No Brasil e nos demais países de língua portuguesa, o antimoniato de N-metilglucamina (Glucantime(r)), um antimonial pentavalente (Sb+5), é a droga de primeira linha para o tratamento das leishmanioses (Manual..., 2014). As leishmanioses são um conjunto de doenças causadas por protozoários do gênero Leishmania, que podem ocorrer na pele, nas membranas mucosas ou nas vísceras. Embora o antimoniato de N-metilglucamina tenha sido introduzido em 1945 e ainda seja a droga de primeira escolha para o tratamento das leishmanioses (Frézard e Demicheli, 2010), o índice de sucesso terapêutico, usando o esquema preconizado pelo Ministério da Saúde, varia de 26% a 91,4% (Lima et al., 2007). Além disso, o uso de antimoniato de N-metilglucamina está associado a efeitos adversos, como, artralgia, cefaleia, reações cutâneas, mialgias, dores abdominais, alterações hepáticas, cardiológicas e renais (Rodrigues et al., 2007). No que tange aos efeitos adversos do antimoniato de N-metilglucamina, postula-se que a cardiototoxicidade seria o seu efeito adverso mais severo. Todavia, a literatura mostra que os efeitos tóxicos do antimoniato de N-metilglucamina sobre os rins podem ser severos, levando inclusive os pacientes a óbito (Amato et al., 1998). A elevada toxicidade e as variações no índice de sucesso terapêutico tornam o tratamento das leishmanioses com antimoniato de N-metilglucamina um desafio para o sistema único de saúde (SUS), inclusive com aumento de custos para os cofres públicos e geração de sofrimento para o paciente. Assim, as adversidades decorrentes do uso do antimoniato de N-metilglucamina têm impulsionado a realização de pesquisas na perspectiva de se obter um cenário mais promissor. Entre as alternativas terapêuticas de se reverter ou amenizar a cardiototoxicidade e a renototoxicidade do antimoniato de N-metilglucamina, sobressaem-se os inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA), como o captopril e o enalapril. Nesse sentido, foi verificado, em um estudo retrospectivo, que a administração concomitante de antimoniato de N-metilglucamina e inibidores da ECA, entre eles o captopril e o enalapril, parece corrigir a cardiotoxicidade causada pelo antimoniato de N-metilglucamina (Rodrigues et al., 2007). Já está bem estabelecido que o enalapril e o captopril, além de serem anti-hipertensivos, são também anti-inflamatórios e imunorreguladores (Cavanagh et al., 1995). Em um trabalho anterior, mostrou-se que o captopril reduz a nefrite no modelo murino BW[F1], predisposto ao desenvolvimento de lúpus (Albuquerque et al., 2004). Embora antimoniato de N-metilglucamina seja tóxico para os rins de humanos (Sampaio et al., 1997) e de ratos (Veiga et al., 1990), não há registros na literatura de estudos pré-clínicos avaliando o efeito do captopril ou enalapril sobre as lesões renais causadas pelo antimoniato de N-metilglucamina em camundongos. Portanto, no presente estudo, avaliou-se o possível efeito do captopril e do enalapril sobre os efeitos do antimoniato de N-metilglucamina em rins de camundongos e verificou-se que tanto o enalapril quanto o captopril revertem o edema e a hiperplasia renais causados pelo antimoniato de N-metilglucamina.
Animais: os camundongos da linhagem C57BL/6, isogênicos, usados neste experimento, eram todos fêmeas, estavam com idade de 12 semanas no início do experimento, e foram adquiridos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Salvador, BA. Durante o experimento, os animais foram mantidos em gaiolas de polipropileno com acesso livre a água e ração autoclavadas, com ciclos alternados de claro/escuro de 12 horas e temperatura a 25°C. A manipulação dos animais foi feita de acordo com os princípios de ética da experimentação animal (# 23108.039341/12-4). Os camundongos foram divididos aleatoriamente em quatro grupos, com 10 animais por grupo, como segue: grupo 1: recebeu salina a 0,9% por via intramuscular por 30 dias, e os animais foram deixados sem outro tratamento, servindo de controle; grupo 2: recebeu antimoniato de N-metilglucamina (100mg Sb+5/kg) por via intramuscular; grupo 3: recebeu antimoniato de N-metilglucamina como o grupo 2 e foi tratado com captopril; grupo 4: recebeu o antimoniato de N-metilglucamina como o grupo 2 e foi tratado com enalapril.
