INTRODUÇÃO
O cavalo Campeiro é uma raça localmente adaptada da região do Planalto Serrano Catarinense, que tem como característica ser uma das poucas que apresentam a marcha, em suas diferentes formas, como seu andamento característico, o que atribui a esses equinos superior qualidade quando utilizados para montaria (Campeiro..., 1984).
Pelas condições peculiares de clima, alimentação, manejo e seleção, nas quais esses animais se desenvolveram e são mantidos, notam-se, como consequência, adaptações fisiológicas compensatórias. Tais características podem ser divergentes das condições normalmente observadas em outros grupos de equinos, sendo possivelmente normais para aqueles, desde que devidamente mensuradas, caso contrário podem levar a interpretações errôneas dos exames complementares (Messer, 1995).
É consenso entre pesquisadores e profissionais que fatores como idade, sexo, atividade física, condições geoclimáticas, alimentação, além das características espécies-específicas, influenciem na interpretação dos resultados de exames laboratoriais (Meyer e Harvey, 1998; Zhang et al., 1998).
Em várias situações, o exame físico, isoladamente, não fornece informações suficientes para formar considerações sobre a condição física do paciente ou como ferramenta diagnóstica. Isso leva à necessidade da realização de exames complementares, a fim de obter máxima precisão diagnóstica e, consequentemente, de prognóstico, direcionando qual a melhor terapia a ser instituída (Kaneko et al,. 2008; Neves et al., 2005; Harvey et al., 1984). Entre estes, a bioquímica clínica é de extrema importância nas avaliações das funções e/ou lesões renal, hepática e muscular, estando estas cada vez mais direcionadas às diferentes espécies e às variações intraespecíficas (Kaneko et al., 2008). Autores como Braun et al. (1982) e Balarin et al. (2005) discutem a relevância dos valores padrão de referência para a correta interpretação dos resultados de exames bioquímicos séricos em medicina veterinária.
Este trabalho teve por objetivo mensurar o perfil bioquímico sérico da atividade enzimática da gamaglutamiltransferase, aspartato aminotransferase, alanino aminotransferase, fosfatase alcalina, creatina fosfoquinase, lactato desidrogenase e concentração sérica de ureia e creatinina em equinos sadios da raça Campeiro, bem como diferenças quanto à idade, ao sexo e à condição reprodutiva.
MATERIAL E MÉTODOS
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Experimentação Animal (Cetea/Udesc), número de protocolo 01.78.14.
O presente trabalho foi realizado em conjunto com a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, a Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Campeiro (ABRACCC) e o Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Foram utilizados 138 equinos, com idade média de 9,7±5,4 anos, sendo 14 machos (10,15%) e 124 fêmeas (89,85%) clinicamente sadios da raça Campeiro. Todos os animais eram registrados na ABRACCC e provenientes de propriedades núcleos de conservação da raça nas cidades de Lages, Curitibanos, Campos Novos e Concórdia, no estado de Santa Catarina, e de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul.
A análise do perfil bioquímico sérico foi realizada por meio da atividade enzimática da gamaglutamiltransferase (GGT), aspartato aminotransferase (AST), alanino aminotransferase (ALT), fosfatase alcalina (FA), creatina fosfoquinase (CK), lactato desidrogenase (LDH) e concentrações séricas de ureia e creatinina. As análises bioquímicas foram realizadas no Laboratório de Patologia Clínica do Hospital de Clínicas Veterinárias (HCV) do CAV/Udesc, Lages - SC. Para avaliação da influência de fatores relacionados à idade e ao sexo, sobre os parâmetros bioquímicos estudados, os animais foram distribuídos em quatro grupos experimentais, segundo a faixa etária: três a cinco anos; seis a oito anos; nove a 12 anos e acima de 13 anos, entre machos e fêmeas e ainda uma comparação entre fêmeas vazias e prenhes.
Amostras de sangue foram colhidas por venopunção jugular em tubos a vácuo sem anticoagulante e mantidas em temperatura ambiente para favorecer a formação e retração do coágulo. Em seguida, as amostras foram centrifugadas a 2.500rpm, por 10 minutos, para a separação do soro que fora acondicionado em microtubos (Eppendorf(r)) e armazenado à temperatura de -20ºC até as análises laboratoriais. As provas bioquímicas foram realizadas por meio de métodos cinético e colorimétrico, em analisador bioquímico semiautomático Thermo Plate - TP Analyser (r), com kits comerciais. Para a análise estatística, utilizou-se ANOVA, seguida do teste de Tukey para comparações entre grupos, e este T para a comparação entre as médias entre as fêmeas vazias e gestantes, com P <0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os valores médios, mínimos e máximos e os desvios-padrão da atividade sérica enzimática da GGT, AST, ALT, FA, CK, LDH, bem como da concentração sérica de ureia e creatinina para equinos adultos da raça Campeiro estão representados na Tab. 1.
