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Interesses transatlânticos: acusações, escândalo e negócios (i)lícitos e (i)legítimos - São Paulo, Goiás e Lisboa (1721-1733)

Transatlantic Interests: Accusations, Scandal and (Un)lawful and (Il)legitimate Business - São Paulo, Goiás and Lisbon (1721-1733)

RESUMO

O objetivo do artigo é compor uma narrativa das denúncias e acusações trocadas entre o governador de São Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, e o clã de Bartolomeu Bueno da Silva, em torno da legitimidade das mercês afiançadas pelo rei de Portugal em caso de descoberta de jazidas de ouro em Goiás. Atentos aos ruídos que circulam por uma rede de relacionamentos interpessoais, almejam acessar direitos e benefícios no disputado campo político do império. Pretende-se igualmente pôr em relevo as intenções dos protagonistas por trás da guerra de narrativas: ambos esperam legitimar seus argumentos e fragilizar a posição do oponente. Alimentando intrigas e atraindo o monarca para o epicentro das disputas, as acusações de abusos contra autoridades desvelam a natureza das relações tecidas entre os agentes coloniais - experiências balizadas pela posição social dos envolvidos no tabuleiro das disputas na América portuguesa.

Palavras-chave:
Práticas Discursivas; Interesses; Escândalo; América Portuguesa

ABSTRACT

The aim of this article is to elaborate a narrative of the complaints and accusations exchanged between the governor of São Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, and the clan of Bartolomeu Bueno da Silva, around the legitimacy of the advantages promised by the King of Portugal in case of discovery of gold deposits in Goiás. Attentive to the noises that circulate through a network of interpersonal relationships, they hope to access rights and benefits in the disputed political field of the empire. The article also aims to highlight the intentions of the protagonists behind the war of narratives: both hope to legitimize their arguments and weaken the position of the opponent. Fueling intrigue and luring the monarch to the epicenter of the disputes, accusations of abuses against authorities reveal the nature of the relationships woven between colonial agents - experiences marked by the social position of those involved in the disputes in Portuguese America.

Keywords:
Discursive Practices; Interests; Scandal; Portuguese America

PODERES FRATURADOS - MAXIMIZANDO NEGÓCIOS (I)LÍCITOS E (I)LEGÍTIMOS

O reinado de João V (1689-1750), espelhando o absolutismo francês de Luís XIV, inaugura uma era de prestígio internacional em Portugal. Além das taxas suplementares sobre atividades comerciais, o ouro proveniente do Brasil fazia de Lisboa uma das cidades mais ricas da Europa (Boxer, 2011BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 164). À época, o aparecimento de um espaço público de discussões coincide com as linhas gerais de um Iluminismo europeu que não poupou os lugares governados por Portugal (Furtado, 2014FURTADO, Júnia Ferreira. Dom João V e a década de 1720: novas perspectivas na ordenação do espaço mundial e novas práticas letradas. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Brasil Colonial - 1720-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira : 2014. pp. 61-110., pp. 64-65). Na América, a primeira corrida do ouro no Ocidente teria como desenlace a amarração dos enclaves coloniais - que, como ilhas equidistantes, tracejavam a presença portuguesa no continente - e uma explosão demográfica, tanto no litoral quanto no sertão. Redesenhadas a partir do tráfico atlântico de pessoas, da escravização e do aniquilamento de populações em África e América, e de uma procura desenfreada por riquezas naturais, as estratégias de ocupação do território e a superioridade bélica europeia conferem novos contornos aos projetos de Lisboa.

Assim, nas primeiras décadas do século XVIII o cerco se aperta na América. Práticas como abuso de autoridade, sonegação fiscal e contrabando, falsificação de documentos, violação de correspondências e enriquecimento ilícito compõem um repertório de denúncias que azeitam as contendas entre os súditos. De fato, anunciam uma política proativa da coroa que desbanca outros poderes coloniais. À época, as acusações trocadas entre o governador de São Paulo e os descobridores de jazidas de ouro em Goiás são reflexos de uma reestruturação institucional que outorgaria a João V um reinado inspirado no absolutismo de Luís XIV.

Na geopolítica do Atlântico, os excessos cometidos pelos oficiais da coroa e o acirramento das contendas entre os súditos parecem proporcionais à publicidade das intrigas. Convertidas em escândalo, seus enredos provocam reações que se replicam nos negócios e nos circuitos mercantis coloniais. Frente à dimensão do fenômeno, é impossível negar a pouca eficácia dos mecanismos de repressão à disposição do monarca, o que permite que os delitos anunciados se acumulem ante as garras poderosas, mas limitadas, da monarquia.

Deste modo, os impulsos dos súditos em direção à evasão fiscal como estratégia de fuga das pressões impositivas de Lisboa, os abusos ligados à extorsão perpetrada pelos próprios representantes do monarca e os desvios de fundos operados pelos mesmos agentes responsáveis por sua gestão apontam para uma considerável autonomia dos vassalos. Além disso, inseridos em um conjunto de obrigações sociais e culturais, convivem com um sistema de governo complexo cujas brechas os livra, ainda que parcialmente, dos laços autoritários da coroa.

Por isso mesmo, como afirma Michel Bertrand (2013BERTRAND, Michel. Penser la corruption. e-Spania: Révue interdisciplinaire d’étude hispaniques médiévales et modernes [En ligne], Paris, n. 16, déc. 2013.) a respeito da administração das finanças no império espanhol, os objetivos do poder estão centrados na redução dos danos inerentes à natureza do exercício de governar. Nos termos do autor, é imperioso “transigir para reduzir as perdas, evitando confrontos que teriam como decorrência a desestabilização do corpo social”1 1 No original: “transiger pour réduire les pertes tout en évitant des affrontementes qui pouvaient être déstabilisants pour le corps social”. .

Na perspectiva do autor, os abusos, desvios e fraudes de autoria dos agentes da coroa podem ser interpretados como uma “prática social” que toma a forma de uma “gramática das relações sociais” - especialmente se levarmos em conta a presença da nobreza em postos estratégicos do Estado, sempre autorizada a atuar, de forma lícita ou ilícita, no mundo dos negócios coloniais.

Por isso, não raro os negócios do Brasil estão no epicentro das contrariedades entre os desafetos que recorrem ao monarca em busca de justiça. Não obstante, esta faculdade discricionária do poder soberano, baseada numa lógica simbólica que oscila entre o justo e o injusto, indica ora os limites para a aplicação das normas, ora uma larga tolerância às suas transgressões.

Nos limites deste trabalho, não se trata, no entanto, de privilegiar a legislação, pressupondo os protagonistas como sujeitos de direitos naturais, inseridos numa espécie de arcabouço social que condiciona seus discursos e suas ações (Foucault, 2019FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2019.). Neste aspecto, é preferível conceber o direito e as normas ou o próprio aparato judiciário enquanto instituições que não se reduzem a blocos ou conjuntos monolíticos - a expressão é de Serge Gruzinski (2007GRUZINSKI, Serge. El pensamiento mestizo: cultura amerindia y civilización del Renacimiento. Barcelona: Paidós, 2007. , p. 56) -, mas como emanadas das próprias relações que os constituem. Essa perspectiva delineia o próprio Estado como um emaranhado de relações assimétricas por onde fluem, fragmentados, os diversos poderes. Desconfiamos, portanto, no âmbito deste estudo, da crença em instituições como totalidades estáveis e coerentes, capazes de determinar os comportamentos dos atores nos territórios portugueses de colonização.

