INTRODUÇÃO
A criptosporidiose é uma importante zoonose que pode ser transmitida por meio de alimentos, água de bebida e por contato com animais e pessoas infectadas. Além disso, trata-se de uma enfermidade clínica ou subclínica frequente em diversas espécies de animais, incluindo coelhos domésticos (Xiao e Fayer, 2008).
Na África e na Ásia, a criptosporidiose foi considerada a segunda maior causa de diarreia e morte em crianças com menos de cinco anos de idade (Striepen, 2013), sendo responsável por 20% das causas de diarreia em crianças de países em desenvolvimento (Mosier e Oberst, 2000) e por 748.000 casos anuais de diarreia nos Estados Unidos (Scallan et al., 2011).
Aproximadamente 20 espécies e diversos genótipos de Cryptosporidium já foram encontrados em humanos, incluindo C. hominis, C. parvum, C. meleagridis, C. felis, C. canis, C. cuniculus, C. ubiquitum,C. viatorum, C. muris, C. suis, C. fayeri, C. andersoni, C. bovis, C. scrofarum, C. tyzzeri, C. erinacei e os genótipos cavalo, gambá, macaco e esquilo I (Robinson et al., 2008; Xiao e Fayer, 2008; Fayer, 2010; Xiao, 2010; Liuet al., 2014).
Os coelhos eram considerados como o único hospedeiro de C. cuniculus até que um surto de criptosporidiose em humanos por C. cuniculus foi descrito no Reino Unido (Chalmers et al., 2009). A crescente aquisição de coelhos como animais de estimação enfatiza a necessidade de monitoramento de infecções por Cryptosporidium e sua importância em saúde pública (Shiibashi et al., 2006). Os coelhos também podem ser infectados por C. parvum e C. meleagridis, que igualmente são espécies consideradas patogênicas para humanos (Duszynski e Couch, 2013).
Nos coelhos, a infecção por Cryptosporidium muitas vezes não é detectada devido à baixa prevalência e ao fato de que a infecção muitas vezes é subclínica (Shietal., 2010; Zhang et al., 2012). No entanto, quando submetidos a condições estressantes, coelhos portadores de Cryptosporidium podem desenvolver diarreia, cuja gravidade vai depender da idade, da alimentação e do estado imunológico dos animais (Kaupke et al., 2014). A diarreia, associada à criptosporidiose, pode resultar em mortalidade e ocorre principalmente no período pós-desmame, quando há estresse relacionado à separação da mãe, ao transporte para gaiolas de engorda e à mudança de alimentação (Shiibashi et al., 2006; Kaupke et al., 2014).
No Brasil, não há trabalhos referentes à caracterização molecular de Cryptosporidium em coelhos. Em outros países, há diversos relatos de identificação de C. cuniculus e de seus subtipos relacionados ao gene da glicoproteína GP60 (Ryan et al., 2003; Chalmers et al., 2009; Nolan et al., 2010; Shi et al., 2010; Zhang et al., 2012; Kaupke et al., 2014).
Este trabalho visou determinar a ocorrência de Cryptosporidium spp. em amostras fecais de coelhos em granjas brasileiras, realizar sua caracterização molecular para determinação da espécie e do subtipo do parasito, bem como relacionar a presença do parasito às diferentes fases de criação.
MATERIAL E MÉTODOS
As amostras fecais foram colhidas em 21 criações comerciais de coelhos, que tem como objetivo a comercialização de animais de estimação para pesquisa, abate para consumo ou reprodução. As criações se localizam nos municípios de Bambuí (MG), São João Batista da Glória (MG), Campo Grande (MS), Jaboatão dos Guararapes (PE), Curitiba (PR), Teresópolis (RJ), Eldorado do Sul (RS), Porto Alegre (RS), Santa Maria (RS), Araçatuba (SP), Araraquara (SP), Botucatu (SP), Campinas (SP), Guariba (SP), Jaboticabal (SP), Pradópolis (SP), Ribeirão Pires (SP) e Ribeirão Preto (SP).
