Acessibilidade / Reportar erro

Corpectomia lateral parcial para o tratamento de compressão ventral extradural crônica entre T9-T10 em um cão

Partial lateral corpectomy for treatment of chronic ventral extradural compression between T9-T10 in a dog >

RESUMO

Objetivou-se relatar um caso de protrusão do disco intervertebral com localização atípica e descrever a técnica cirúrgica de corpectomia lateral parcial no tratamento da afecção em um cão. Um cão de sete anos de idade, macho, raça Pug, foi atendido com ataxia proprioceptiva dos membros pélvicos havia três meses, associada à doença do disco intervertebral entre a nona e 10ª vértebras torácicas. Após um mês de tratamento conservativo sem melhora, o paciente foi encaminhado para o tratamento cirúrgico, quando foi realizada corpectomia lateral parcial esquerda para descompressão da medula espinhal. Após a cirurgia, o paciente apresentou melhora considerável do quadro, sendo a técnica eficaz na remoção da compressão extradural, sem manipulação da medula espinhal ou outras complicações.

Palavras-chave:
compressão medular; corpectomia; neurocirurgia; cães

ABSTRACT

The aim of this study is to report a case of intervertebral disc protrusion with atypical location and describe the surgical technique of partial lateral corpectomy in the treatment of this disease in a dog. A dog, seven -years-old, male, Pug breed was attended with proprioceptive ataxia of the hind limbs for three months correlated with intervertebral disc disease between the 9th and 10th thoracic vertebrae. After a month of conservative treatment without improvements, the patient was referred for surgical treatment, which was performed as a partial left lateral corpectomy for decompression of the spinal cord. After surgery, the patient showed considerable improvement, this technique being shown to be effective in the removal of extradural compression, without manipulation of the spinal cord or other complications.

Keywords:
cord compression; extradural spinal tumors; neurosurgery; dogs

INTRODUÇÃO

A doença do disco intervertebral (DDIV) é uma das causas mais comuns de compressão medular em cães, sendo a coluna toracolombar entre T12 a L2 o local mais comumente afetado (Macias et al., 2002MACIAS, C.; McKEE, W.M.; MAY, C. et al. Thoracolumbar disk disease in large dogs: a study of 99 cases. Journal Small Animal Practice, Ontario, v.43, p.439-446, 2002).

Compressões na região torácica cranial são muito raras, o que é atribuído à presença do ligamento intercapital que conecta as cabeças das costelas entre T2 e T10. O ligamento está anatomicamente localizado sobre o anel fibroso dorsal e ventralmente ao ligamento longitudinal dorsal, o que reforça anatômica e mecanicamente essa região (Wilkens et al., 1996WILKENS, B.E.; SELCER, R.; ADAMS, W.H. et al. T9-T10 Intervertebral disc herniation in three dogs. Vet. Comp. Orthop. Traumatol., v.9, p.177-178, 1996.). Em cães não condrodistróficos, principalmente o Pastor Alemão, relata-se herniações entre T2-T3, T3-T4 e T4-T5 (Jäderlund et al., 2002JÄDERLUND, K.H.; HANSSON, K.; LINDBERG, R. et al. T3-T4 disc herniation in a German shepherd dog. Vet. Rec., v.151, 769-770, 2002.; Gaitero e Añor, 2009GAITERO, L.; AÑOR, S. Cranial thoracic disc protrusions in three German shepherd dogs. Vet. J., v.182, 349-351, 2009.), enquanto em raças condrodistróficas há relatos esporádicos de extrusões entre T1-T2 e T9-T10 (Wilkens et al., 1996; Liptak et al., 1999LIPTAK, J.M.; WATT, P.R.; THOMSON, M.J. et al. Hansen type I disk disease at T1-2 in a dachshund. Aust. Vet. J., v.77, 156-159, 1999.).

A compressão medular provocada pela DDIV toracolombar em cães necessita de intervenção cirúrgica como principal forma de tratamento e vem sendo tradicionalmente tratada por hemilaminectomia, mini-hemilaminectomia/ pediculectomia ou laminectomia dorsal. No entanto, a remoção de extrusões ou protrusões de disco crônicas pode ser um desafio ao utilizarem-se tais procedimentos (Moissonnier et al., 2004MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.; Flegel et al., 2011FLEGEL, T.; BOETTCHER, I.C.; LUDEWIG, E.; KIEFER, I. et al. Partial lateral corpectomy of the thoracolumbar spine in 51 dogs: assessment of slot morphometry and spinal cord decompression. Vet. Surg., v.40, p.14-21, 2011.).

