Acessibilidade / Reportar erro

Transposição e anastomose uretral pré-púbica em um cão macho com estenose extensa da uretra intrapélvica

Prepubic urethral transposition in a male dog with extensive stenosis of the pelvic urethra

ABSTRACT

We report the use of a new surgical technique in a male dog affected by extensive stenosis of intrapelvic urethra through a antepubic urethral deviation, as an alternative to prepubic urethrostomy and ablation of the external genitalia. The technique consisted initially of orchiectomy, followed by retroumbilical celiotomy, transverse section of the penis in the pre-scrotal region and transposition of this towards the abdominal cavity by making anastomosis to the prostatic urethra. The dog was evaluated clinically and by urethrography retrograde positive contrast for up to four years after the procedure without any clinical signs, changes in urine stream or stenosis image. It is concluded that the pre-pubic urethral transposition is a viable alternative treatment for this dog affected by extensive stenosis of the membranous urethra.

Keywords:
dog; urethral obstruction; anastomosis; urethral deviation; urethrography

Palavras-chave:
cão; obstrução uretral; anastomose; desvio uretral; uretrografia.

Keywords:
dog; urethral obstruction; anastomosis; urethral deviation; urethrography

As lesões da uretra intrapélvica (membranosa) são consideradas de baixa ocorrência devido à conformação anatômica protegida; mesmo assim, o reparo é considerado desafiante para os cirurgiões urologistas em decorrência das complicações observadas como estenose (Ximenes e Souza Neto et al., 2010XIMENES, S.F; SOUZA NETO, J.L. Reconstrução uretral. In: NARDOZZA JÚNIOR, A.; ZERATI FILHO, M.; REIS, R.B. Urologia fundamental. São Paulo: Planmark, 2010. cap.36, p.320-326.; Kemper et al., 2011KEMPER, B.; GONÇALVES, L.P.; VIEIRA, M.O. et al. Consequências do trauma pélvico em cães. Ciênc. Anim. Bras., v.12, p.311-321, 2011.). A estenose uretral é uma das principais causas das disfunções miccionais (Ghozzi et al., 2010GHOZZI, S.; GHORBEL, J.; DRIDI, M. et al. Stenose de l’anastomose vesico-urethrale apress prostatectomie radicale (a propos de 7 cas) Service d’Urologie, Hôpital Militaire Principal d’Instructions de Tunis, Tunisie. J. Maroccain D’Urol. v.1, p,23-29, 2010.) em cães e frequentemente está relacionada a traumas no trato urinário associados às fraturas pélvicas (Kemper et al., 2011).

Os sinais de estenose uretral incluem hematúria, oligúria ou anúria, com excessiva dilatação do trato urinário, que se inicia pela distensão vesical e causa hidroureter e hidronefrose (Bjorling, 2003BJORLING, D.E. The urethra. In: SLATTER, D. Textbook of small animal surgery, 3.ed. Philadelphia: Saunders, 2003. v.2, p.1638-1649.). O diagnóstico deve ser realizado por meio de uretrocistografia retrógrada com contraste positivo (URCP) (Raney et al., 1977RANEY, A.M.; SCOTT, M.P.; BROWNSTEIN, P.K. et al. Urethral injury - experimental study. Urology, v.9, p.281-283, 1977.).

Na falha do tratamento conservador, recomenda-se a ressecção da uretra estenosada e anastomose término-terminal com resultados satisfatórios, desde que o comprimento da constrição não ultrapasse um centímetro (Bjorling, 2003BJORLING, D.E. The urethra. In: SLATTER, D. Textbook of small animal surgery, 3.ed. Philadelphia: Saunders, 2003. v.2, p.1638-1649.). Porém, o reparo de estreitamentos uretrais intrapélvicos extensos torna-se bastante prejudicado devido à dificuldade em minimizar a tensão na anastomose (Raney et al., 1977RANEY, A.M.; SCOTT, M.P.; BROWNSTEIN, P.K. et al. Urethral injury - experimental study. Urology, v.9, p.281-283, 1977.), além de seguidamente requerer a osteotomia do púbis (Katayama et al., 2012KATAYAMA, M.; OKAMURA, Y.; KAMISHINA, H. et al. Urinary diversion via preputial urethrostomy with bilateral pubic-ischial osteotomy in a dog. Turk. J. Vet. Anim. Sci. v.36, p.730-733, 2012. ). Na impossibilidade da anastomose, preconiza-se a uretrostomia pré-púbica, com ablação da genitália externa (Smeak, 2000SMEAK, D.D. Urethrotomy and urethrostomy in the dog. Clin. Tech. Small Anim. Pract., v.15, p.25-34, 2000.).