Foram colhidas 514 amostras, constituídas por aproximadamente 30g de fezes, diretamente no interior das gaiolas, no piso embaixo das gaiolas ou em bandejas coletoras localizadas embaixo das gaiolas. As amostras foram armazenadas em frascos de plástico contendo dicromato de potássio 5%, a 4ºC.
As amostras foram classificadas de acordo com a idade, o sexo e o estado reprodutivo dos animais: fêmeas não gestantes, fêmeas gestantes, fêmeas lactantes, filhotes de 31 a 50 dias de idade, filhotes de 51 a 80 dias de idade e machos adultos. As amostras de filhotes foram constituídas por um pool de amostras fecais referentes a vários animais alojados em uma mesma gaiola, enquanto as amostras de coelhos adultos foram individuais.
As amostras fecais foram coadas em peneira de plástico descartável e submetidas à concentração e purificação por centrífugo-flutuação em solução de Sheather acrescida com 0,1% de Tween 20. O sedimento resultante do processo de purificação foi diluído em solução salina fosfatada (PBS) com antibióticos (100U penicilina/mL + 100µg gentamicina/mL + 100µg estreptomicina/mL + 0,25µg anfotericina B/mL) e armazenado a 4ºC.
A pesquisa de oocistos de Cryptosporidium spp. foi realizada no sedimento resultante do processo de purificação das 514 amostras, utilizando-se a coloração negativa com verde malaquita (Elliot et al., 1999).
Para extração do DNA genômico de Cryptosporidium spp., foi utilizado um protocolo adaptado das técnicas descritas por Boom et al. (1990) e Wang et al. (2011). Os microtubos contendo o sedimento resultante da purificação foram centrifugados a 12.000g, por três minutos, com descarte do sobrenadante. O sedimento foi diluído em 600µL de tampão L1 (24g de isotiocianato de guanidina; 20mL de Tris-HCL 0,1M pH 6,4; 4,4mL de EDTA 0,2M pH 8,0; 0,5mL de Triton X-100 e polivinilpirrolidona 1%). Após adição de 20µL de álcool isoamílico e 200mg de pérolas de vidro de 0,45µm, o microtubo foi submetido à agitação por dois minutos, em velocidade máxima, no mini-Beadbeater (Biospec, Estados Unidos), com incubação a 60ºC por duas horas e agitação periódica a 1.000rpm por cinco segundos, a cada cinco minutos, e centrifugação a 12.000g por cinco minutos. O sobrenadante foi homogeneizado com 300µL de isopropanol e transferido para uma coluna de sílica (Zymo-SpinTM IIIC, Zymo Research, Estados Unidos) previamente inserida em um tubo coletor de 2mL. O tubo foi centrifugado a 16.100g por um minuto, com descarte da solução. Seiscentos microlitros de tampão L2 (24g de tiocianato de guanidina, 20mL de 0,1M Tris-HCL pH 6,4, 4,4mL de EDTA 0,2M pH 8,0) foram adicionados à coluna de sílica, com centrifugação a 16.100g, por um minuto, e descarte da solução. Seiscentos microlitros de tampão L3 (etanol 70% em solução de NaCl 10mM, Tris-HCL 10mM e EDTA 0,5mM, pH 7,5) foram adicionados por duas vezes seguidas, com centrifugação a 16.100g, por um minuto, e descarte da solução do microtubo. Após transferência da coluna de sílica para um tubo de 1,5mL, 50µL de solução de eluição (Tris 10mM, EDTA 0,5mM, pH 9), previamente aquecida a 56ºC, foi adicionada à coluna de sílica, com centrifugação a 16.100g por um minuto, colheita do DNA eluído e armazenamento a -20ºC.
