo isso. A sessão que fecha a obra, “Pedro, Maria e Thomas”, consiste numa enxurrada de informações sobre Pedro e Maria depois de deixarem o Brasil. Vai da consolidação da independência direto para um Pedro já lutando pelos direitos da filha ao trono português. As últimas considerações sobre Maria, por outro lado, são bastante ricas e o livro é primorosamente fechado.

Esta publicação é uma ótima forma de se aprender sobre a Independência do Brasil de uma maneira leve, pessoal, deixando claro que é uma versão, ou seja, sem pretensões de alcançar a verdade absoluta. A menção aos estrangeiros como eixo narrativo é uma interessante escolha metodológica para dirimir a ideia de que se está discutindo um tema longe de ser inédito, como o é a independência do Brasil. Na verdade, a participação estrangeira nas lutas pela independência realmente é um tema pouco abordado pela historiografia, e este livro tem o mérito de suscitar isso. O alemão Carl Seidler, por exemplo, permaneceu no Brasil na mesma época de Cochrane, também participou de batalhas e tramas políticas, e igualmente voltou para sua terra natal desiludido e frustrado nas suas pretensões de fazer fama e fortuna na América.

Na época da independência, se tornou comum a vinda de soldados europeus para lutarem sob o comando de D. Pedro I. Isso pode ter sido propiciado sobretudo por conta do excedente de soldados ociosos, provocado pelo fim das guerras napoleônicas em 1815. Além disso, por volta desta época e nas décadas seguintes, muitos europeus procuraram o Brasil como uma possibilidade de aventura e enriquecimento, mas a frustração não foi algo incomum. Este não foi um privilégio apenas de Cochrane. Fosse no comércio, na indústria ou nas batalhas, eles não saiam de sua terra natal com o propósito de prestarem um serviço nos jovens países americanos senão na esperança de fazerem fortuna, e seus escritos - correspondências e publicações quando voltavam para sua terra natal - certamente refletem o rancor de quem não teve suas expectativas satisfeitas.

A bibliografia, apesar de impecável, não menciona uma publicação do próprio Cochrane (1859) sobre sua participação nas lutas pela independência do Brasil, publicada pela editora do Senado Federal em 2003. Ainda sobre as referências, vale ressaltar que, devido ao formato do livro, espécie de crônica, por vezes o leitor pode acabar ficando curioso a respeito de onde foram tiradas algumas informações cruciais ou deveras específicas que abundam no texto. Outro problema decorrente do mesmo fato é que nem sempre fica claro se o que está sendo colocado é discurso indireto da opinião dos estrangeiros protagonistas, ou considerações de Mary Del Priore.

A narrativa é leve, mas apresenta trechos que dão a impressão de uma revisão ligeira, com algumas ideias e frases que, simplesmente, não conversam entre si. Os maiores problemas, entretanto, são mais remarcados no primeiro terço do livro que, uma vez vencido, o leitor terá uma maravilhosa experiência de leitura. Na ânsia de mesclar fatos históricos com depoimentos pessoais - e talvez por uma tentativa de contextualização que se torna excessiva -, sobretudo nos primeiros capítulos, se constrói, aqui e ali, uma narrativa com frases soltas. Na página 48, por exemplo, ao se discutir a ida da família Cochrane para o Chile, se lê: “Em suas memórias Kitty mencionou a intenção de passar pela ilha de Santa Helena e libertar Napoleão”, sem maiores explicações. A autora segue ainda mencionando o suposto desejo de o antigo imperador francês se estabelecer na América Latina e a sua morte. Depois, sem cerimônia, volta para a viagem da família do almirante. Resumindo, são informações desnecessárias que só servem para quebrar a narrativa.

Os primeiros capítulos também são os mais carentes de espírito crítico, e neles existem impressões dos estrangeiros colocadas como se fossem verdades, como na página 55, quando Priore, ao mencionar os comentários de Maria Graham sobre os negros no Rio de Janeiro, se exime de problematizar o tema da escravidão e apenas transpõe a posição da estrangeira, de modo que facilmente dará a um leitor leigo uma visão distorcida da condição servil no Brasil. O eurocentrismo de Maria é também colocado de maneira acrítica em alguns momentos, reproduzindo-se de maneira direta algumas observações duvidosas ou estereotipadas. Às vezes a narrativa se torna algo como as desventuras da mocinha e do herói britânico, plainando sobre o caos latino. Da mesma forma, as referências à pirataria são frequentes, mas não se coloca isso como um contraponto ao excessivo moralismo britânico, tão enaltecido pelo pirata-almirante Cochrane. Perde-se, assim, uma excelente oportunidade de problematizar a superioridade com a qual os britânicos falavam de si e se colocavam frente à população local.

É perceptível uma mudança na narrativa da obra a partir do segundo terço, quando esta ganha ritmo e consistência, tornando-se uma leitura agradável que, de fato, instrui enquanto entretém. Quase todos os problemas acima mencionados praticamente desaparecem quando se adentra mais na leitura da obra, que se torna agradabilíssima.

REFERÊNCIAS

  • CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • COCHRANE, Thomas John. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
  • PRIORE, Mary Del. A viajante inglesa, o senhor dos mares e o imperador na independência do Brasil. São Paulo: Vestígio, 2022.
  • SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil: eleições sob Dom Pedro I, dissolução do Legislativo, que redundou no destino das tropas estrangeiras e das colônias alemãs no Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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