A meningoencefalite herpética é causada pelo herpesvírus bovino 5 (BoHV-5), que acomete, principalmente, animais jovens, entre 60 dias e 18 meses de idade (Rissi et al ., 2007). Essa afecção, caracterizada por baixa morbidade e alta letalidade, é considerada uma das principais causas de mortalidade por encefalite (Elias et al ., 2004; Rissi et al ., 2006).
Excetuando-se a raiva, a encefalite por BoHV-5 é a principal causa de encefalopatia em bovinos no Brasil, com surtos descritos nos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará (Rissi et al ., 2007). No Paraná, alguns surtos já foram relatados, o que demonstra a importância clínica e epidemiológica da doença (Claus et al. , 2007; Lisbôa et al ., 2009; Lunardi et al ., 2009).
Essa enfermidade causa sinais neurológicos que variam de acordo com a lesão e a área afetada do sistema nervoso central (SNC), mas geralmente caracterizam síndrome cerebral (Lunardi et al ., 2009). Nistagmo, bruxismo, opistótono, amaurose, andar compulsivo, ataxia, tremores musculares e convulsões são frequentemente observados (Isernhagen et al ., 2011). A evolução até a morte é variável, podendo ser de um a 15 dias (Elias et al ., 2004; Isernhagen et al ., 2011).
Diferentes técnicas podem ser utilizadas para a confirmação do diagnóstico post mortem , como histopatologia, imuno-histoquímica, isolamento viral e a reação em cadeia da polimerase (PCR). Para tanto, são utilizadas amostras do SNC do animal enfermo que morreu. A confirmação do diagnóstico ainda em vida tem interesse prático porque a doença nem sempre é fatal. O objetivo deste trabalho foi avaliar se a presença do genoma de BoHV-5 no líquido cefalorraquidiano (LCR), detectado por meio da PCR, pode ser admitido como método para o diagnóstico ante mortem .
Os projetos de pesquisa que originaram este trabalho foram previamente aprovados pela CEUA/UEL, sob os números de protocolo 04/09 e 32340.2012.04. Foram analisados 14 casos de bovinos naturalmente infectados com BoHV-5 e portadores de encefalite, criados em diferentes municípios do estado do Paraná. O levantamento das informações epidemiológicas, assim como os exames clínicos e neurológicos dos animais acometidos, foram realizados nas propriedades onde ocorreram os casos.
As coletas do LCR foram realizadas no espaço atlanto-occipital, utilizando-se a agulha metálica do cateter intravenoso 18G com 5cm de comprimento (BD Angiocath) e aspiração com seringa de 1mL. O LCR foi mantido refrige rado até a chegada ao laboratório. A eutanásia, seguida de necropsia, foi realizada após a coleta do LCR, com a finalidade de confirmação do diagnóstico e em comum acordo com o proprietário, considerando a evolução da doença, a gravidade das manifestações clínicas e a probabilidade reduzida de resposta a tentativas de tratamentos. Fragmentos do encéfalo foram coletados e, posteriormente, encaminhados para os exames histopatológico e virológico (PCR). Em todos os casos, fragmentos refrigerados do encéfalo foram encaminhados para o laboratório credenciado estadual e submetidos ao método de imunofluorescência direta, descartando-se o diagnóstico de raiva.
Para o exame histopatológico, as amostras foram fixadas em formol tamponado a 10%, submetidas à desidratação em soluções crescentes de alcoóis, diafanização em xilol e inclusão em parafina. Posteriormente, houve a obtenção de cortes uniformes de 5µm de espessura, com o auxílio de micrótomo, corados pelo método de hematoxilina-eosina (HE).