Da mesma forma, à moda de Foucault (2019FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2019.), antes de tomar a coroa ou o rei de Portugal como ponto central de onde derivam todas as formas de poder, é preferível vislumbrar as relações de poder em sua multiplicidade, como feixes de forças que se cruzam, se anulam ou potencializam seus fluxos. Imersos numa economia do dom ou sistema de mercês (Hespanha, 1998MATTOSO, José (Dir.); HESPANHA, António Manuel (Coords.). História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Vol. 5. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.), não se pretende tomar como centro do estudo apenas as expectativas dos agentes relativas às “recompensas pelas vias institucionais”, sob a forma de cargos, títulos honoríficos ou vantagens comerciais (Romeiro, 2017ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: Uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica , 2017., pp. 49-50). Mais que isso, o que se quer é pôr em relevo os interesses 2 2 Distanciando-se das interpretações economicistas e utilitaristas, Pierre Bourdieu adota a expressão illusio em substituição à noção de interesse, para se referir a “um interesse socialmente constituído e que só existe em relação a determinado espaço social”, caracterizado por disputas entre seus participantes em torno de determinados capitais. A expressão interesses neste ensaio é análoga ao termo illusio no sentido que lhe empresta Bourdieu (Aguiar, 2017, p. 231). de sujeitos que, partir dos espaços sociais que ocupam, se esforçam para maximizar benefícios e lucros. Se almejam as recompensas inscritas no sistema de mercês, buscam, ao mesmo tempo, outros canais de enriquecimento - lícito ou ilícito. Mesmo porque as mercês que escapam das mãos do rei não são gratuidades que premiam os súditos. Ao contrário, participam de uma racionalidade específica, ocorrem no domínio de uma economia de trocas e implicam na prestação de serviços ao monarca na forma de ativos e passivos, em mercados instáveis e inseguros.

Aliás, a própria noção do que é lícito ou ilícito deve ser matizada. Não é difícil notar que a natureza do Estado e as práticas discursivas e não-discursivas que emanam dos atores expressam atributos e vocabulários que se ajeitam no cerne de uma cultura política muito peculiar. Nesta direção, vale considerar a advertência de Anne Dubet (2010DUBET, Anne. Du bon maniement de l’argent du roi en Espagne au XVIIIe siècle. Les enseignements d’un procès pour fraude. Cahiers de Narratologie: Analyse e théorie narratives [En ligne], Nice, n. 18, pp. 1-24, 2010. ) a propósito de um estudo sobre o caso do ministro Verdes Montenegro no mundo ibérico do século XVIII: sob o manto poderoso do monarca, as finanças reais não devem ser vistas como finanças públicas. Além disso, as autoridades da coroa quase sempre encontram meios disponíveis para obter legitimamente vantagens e benefícios pessoais por meio dos postos que ocupam via nomeação régia. Contudo - e aqui vai um comentário de Bertrand (2013BERTRAND, Michel. Penser la corruption. e-Spania: Révue interdisciplinaire d’étude hispaniques médiévales et modernes [En ligne], Paris, n. 16, déc. 2013.) a respeito da afirmação de Dubet -, “há um momento a partir do qual estas vantagens ‘aceitáveis’ podem parecer insuportáveis aos súditos que passam, então, a denunciá-las”3 3 No original: “Par contre, il existe bien un moment où ces profits ‘acceptables’ peuvent apparaître insupportables, notamment aux sujets du roi qui passent alors à la dénonciation”. .

Além do mais, os argumentos que emergem dos discursos dos atores não parecem determinados objetivamente enquanto expressões de uma estrutura estatal e sua correspondente hierarquia. Como refere Simona Cerutti (2008CERUTTI, Simona. Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire social et histoire culturelle. Tracés: Revue de Sciences humaines [en ligne], n. 15, pp. 147-168, 2008., p. 154) a respeito das fontes judiciárias que analisou, os contratos e acordos, bem como os conflitos deles derivados - semelhantemente ao objeto deste estudo - “não devem ser lidos como simples reprodução das relações de dominação”4 4 No original: “Les révoltes et les émeutes, mais aussi les contrats, les ventes et les conflits qui remplissaient les sources judiciaires ne pouvaient pas être lus en tant que simples reproductions des relations de dominations”. , pois exprimem, antes de tudo, reivindicações e intenções conforme as posições políticas e as identidades sociais dos indivíduos. Do mesmo modo, assim como as ações, as fontes de pesquisa - como é o caso deste estudo - são, em boa medida, documentos que reivindicam alguma coisa, ainda que não a descrevam. São processos, petições, ofícios e cartas que constituem demandas de caráter jurídico, nos quais as narrativas funcionam como operações de construção de legitimidade.

Ainda conforme Cerutti (2008CERUTTI, Simona. Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire social et histoire culturelle. Tracés: Revue de Sciences humaines [en ligne], n. 15, pp. 147-168, 2008.), as ações anunciam reivindicações de direitos e demandas de legitimação desses direitos. São estratégias que visam legitimar direitos por meio de discursos associados aos interesses dos protagonistas. De tal modo que, neste universo jurídico-político, a atuação dos sujeitos tem o poder de atribuir direitos, modificando as próprias condições jurídicas. Neste sentido, as ações não se confundem com os edifícios sociais, nem são simplesmente os reflexos ou espelhos de normas externas, pois incorporam uma atividade interpretativa das possibilidades de realização e de legitimação de suas demandas. Para Cerutti (2008CERUTTI, Simona. Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire social et histoire culturelle. Tracés: Revue de Sciences humaines [en ligne], n. 15, pp. 147-168, 2008., p. 156), “O mundo social - ou seja, o mundo das ações - é um mundo interpretativo. Não se separa ação e interpretação”5 5 No original: “Le monde social - c’est-à-dire le monde des actions - est un monde interprétatif. Action et interprétation ne peuvent pas être séparées”. . Neste processo, a atividade de legitimação requer dos atores a mobilização de conhecimentos e interpretações e, inclusive, a capacidade de manipulá-los a seu favor.

Endereçadas ao monarca e recepcionadas no Conselho Ultramarino em Lisboa, o que os indivíduos pretendem com as demandas incorporadas às suas narrativas é legitimá-las, habilitando-se e tornando-se aptos para usufruírem de direitos e/ou funções inerentes a seus ofícios, mas, sobretudo, aos seus interesses, seja na esfera econômica ou política. Motivados em suas estratégias, buscam, por um lado, deslegitimar os pleitos concorrentes e, por outro, tornar legítimos os seus, fazendo-os reconhecidos como autênticos e verdadeiros.