Medicamentos e tratamento: o captopril (Captotec(r)) e o enalapril (Enaprotec(r)) foram obtidos comercialmente (Hexal Laboratoty, São Paulo, SP, Brasil). O captopril e o enalapril foram dissolvidos em água potável autoclavada, na concentração de 0,12 mg/mL para o captopril e de 0,02 mg/mL para o enalapril. Os medicamentos, dissolvidos em água potável, foram oferecidos ad libitum, e a dosagem diária foi de 30mg/kg de peso corporal para o captopril e de 5mg/kg para o enalapril, assumindo-se uma ingestão diária de 5mL de água por animal. A dose do captopril foi previamente estabelecida para manter a pressão arterial normal (Albuquerque et al., 2004). Já a dose do enalapril está dentro das margens das doses desse medicamento normalmente usado para o tratamento oral de camundongos (Albuquerque et al., 2004/10). Além disso, a administração desses medicamentos por via oral e oferecidos ad libitum, está bem estabelecida na literatura pertinente (Albuquerque et al., 2010). Os medicamentos dissolvidos em água potável autoclavada foram repostos a cada 24 horas, e o tratamento foi realizado durante um mês, sem interrupção. O antimoniato de N-metilglucamina (Glucantime(r); Sanofi-Aventis, São Paulo, SP, Brasil) foi cedido pela professora Dra. Márcia Hueb, do Hospital Universitário Júlio Müller, da UFMT. Cada ampola de 5mL Glucantime(r) continha 1,5g de antimoniato bruto, o equivalente a 405mg de antimônio pentavalente (Sb+5) ou 81mg/mL de Sb5+. A dose do antimoniato de N-metilglucamina usado neste trabalho está descrita na literatura pertinente (Santos, 2008).
Análise histopatológica: após 30 dias de tratamento, os camundongos foram sacrificados de forma assistida por uma médica veterinária (CRMV-MT 1698), e, imediatamente após, foram coletados os rins. Em seguida, os rins foram imersos em formalina a 10%, tamponada com fosfato durante 24h. Os tecidos foram processados e incluídos histologicamente em parafina, seccionados em 5μm de espessura, acondicionados em lâminas de vidro e corados por hematoxilina e eosina (HE) para a análise em microscópio de luz.
Análise estatística: os resultados foram tratados por análise de variância de uma via (ANOVA), seguida do teste de Bonferroni para comparações múltiplas (GraphPad Prism 5 for Windows). O nível de significância foi de P≤0,05 e os resultados foram expressos como a média±desvio-padrão.
Os resultados expressos na Tab. 1 e na Fig. 1 mostram que os rins dos animais tratados com antimoniato de N-metilglucamina apresentavam edema, hiperplasia nucleolar dos podócitos e hiperplasia nucleolar das células epiteliais nos túbulos contorcidos proximais. Os resultados também mostram que o enalapril reverteu completamente o edema e a hiperplasia nucleolar dos podócitos das células epiteliais nos túbulos contorcidos proximais causados pelo antimoniato de N-metilglucamina (Tab. 1 e Fig. 1). Por outro lado, os animais que receberam antimoniato de N-metilglucamina e foram tratados com captopril ainda apresentavam um pequeno edema renal comparados ao controle (Tab. 1 e Fig. 1). Os mecanismos pelos quais o enalapril e o captopril revertem as lesões renais causadas pelo antimoniato de N-metilglucamina não foram estudados no presente trabalho. Entretanto, pode-se especular que esses medicamentos podem ter inibido a síntese de biomoléculas inflamatórias, já que eles são reconhecidamente drogas anti-inflamatórias.
Tabela 1 Análise histológica dos rins de camundongos C57BL/6 injetados, por via intramuscular, com salina a 0,9% ou antimoniato de N-metilglucamina e tratados ou não com enalapril ou captopril, durante 30 dias
Alterações histopatológicas | Salina | AM | AM+CP | AM+EP |
Edema | 0,1 ± 0,1 | 3,5 ± 0,17*** | 0,8 ± 0,13### | 0,8 ± 0,13### |
Hiperplasia1 | 0,1 ± 0,1 | 3,4 ± 0,16*** | 0,6 ± 0,16### | 0,6 ± 0,16### |
Hiperplasia2 | 0,1 ± 0,1 | 3,3 ± 0,15*** | 0,7 ± 0,15### | 0,7 ± 0,15### |
1Hiperplasia nucleolar dos podócitos; 2hiperplasia nucleolar das células epiteliais nos túbulos contorcidos proximais. ***, P<0,01 para antimoniato de N-metilglucamina versus controle; ###, P<0,01 para antimoniato de N-metilglucamina versus captopril ou enalapril. AM, antimoniato de N-metilglucamina; CP, captopril; EP, enalapril.
No final do experimento, os animais foram sacrificados, e biopsias dos rins foram analisadas. (A) grupo controle evidenciando morfologia normal da região cortical do rim. (B) grupo tratado com antimoniato de N-metilglucamina apresentando hiperplasia nuclear dos podócitos (setas) e das células epiteliais dos túbulos contorcidos proximais (cabeças de setas) e edema (seta curva). (C) grupo tratado com antimoniato de N-metilglucamina e captopril evidenciando pequeno edema (seta curva). (D) grupo tratado com antimoniato de N-metilglucamina e enalapril evidenciando morfologia normal. Coloração HE. Barra = 100μm.
Com base nos resultados, pode-se concluir que o enalapril e o captopril revertem o edema e a hiperplasia causados pelo antimoniato de N-metilglucamina em camundongos C57BL/6.