Na literatura consultada, há raros relatos clínicos de reparo uretral (Regueiro et al., 2012REGUEIRO J.C.; CARRASCO, J.C. et al. Opciones de tratamiento quirúrgico en la estenosis de uretra bulbar. Actas Urol., v.37, p.167-173, 2012.), e diversos experimentos foram realizados utilizando-se mucosa oral, aorta acelular e biomateriais na busca de substitutos de segmentos uretrais, entretanto esses apresentam complicações e requerem mais estudos sobre seu uso (Paulo et al., 2004PAULO, N.M.; SILVA, F.F.; BRITO, G.A. et al. Reconstrução uretral com retalho autógeno de mucosa bucal após uretrostomia em cães. Acta Cir. Bras., v.19, p.110-114, 2004. ; Murador, 2013MURADOR, P. Avaliação histofuncional de matriz heteróloga acelular como scaffold para células de músculo liso para implante em uretra de coelhos. 2013.105f. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP.).

O presente trabalho objetiva descrever o tratamento cirúrgico de um cão acometido por estenose extensa da uretra membranosa, por meio de uma nova técnica cirúrgica.

Foi atendido, no Hospital de Clínicas Veterinárias de uma instituição de ensino, um cão macho, adulto, sem raça definida, massa corpórea de 5kg e com histórico de trauma por acidente automobilístico, que ocasionou fratura de pelve havia 20 dias. O paciente apresentava abdome distendido, sensibilidade à palpação e incontinência urinária havia sete dias.

Após avaliação clínica, o cão foi encaminhado ao setor de imagens. A ecografia revelou distensão vesical acentuada com dilatação de ureteres e hidronefrose bilateral (Fig. 1A) e a URCP demonstrou estase do contraste no terço final da uretra membranosa (Fig. 1B).

Figura 1
Transposição e anastomose uretral pré-púbica em cão. Em A, verifica-se na ecografia hidronefrose do rim direito (*) em decorrência da estenose da uretra membranosa. Em B, observa-se interrupção do contraste no terço final da uretra membranosa (seta).

Depois de estabilizado e em plano anestésico-cirúrgico, o cão foi posicionando em decúbito dorsal, e a uretra peniana sondada até o ponto da estenose. O procedimento consistiu inicialmente de orquiectomia pré-escrotal, seguido de uma incisão longitudinal para mediana retroumbilical (paraprepucial) até o púbis, para acesso à cavidade abdominal. A seguir, fez-se cistocentese e cistotomia na face ventral, objetivando a sondagem da porção uretral proximal para identificar o ponto inicial da estenose; esta progrediu apenas 0,8cm caudal à próstata.

Como a lesão uretral no cão deste relato era superior a 2cm, o que impossibilitava a realização da anastomose término-terminal, optou-se pela transposição uretral pré-púbica. Para isso, realizou-se a secção transversa da uretra a 0,5cm caudal à próstata para a ressecção da porção estenosada, e também a secção transversa do pênis a 0,5cm caudal ao osso peniano. A uretra, em ambas as extremidades, foi espatulada na sua face ventral (Fig. 2A). Em seguida, a porção peniana foi transposta cranialmente ao púbis, promovendo-se deslocamento moderado para alcançar a uretra prostática.

Figura 2
Transposição e anastomose uretral pré-púbica em cão. Em A, nota-se a secção transversal do pênis a 0,5cm caudal ao osso peniano e espatulação da face ventral da uretra peniana (seta). Em B, observa-se a completa anastomose entre a uretra peniana (*) e a prostática (**).

A sonda, previamente posicionada na uretra peniana, foi introduzida na prostática até alcançar a bexiga, e a anastomose uretral foi realizada por meio de pontos isolados simples, com fio de náilon monofilamentar 4-0, sem que a sutura atingisse a luz do órgão, até completa aposição das bordas (Fig. 2B). A celiorrafia ocorreu de forma rotineira.