CARICATURAS EMBARAÇADAS - O “TRISTEMENTE CÉLEBRE” GOVERNADOR E A “LENDA NEGRA” DOS BRASÍLICOS MESTIÇOS

Criado em 1642, o Conselho Ultramarino - tribunal dedicado aos negócios do ultramar - assessorava diretamente o rei de Portugal. No século XVIII, com o eixo do império direcionado para o Atlântico Sul, passava pelo crivo dos conselheiros um volumoso repertório de demandas ligadas aos interesses dos súditos e autoridades coloniais. Processos em densos maços de papéis à espera da decisão (ou do silêncio) do monarca empoavam as mesas desgastadas pelo tempo. Em suas páginas, narrativas de intrigas e acusações enredavam vice-reis e governadores na América. Em salas pouco iluminadas, a lenta rotina dos ministros suscitava relatórios que instruíam as decisões do monarca.

Em 24 de setembro de 1733, uma consulta do Conselho Ultramarino ao rei João V condensava a expectativa de dois súditos de São Paulo, Bartolomeu Bueno da Silva e João Leite da Silva Ortiz, que apelavam para o cumprimento de um contrato acerca do controle das passagens dos rios, que lhes havia sido concedido como recompensa pela descoberta de jazidas de ouro em Goiás (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.). Ao rico documento, além de duas cartas dos descobridores destinadas ao monarca, seguia apensado um conjunto de outras missivas, resoluções e pareceres que instruíam a análise dos conselheiros a respeito da matéria. Na prática, trata-se da cobrança de mercês prometidas em troca de serviços prestados à coroa.

A leitura deste caso banal, ao remeter a personagens que transitam entre diferentes espaços institucionais, conectando regiões tão distantes como Goiás, São Paulo e Lisboa, permite acessar os autos de um processo que registram rivalidades e interesses e deixam ver os bastidores da política e da economia na América.

Além dos ministros do Conselho Ultramarino, três personagens interessam a este estudo: de um lado, os exploradores Bueno da Silva e Silva Ortiz e, de outro, o governador de São Paulo Antônio da Silva Caldeira Pimentel (1727-1732). Se dermos crédito às narrativas da época, os primeiros eram associados à figura de super-homens, desbravadores do sertão - território inóspito que povoava o imaginário português. Suas façanhas teriam azeitado os cofres da coroa. O segundo personagem esteve, por vezes, ligado à imagem do anti-herói - o “tristemente célebre” governador, nos termos empregados por Pedro Taques de Almeida Pais Leme (2004LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. História da capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004., p. 24).O legado moral de Caldeira Pimentel, deduzido das referências quase sempre negativas dos contemporâneos, não é dos mais qualificados. Na opinião de Pais Leme (2004LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. História da capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004.), teria sido o executor dos planos elaborados por Rodrigo César de Meneses - governador entre 1721 e 1727 - visando a anulação das recompensas concedidas ao clã de Bueno da Silva. Se no ultramar português as reclamações dos súditos contra os governadores teria sido a regra (Romeiro, 2017ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: Uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica , 2017., p. 177), as narrativas sobre Caldeira Pimentel confirmam essa impressão. Dedicado a se enriquecer, teria se envolvido com o provedor Sebastião Fernandes do Rego, cujas artimanhas contra as finanças da coroa foram desmascaradas em Lisboa.

Em 1729, advogando a existência de um plano de sedição tramado pelo clã de Bueno da Silva em Goiás, mandou prender na fortaleza de Santos Bartolomeu Pais de Abreu (irmão de Silva Ortiz), sócio e procurador de Bueno da Silva em São Paulo (Paes Leme, 2004LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. História da capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004.). Ano e meio depois, advertido pela coroa, foi constrangido a pôr o “inocente” em liberdade (Campos, 2005CAMPOS, Maria Verônica. Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira. In: BICALHO, Maria Fernanda Batista; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português - séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 341-359., p. 343). Em outra investida, quando Silva Ortiz se dirige a Lisboa para um tête-à-tête com o rei de Portugal (Silva e Souza, 1998SILVA E SOUZA, Luiz Antônio da. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz (1812). In: TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. pp. 71-139., p. 79), em sua passagem por São Paulo é impedido por Caldeira Pimentel de visitar o irmão preso. Para piorar, segundo o relato de Paes Leme, ao embarcar em Santos para o Rio de Janeiro, o capitão de infantaria André Curcino de Mattos, responsável pelo forte da Barra, homenageou o descobridor com uma salva de tiros, o que lhe custou a perseguição implacável de Caldeira Pimentel (Paes Leme, 1869LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. Nobiliarquia paulistana: genealogia das principais famílias de São Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - RIHGB, Rio de Janeiro, 1869.).

Nada obstante, o governador persiste em suas invectivas. A viagem sinistra de Silva Ortiz incluiu a recepção pelo vice-rei do Brasil na Bahia, seguida de sua morte prematura em Recife, envenenado pelo padre Matias Pinto, instigado, segundo Paes Leme, pelo governador de São Paulo. Verdade ou mentira, as narrativas sobre as investidas de Caldeira Pimentel contra os parentes de Bueno da Silva eram notadas por Lisboa.

De outro lado, as caricaturas relacionadas ao clã de Bueno da Silva o aproximam do perfil de homens agressivos e violentos. Vale lembrar, como faz Schneider (2016SCHNEIDER, Luiz Alberto. Os paulistas e os outros: fama e infâmia na representação dos moradores da Capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, n. 57, pp. 84-107, set-dez. 2016. , p. 84), das disputas envolvendo as representações constituídas em torno da imagem dos paulistas entre os séculos XVII e XVIII. A existência de uma “legenda negra” - que os associava à rebeldia, à mestiçagem indígena (e mesmo judaica) e à imagem de maus cristãos, criada por jesuítas como Ruiz de Montoya (1585-1652) e o padre António Vieira (1608-1697) e pelo erudito Rocha Pitta (1660-1738) - foi combatida, no final do século, por letrados da própria capitania de São Paulo. Pedro Taques (1714-1777) e frei Gaspar Da Madre de Deus (1715-1800) buscaram desconstruir a “lenda negra” ensejando outra, “dourada”, em tom heroico, sobrepondo a ideia da força e do ânimo incomum dos conquistadores paulistas.

Notadamente, ainda no final do século XVII, de olho na apropriação de novos territórios, paulistas liderados por Domingos Jorge Velho foram vistos no Nordeste do Brasil engajados na destruição do quilombo dos Palmares (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). Brasílicos mestiços, além de matar e destruir comunidades afrodescendentes, invadiam territórios ocupados, assassinavam pessoas e escravizavam nativos. Mas os reveses sofridos na Guerra dos Emboabas (1707-1709) soariam “o toque final do autonomismo bandeirante” (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 246), condenando ao declínio a última geração de desbravadores paulistas.

Em 1710, atraídos por recém-descobertas jazidas de ouro, fixam-se em Pitangui. Ponto de concentração de paulistas arredios ao comando de Lisboa, a fidelidade aparente aos governadores regentes rendeu dividendos políticos. Como lembra Silvio Diniz (1965DINIZ, Silvio Gabriel. Pesquisando a história de Pitangui. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1965., p. 139), obtiveram como retribuição a criação da Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui e, de quebra, a indicação de Bueno da Silva, Francisco Jorge da Silva, Domingos Rodrigues do Prado e Jerônimo Pedroso de Barros para ocupar os cargos do Senado da Câmara em 1715.