Os pacientes com histórico de doença crônica do disco intervertebral (dor tratada clinicamente e paraparesia ambulatória, que desenvolvem fraqueza motora intensa) e que precisam de cirurgia, frequentemente apresentam o material protruído/extrusado de natureza rígida e encapsulada firmemente aderido aos remanescentes do anel fibroso, à dura-máter e aos seios venosos (Bray e Burdridge, 1998BRAY, J.P.; BURBRIDGE, H.M. The canine intervertebral disk. Part one: structure and function. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.34, p.55-63, 1998.), e sua retirada cirúrgica por técnicas tradicionais de descompressão requer manipulação substancial da medula espinhal, para que esta seja adequadamente descomprimida, o que pode influenciar negativamente no prognóstico neurológico (Macias et al., 2002MACIAS, C.; McKEE, W.M.; MAY, C. et al. Thoracolumbar disk disease in large dogs: a study of 99 cases. Journal Small Animal Practice, Ontario, v.43, p.439-446, 2002). Não obstante, a descompressão medular incompleta para minimizar a manipulação da medula espinhal pode também influenciar negativamente a evolução neurológica (Moissonnier et al., 2004MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.; Flegel et al., 2011FLEGEL, T.; BOETTCHER, I.C.; LUDEWIG, E.; KIEFER, I. et al. Partial lateral corpectomy of the thoracolumbar spine in 51 dogs: assessment of slot morphometry and spinal cord decompression. Vet. Surg., v.40, p.14-21, 2011.).

Devido à raridade da ocorrência de doença do disco intervertebral na região torácica de cães, bem como à ausência de descrições específicas da corpectomia torácica nessa espécie, o objetivo deste artigo é relatar um caso de DDIV crônica entre T9 e T10 tratado por meio de corpectomia lateral parcial em um cão da raça Pug.

DESCRIÇÃO DO CASO

Um cão macho, de sete anos de idade, da raça Pug, foi atendido com histórico de incoordenação dos membros pélvicos e dor da coluna com início havia aproximadamente três meses antes da consulta, sem trauma prévio. Além disso, o proprietário relatou que o cão apresentava dificuldade em se posicionar para urinar e defecar, em sentar e se levantar. Todas as vacinações estavam atualizadas.

Ao exame neurológico observou-se ataxia proprioceptiva, paraparesia ambulatorial e ausência de propriocepção nos membros pélvicos. O animal estava alerta, os nervos cranianos estavam normais, bem como os membros torácicos, entretanto constatou-se, em membros pélvicos, tônus muscular aumentado, presença do reflexo flexor e aumento do reflexo patelar. O reflexo cutâneo do tronco estava normal a partir de T12, em ambos os lados, constatando-se a presença de dor à palpação das vértebras T8 a T11. As alterações foram compatíveis com síndrome toracolombar simétrica, grau II, com presença de dor em coluna.

As suspeitas clínicas iniciais foram hemivértebra associada ou não à seringo-hidromielia, divertículo subaracnoideo, doença do disco intervertebral tipo II ou tipo I crônica e doenças inflamatórias/ infecciosas.

Diante das suspeitas, foi realizado hemograma completo, avaliação das funções renal e hepática, que se encontraram dentro dos limites fisiológicos para a espécie, além de eletrocardiograma, que constatou ritmo sinusal. Realizou-se radiografia da coluna toracolombar com o paciente sob sedação, a qual não evidenciou presença de hemivértebra; observou-se apenas redução dos espaços intervertebrais entre T8-T9, T9-T10, T10-T11 e T13-L1, com discreta reação periosteal em face ventral do corpo vertebral de T9 e T10 e mineralização do disco intervertebral entre T9 e T10 (Fig. 1). Diante do quadro, o paciente foi encaminhado para realização de coleta e análise do líquido cérebro espinhal (LCE) e de ressonância magnética (RM) da coluna toracolombar. No exame do LCE, foi observado discreto aumento de proteína sem pleocitose (raríssimos leucócitos do tipo linfócitos maduros). Na RM, constatou-se a presença de hipertrofia dos anéis fibrosos em T9-T10, difusos, que comprometem o espaço subaracnoide, deslocando e comprimindo a medula espinhal, associada à hipersinal do parênquima medular cranial à compressão nas imagens ponderadas em T2 (Fig. 2 e 3), compatível com compressão extradural causada por protrusão ou extrusão crônica do disco intervertebral.

Figura 1
Imagem radiográfica da coluna toracolombar de um cão, em que não se observam sinais característicos de malformação vertebral congênita e que demonstra mineralização do espaço intervertebral entre T9 e T10.

Figura 2
Imagem de ressonância magnética da coluna toracolombar de um cão em corte sagital, a qual mostra a presença de hipertrofia dos anéis fibrosos em T9-T10 (setas brancas), difusos, que comprometem o espaço subaracnoide, deslocando e comprimindo a medula espinhal, associada à hipersinal do parênquima medular (seta amarela) cranial à compressão nas imagens ponderadas em T2, tanto no corte parassagital (A) como no sagital (B).

