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Por uma história cultural da raça: reflexões urgentes sobre tempos remotos e recentes

For a Cultural History of Race: Urgent Reflections on Remote and Recent Times

TURDA, Marius. (Ed.). A Cultural History of Race . Vols. 1-6. London: Bloomsbury Academic, 2021.

A realidade da raça não é mais biológica, mas sim histórica, política e social. A palavra continua sendo usada como uma categoria de análise para entender o que aconteceu no passado e o que acontece no presente. O nó central do problema não é a raça em si, mas sim as representações dessa palavra e a ideologia dela derivada.

Kabengele Munanga (2003MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO-PENESB-RJ, 3º, 2003, Rio de Janeiro. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05 nov. 2003. pp. 1-17 (mimeo).)

Na sociedade neoliberal da escassez em que vivemos na atualidade, retoma-se a dimensão racial imposta por discursos xenófobos, misóginos ou sexistas ou pelas entrelinhas de discursos médicos e científicos, determinando a hierarquização da vida social, modelando corpos e mentes, impondo regras e formas de exposição, agora sob a insígnia de um estilo de vida capaz de exaltar, quando não reparar a própria raça, numa espécie de eugenia revisitada. Podemos encontrar no cotidiano de diferentes grupos, povos e lugares a promessa de felicidade e estabilidade que deve ser buscada no corpo e em suas representações de existência, sempre sob pressões a partir da identificação de aspectos de suas origens, mas também por sua possível retificação ou modelagem, dissimulando qualquer sensação ou sinal de fraqueza, tristeza ou adoecimento, numa verdadeira ode a uma concepção de base racial, de que há grupos superiores e inferiores.

Por esse viés, uma certa concepção de raça sempre foi uma instância observável da experiência humana, mas pouco se falava numa memória histórica racial, ou seja, no estudo de tempos e territórios distintos, observando as pessoas à luz de tais concepções, representações ou práticas cotidianas. Então, se certas raças eram valorizadas e sua existência hierarquizada e representada por meio de documentos de diversos tipos - escritos, pinturas, esculturas etc. -, outras raças, as consideradas vencidas ou inferiores, quando não degeneradas, deveriam ser silenciadas, apagadas e esquecidas.

Para o campo historiográfico há aí um equívoco, pois a inscrição de uma memória não está apenas naquilo que é visível ou que está sob a luz da razão ou do registro oficial de um passado. Nem todos os documentos são testemunhos, nem todos os fatos dados como estabelecidos são acontecimentos pontuais. Por isso, é imperativo perscrutar as entrelinhas da experiência humana procurando vestígios relegados por uma versão do passado e interrogar a história oficial a contrapelo, para fazer falarem os grupos que “não deveriam ter voz” e criticar a concepção da história como um progresso inelutável, já que o produto da ciência histórica se esconde nas fímbrias dos tempos, dos gestos e das atitudes “insuspeitas”. Esse é o mesmo caminho daquele que ousa visitar o passado histórico em torno das questões raciais. Ele pode parecer conhecido do viajante, mas precisa do cuidado metodológico, porque é outro país, um lugar onde, mesmo tendo navegado dias a fio no estudo de sua explicação, o analista será sempre um mero estrangeiro.

A coletânea História Cultural da Raça, publicada pela Bloomsbury Academic em 2021, cumpre exatamente essa função, ao trazer o termo raça sob diversas possibilidades históricas e interpretativas, permitindo uma leitura complexa em diferentes períodos. Organizada em seis volumes e dirigida pelo historiador Marius Turda, é sem dúvida a coletânea mais relevante sobre o tema racial na atualidade. Turda é professor no Departamento de História, Filosofia e Religião na Oxford Brookes University, um dos maiores investigadores da raça e da eugenia, assuntos que já lhe colocam a necessidade de discuti-los e apresentar suas possíveis interpretações na longa duração temporal.