Mas a paz durou pouco. Na mira de Brás Baltasar da Silveira (1713-1717), recusam-se a pagar impostos e adotam a violência na gestão dos negócios em Pitangui, afugentando a população para os lados do rio São Francisco. A expressão empregada pelo conde de Assumar em carta ao rei de Portugal permite inferir a magnitude das tensões: propunha a “destruição” da Vila de Pitangui para que fosse, de uma vez por todas, proscrita e relegada ao esquecimento (Fonseca, 2003FONSECA, Cláudia Damasceno. Des terres aux villes de l’or: pouvoirs et territoires urbains au Minas Gerais (Brésil, XVIIIe siècle). Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2003., pp. 169-170).

A fúria do grupo seria contida apenas em 1720, nos combates travados contra a cavalaria dos Dragões. Segundo Souza e Bicalho (2000SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720: O império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2000., pp. 78-79), Domingos Rodrigues do Prado (genro de Bueno da Silva) foi condenado à morte. Tendo escapado à prisão, sua execução em efígie foi efetivada por ordem da coroa. Debelada a insurreição, o clã de Bueno da Silva retoma o caminho em direção a São Paulo (Campos, 2005CAMPOS, Maria Verônica. Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira. In: BICALHO, Maria Fernanda Batista; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português - séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 341-359.).

DISCURSOS (I)LEGÍTIMOS? ENTRE AS BÊNÇÃOS DO CONSELHO E A DISSIMULAÇÃO DO MONARCA

Em resolução de 1721, o rei de Portugal garantia - em caso de descoberta de “minas de ouro e prata e outros haveres” - a nomeação para os cargos de superintendente e guarda-mor, além da concessão de títulos militares honoríficos como mestre-de-campo, tenente-coronel e capitão-mor. Ainda em 1722, Rodrigo César de Meneses sela o acordo com Bueno da Silva e Silva Ortiz por meio de um contrato (Requerimento, 1732REQUERIMENTO. Requerimento do regente e descobridor das Minas de Goiás, Bartolomeu Bueno da Silva, ao rei João V. Goiás, 23 de fevereiro de 1732; documento 3. Arraial de Sant’Anna (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1732.) que incluía, dentre as dádivas de João V, a autorização para a cobrança sobre as passagens dos rios entre São Paulo e Goiás. Este contrato e o sucesso da expedição a Goiás garantiriam notoriedade a Bueno da Silva. Tornado em litígio, foi objeto de apreciação do Conselho Ultramarino, instigado pela troca de farpas entre Caldeira Pimentel e Bueno da Silva.

Em carta a João V, com data de 20 de maio de 1729, Caldeira Pimentel - argumentando contra a cobrança das passagens dos rios a partir de São Paulo - alega que, antes da iniciativa de Bueno da Silva, Amador Bueno (desbravador dos sertões) já havia aberto o caminho da “estrada das minas dos Goyazes até o Rio Grande”. Por isso, “fizera rematar” em concorrência pública o direito de cobrança até o Rio Grande, e que, portanto, “todo aquele espaço não podia pertencer aos descobridores dos Goyazes, por pertencerem” a “Vossa Magestade” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

Sobrepondo uma decisão tomada por sua conta e risco à graça prometida pelo monarca, Caldeira Pimentel informa a João V que o direito de Bueno da Silva e Silva Ortiz se ateria, portanto, à zona ainda disponível após o Rio Grande (que atualmente divide os estados de São Paulo e Minas Gerais).

Numa segunda missiva, de 19 de julho de 1729, o governador deixa claro seu interesse na faixa de terra compreendida da cidade de São Paulo às bordas do Rio Grande, e explica ao monarca que ele e Rodrigo César de Menezes tinham concedido sesmarias no caminho de Goiás a outros descobridores, e que a suspensão desses negócios poderia resultar em prejuízos às finanças da coroa. Segundo seus cálculos, as passagens dos rios tal como reivindica Bueno da Silva “poderiam render” “doze ou treze mil cruzados”.

De olho nos números, eleva o tom de seu discurso e atinge com um só disparo a graça concedida e o mérito da recompensa: segundo ele, aquelas “sessenta léguas de terras para sempre cuja mercê e prêmio era a maior que se podia considerar é incompetente aos serviços que fizeram os ditos descobridores”. Noutras palavras, os serviços prestados pelo clã de Bueno da Silva eram incompatíveis com a dimensão do pagamento. Na prática, ante a impossibilidade de reescrever as matrizes do contrato de autoria da coroa, Caldeira Pimentel busca um desfecho favorável, enquanto mina a credibilidade dos signatários. Mirando os trunfos da expedição e a imagem de pioneiros destemidos, redimensiona o reconhecimento público dos exploradores, asseverando que “não foram tão grandes como se queriam persuadir” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

E vai além. Minimiza o sucesso da expedição, afirmando que houve “diminuição do ouro” nas “Minas dos Guayazes”, e noticia a empreitada de Manoel Roiz Tomar e Urbano do Couto de Menezes, que, em detrimento das jazidas de Bueno da Silva, “se achavam com grande vantagem [em relação] ao dos Guayzes” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

Pesando a tinta de sua pena, acusa Bueno da Silva da prática de contravenções e delitos: contrabando do ouro, enriquecimento ilícito, embaraço no recolhimento dos quintos e perturbação do sossego público. O resumo feito por um ministro do Conselho Ultramarino ao enviar o processo para a análise de João V (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.) confirma que o descobridor “é acusado pelo governador de promover discórdias entre paulistas e reinóis e ter desviado ouro pelas estradas e absurdos e violências que pratica contra os próprios mineiros espoliando-os de seus descobrimentos em proveito próprio”.

Na sequência, Caldeira Pimentel preconiza qual deveria ser a decisão do próprio rei. A “matéria”, segundo ele, “devia ser maduramente ponderada” e os “arrendamentos das passagens dos rios” deviam ser submetidos ao alvitre do provedor da Fazenda Real de São Paulo, que repassaria “o seu rendimento” a Bueno da Silva e Silva Ortiz. Advoga, portanto, que “de nenhuma sorte convinha que os descobridores por si as arrendassem”, pelas “vexações que poderiam experimentar os passageiros”, além da “exorbitância” dos valores e “outros insultos que disso poderiam nascer” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.). Na prática, além da redução do trajeto, propõe que a cobrança das passagens seja executada sob a supervisão do próprio governo de São Paulo. Se levada a efeito, essa recomendação retiraria do clã de Bueno da Silva a gerência direta sobre o negócio.

Sentindo escorrer pelas mãos a mercê prometida pelo monarca, Bueno da Silva e Silva Ortiz reagem aos ataques de Caldeira Pimentel. Cientes dos interesses camuflados por detrás das estratégias dos altos serventuários da coroa, denunciam as artimanhas do governador que, segundo eles, prejudicam os negócios da própria coroa.

De fato, sobre o manto dos cargos que exerciam, não era incomum o interesse de governadores em se tornarem sócios comanditários de empresas e atividades mercantis na América (Boxer, 2011BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 312). Por isso mesmo, a “monótona regularidade” das “queixas acerca da rapacidade e da venalidade dos funcionários” era replicada na disputa entre Bueno da Silva e Caldeira Pimentel.