Para identificação da espécie de Cryptosporidium, 55 amostras foram selecionadas, de forma a que cada fase de criação fosse representada, incluindo as amostras positivas pela microscopia, para realização da reação em cadeia da polimerase (nested PCR) seguida de sequenciamento dos fragmentos amplificados (nested PCR/S). Dessa forma, foram selecionadas amostras correspondentes a cinco fêmeas não gestantes, 10 fêmeas gestantes, 12 fêmeas lactantes, 14 filhotes de 31 a 50 dias, oito filhotes de 51 a 80 dias e seis machos adultos.
A nested PCR foi realizada para amplificação de fragmentos do gene da subunidade 18S do RNA ribossômico (18S rRNA), com os oligonucleotídeos iniciadores 5´ TTCTAG AGCTAATACATGCG 3' e 5' CCCATTTCCTTCGAAACAGGA 3' para a reação primária (1325 pb) e 5' GGA AGG GTT GTA TTT ATT AGA TAA AG 3' e 5´ AAG GAGTAAGGAACAACCTCCA 3´ para a reação secundária (826-840 pb) (Xiao et al., 2000).
Visando à subtipagem de C. cuniculus, as amostras positivas pela nested PCR/S para o gene 18S rRNA foram submetidas à nested PCR/S para amplificação e sequenciamento de fragmento parcial do gene da glicoproteína GP60, utilizando-se os oligonucleotídeos iniciadores 5´ ATAGTCTCCGCTGTATTC 3' e 5´ GGAAGGAACGATGTATCT 3' para a reação primária (909 bp) e 5' TCCGCTGTATTCTCAGCC 3' e 5´ GCAGAGGAACCAGCATC 3´ para a reação secundária (875 pb) (Alves et al., 2003).
Como controle positivo da nested PCR, foi utilizado DNA genômico de Cryptosporidium serpentis (18S rRNA) e de C. parvum (GP60). Água ultrapura foi empregada como controle negativo. Os fragmentos amplificados foram visualizados por eletroforese em gel de agarose a 2% corado com brometo de etídio.
Os fragmentos resultantes da nested PCR para os dois genes foram purificados utilizando-se o QIAquick(r) Gel Extraction kit (Qiagen, Alemanha) e submetidos ao sequenciamento bidirecional no Centro de Sequenciamento e Genômica Funcional da Unesp, Campus de Jaboticabal, utilizando-se o "ABI Prism(r) Dye Terminator 3.1" (Applied Biosystems, Estados Unidos), em sequenciador automático ABI 3730XL (Applied Biosystems, Estados Unidos).
A determinação das sequências consenso foi realizada por meio do software Codoncode Aligner v. 1.5.2. (CodonCode Corporation, Estados Unidos). As sequências consenso contendo nucleotídeos com valores de qualidade de sequenciamento maior ou igual a 20 foram alinhadas com auxílio dos programas Clustal W (Thompson et al., 1997) e BioEdit Sequence Alignment Editor (Hall, 1999), tomando-se como base sequências homólogas disponíveis no GenBank. As sequências de nucleotídeos descritas neste trabalho foram publicadas no Genbank, sob os códigos KT948753 e KT948754.
A análise estatística descritiva foi efetuada para avaliação dos resultados.
Este trabalho foi realizado após aprovação pelo Comitê de Ética no Uso de Animais das Faculdades de Odontologia e de Medicina Veterinária da Unesp, campus de Araçatuba, Processo FOA-00553-2013.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Pela microscopia e pela nested PCR, foi observada positividade para Cryptosporidium spp. de 1,56% (8/514) e 12,73% (7/55), respectivamente. Entre as amostras positivas pela microscopia, sete foram positivas pela nested PCR. Positividade para Cryptosporidium foi encontrada em cinco granjas, sendo três em amostras de filhotes de coelhos entre 31 e 50 dias, nas cidades de Campo Grande, Curitiba e Ribeirão Preto, duas de filhotes entre 51 e 80 dias, em Jaboticabal, uma de uma fêmea gestante e uma de uma fêmea lactante, em Ribeirão Preto (Tab. 1). A análise molecular revelou C. cuniculus para o gene 18S rRNA e C. cuniculus subtipo VbA21 para o gene GP60, com 100% de similaridade genética quando comparados às sequências publicadas no GenBank FJ262724 (gene 18S rRNA) e HQ397717 (gene GP60) (Tab. 1).