Os volumes que compõem a coletânea foram pensados em torno de dois eixos centrais. O primeiro é de marcação temporal, ou, conforme Koselleck (2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre História. Tradução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.), encontra o cotidiano do tempo histórico e contempla as cicatrizes em que se delineiam as marcas de um destino já vivido. Por esse enquadramento, o Volume 1 trata da Antiguidade (McCoskey, 2021MCCOSKEY, Denise Eileen (Ed.). A Cultural History of Race in Antiquity. Vol. 1. London: Bloomsbury Academic , 2021. ), o Volume 2, da Idade Média (Hahn, 2021HAHN, Thomas (Ed.). A Cultural History of Race in the Middle Ages. Vol. 2. London: Bloomsbury Academic , 2021.), o Volume 3, do Renascimento e da Idade Moderna (Coles; Kim, 2021COLES, Kimberly Anne; KIM, Dorothy (Eds.). A Cultural History of Race in the Renaissance and Early Modern Age. Vol. 3. London: Bloomsbury Academic, 2021. ), o Volume 4, da Reforma e do Iluminismo (Hudson, 2021HUDSON, Nicholas (Ed.). A Cultural History of Race in the Reformation and the Enlightenment. Vol. 4. London: Bloomsbury Academic , 2021. ), o Volume 5, da Era dos Impérios e dos Estados-nação (Mogilner, 2021MOGILNER, Marina B. (Ed.). A Cultural History of Race in the Age of Empire and Nation State. Vol. 5. London: Bloomsbury Academic , 2021. ), e o Volume 6, da Era Moderna e Genômica (Golash-Boza, 2021GOLASH-BOZA, Tanya Maria (Ed.). A Cultural History of Race in the Modern and Genomic Age. Vol. 6. London: Bloomsbury Academic , 2021. ).

O segundo eixo é uma introdução sobre o estado da arte no período discutido e os temas gerais de cada capítulo, que, por um lado, dá conta de parte das preocupações historiográficas, e, por outro, atualiza o leitor que não tem contato profundo com os respectivos temas. Ao trazer essa ideia, conforma-se um raciocínio abrangente, com interpretações diversas, resultando em questões que são fundamentais para a leitura do volume, mas sempre em conexão com os outros. São eles: raça, ambiente e cultura; raça e religião; raça e ciência; raça e política; raça e etnicidade; raça e gênero; raça e sexualidade; e um último capítulo chamado anti-raça?

O volume sobre a Antiguidade dá ênfase aos gregos e aos romanos, num debate decisivo sobre o tema da raça nesses dois mundos não apenas a partir da documentação encontrada, mas sobretudo nas interpretações que adquiriram grande vigor a partir do século XIX, sob influência de um nascente racismo biológico e pela forma como a teoria racial crítica suscitou reflexões que demonstram a historicidade de uma construção social, e não um dado biológico. Há variações e diferenças entre o mundo grego e o romano em torno da raça. Conforme McCosey (2021, p. 4), “os gregos falavam grego, adoravam os mesmos deuses, tinham certos costumes e uma descendência comum que remontava a tempos míticos, mas não eram caracterizados por um estilo particular. Os romanos, pelo contrário, quase não valorizavam a descendência comum e consideravam a cultura material e a moralidade elementos muito mais importantes de seu sentido de identidade.” Etnicidade, religião, estruturas políticas e sistema ecológico como água, ar, alimento e clima passam a ser variáveis e potencializadores de identidades raciais não apenas dos povos gregos e romanos, mas de uma visão do e sobre o outro que, no contato constante, vai sendo definida pela diferença.

No volume sobre a Idade Média, abre-se a questão racial a partir de uma preocupação atual, quando uma interpretação artificial, cunhada por grupos de supremacia racial em diversas partes do mundo, reifica uma concepção de raça superior branca, europeia e cristã que deve ser encontrada nesse momento da história. No sentido oposto, o estudo de que se trata aqui aponta uma interpretação das inúmeras formas com que os povos medievais pensaram o mundo e as pessoas, inclusive sem o binarismo raça/etnia. Para isso, cita o trabalho de Suzanne Akbari, que adota o conceito de diversidade corporal, ou seja, a plasticidade da diversidade corporal é adequada aos usos da cor da pele e das características fisionômicas na Idade Média, porque “elas funcionam como metáforas cujos referentes e significados são menos restritos então do que na Modernidade” (Hahn, 2021HAHN, Thomas (Ed.). A Cultural History of Race in the Middle Ages. Vol. 2. London: Bloomsbury Academic , 2021., p. 11). Indo além, cumpre notar que, no estudo histórico de tal expressão, há que identificar as rupturas e permanências em torno da dimensão racial em tempos posteriores, levando em consideração que as teorias modernas de raça estão embebidas das teorias medievais concernentes ao papel do clima na determinação da composição humoral dos indivíduos e nas predisposições anatômicas, fisiológicas e até comportamentais de cada nação.