O LCR foi submetido à PCR, sem a etapa de extração do ácido nucleico. Nos fragmentos do encéfalo, o DNA foi extraído e submetido à PCR conforme os métodos descritos por Claus et al . (2005), com algumas modificações descritas a seguir na técnica de PCR. A reação de PCR foi realizada, utilizando-se 5µL do LCR (in natura ) e 45µL de mix , constituído por 20pmol de cada oligonucleotídeo iniciador (primer ) B5 (5'-CGG ACG AGA CGC CCT TGG- 3', nt 322-339) e Bcon (5'-AGT GCA CGT ACA GCG GCT CG-3', nt 461-480); 2,0mM de dNTP (Invitrogen(tm) Life Technologies, EUA); cinco unidades de Taq platinum DNA polimerase (Invitrogen(tm) Life Technologies, EUA); 1x PCR buffer (50mM KCl e 20mM Tris-HCl pH 8,4); 1,5mM MgCl2; 8% de dimetilsulfóxido (DMSO, Sigma Co., EUA) e água ultrapura estéril para completar o volume. A amplificação foi realizada em um único termociclador (PTC 200, MJ Research Co., EUA), sob as seguintes condições de tempo e temperatura: 94°C por 3min; seguido de 35 ciclos a 94°C por 1min; 58°C por 30s; 72°C por 1min e uma extensão final de 7min a 72°C.
Foram obtidos produtos da PCR de aproximadamente 160pb para o gene da glicoproteína C de BoHV-5, analisados por meio de eletroforese, empregando-se gel de agarose 2%, tampão TBE com pH 8,4 (89mM Tris; 89mM ácido bórico e 2mM EDTA) em voltagem constante (100V) por aproximadamente 45 min, corados com brometo de etídeo (0,5µg/mL) e visualizados sob luz ultravioleta.
Controles positivo e negativo foram utilizados em todas as reações como indicadores da acurácia diagnóstica. Como controle positivo, empregou-se a cepa AA 01, caracterizada como BoHV-5 por imunoperoxidase com anticorpos monoclonais (Souza et al ., 2002 ) e por enzimas de restrição (D'arce et al ., 2002). Solução de PBS foi submetida ao processo de extração e empregada como controle negativo.
O critério de inclusão dos animais baseou-se na presença das lesões histopatológicas compatíveis com a doença, caracterizadas por meningoencefalite não supurativa com ou sem necrose, acompanhada pela presença confirmada do DNA viral em diferentes porções do encéfalo (Fig. 1).

Figura 1 . Eletroforese em gel de agarose a 2% com brometo de etídio dos produtos amplificados por PCR para BoHV-5 (159pb) no encéfalo e no LCR de bovinos naturalmente acometidos por meningoencefalite herpética. Linha 1: controle positivo de BoHV-5 (AA 01); linha 2: amostra de córtex positiva; linha 3: amostra de cerebelo positiva; linha 4: amostra de ponte positiva; linha 5: amostra de tálamo positiva; linha 6: amostra do gânglio do nervo trigêmeo positiva; linha 7: amostra de LCR negativa; linha 8: controle negativo (PBS).
Dos 14 casos confirmados de encefalite por BoHV-5, o genoma viral foi detectado no LCR de apenas três (Tab. 1), gerando um índice de concordância de 21,4% entre os resultados no encéfalo e no LCR. Se for considerada em termos de probabilidade, utilizando-se amostras de LCR, as chances de confirmação do diagnóstico em vida se resumiriam a, aproximadamente, dois entre 10 bovinos portadores da doença.
Tabela 1. Presença do genoma de BoHV-5 no encéfalo e no LCR de bovinos naturalmente acometidos por meningoencefalite herpética
RG HV | Data | Raça | Idade(meses) | Sexo | Município | Encéfalo | LCR |
---|---|---|---|---|---|---|---|
559/10 | Fev/10 | Nelore | 24 | M | Ribeirão do Pinhal | + | - |
561/10 | Fev/10 | 1/2 Nelore | 18 | M | Ribeirão do Pinhal | + | - |
819/11 | Mar/11 | Nelore | 16 | M | Lobato | + | + |
918/11 | Mar/11 | 1/2 Nelore | 15 | M | Londrina | + | - |
1541/11 | Abr/11 | Nelore | 6 | F | Congonhinhas | + | - |
1840/11 | Mai/11 | Nelore | 16 | F | Colorado | + | - |
2088/11 | Mai/11 | Nelore | 7 | M | Sapopema | + | - |
3725/11 | Set/11 | Angus | 10 | M | Guarapuava | + | - |
290/12 | Jan/12 | Nelore | 18 | M | Bandeirantes | + | - |
5555/12 | Nov/12 | Nelore | 13 | M | Ibaiti | + | + |
1705/13 | Abr/13 | 1/2 Angus | 15 | M | Jataizinho | + | - |
4539/13 | Nov/13 | Nelore | 10 | M | Bandeirantes | + | + |
1761/14 | Mai/14 | Nelore | 20 | M | Colorado | + | - |
3405/14 | Ago/14 | Nelore | 18 | M | Paranavaí | + | - |
Taxa de positividade no LCR (%) | 21,42 |
Estudos anteriores do mesmo grupo de pesquisa mostraram resultados divergentes, como descrito a seguir. Em um surto da doença, o DNA viral foi confirmado no LCR de dois entre cinco bezerros testados (taxa de concordância de 40%) (Lunardi et al ., 2009). Sob condições experimentais, o DNA estava presente no LCR de dois entre os quatro bezerros que desenvolveram encefalite sintomática (taxa de concordância de 50%) (Isernhagen et al ., 2011). Apesar de o número de observações ter sido baixo nos dois estudos publicados, a concordância entre as presenças do DNA viral no encéfalo e no LCR foi maior do que a comprovada no presente trabalho.