Tabela 1 Valores médios, desvios-padrão (x(s), valor mínimo e máximo da atividade sérica de 138 equinos machos (n=14) e fêmeas (n=124) adultos, clinicamente sadios, da raça Campeiro
Variáveis | Média | Desvio-padrão | Valor mínimo | Valor máximo |
GGT (U/L) | 13,73 | 4,08 | 7,12 | 22,45 |
AST (U/L) | 246,34 | 72,87 | 140,00 | 544,45 |
ALT (U/L) | 5,13 | 1,18 | 2,58 | 9,20 |
FA (UI/L) | 284,32 | 53,33 | 146,49 | 410,86 |
CK (U/L) | 132,54 | 72,25 | 35,88 | 473,12 |
LDH (U/L) | 511,38 | 143,65 | 122,36 | 920,09 |
Ureia (mg/dL) | 38,65 | 12,62 | 18,70 | 88,85 |
Creatinina (mg/dL) | 1,24 | 0,24 | 0,85 | 2,12 |
Observaram-se valores médios da atividade sérica da AST, FA, ALT e da concentração sérica de ureia e creatinina similares e de GGT, CK e LDH superiores aos valores propostos por Kaneko et al. (2008). As enzimas AST, CK e LDH, apresentaram concentrações superiores às encontradas em estudo com equinos que realizavam atividade de reprodução, tração ou de vaquejada (Silva et al., 2007). Em outro estudo realizado com cavalos Mangalarga Marchador, os valores de ureia foram menores e os de creatinina maiores aos encontrados no cavalo Campeiro (Melo et al., 2013). Comis (2006), ao estudar a estabilidade de constituintes do soro de equinos Mangalarga Marchador, obteve valores de ureia, creatinina, GGT, AST, CK similares e de FA e LDH superiores aos deste estudo. Os valores de FA e LDH apresentaram-se mais elevados ao serem comparados aos valores de referência apresentados por Mcgowan e Hodgson (2014) para equinos atletas, sendo os demais similares. Tais achados sugerem particularidades intrínsecas aos cavalos Campeiros.
A LDH total apresenta uma diversificada distribuição nos tecidos corporais, em que o aumento da sua atividade sérica não seja específico para lesão hepática, cardíaca ou muscular, necessitando ser analisada em conjunto com outras enzimas ou fracionada em isoenzimas para aumento sua especificidade (Kingston, 2008).
O efeito do exercício e do treinamento sobre a atividade enzimática sérica do músculo é de difícil determinação. Os resultados variam na literatura devido a diferenças tanto nos protocolos utilizados por diferentes estudos (tipo, intensidade e duração do exercício) quanto no nível de condicionamento físico dos animais usados nos estudos (Billings, 2014).
Não foi observada diferença significativa (P>0,05) em nenhuma das variáveis analisadas quanto à idade (Tab. 2). Resultados similares foram obtidos por Sartor et al. (1985), em relação a FA e AST e por Maitin et al. (1986) para valores de CK, em equinos das raças Puro Sangue e Mangalarga Marchador, respectivamente.
Tabela 2 Valores médios e desvios-padrão (x±s) da atividade sérica de equinos adultos clinicamente sadios da raça Campeiro, em diferentes idades
Variáveis | 3-5 anos (n=34) | 6-8 anos (n=34) | 9-12 anos (n=34) | Acima 13 anos (n=36) |
GGT (U/L) | 13,57(3,69 | 13,83(4,71 | 13,47(3,91 | 14,05(4,32 |
AST (U/L) | 228,72(91,06 | 249,79(90,3 | 267,17(61,79 | 237,29(37,63 |
ALT (U/L) | 5,09(2,33 | 5,15(1,45 | 5,26(1,04 | 5,67(0,95 |
FA (UI/L) | 271,80(31,29 | 272,63(50,64 | 274,08(57,67 | 318,61(59,96 |
CK (U/L) | 109,99(36,27 | 124,69(53,30 | 171,72(71,21 | 121,17(98,35 |
LDH (U/L) | 491,31(105,19 | 483,87(132,84 | 475,52(147,57 | 595,81(158,74 |
Ureia (mg/dL) | 35,44(16,93 | 37,06(12,70 | 41,32(10,94 | 40,43(9,39 |
Creatinina (mg/dL) | 1,29(0,24 | 1,31(0,15 | 1,25(0,32 | 1,12(0,16 |
Não houve diferença significativa (P>0,05) entre os grupos.