No volume dedicado ao Renascimento e à Idade Moderna, avança a discussão sobre raça ratificando o período medieval, com suas pendências raciais, e refletindo sobre o significado de uma leitura que procurou “limpá-lo”, como se conflitos dessa natureza não estivessem na ordem do dia, concorrendo para as interpretações de grupos racistas na atualidade. Como vimos, o problema com essa abordagem, claro, é “a normalização da experiência branca europeia como composição padrão, relegando a experiência dos negros africanos, dos asiáticos, dos judeus e dos mulçumanos às margens da história” (Coles; Kim, 2021COLES, Kimberly Anne; KIM, Dorothy (Eds.). A Cultural History of Race in the Renaissance and Early Modern Age. Vol. 3. London: Bloomsbury Academic, 2021. , p. 31). Nesse sentido, são fundamentais os estudos críticos do período, atentando para temas que mais tarde circulariam em torno do que se chamaria de “lógica filosófica da ciência genética”. Por esse raciocínio, a ideia de raça seria trans-histórica, isto é, mesmo com manifestações locais específicas, extrai seu poder político daquilo que já estaria presente na cultura e na vida social. Por isso, os capítulos se preocupam em olhar essas diversas estruturas culturais como mecanismos de produção racial do final do período medieval e do começo da Modernidade.

No livro sobre a Reforma e o Iluminismo, estudam-se o tempo das navegações e das grandes viagens e a colonização, que ensejaram o encontro com outro. A leitura do “Novo Mundo” está na literatura, em narrativas, cadernos de viagem e relatos científicos, criando o que Todorov (2020TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.) chamou de “a questão do outro”: “podemos descobrir os outros em nós mesmos e perceber que não somos uma substância homogênea e radicalmente diferentes de tudo o que não somos nós mesmos. Eu é um outro, mas cada um dos outros é também um eu, sujeito como eu. Só o meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e só eu estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim” (Hudson, 2021HUDSON, Nicholas (Ed.). A Cultural History of Race in the Reformation and the Enlightenment. Vol. 4. London: Bloomsbury Academic , 2021. , p. 2). Essa relação eu/outro como resultado de um novo pensamento racial, muito marcado pelos contatos advindos das navegações e das invasões territoriais, a chamada “Conquista”, converge em outro termo essencial do período tratado: a ideia de nação. Assim, raça e nação seriam construtos que tiveram na ideologia do Iluminismo características aparentemente contraditórias: a aversão à discriminação e o desejo de identidade nacional, a liberdade da perseguição e a liberdade de expressão. Os autores desse volume deixam claro que o ódio a determinados grupos, sua perseguição e morte não surgem com o racismo científico, mas, por exemplo, na animosidade religiosa, na posição social e na nacionalidade, investindo em noções como as de traços herdados, cor de pele e herança étnica.

No volume que discute a Era dos Impérios os Estados-nação, estuda-se todo o século XIX, quando o pensamento racial e uma cultura racializada pautaram as relações humanas e as transformações de cunho social em escala global. Quando se acirraram os conflitos entre impérios e nações, a dimensão racial ganhou um novo status, penetrando na cultura de massa emergente, com a chancela da ciência e a rubrica do positivismo. Com tais questões em pauta, o volume se debruça sobre esses contextos imperiais, nacionais e híbridos, sob as lentes da política racial, demonstrando a flexibilidade que o termo raça ganharia em diferentes partes do mundo, mas sem deixar de notar que raça deve ser entendida como uma linguagem onipresente de alteridade e de subjetividade pessoal. O período de revoluções, desenvolvimento capitalista e estruturas imperialistas decorre da necessidade de compreender a natureza humana para melhor controle social; “um antropocentrismo racial, traduzido na ideia de variação e desigualdade, fez com que o genérico ‘homem’, desprovido de quaisquer características sociais, demográficas ou psicológicas, designe apenas uma espécie biológica [...] a raça seria ao mesmo tempo um conceito teórico e um fator da política corporal diária” (Mogilner, 2021MOGILNER, Marina B. (Ed.). A Cultural History of Race in the Age of Empire and Nation State. Vol. 5. London: Bloomsbury Academic , 2021. , pp. 2-3). Foi nesse contexto que surgiu a eugenia, fosse para explicar cientificamente a raça, visando, por exemplo, moralizar e eugenizar a família, interditando os novos costumes trazidos pela modernidade, fosse para impedir que as altas taxas de mortalidade infantil seguissem denunciando uma “fraqueza nacional”.