Tabela 1 Identificação das amostras positivas para Cryptosporidium spp. pela nested PCR e pelo sequenciamento dos fragmentos amplificados, em relação à fase de criação
Categoria | PCR (gene 18S rRNA) % positivas (positivas/total) | Sequenciamento Gene 18S rRNA | Sequenciamento Gene GP60 |
Fêmea não gestante | 0 (0/5) | - | - |
Fêmea gestante | 10 (1/10) | C. cuniculus | C. cuniculus VbA21 |
Fêmea lactante | 8,33 (1/12) | C. cuniculus | C. cuniculus VbA21 |
Filhote 31-50 dias | 21,43 (3/14) | C. cuniculus | C. cuniculus VbA21 |
Filhote 51-80 dias | 25 (2/8) | C. cuniculus | C. cuniculus VbA21 |
Machos | 0 (0/6) | - | - |
A criptosporidiose em coelhos geralmente se caracteriza por ausência de sinais clínicos e pelo baixo número de oocistos em fezes (Inman e Takeuchi, 1979; Pavlásek et al., 1996; Cox et al., 2005; Shiibashi et al., 2006). A enfermidade clínica ocorre com mais frequência em coelhos entre 30 e 40 dias de idade, e a fonte de infecção para os coelhos jovens são as mães que excretam oocistos pouco antes do parto e vários dias depois do parto (Pavlásek et al., 1996). Esses fatores podem explicar a ocorrência de C. cuniculus apenas em filhotes e em fêmeas gestantes e lactantes, como observado neste estudo.
Ocorrência semelhante à encontrada neste estudo (1,56%; 8/514) foi observada no único trabalho desenvolvido no Brasil (1,66%; 2/120) que utilizou o exame microscópico para pesquisa de Cryptosporidium spp. em coelhos, no Rio Grande do Sul (Silva et al., 2006).
Em outros países, os valores de ocorrência de Cryptosporidium em coelhos também são semelhantes ao encontrado neste estudo, porém com identificação de outros subtipos relacionados ao gene GP60 (Chalmers et al., 2009; Nolan et al., 2010; Shi et al., 2010).
Zhang et al. (2012) relataram, em coelhos de quatro a seis meses de idade, na China, a presença dos subtipos VbA21e VbA32 de C. cuniculus e positividade para Cryptosporidium spp., pela microscopia, de 2,38% (9/378). Shi et al. (2010) relataram prevalência de Cryptosporidium spp. de 3,4% (37/1081) na China, sendo de 10,9% (27/249) para coelhos jovens e de 0,92% (7/761) para coelhos adultos. Neste trabalho, considerando-se os animais por faixa etária, foi encontrada positividade de 22,73% (5/22) e de 5,71% (2/35) em coelhos jovens e em coelhos adultos, respectivamente. Ocorrência mais alta em coelhos jovens (19,7%; 13/66) também foi identificada no Japão (Shiibashi et al., 2006).
O subtipo VbA21 também foi encontrado por Zhang et al. (2012) em granjas de coelhos na China. No entanto, não há relatos quanto à infecção pelo subtipo VbA21 em humanos, apesar de outros subtipos de C. cuniculus terem sido encontrados em humanos (Chalmers et al., 2009; Bouzid et al., 2010; Robinson e Chalmers, 2010).
Apesar de a ocorrência de infecção por C. cuniculus em criações brasileiras de coelhos pesquisadas neste experimento ser baixa e semelhante à observada em outros países, a possibilidade de transmissão de um agente zoonótico para o homem deve ser considerada, particularmente em pessoas que apresentam contado direto ou indireto com coelhos domésticos. Por outro lado, a infecção por C. cuniculus deve ser considerada no diagnóstico diferencial de enfermidade clínica relacionada ao sistema gastrintestinal em coelhos domésticos.