INTRODUÇÃO
O gênero Cryptosporidium é constituído por protozoários coccídios que infectam mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes. Animais domésticos e selvagens são susceptíveis à infecção causada por diversas espécies e genótipos desse coccídio, muitos dos quais são encontrados em humanos (Fayer e Xiao, 2008).
A infecção em seres humanos comumente é causada por C. hominise C. parvum. No entanto, há relatos de infecção por C. meleagridis, C. canis, C. felis, C. ubiquitum, C. fayeri, C. muris, C. andersoni, C. suis, C. tyzzeri, C. cuniculus e C. viatorum em humanos, o que demonstra que animais domésticos e selvagens podem atuar como reservatórios e representar fontes de infecção desse parasito para o homem, favorecendo a contaminação de fontes de água, alimentos ou a infecção por contato direto (Fayer, 2010; Robinson et al., 2010; Elwin et al., 2012).
Infecções por Cryptosporidium em humanos podem ser assintomáticas ou resultar em doença clínica, principalmente na forma de diarreia, que pode durar até três semanas, embora seja autolimitante em pessoas sadias. Entretanto, enfermidade prolongada pode ser fatal em pacientes imunocomprometidos (Fayer e Xiao, 2008). Cryptosporidium spp. constitui importante causa de morbimortalidade em crianças abaixo de cinco anos de idade, sendo responsável por cerca de 1,5 milhão de mortes anualmente, sobretudo em países subdesenvolvidos (Unicef, 2008; Kotloff et al., 2013).
Com a crescente utilização de hamsters, coelhos, furões, porquinhos-da-índia e chinchilas como animais domésticos, tem-se discutido o potencial desses pets como reservatórios e veiculadores de parasitoses que acometem humanos, principalmente crianças (Thompson e Smith, 2011). Várias espécies de animais domésticos e selvagens são parasitadas por espécies zoonóticas de Cryptosporidium e têm sido consideradas como reservatórios do protozoário e fonte de contaminação ambiental, constituindo um problema de saúde pública importante em todos os continentes (Xiao et al., 2000).
O objetivo deste trabalho foi determinar a ocorrência de Cryptosporidium spp. em amostras fecais de animais exóticos de estimação e realizar a classificação molecular para determinação da espécie ou do genótipo do protozoário nas amostras positivas.
MATERIAL E MÉTODOS
De acordo com a disponibilidade, em uma amostragem de conveniência foram colhidas 386 amostras: 186 amostras de coelhos (Oryctolagus cuniculus), 78 de chinchilas (Chinchilla lanigera), 12 de hamsters-chineses (Cricetulus griseus), 40 de hamsters- sírios (Mesocricetus auratus), 33 de porquinhos-da-índia (Cavia porcellus), 22 de furões (Mustela putorius) e 15 de camundongos (Mus musculus), de diferentes idades, aparentemente saudáveis e sem histórico de doença anterior. As amostras, constituídas por aproximadamente 3g de fezes, foram colhidas em criatórios comerciais, pet shops, clínicas veterinárias e em residências, em algumas cidades do estado de São Paulo, Brasil. As amostras foram armazenadas a 4ºC, em recipientes de plástico de 50 mL, em solução de bicromato de potássio 2,5% (concentração final), e submetidas à purificação pela técnica de centrífugo-sedimentação em água/éter (Meloni e Thompson, 1996).
A extração de DNA foi realizada com utilização do QIAamp(r) DNA Stool Mini Kit (Qiagen, Alemanha), de acordo com protocolo sugerido pelo fabricante, após passo inicial de congelamento em nitrogênio líquido e descongelamento em termomixer por 95ºC, por 5x, em tampão ASL, incluído no kit de extração.
A nested PCR foi realizada nas 386 amostras para determinar a espécie ou o genótipo de Cryptosporidium presente nos animais. Desse modo, foi feita a amplificação de fragmentos do gene da subunidade 18S do RNA ribossômico utilizando-se os primers5´ TTCTAGAGCTAATACATGCG 3' e 5' CCCATTTCCTTCGAAACAGGA 3', para a reação primária (~1325 pb), e 5' GGAAGGGTTGTATTTATTAGATAAAG 3' e 5´ AAGGAGTAAGGAACAACCTCCA 3´, para a reação secundária (826-840 pb) (Xiao et al., 2000), nas seguintes condições de reação: preparação de 25µL de solução contendo 2,5µL de tampão para PCR 1x, 2,5mM MgCl2, 1U de Taq DNA polimerase, 200µM de cada desoxirribonucleotídeo, 200 nM de cada primer e 2,5µL de DNA alvo. Água ultrapura e DNA de Cryptosporidium serpentis foram utilizados, respectivamente, como controle negativo e positivo.