O sexto e último volume, sobre a Era Moderna e Genômica, tem como ponto de partida os anos 1920, “quando se estabeleceu a concepção de eugenia, a ciência da raça, pela expansão e aplicação rigorosa das leis de imigração, pelo apartheid legal, pela continuidade da pseudociência racial e pela ascensão do discurso dos direitos humanos e civis em resposta” (Golash-Boza, 2021GOLASH-BOZA, Tanya Maria (Ed.). A Cultural History of Race in the Modern and Genomic Age. Vol. 6. London: Bloomsbury Academic , 2021. , p. 2), redundando, até os dias atuais, na suposição da possibilidade de se modelarem e por isso defenderem corpos superiores. Da esterilização compulsória, que perdurou até os anos 1990 em diversas partes do globo, à naturalização da restrição imigrantista, quando não de seu extermínio, são fatos mediados por discursos calibrados pela noção de que tudo isso seria muito bom, por limpar a sociedade dos fracos e incapazes, reconduzindo os fortes a seu devido lugar.

As análises desse volume destacam que hoje, mesmo sem nenhuma evidência de base genética para categorizações raciais, o discurso eugenista e transumanista continua a inebriar a razão sobre tais concepções, propondo, por meio de propaganda e tecnologias, ilhas de felicidade individual e uma certa proteção racial, por meio da reparação corporal genética, da ampliação de horizontes pela maquinaria de construção de genes superiores ou da venda de espermatozoides e óvulos garantidores de determinada prole esperada.

Ao fim e ao cabo, A Cultural History of Race traz uma reflexão histórica e formativa que merece a atenção de diversas áreas do conhecimento, como da formação escolar e universitária, atualizando o debate historiográfico, analisando períodos distintos e em longa duração, permitindo que outros territórios e períodos possam ser revisitados futuramente, a partir de um caminho teórico-metodológico já traçado pelas análises apresentadas. Mais que tudo, concorre para uma crítica profunda do período atual, pois, se tivermos uma imagem falseada do passado em busca de uma imagem própria, o resultado será, como mostra essa coletânea, o caminho do racismo e da xenofobia: a licença para uma exaltação racial que diz voltar ao passado para buscar provas de sua superioridade, com recursos interpretativos próprios, legitimando conflitos e guerras, apoiando a morte e o extermínio de grupos vulneráveis em diversos territórios, na mais absoluta violação dos direitos e da dignidade humana.

REFERÊNCIAS

  • COLES, Kimberly Anne; KIM, Dorothy (Eds.). A Cultural History of Race in the Renaissance and Early Modern Age. Vol. 3. London: Bloomsbury Academic, 2021.
  • GOLASH-BOZA, Tanya Maria (Ed.). A Cultural History of Race in the Modern and Genomic Age. Vol. 6. London: Bloomsbury Academic , 2021.
  • HAHN, Thomas (Ed.). A Cultural History of Race in the Middle Ages. Vol. 2. London: Bloomsbury Academic , 2021.
  • HUDSON, Nicholas (Ed.). A Cultural History of Race in the Reformation and the Enlightenment. Vol. 4. London: Bloomsbury Academic , 2021.
  • KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre História. Tradução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
  • MCCOSKEY, Denise Eileen (Ed.). A Cultural History of Race in Antiquity. Vol. 1. London: Bloomsbury Academic , 2021.
  • MOGILNER, Marina B. (Ed.). A Cultural History of Race in the Age of Empire and Nation State. Vol. 5. London: Bloomsbury Academic , 2021.
  • MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO-PENESB-RJ, 3º, 2003, Rio de Janeiro. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05 nov. 2003. pp. 1-17 (mimeo).
  • TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
  • TURDA, Marius (Ed.). A Cultural History of Race. Vols. 1-6. London: Bloomsbury Academic , 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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