Os fatores que influenciam a presença de BoHV-5 no LCR de animais com encefalite não são bem compreendidos porque não há estudos a respeito. Com base nos resultados experimentais de Isernhagen et al . (2011), a presença do DNA no LCR parece não estar relacionada com a intensidade da pleiocitose, ocorrendo em amostras que possuíam 81 e 178 leucócitos/mm3 (dados não publicados), e é incerto que possua relação com o tempo de evolução da doença. No estudo mencionado, o DNA foi confirmado em um bezerro que morreu após quadro superagudo (12 horas de evolução) e em um bezerro que apresentou quadro prolongado, com sinais mais brandos de síndrome cerebral, e foi submetido à eutanásia com 10 dias de evolução. Nesse último, o DNA viral foi confirmado somente no LCR coletado ao final da evolução, tendo sido negativo nas três amostras coletadas a cada 48 horas desde o início dos sinais. Também merece destaque o fato de que, nesse mesmo estudo, a presença do DNA no LCR não foi acompanhada pelo isolamento bem-sucedido do agente, distintamente do que se observou nas amostras coletadas de diferentes locais do encéfalo. Sob condições de infecção experimental, Spilki et al . (2006) também não obtiveram sucesso no isolamento viral em amostras de LCR.
Nos bovinos incluídos no presente estudo, o tempo de evolução até a morte foi variável (entre 24 horas e oito dias) e o número de células nucleadas presentes no LCR variou, consideravelmente, de 16 a 463 leucócitos/mm3. O DNA foi confirmado no LCR de animais que tinham doença há 24 horas, quatro dias e cinco dias, e intensidade de pleiocitose distinta: 16, 93 e 463 leucócitos/mm3; curiosamente, os extremos da variação.
Segundo estudo realizado com 15 cães naturalmente infectados pelo vírus da cinomose canina (CDV) e portadores de encefalite, a fase da doença (aguda ou crônica) e a gravidade e extensão das lesões presentes podem influenciar o número de células infectadas no LCR (Amude, 2008). O genoma do vírus foi identificado no LCR de 53,3% dos cães (8/15), e os resultados positivos foram mais prováveis na fase aguda da encefalite do que na crônica. Assim como já discutido para os bovinos, a presença do genoma do CDV no LCR também não se correlacionou com a intensidade da pleiocitose presente. Ainda que a comparação entre vírus distintos infectando hospedeiros diferentes não seja a mais adequada, fica patente que a presença do agente viral no LCR de animais com encefalite é, provavelmente, influenciada por diferentes fatores, que ainda não estão suficientemente esclarecidos.
A meningoencefalite herpética é uma doença que apresenta índice de letalidade elevado, mas nem sempre ocasiona a morte, tanto em surtos naturais (Lisbôa et al ., 2009; Lunardi et al ., 2009) quanto em infecções experimentais (Isernhagen et al ., 2011). A confirmação do diagnóstico em vida tem importância nos casos não fatais da enfermidade, mas, mesmo nos casos que resultarão em morte, pode permitir o estabelecimento precoce do diagnóstico diferencial com outras doenças nervosas. Com base nos resultados obtidos, pode-se concluir que a pesquisa da presença do genoma de BoHV-5 no LCR é um método de diagnóstico limitado. O resultado positivo no LCR confirma o diagnóstico, mas o resultado negativo não descarta a possibilidade de ser a enfermidade.