As amostras foram submetidas à desnaturação inicial a 94ºC por três minutos, seguida de 34 ciclos, cada um constituindo em desnaturação a 94ºC por 45 segundos, 45 segundos de anelamento a 55ºC e 60 segundos de extensão a 72ºC, com extensão final a 72ºC por sete minutos.
A identificação dos produtos das reações foi feita por eletroforese em gel de agarose 1,5% corado com brometo de etídio. Os fragmentos resultantes da nested PCR foram purificados utilizando-se o kit QIAquick(r) Gel Extraction (Qiagen, Alemanha) e submetidos ao sequenciamento bidirecional no Centro de Sequenciamento e Genômica Funcional da Unesp, Campus de Jaboticabal, mediante o uso do ABI Prism(r) Dye Terminator 3.1 (Applied Biosystems, EUA), em sequenciador automático ABI 3730XL (Applied Biosystems, EUA).
A determinação da sequência consenso foi realizada por meio do software Codoncode Aligner v. 1.5.2. (CodonCode Corp., EUA). Somente foram considerados nucleotídeos com valores de qualidade de sequenciamento maior ou igual a 20. Após determinação da sequência consenso dos fragmentos amplificados por PCR, foi realizado seu alinhamento com auxílio dos programas Clustal W (Thompson et al., 1997) e BioEdit(r) Sequence Alignment Editor (Hall, 1999), tomando-se como base sequências homólogas disponíveis no GenBank.
As sequências de nucleotídeos descritas neste trabalho foram publicadas no Genbank, sob os códigos KJ569795 a KJ569799.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Das 386 amostras submetidas à nested PCR, 44 (11,40%) amostras foram positivas para Cryptosporidium spp. Dentre elas, 25 (56,82%) foram de coelhos, seis (13,64%) de hamsters, cinco (11,36%) de chinchilas, quatro (9,09%) de porquinhos-da-índia e quatro (9,09%) de camundongos. Todas as amostras de furões foram negativas pela nested PCR. A maior ocorrência encontrada foi em camundongos: das 15 amostras, quatro foram positivas. A ocorrência em coelhos foi de 13,44% (25/186), seguida dos porquinhos-da-índia com 12,12% (4/33), hamsters 11,54% (6/52) e chinchilas 6,41% (5/78) (Tab. 1).
Dentre 44 amostras positivas, 11 resultaram em amplificação de DNA em quantidade suficiente para possibilitar o sequenciamento do fragmento amplificado, o que permitiu a identificação de Cryptosporidium tyzzeri em camundongos, C. muris em camundongos, hamsters e chinchila, C. parvum em chinchila, Cryptosporidium genótipo hamster em hamster e Cryptosporidium sp. em porquinho-da-índia (Tab. 1). As sequências analisadas apresentaram 100% de similaridade genética com as sequências de espécies ou genótipos já identificados, com exceção de duas amostras: Cryptosporidium sp. de porquinho-da-índia, que apresentou cinco inserções de nucleotídeos em relação à sequência DQ885337, e uma substituição e uma inserção de nucleotídeos quando comparada à sequência DQ885338, ambas publicadas por Huber et al. (2007), e Cryptosporidium genótipo hamster, que apresentou duas substituições de nucleotídeos quando comparada à sequência GQ121023 (Lv et al., 2009).
A nested PCR utilizada neste trabalho permite apenas a identificação do gênero Cryptosporidium; a determinação da espécie do protozoário só é possível após sequenciamento dos fragmentos amplificados. A amplificação de pequena quantidade de DNA, após a realização de nested PCR para Cryptosporidium spp., é comumente causada pela presença de inibidores da PCR em DNA extraído das amostras fecais ou pela presença de pequena quantidade de oocistos nas amostras fecais (Schrader et al., 2012). Como a técnica de extração de DNA utilizada é específica para amostras fecais e promove a remoção da maioria dos agentes inibidores da PCR, o mais provável é que nessas amostras houvesse pequena quantidade de oocistos.