Com efeito, até as primeiras décadas do século XVIII, agentes da coroa tinham a prerrogativa de operar negócios privados no mercado colonial, o que teria induzido a descomedimentos que chegaram a apoquentar os interesses de Lisboa. Em contrapartida, como informa Bicalho (2017BICALHO, Maria Fernanda. “Possuidores despóticos”: Historiografia, denúncia e fontes sobre a corrupção na América portuguesa. Revista Complutense de Historia de América, n. 43, pp. 127-152, 2017., p. 130), João V procurou travar tais privilégios por meio de alvará de 1721, desautorizando as práticas comerciais aos oficiais da coroa, inclusive governadores.

Todavia, como argumenta Boxer (2011BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 313), “nem vale a pena dizer” que esta lei foi “ineficaz” e “contraproducente”, tanto a curto como a longo prazo: nas cesuras deixadas pelas normas e intervenções seletivas da coroa moviam-se negociantes e governadores, a exemplo de Caldeira Pimentel. Neste particular, o desfecho da disputa em tela pode estar ligado à cumplicidade e às expectativas de Lisboa. Afinal, a esperança sempre latente - sobretudo nas “emergências financeiras” (Boxer, 2011BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 315) - de uma retribuição ou compensação por parte de autoridades enriquecidas por meio de negócios legítimos ou ilegítimos estimulava a liberalidade da coroa.

Em 1730, a dupla de paulistas afiança o cumprimento do acordo fechado em 1722. Em anexo à missiva dirigida ao rei remetem certidão da remessa de 7.782 oitavas de ouro extraído em Goiás e depositado na Casa da Moeda de São Paulo. A leitura da carta no Conselho Ultramarino informa, textualmente, que os descobridores davam por atendido o contrato com a coroa. Teriam “satisfeito a diligência a que se ofereceram” e consumido nela “quase toda a sua fazenda”, “com o intento de fazerem um tão relevante serviço à Vossa Majestade de quem esperam a mercê das passagens dos rios prometida” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

Contrapondo os relatos do oponente, em cartas de 16 de abril e 10 de agosto de 1730 (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.) descrevem ao rei a situação das jazidas em Goiás e dos “progressos que nelas tem feito”. Agradecem “a mercê que lhe fez das passagens” e lamentam os embaraços provocados por Antônio da Silva Caldeira Pimentel, que, conforme denunciam, procura “por todos os modos” impedir “os seus merecimentos” e impedir a prosperidade e a “perpetuação daquelas minas”. Em vista disso, alegam não compreender “essa máxima do dito governador tão contrária aos serviços de vossa majestade”. Em desagravo ao governador, devolvem na mesma moeda as palavras semeadas contra sua gestão em Goiás: Caldeira Pimentel intimidava os “paulistas”, fomentando “discórdias e parcialidades”, portando-se contra o bom funcionamento das minas, em sentido contrário à “paz e quietação entre os vassalos”.

Instado a se manifestar, Bento de Castro Carneiro - procurador da coroa e da fazenda da capitania de São Paulo, além de provedor da casa de fundição e quintos - informa, em carta de cinco de setembro de 1732, que Bartolomeu Pais de Abreu (procurador de Bartolomeu Bueno da Silva e herdeiros) havia requerido a entrega dos rendimentos das passagens dos rios a seus representados por serem objeto de mercê do monarca. Em consonância com Caldeira Pimentel, Castro Carneiro considera “afetada e maliciosa” a pretensão dos impetrantes, invocando o mesmo argumento do governador: “só lhes podem pertencer as passagens dos rios das terras que descobriram desde o rio grande para a diante”, sob pena de “notório e gravíssimo prejuízo da fazenda de Vossa Magestade” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

Entretanto, embora considere suspeito a Bueno da Silva e “mui zeloso” e “verdadeiro” a Caldeira Pimentel, pondera que não se “praticasse” “contra ele [Bueno da Silva] procedimento algum”, sem processo e culpa formais. Prescrevia uma averiguação com “exação muito ativa e vigilante”, ao arbítrio do novo governador de São Paulo, Antônio Luiz de Távora, o Conde de Sarzedas. Comprovadas as culpas e justificadas as acusações, aí, sim, que se expulsassem das “Minas dos Guayazes a Bartolomeu Bueno e a seus dependentes e afeiçoados”. Além do que, sugere Castro Carneiro, “quando a culpa do sobredito seja tão escandalosa”, o remeta preso a Lisboa.

Nos autos que tramitavam no Conselho, o procurador da coroa em Lisboa ampara a proposição de Castro Carneiro e - com a ressalva de que a narrativa apresentada por Caldeira Pimentel “também lhe parecia suspeitosa” - recomenda que se investigassem as acusações das partes e somente em seguida se assentasse uma posição sobre o caso. Por outro lado e em sentido contrário, os ministros do Conselho Ultramarino, adversos ao pleito de Caldeira Pimentel, colocam o dedo na ferida: apostam na hipótese de um plano forjado pelo governador de São Paulo contra o clã de Bueno da Silva. Baseados nessa teoria, acusam Caldeira Pimentel de ter forjado “documentos para a ruína destes descobridores” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.). Esta denúncia, ainda que hipotética, se cotejada com a alusão de Pais Leme (2004LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. História da capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004.) sobre as dubiedades do governador, ultrapassa os limites da pura ilação e se acomoda à imagem de uma autoridade tratada com desconfiança dos dois lados do Atlântico.

O juízo e a presunção a respeito de seus comportamentos estariam associados a outro hábito de Caldeira Pimentel, já denunciado pelo vigário de Goiás, Pedro Ferreira Brandão: o costume de violar correspondências alheias, “a cuja diligência”, diz o padre, “não escapa carta alguma que entra ou sai destes Goiases, contra o direito das gentes e em prejuízo destes povos” (Carta, 1732CARTA. Carta do vigário de Goiás, arraial de Sant’Anna, Pedro Ferreira Brandão, ao desembargador Belchior do Rego de Andrade; documento 4. Goiás, 5 de maio de 1732. Arraial de Sant’Anna (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1732.). Na mesma onda, os ministros do Conselho não deixam por menos: admitem com todas as letras que Caldeira Pimentel teria “tomado cartas, escondendo-as dos portadores” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.). Aparentemente, como ardiloso espião, colhia subsídios secretos para governar, ao sabor de seus interesses, a Capitania de São Paulo.

Em resposta ao rei, o Conselho ainda acusa o governador de difundir o ódio contra um homem que sequer conhecia pessoalmente, e emite parecer favorável a Bueno da Silva quanto ao direito de cobrança das passagens dos rios. Lembra também que a recompensa concedida pela coroa não era “gratuita”, mas consequência de um “contrato” legitimado pelo selo da coroa.

Neste aspecto, outra importante advertência do Conselho, lembrando que aquele contrato foi “escrito”, indica a seriedade e a justeza que pairavam em torno do consentimento expresso da coroa. Mesmo porque, vale ressaltar, documentos escritos integravam um método de registro praticado pelo sistema judiciário do império. Tal procedimento possibilitava a criação de repositórios da memória jurídica, social e política sobre as diversas decisões levadas a efeito pela monarquia portuguesa.