Foram prescritos analgesia, antibiótico e manutenção da sonda por sete dias. Exames de URCP foram realizados após a remoção da sonda (Fig. 3A), aos dois meses e quatro anos após a transposição uretral (Fig. 3B), o que evidenciou ausência de constrição uretral.

Figura 3
Transposição e anastomose uretral pré-púbica em cão. Nota-se ausência de estenose uretral na anastomose, o que evidencia fluxo do contraste na anastomose (setas), decorridos sete dias (A) e quatro anos de pós-operatório (B), retrospectivamente

As lesões da uretra intrapélvica ou membranosa nos cães são pouco comuns e, quando ocorrem, estão frequentemente relacionadas a traumas pélvicos (Boothe, 2000BOOTHE, H.W. Managing traumatic urethral injuries. Clin. Tech. Small Anim. Pract., v.15, p.35-39, 2000. ; Kemper et al., 2011KEMPER, B.; GONÇALVES, L.P.; VIEIRA, M.O. et al. Consequências do trauma pélvico em cães. Ciênc. Anim. Bras., v.12, p.311-321, 2011.) e desencadeiam alterações urinárias, fato observado neste caso. Conforme descrito por Ghozzi et al. (2010GHOZZI, S.; GHORBEL, J.; DRIDI, M. et al. Stenose de l’anastomose vesico-urethrale apress prostatectomie radicale (a propos de 7 cas) Service d’Urologie, Hôpital Militaire Principal d’Instructions de Tunis, Tunisie. J. Maroccain D’Urol. v.1, p,23-29, 2010.), uma das principais causas de disfunção na micção é a estenose uretral, a qual dificulta o esvaziamento vesical, o que contribui para retenção urinária e pode evoluir para hidronefrose nas contrições severas.

A abordagem da uretra membranosa muitas vezes requer osteotomia do púbis (Katayama et al., 2012KATAYAMA, M.; OKAMURA, Y.; KAMISHINA, H. et al. Urinary diversion via preputial urethrostomy with bilateral pubic-ischial osteotomy in a dog. Turk. J. Vet. Anim. Sci. v.36, p.730-733, 2012. ), o que aumenta a morbidade do procedimento e a dor pós-operatória. A técnica de transposição uretral aqui proposta exclui a osteotomia, uma vez que é executada cranialmente ao púbis e, assim, permite visibilização ampla do campo cirúrgico.

O reparo de estreitamentos uretrais intrapélvicos maiores que um centímetro torna-se bastante limitado devido à dificuldade em minimizar a tensão na anastomose e à rara disponibilidade de opções de substitutos uretrais com baixo custo (Regueiro et al., 2012REGUEIRO J.C.; CARRASCO, J.C. et al. Opciones de tratamiento quirúrgico en la estenosis de uretra bulbar. Actas Urol., v.37, p.167-173, 2012.; Murador, 2013MURADOR, P. Avaliação histofuncional de matriz heteróloga acelular como scaffold para células de músculo liso para implante em uretra de coelhos. 2013.105f. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP.), o que frequentemente leva os cirurgiões veterinários a optarem pela uretrostomia pré-púbica (Katayama, 2012KATAYAMA, M.; OKAMURA, Y.; KAMISHINA, H. et al. Urinary diversion via preputial urethrostomy with bilateral pubic-ischial osteotomy in a dog. Turk. J. Vet. Anim. Sci. v.36, p.730-733, 2012. ). Entretanto, essa técnica mutilante só é realizada em humanos em casos extremos (Ximenes e Souza Neto et al., 2010XIMENES, S.F; SOUZA NETO, J.L. Reconstrução uretral. In: NARDOZZA JÚNIOR, A.; ZERATI FILHO, M.; REIS, R.B. Urologia fundamental. São Paulo: Planmark, 2010. cap.36, p.320-326.), sendo que a transposição não requer implantes, é realizada em apenas um tempo cirúrgico e sem tensão na anastomose.

Defeitos adquiridos, como nas uretrostomias, representam importante etiologia nas infecções complicadas do trato urinário de cães e contribuem para o desenvolvimento de dermatite na junção mucocutânea, o que compromete a qualidade de vida dos pacientes (Bjorling, 2003BJORLING, D.E. The urethra. In: SLATTER, D. Textbook of small animal surgery, 3.ed. Philadelphia: Saunders, 2003. v.2, p.1638-1649.). Na técnica descrita no presente relato, a genitália externa é mantida, o que, além de eximir a dermatite amoniacal, previne a ocorrência de contaminação vesical.