Figura 3
Imagem de ressonância magnética da coluna toracolombar de um cão em corte transversal, a qual mostra compressão medular causada por doença do disco intervertebral ao nível de T9-T10 (setas) nas imagens ponderadas em T1 (A) e T2 (B).

Iniciou-se terapia conservadora por meio de repouso, analgésicos e anti-inflamatório esteroidal (prednisona 0,5mg/kg a cada 24 horas, durante 15 dias, seguido de 0,5mg/kg a cada 48 horas, durante mais 15 dias), com o intuito de reduzir o edema vasogênico. Além disso, o paciente foi encaminhado para acupuntura, no entanto esse tratamento não foi realizado, uma vez que o proprietário se recusou a fazer. Após 30 dias, o paciente não apresentou nenhuma melhora clínica, e a cirurgia descompressiva foi recomendada.

O paciente foi, então, submetido à cirurgia descompressiva, por meio da técnica de corpectomia lateral parcial. Após pré-medicação com 0,02mg/kg de acepromazina (Acepran®, Vetnil, SP, Brasil) e 0,3mg/kg de metadona (Mytedon®, Cristália, SP, Brasil), realizou-se trocotomia ampla de toda a região toracolombar. Para aindução anestésica, foram utilizados 5mg/kg de propofol (Propovan®, Cristália, SP, Brasil) e foi feita a manutenção com isoflurano (Isoflorane®, Cristalia, SP, Brasil) e oxigênio. Realizou-se profilaxia antibiótica com 30mg/kg de cefazolina (Cellozina®, Rio Química Indústria Farmacêutica Ltda., SP, Brasil) 30 minutos antes do início do procedimento, e novamente a cada oito horas após a primeira dose, por um período de 24 horas.

O paciente foi posicionado em decúbito lateral direito sobre uma mesa inclinada 23 graus em relação ao plano horizontal e rigidamente fixado. Procedeu-se à antissepsia cirúrgica. Ato contínuo, realizou-se a abordagem cirúrgica da coluna vertebral toracolombar iniciando-se por incisão paramediana (aproximadamente 2,5cm paralelo ao processo espinhoso) dorsal direita, que se estendeu de T7 a T12. Incisou-se a pele e a fáscia lombodorsal. Feita a incisão na fáscia lombodorsal e na musculatura epaxial lateral (multifidus e íliocostal), realizou-se divulsão romba com os dedos até a palpação e a identificação das vértebras, com nítida visualização da porção proximal das costelas e dos processos transversos vertebrais. A musculatura foi desviada com afastadores autoestáticos de Gelpi e divulsionada com descoladores de Freer para melhor exposição da região lateral da coluna vertebral, tomando como base a cabeça da nona e 10ª costelas, processos transversos e processos espinhosos das respectivas vértebras.

Para permitir um melhor acesso durante a realização da corpectomia, realizou-se ressecção do quarto dorsal da nona costela, desarticulação e deslocamento caudal da 10ª costela, que se manteve deslocada com o auxílio de afastadores de Gelpi (Fig. 4). O pneumotórax desenvolvido posteriormente à ressecção da costela foi controlado no transcirúrgico por meio de ventilação controlada e pressão positiva intermitente após bloqueio neuromuscular com 0,2mg/kg de atracúrio (Atracúrio®, Novofarma, GO, Brasil), que foi revertido após a cirurgia com 0,03mg/kg de neostigmina (Prostigmine®, Roche, RJ, Brasil) e 0,03mg/kg de atropina (Atropion®, Ariston, SP, Brasil) e toracocentese após o fechamento da ferida cirúrgica. Nesse momento, o disco e o forame intervertebral entre T9 e T10 foram identificados, e iniciou-se a realização da corpectomia, que foi centrada no disco intervertebral entre essas vértebras.

Figura 4
Imagem fotográfica da corpectomia lateral parcial realizada entre as vértebras T9 e T10 de um cão. É possível observar a realização da corpectomia, a completa descompressão da medula espinhal (seta) e o assoalho do “slot” criado (asterisco branco). O limite cranial do “slot” se estendeu mais cranialmente no corpo de T9, sendo possível observar essa delimitação com base no processo espinhoso (asterisco preto) dessa vértebra. Um detalhe importante durante o procedimento cirúrgico foi a aplicação e a colocação de um afastador de Gelpi (asterisco amarelo) deslocando a 10ª costela caudalmente e a porção remanescente da nona costela cranialmente, o que ajudou de forma considerável na exposição do local da corpectomia.