Tabela 1. Resultado da nested PCR e identificação por sequenciamento de Cryptosporidium spp. em animais exóticos de companhia no Brasil
Hospedeiro | Nº. de amostras | Nº de amostras positivas (%) | Identificação por sequenciamento |
---|---|---|---|
Camundongo | 15 | 4 (26,67%) | C. tyzzeri (3) * C. muris (1) |
Coelho | 186 | 25 (13,44%) | - |
Porquinho-da-índia | 33 | 4 (12,12%) | Cryptosporidium sp. (1) |
Hamster-chinês | 12 | 4 (33,33%) | C. muris (2)Genótipo hamster (1) |
Hamster-sírio | 40 | 2 (5%) | C. muris (1) |
Chinchila | 78 | 5 (6,41%) | C. parvum (1)C. muris (1) |
Furão | 22 | 0 | - |
Total | 386 | 44 (11,40%) | 11 |
*Número de amostras identificadas.
Há somente um relato de presença de infecção por Cryptosporidium em chinchilas (Yamini e Raju, 1986). Em estudos epidemiológicos relacionados à criptosporidiose em roedores, não houve detecção Cryptosporidium spp. em chinchilas no Brasil ou em outros países (Gurgel et al., 2005; Lv et al., 2009). Entretanto, neste trabalho, Cryptosporidium foi identificado em 6,41% das amostras de chinchilas, e em duas amostras foi possível a identificação de C. parvum e C. muris. C. parvum é uma das principais espécies que acometem os humanos, e a veiculação hídrica pode atingir facilmente um grande contingente da população, podendo provocar inúmeros surtos (Fayer e Xiao, 2008; Yoder et al., 2012).
Embora C. muris já tenha sido identificado em muitos roedores, como ratos, ratazanas, camundongos, hamsters e esquilos, além de aves e mamíferos, incluindo humanos (Muthusamy et al., 2006; Ng et al., 2006; Kvác et al., 2008; Lupo et al., 2008; Feng et al 2011), este é o primeiro relato dessa espécie em chinchilas. Seria importante o desenvolvimento de novos estudos para esclarecer se chinchilas são uma fonte de infecção importante de espécies zoonóticas de Cryptosporidium.
Neste trabalho, C. tyzzeri foi identificado em camundongos pela primeira vez no Brasil. Essa espécie era anteriormente denominada Cryptosporidium genótipo I de camundongos, mas recentemente foi classificada por Ren et al. (2012). Em humanos, C. tyzzeri foi encontrado em uma criança no Kuwait (Sulaiman et al., 2005) e em uma mulher com caso grave de criptosporidiose com infecção mista por C. tyzzeri e C. parvum,provavelmente transmitida por roedores selvagens, demonstrando que C. tyzzeri possui vários hospedeiros e apresenta potencial zoonótico (Rasková et al., 2013).
Cryptosporidium wrairi não foi observado neste trabalho. A espécie é descrita como agente de infecção apenas em porquinho-da-índia, o que sugere alta especificidade para esse hospedeiro. Em um feito realizado no Brasil, a análise filogenética realizada de amostras de porquinhos-da-índia identificou um novo genótipo de Cryptosporidium (Huber et al., 2007), similar ao encontrado neste trabalho.
Cryptosporidium genótipo de hamster foi encontrado em uma amostra de hamster- chinês. Não há informação sobre a importância clínica ou em saúde pública de Cryptosporidium genótipo hamster, que foi descrito somente uma vez, em hamster- siberiano (Phodopus sungorus), na China (Lv et al., 2009).
Não foi possível fazer a identificação da espécie Cryptosporidium em coelhos devido à quantidade insuficiente de DNA para sequenciamento. Coelhos podem se infectar por C. parvum, C. meleagridis e C. cuniculus. Todas essas espécies já foram descritas em humanos e apresentam importância em saúde pública. Como C. cuniculus foi descoberto recentemente como um importante agente etiológico de enfermidade clínica em humanos (Robinson et al., 2008; Molloy et al., 2010), e há raros estudos relacionados a esse parasito, em estudos futuros seria importante classificar os isolados de coelhos em nível de espécie, e não somente de gênero.
Cryptosporidium spp. não foi detectado em nenhuma das amostras de furão, embora Cryptosporidium genótipo furão já tenha sido encontrado em furões e esquilos- vermelhos (Sciurus vulgaris) (Kvác et al., 2008) e C. parvum tenha sido identificado no Japão em furões assintomáticos (Abe e Iseki, 2003).