Embora a principal complicação nas anastomoses uretrais seja a estenose (Regueiro et al., 2012REGUEIRO J.C.; CARRASCO, J.C. et al. Opciones de tratamiento quirúrgico en la estenosis de uretra bulbar. Actas Urol., v.37, p.167-173, 2012.), o paciente não apresentou constrição clínica nem nas URCP subsequentes avaliadas em sete dias, em dois meses e em quatro anos após a intervenção, fato provavelmente relacionado à ausência de tensão na sutura e à espatulação de ambas as bordas da uretra, o que, assim, confere maior diâmetro na anastomose.

Nesse sentido, observa-se a necessidade de maiores estudos em cães com relação a essa técnica, uma vez que não foi encontrada descrição semelhante na espécie canina, apenas em humanos (Ximenes e Souza Neto et al., 2010XIMENES, S.F; SOUZA NETO, J.L. Reconstrução uretral. In: NARDOZZA JÚNIOR, A.; ZERATI FILHO, M.; REIS, R.B. Urologia fundamental. São Paulo: Planmark, 2010. cap.36, p.320-326.), entretanto sem transposição pré-púbica.

Conclui-se que a técnica de transposição uretral pré-púbica, embora inovadora, foi uma alternativa viável como tratamento da estenose uretral extensa da uretra membranosa do cão macho do presente estudo, pois restituiu o fluxo urinário, sem evidência de estenose na região de anastomose.

REFERÊNCIAS

  • BJORLING, D.E. The urethra. In: SLATTER, D. Textbook of small animal surgery, 3.ed. Philadelphia: Saunders, 2003. v.2, p.1638-1649.
  • BOOTHE, H.W. Managing traumatic urethral injuries. Clin. Tech. Small Anim. Pract., v.15, p.35-39, 2000.
  • GHOZZI, S.; GHORBEL, J.; DRIDI, M. et al. Stenose de l’anastomose vesico-urethrale apress prostatectomie radicale (a propos de 7 cas) Service d’Urologie, Hôpital Militaire Principal d’Instructions de Tunis, Tunisie. J. Maroccain D’Urol. v.1, p,23-29, 2010.
  • KATAYAMA, M.; OKAMURA, Y.; KAMISHINA, H. et al. Urinary diversion via preputial urethrostomy with bilateral pubic-ischial osteotomy in a dog. Turk. J. Vet. Anim. Sci. v.36, p.730-733, 2012.
  • KEMPER, B.; GONÇALVES, L.P.; VIEIRA, M.O. et al. Consequências do trauma pélvico em cães. Ciênc. Anim. Bras., v.12, p.311-321, 2011.
  • MURADOR, P. Avaliação histofuncional de matriz heteróloga acelular como scaffold para células de músculo liso para implante em uretra de coelhos. 2013.105f. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP.
  • PAULO, N.M.; SILVA, F.F.; BRITO, G.A. et al. Reconstrução uretral com retalho autógeno de mucosa bucal após uretrostomia em cães. Acta Cir. Bras., v.19, p.110-114, 2004.
  • RANEY, A.M.; SCOTT, M.P.; BROWNSTEIN, P.K. et al. Urethral injury - experimental study. Urology, v.9, p.281-283, 1977.
  • REGUEIRO J.C.; CARRASCO, J.C. et al. Opciones de tratamiento quirúrgico en la estenosis de uretra bulbar. Actas Urol., v.37, p.167-173, 2012.
  • SMEAK, D.D. Urethrotomy and urethrostomy in the dog. Clin. Tech. Small Anim. Pract., v.15, p.25-34, 2000.
  • XIMENES, S.F; SOUZA NETO, J.L. Reconstrução uretral. In: NARDOZZA JÚNIOR, A.; ZERATI FILHO, M.; REIS, R.B. Urologia fundamental. São Paulo: Planmark, 2010. cap.36, p.320-326.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2016
  • Aceito
    11 Out 2016
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Veterinária Caixa Postal 567, 30123-970 Belo Horizonte MG - Brazil, Tel.: (55 31) 3409-2041, Tel.: (55 31) 3409-2042 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: abmvz.artigo@gmail.com