Antônio Manuel Hespanha, com propriedade, confirma o quanto os documentos escritos eram basilares para a certificação de assuntos decisivos na cultura política do império, abrangendo desde o estatuto pessoal até os direitos e deveres patrimoniais: cartas régias de doação ou de foral, concessões de sesmarias, constituição e tombo dos morgados, vendas e partilhas de propriedades, requerimentos de graças régias, concessão de mercês, processos e decisões judiciais. Todos estes procedimentos deveriam ser transformados em documentos escritos e arquivados em cartórios. Segundo Hespanha (2001HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001. pp. 163-188., p. 186), “Tudo aquilo que importava nesta sociedade tinha de deixar traços aí”.

Assim, o ódio do governador contra Bueno da Silva - forte opositor e cônscio da legitimidade de sua demanda - não era desprovido de razão. Ainda que Caldeira Pimentel não o conhecesse pessoalmente, reconhecia, com certeza, a ameaça que representavam aos seus negócios no Brasil. Por isso, argumenta contra a legitimidade do contrato (escrito) e das mercês prometidas pelo rei.

De seu lado, os ministros do Conselho emprestam tom exemplar ao seu ajuizamento, demonstrando aversão às demandas de Caldeira Pimentel. Na consulta ao rei, afirmam que esta decisão se destina, sobretudo, àqueles “que têm procurado que esta mercê” “não tenha efeito”, posto que “se desanimarão os que virem que basta a oposição de um governador para invalidar as mercês que Vossa Majestade faz” (Consulta, 1733CONSULTA. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei João V, sobre o requerimento dos descobridores das Minas de Goiás, capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e capitão João Leite da Silva Ortiz. Lisboa, 24 de setembro de 1733; documento 6. Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino - AHU). 1733.).

Os argumentos das partes, “com tanta pompa de palavras, como de prodigiosos efeitos”, como diria o padre Antônio Vieira (Vieira, 1998VIEIRA, Antônio. Sermões. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998.), são como discursos-flechas cheios de hostilidades contra os opositores. E neste combate de palavras, a tinta deixada no papel parece ter a faculdade de fazer morrer e/ou deixar viver. Isso porque, em que pese a decisão favorável do Conselho Ultramarino sobre o negócio das passagens dos rios, o jogo duro do governador desestabilizou o clã de Bartolomeu Bueno da Silva: a prisão de Bartolomeu Pais de Abreu, irmão de João Leite da Silva Ortiz, as mortes de Silva Ortiz, em Pernambuco, e de Francisco Bueno da Silva, filho de Bartolomeu, em Lisboa, foram fatalidades ligadas à contenda.

Luiz Antônio da Silva e Souza (1998SILVA E SOUZA, Luiz Antônio da. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz (1812). In: TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. pp. 71-139.) narra, com pequenas diferenças de Paes Leme, a saga de Silva Ortiz, genro de Bueno da Silva e guarda-mor das minas de Goiás, à procura da confirmação dos direitos sobre a cobrança das passagens dos rios. Após uma viagem sem resultados a São Paulo, com o desígnio de convencer o governador Caldeira Pimentel, volta a Goiás e se prepara para um encontro com o monarca em Lisboa. Segue, então, em direção a Pernambuco, onde adoece e morre. Francisco Bueno da Silva, após chegar a Lisboa, é também surpreendido pela morte sem conseguir o intento de ser recebido pelo rei de Portugal.

Neste aspecto, a performance de Caldeira Pimentel teria sido certeira. Seu sucesso teria fragilizado a posição de Bueno da Silva, sinalizando o desfecho premeditado da disputa. À hipótese de uma ação secreta do monarca contra os descobridores (Campos, 2005CAMPOS, Maria Verônica. Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira. In: BICALHO, Maria Fernanda Batista; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português - séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 341-359.), avançamos uma certeza: se em Lisboa a dubiedade e a dissimulação assinalam as decisões do rei de Portugal, as invectivas dos governadores sobre a gestão das minas em Goiás denunciam - para além da presunção hipotética - a oposição da coroa aos interesses dos desbravadores paulistas.

Neste sentido, as táticas do novo governador Antônio Luiz de Távora não destoam das práticas de Caldeira Pimentel. A partir de 1733, interrompe o acesso às minas e destitui Bueno da Silva da superintendência-geral em Goiás. Desde então, seria uma questão de tempo a completa derrocada do clã de Bueno da Silva.

Se no entorno de Bueno da Silva o tom heroico de suas narrativas estava atrelado ao sucesso de suas conquistas, entre as autoridades da coroa as caricaturas depreciativas vendiam a imagem de súditos indóceis e violentos. De fato, na primeira metade do século XVIII, esta parece ter sido a tônica da política entre São Paulo e Goiás: a imposição da preeminência da coroa em território colonial define o ritmo da atuação dos governantes designados em Lisboa.

No interior desse campo de força, a elasticidade das tensões liga-se às expectativas dos contendores: à coroa interessam os fluxos e refluxos da economia colonial e sua segurança financeira, bem como a da nobreza que lhe dá vida; para o clã de Bueno da Silva, importa fechar o cerco sobre as minas de Goiás e açambarcar as contrapartidas vantajosas oferecidas pelo contrato com a coroa; a Caldeira Pimentel - de quem o monarca espera retribuições - o que vale é o zelo pelos negócios e a autonomia nos empreendimentos que agencia. Interesses que remetem cada personagem e indivíduo de volta ao seio do tecido social, das lutas políticas, dos poderes e hierarquias, em que as regras do jogo têm o potencial de embaraçar normas e valores, práticas legítimas e ilegítimas.

Se a política de Estado impõe a primazia dos interesses da coroa, negócios de caráter pessoal fervilham sob o véu da soberania régia. Neste mundo, importa pouco a veracidade dos fatos ou a legalidade das ações: o que toma relevo são as motivações por trás dos discursos dos atores - denúncias e escândalos compõem práticas e estratégias que mascaram as intenções que, por sua vez, parecem nos escapar; até que uma leitura pelas bordas, que mire as entrelinhas dos discursos, revela não o excepcional ou o marginal, mas a mais comum e banal das virtudes (ou seriam vícios?) humanas: seus interesses.

INTENÇÕES ABAFADAS - A EXIGÊNCIA DE DIGNIDADE E OS INTERESSES MATERIAIS

Não se pode perder de vista a conexão entre os interesses dos personagens que compõem esta narrativa e a esfera econômica e financeira do mundo colonial. A este respeito, é notável a maneira por meio da qual, quase um século mais tarde, o padre Luiz Antônio da Silva e Souza (1998SILVA E SOUZA, Luiz Antônio da. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz (1812). In: TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. pp. 71-139., p. 71) - referindo-se às motivações dos indivíduos envolvidos na descoberta de metais e pedras preciosas em Goiás - descreve o interesse e a ambição como fontes de fruição e referência para as ações humanas à época: “Menos o amor da glória e o desejo de ser útil”, diz ele, “que o interesse próprio e aquela ambição, que leva muitas vezes os homens por incalculáveis perigos às mais árduas, mais importantes empresas, foi o motivo do descobrimento de Goiás”.