Em um estudo realizado por Benesi et al. (2009), os quais acompanharam potras da raça Brasileiro de Hipismo do nascimento até os 24 meses, os autores observaram que o perfil bioquímico de algumas enzimas séricas sofreu influência do fator etário no período inicial da vida, passando a ser similar aos valores de referência para equinos adultos a partir dos seis meses de idade. Mesmo resultado fora obtido por Da Cás et al. (2001) quando avaliaram as concentrações séricas de CK, AST e LDH em potros Puro Sangue Inglês. Resultados semelhantes foram observados por Gurgoze e Icen (2010), ao estudarem variáveis bioquímicas de equinos Puro Sangue Árabe relacionados à idade, em que foram observadas diferenças com valores médios de ureia e creatinina menores e de FA maiores nos potros em relação aos animais adultos.
Foram observadas diferenças (P<0,05) em relação ao sexo, com valores médios de ureia maiores e de creatinina menores nas fêmeas em relação aos machos (Tab. 3). As diferenças nesses constituintes podem ter sido um achado ocasional relacionado às variações fisiológicas, sem ter importância clínica. Não se observaram diferenças nas concentrações séricas de ureia e creatinina relacionadas ao sexo em trabalhos realizados com equinos da raça Mangalarga Paulista (Neves et al., 2005) e Mangalarga Marchador (Melo et al., 2013). Os valores médios de GGT, AST, ALT, FA, CK e LDH não diferiram significativamente (P>0,05) em relação ao sexo dos animais.
Tabela 3 Valores médios e desvios-padrão (x±s) da atividade de equinos adultos machos e fêmeas (vazias e prenhes), clinicamente sadios, da raça Campeiro
Variáveis | Fêmea (n=124) | Macho (n=14) | Fêmea (n=124) | |
Vazia (n=74) | Prenhe (n=50) | |||
GGT (U/L) | 14,01(4,08 | 12,61(4,07 | 14,29(4,06 | 13,36(4,02 |
AST (U/L) | 252,54(71,19 | 222,06(77,19 | 260,38(91,06 | 255,22(40,49 |
ALT (U/L) | 5,27(1,16 | 4,53(1,08 | 5,60(1,25 | 5,05(0,97 |
FA (UI/L) | 290,50(53,13a | 260,04(48,68a | 272,15(46,98b | 313,97(56,06a |
CK (U/L) | 142,52(76,37 | 94,18(33,83 | 129,42(63,72 | 161,53(90,81 |
LDH (U/L) | 537,18(141,24 | 410,16(106,25 | 509,37(111,82 | 574,87(173,20 |
Ureia (mg/dL) | 40,64(12,28b | 30,87(11,23a | 36,47(10,69a | 42,96(9,51a |
Creatinina (mg/dL) | 1,20(0,19b | 1,43(0,31a | 1,23(0,19a | 1,16(0,18a |
Valores seguidos de letras distintas diferem significativamente (P<0,05; ANOVA; Tukey).
Com relação ao período reprodutivo, observou-se valor médio de FA maior (P<0,05) nas fêmeas gestantes quando comparadas às não gestantes, não havendo diferença (P>0,05) para as demais variáveis entre éguas vazias e prenhes (Tab. 3). Tal resultado parece não ter importância clínica, mesmo que o período gestacional promova alterações hormonais e consequentemente metabólicas, a fim de viabilizar a gestação, mas não implicando necessariamente em alterações no perfil enzimático sérico. Harvey et al. (2005), em um estudo avaliando a bioquímica clínica entre éguas gestantes e no período pós-parto, não observaram diferenças nos valores da atividade sérica da FA em nenhum dos momentos avaliados em relação ao grupo controle. Resultado semelhante foi encontrado por Meuten et al. (1980), quando não detectaram mudança significativa na atividade da FA no soro de éguas durante a gestação, sugerindo que a interpretação da FA sérica em éguas pode ser feita independentemente do estado gestacional.
CONCLUSÃO
Conclui-se que o perfil bioquímico sérico de equinos sadios da raça Campeiro apresenta variações peculiares que devem ser levadas em consideração na interpretação de exames laboratoriais. Os valores obtidos para as variáveis bioquímicas estudadas podem ser empregados na interpretação de exames laboratoriais e em estudos comparativos.