Certamente, a exigência de dignidade como espelho de valores balizados por uma espécie de “desejo de glória”, essa “paixão” pelo reconhecimento dos pares - “exacerbada”, conforme Elisabeth Badinter (2007BADINTER, Elisabeth. As paixões intelectuais: Exigência de dignidade - 1751-1762. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 11), pelo nascimento da opinião pública em meados do século XVIII - “entra em choque com outras [paixões], antigas e novas”. “Dentre elas”, “o ciúme dos rivais, sempre prontos a estragar o prazer de desfrutar de um sucesso” e a ambição, paixão antiga, ligada aos interesses pelas vantagens materiais.

Vivendo em Goiás nas primeiras décadas do século XIX, as intuições de Silva e Souza sobre o século XVIII parecem coincidir com a proposta de Albert Hirschman a respeito da transformação da noção de interesse na Europa. Hirschman (1980HIRSCHMAN, Albert O. Les passions et les intérêts: Justifications politiques du capitalisme avant son apogée. Paris: Quadrige; PUF, 1980., p 51), em estudo que trata das vantagens de um mundo governado pelo interesse, lembra que, embora esperassem vantagens de natureza política, social e mesmo moral, “no conjunto do que se escreveu nos séculos XVII e XVIII no tocante às atividades econômicas e às trocas comerciais, a maioria dos autores concorda que o incremento das relações de mercado beneficia todas as partes envolvidas”6 6 No original: “à l’ensemble de ce qui s’est écrit au XVIIe et XVIIIe siècles sur l’activité économique et les échanges commerciaux, on constate qu’aux yeux de la plupart des auteurs de ce temps, le développement des échanges profite à toutes les parties”. . Segundo Cerutti (1996CERUTTI, Simona. Processus et expérience: individus, groupes et identités à Turin, au XVIIe siècle. In: REVEL, Jacques (Org.). Jeux d’echelles: La micro-analyse à l’expérience. Paris: Gallimard; Le Seuil, 1996. pp. 161-186., p. 171), se a noção de interesse reenvia “a um vasto inventário de significações”, teria sido, conforme o livro de Hirschman, “reduzida unicamente às vantagens materiais e econômicas”7 7 No original: “la notion d’intérêt, qui renvoyait à un large éventail de significations, a été réduite au seul avantage matériel et économique”. . Neste aspecto, é notável que os discursos e argumentos observados na disputa entre Bueno da Silva e Caldeira Pimentel remetam ao pensamento e às práticas de seus contemporâneos, indicando certa porosidade dos indivíduos em relação ao contexto social e cultural, tanto no continente europeu quanto na América.

Mais que isso, a possibilidade de se antecipar à ação do oponente implica em boa dose de previsibilidade dos comportamentos, sobretudo quando se trata de relações econômicas e políticas. Não sem razão, a leitura do contrato (escrito, vale lembrar) revela que o acordo entre a coroa (representada por governadores ambiciosos) e dois paulistas (facinorosos, indóceis e, portanto, pouco confiáveis) demandava cauções e garantias, porque centrado nas vantagens materiais e no desejo de previsibilidade das condutas dos contratantes. De fato, conforme Hirschman (1980HIRSCHMAN, Albert O. Les passions et les intérêts: Justifications politiques du capitalisme avant son apogée. Paris: Quadrige; PUF, 1980., p. 51), definir com antecedência as regras do jogo oferece mais visibilidade e segurança aos interesses em disputa, ao tempo em que a previsibilidade dos comportamentos “interessados” resulta em uma sólida rede de relações interdependentes no plano da economia.

Postos sobre a mesa, os interesses das partes têm papel decisivo na conduta dos contratantes. Com razão, Laura de Mello e Souza evoca o imprevisto e o diferente enquanto fatores que preocupam os agentes da coroa designados para o governo das Minas Gerais durante o século XVIII. Segundo ela, os governadores denunciam com frequência o caráter revoltoso da população, que embaraça, quando não impede, a imposição da autoridade da coroa. “Mas nas Minas da época”, diz ela na mesma direção de Hirschman, “os princípios estratificadores, ainda em fase de constituição, mostraram-se compósitos, aliando o status e a honra a valores novos, ditados pelo dinheiro e pelo mérito” (Souza, 2006SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., pp. 155-156).

QUANDO A CULPA É “TÃO ESCANDALOSA” - REGALIAS ADMISSÍVEIS E PRÁTICAS NÃO TOLERADAS

O episódio exposto neste ensaio compreende denúncias produzidas por meio de cartas trocadas entre indivíduos envolvidos em negócios ligados à esfera oficial do Estado moderno português. Atentos aos ruídos que circulam no interior de uma vasta rede de relacionamentos interpessoais, esperam, como efeito de suas estratégias, acessar certas prerrogativas no campo político da América. São argumentos escritos que, como vimos, têm o poder de deslegitimar posições, corroendo poderes e alterando a natureza dos combates.

A despeito de tudo, nas entrelinhas dos discursos, nas palavras não ditas que as fontes silenciam, escondem-se aspirações não reveladas que podem dar sentido às evidências contidas nos documentos analisados (Darnton, 2012DARNTON, Robert. O diabo na água benta: ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão. São Paulo: Companhia das Letras , 2012.). Postos em segundo plano, os recorrentes abusos de autoridade e a avidez por vantagens financeiras estimulam o exercício da denúncia e da acusação. Contudo, não é a exprobração dos atos denunciados como impróprios ou extralegais que se espera do julgamento do Conselho Ultramarino ou do próprio rei de Portugal, mas sim as implicações que suas decisões podem provocar sobre a reputação e os negócios do oponente, tornando frágil sua posição.

Neste sentido, quanto mais escandaloso, maior o delito. Mas a que se refere a noção de escândalo? Trata-se da “reprovação suscitada por atividades julgadas ilegítimas cuja denúncia”, como indica Violaine Roussel (2020ROUSSEL, Violaine. Scandale. In: FILLIEULE, Olivier; MATHIEU, Lilian; PÉCHU, Cécile. Dictionnaire des mouvements sociaux. Paris: Presses de Sciences Po, 2020. pp. 527-532., p. 484), pode interromper o “funcionamento habitual de um jogo social”8 8 No original: “La notion de scandale se réfère à la réprobation que suscitent des activités jugées illégitimes dont la dénonciation interrompt le fonctionnement habituel d’un jeu social”. “Loin de dériver automatiquement de la transgression de normes ou du dépassement d’un seuil de déviance, les pratiques faisant scandale renvoient soi principalement aux croyances dans certaines valeurs dont des groupes sociaux n’acceptent pas la violation, soit d’abord à l’activité stratégique de mobilisation d’acteurs autour de la stigmatisation d’actes non conformes”. . Contudo, “longe de derivar mecanicamente de algum tipo de transgressão às normas ou da transposição de um limite por um determinado desvio”, as denúncias seguidas do escândalo - e vice-versa - remetem a dois tipos de fenômenos: (1) a crenças e valores cuja violação é inaceitável por parte do grupo social e (2) às atividades estratégicas de mobilização de agentes em torno da estigmatização de atitudes consideradas impróprias ou inadequadas (Roussel, 2009). Assim, a publicização - nalguns casos - e o recurso à jurisdição do poder soberano - noutros casos - podem ser vistos como um golpe político sobre o oponente.

Lembrando Bertrand (2013BERTRAND, Michel. Penser la corruption. e-Spania: Révue interdisciplinaire d’étude hispaniques médiévales et modernes [En ligne], Paris, n. 16, déc. 2013.), quando os excessos se tornam intoleráveis, os súditos passam, então, a denunciá-los. Exemplo disso é a menção de Castro Carneiro, citado anteriormente, sugerindo, caso “a culpa” do acusado “seja tão escandalosa”, a prisão de Bueno da Silva nos cárceres de Lisboa. Neste caso, o caminho que conduz da regalia admissível à prática não tolerada é o mesmo que leva ao escândalo. Este sim, tão desejado (para os rivais) quanto temido (para si), ainda hoje derruba regimes e governos.

Entretanto, as ilegalidades, elas mesmas, não parecem compor o objeto dos denunciantes, nem, tampouco, do sistema de justiça colonial - destino final das peças acusatórias. Aliás, o peso das normas legais sobre as práticas dos agentes deve ser matizado sob o Antigo Regime.

Em conferência a respeito da punição e do sistema penal, Michel Foucault encontra na ilegalidade uma “função geral e constante” no funcionamento das sociedades modernas, associando-a aos limites da soberania no Estado moderno e ao papel indispensável das ilegalidades no seio de uma economia em vias de transformação.

Segundo o autor, as mudanças constitutivas das relações capitalistas entre os séculos XVI e XVIII passavam, em boa medida, pelos canais da ilegalidade: o “contrabando, a pirataria marítima, o jogo de evasões e de extrações fiscais” são vias políticas de ilegalidades que permitiram o desenvolvimento econômico. Por isso mesmo, a tolerância às ilegalidades seria uma condição para a sobrevivência das sociedades de Antigo Regime (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. Prisons: la chute des murs? Conférence à l’Université de Montréal, 1976 (extraits). Vacarme, v. 4, n. 29, pp. 142-145, 2004., p. 144)9 9 No original: “L’illégalisme était une sorte de fonction générale et constante dans la société. La contrebande, la piraterie maritime, tout un jeu d’évasions fiscales, tout un jeu d’extractions fiscales, aussi, ont été des voies par lesquelles le capitalisme a pu se développer”. .

Não obstante, se o caráter escandaloso das práticas políticas mobiliza a ação punitiva da coroa, o que pretendem os acusadores - mais que o exercício da justiça - é que a mão pesada do rei recaia sobre seus adversários, legitimando o discurso do denunciante. Longe de derivar automaticamente das transgressões às normas que norteiam o funcionamento das instituições, o objeto e o objetivo da denúncia confundem-se com os interesses do denunciante e tendem a empurrar as relações políticas e econômicas para a arena da justiça colonial.

Assim, denunciam a violação de preceitos legais, mas, sobretudo, informam a ruptura de valores morais e prejuízos econômico-financeiros, chegando a indicar a prática de crimes de lesa-majestade. Na prática, denunciam adversários enquanto tática que visa estigmatizar os atos desviantes e não conformes ao comportamento esperado no contexto da cultura política do Antigo Regime português.

Portanto, mais que comportamentos escandalosos situados entre a legalidade e a ilegalidade, o objeto deste ensaio são os discursos carregados de intensões, movidos por interesses submersos num universo de difícil leitura e compreensão. Daí a opção por uma análise que parte das práticas dos sujeitos e não das normas jurídicas - que poderiam engendrar uma gama multiforme de infrações, dificultando ainda mais a interpretação do caso em apreço. Isso implica, parafraseando Carlo Ginzburg (2003GINZBURG, Carlo. Carlo Ginzburg, “L’historien et l’avocat du diable”. Entretien avec Charles Illouz et Laurent Vidal. Première partie. Genèses: Sciences sociales et histoire, n. 53, pp. 113-138, déc. 2003.), no reconhecimento de que as práticas concebidas como exceção às normas são mais ricas que as próprias normas.

Assim, as denúncias de excessos e os abusos de autoridades podem abrir uma comporta para o observador, pela qual o trânsito de fluxos discursivos tem a faculdade de desvelar a natureza das relações de força e poder. Relações constituídas nas experiências sempre confinadas às posições sociais dos envolvidos no tabuleiro das disputas coloniais. Por tudo isso, a especificidade dos escândalos e das denúncias não deve ser associada a prática da mentira ou do embuste, mas, no limite, a falsidades benévolas e intenções dissimuladas ou, sobretudo, a uma técnica pensada e articulada de poder - uma via possível de combate.

REFERÊNCIAS

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  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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  • VIEIRA, Antônio. Sermões. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998.
  • 1
    No original: “transiger pour réduire les pertes tout en évitant des affrontementes qui pouvaient être déstabilisants pour le corps social”.
  • 2
    Distanciando-se das interpretações economicistas e utilitaristas, Pierre Bourdieu adota a expressão illusio em substituição à noção de interesse, para se referir a “um interesse socialmente constituído e que só existe em relação a determinado espaço social”, caracterizado por disputas entre seus participantes em torno de determinados capitais. A expressão interesses neste ensaio é análoga ao termo illusio no sentido que lhe empresta Bourdieu (Aguiar, 2017AGUIAR, Andréa. Illusio [verbete]. In: CATANI, Afrânio Mendes et al. (Orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. pp. 231-233., p. 231).
  • 3
    No original: “Par contre, il existe bien un moment où ces profits ‘acceptables’ peuvent apparaître insupportables, notamment aux sujets du roi qui passent alors à la dénonciation”.
  • 4
    No original: “Les révoltes et les émeutes, mais aussi les contrats, les ventes et les conflits qui remplissaient les sources judiciaires ne pouvaient pas être lus en tant que simples reproductions des relations de dominations”.
  • 5
    No original: “Le monde social - c’est-à-dire le monde des actions - est un monde interprétatif. Action et interprétation ne peuvent pas être séparées”.
  • 6
    No original: “à l’ensemble de ce qui s’est écrit au XVIIe et XVIIIe siècles sur l’activité économique et les échanges commerciaux, on constate qu’aux yeux de la plupart des auteurs de ce temps, le développement des échanges profite à toutes les parties”.
  • 7
    No original: “la notion d’intérêt, qui renvoyait à un large éventail de significations, a été réduite au seul avantage matériel et économique”.
  • 8
    No original: “La notion de scandale se réfère à la réprobation que suscitent des activités jugées illégitimes dont la dénonciation interrompt le fonctionnement habituel d’un jeu social”. “Loin de dériver automatiquement de la transgression de normes ou du dépassement d’un seuil de déviance, les pratiques faisant scandale renvoient soi principalement aux croyances dans certaines valeurs dont des groupes sociaux n’acceptent pas la violation, soit d’abord à l’activité stratégique de mobilisation d’acteurs autour de la stigmatisation d’actes non conformes”.
  • 9
    No original: “L’illégalisme était une sorte de fonction générale et constante dans la société. La contrebande, la piraterie maritime, tout un jeu d’évasions fiscales, tout un jeu d’extractions fiscales, aussi, ont été des voies par lesquelles le capitalisme a pu se développer”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2022
  • Aceito
    22 Mar 2023
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