As dimensões do “slot” foram baseadas nas recomendações de Moissonier et al. (2004), mas foram ajustadas de acordo com a posição exata da compressão pelo material do disco: 1/4 do comprimento do corpo vertebral caudal para a margem caudal, 1/4 do comprimento do corpo vertebral cranial para a margem cranial, 1/2 - 2/3 da largura corpo vertebral na margem de profundidade e 1/2 da altura do corpo vertebral para a margem ventral. No entanto, em decorrência do deslocamento cranial da compressão, a corpectomia envolveu aproximadamente 1/2 - 2/3 do corpo vertebral de T9, com o limite ao nível da porção cranial do processo espinhoso da respectiva vértebra (Fig. 4).

A perfuração foi iniciada sobre o disco na suposta margem ventral do “slot” prevista, utilizando-se microrretífica pneumática de alta rotação e brocas redondas. Em seguida, o “slot” foi estendido cranial e caudalmente com base na extensão da compressão na medula espinhal. Posteriormente, o “slot” foi aprofundado no sentido laterolateral, com a broca direcionada perpendicularmente em relação ao apoio de 23 graus em que o cão se encontrava, até que a profundidade desejada foi alcançada. A partir daí, o “slot” foi estendido dorsalmente em direção à medula espinhal. Na fase final da perfuração, foi utilizada uma broca de menor diâmetro, até o ponto em que o restante do osso cortical dorsal do corpo vertebral parecia macio. A perfuração foi interrompida quando o ligamento longitudinal dorsal foi atingido. Quando o osso cortical estava suficientemente fino, este foi removido junto com o ligamento longitudinal dorsal e o ânulo fibroso que estava espessado e endurecido, usando-se microgoiva, até que a porção ventral do canal vertebral pudesse ser observada (Fig. 4).

O material do disco foi removido por meio de retração e ressecção, utilizando-se exploradores odontológicos com a ponta romba, microcuretas e microgoiva. A descompressão foi considerada como sendo completa quando a medula espinhal pôde ser vista ao longo de todo o comprimento do “slot” e sem ser levantada do assoalho do canal vertebral, bem como quando a palpação cega com explorador odontológico rombo do outro lado do canal vertebral não revelou qualquer resistência. Após a irrigação final, a musculatura e a fáscia foram suturadas separadamente com fio monofilamentar absorvível 2-0 em padrão simples contínuo. O tecido subcutâneo foi aproximado com fio monofilamentar absorvível 3-0, e a dermorrafia foi feita com grampos.

No período pós-operatório imediato, administrou-se metadona (0,3mg/kg/IM), carprofeno (2,2mg/kg/SC) e dipirona (25mg/kg/SC). O paciente foi internado, onde permaneceu por 24 horas para controle analgésico e monitoração do pneumotórax. Após o internamento, foram prescritos, por via oral, omeprazol (0,7mg/kg/SID), 10 dias; cefalexina (30mg/kg/BID), 10 dias; carprofeno (2,2mg/kg/BID), três dias; dipirona (25mg/kg/TID), sete dias, e cloridrato de tramadol (4mg/kg/TID), sete dias.

Após 10 dias da cirurgia, o animal já apresentava uma melhora considerável no quadro neurológico, pois encontrava-se sem dor à palpação e já era capaz de urinar e defecar na posição anatômica normal, porém ainda apresentava ataxia proprioceptiva. Após 20 dias da cirurgia, o quadro neurológico manteve-se estável. Na última avaliação realizada após sete meses da cirurgia, foi possível observar estabilidade no quadro neurológico, discreta paresia e propriocepção diminuída, sem dor à palpação epaxial.

DISCUSSÃO

A degeneração do disco pode ocorrer em qualquer região da coluna vertebral, no entanto a compressão medular entre as vértebras T1-T9 é muito rara (Hearon et al., 2014HEARON, K.; BERG, J.M.; BONCZYNSKI J. J. et al. Upper thoracic disc disease (T1-T9) in large-breed dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.50, 105-111, 2014.), provavelmente pelo reforço que o ligamento intercapital realiza sobre o anel fibroso dorsal (Liptak et al., 1999LIPTAK, J.M.; WATT, P.R.; THOMSON, M.J. et al. Hansen type I disk disease at T1-2 in a dachshund. Aust. Vet. J., v.77, 156-159, 1999.; Hearon et al., 2014). Em três Dachshunds com extrusão entre T9-T10, a ocorrência foi atribuída à anormalidade anatômica do ligamento intercapital, porém de maneira similar ao paciente do presente relato, não foi possível a avaliação do ligamento durante a cirurgia (Wilkens et al., 1996WILKENS, B.E.; SELCER, R.; ADAMS, W.H. et al. T9-T10 Intervertebral disc herniation in three dogs. Vet. Comp. Orthop. Traumatol., v.9, p.177-178, 1996.).

A presença de compressão medular cranial a T10 causada pela DDIV é muito rara em cães de pequeno porte, especificamente em cães da raça Pug, como no referido relato. Em 723 cães com DDIV, dos 527 cães de raças pequenas, nenhum apresentou DDIV na região torácica cranial, enquanto de 196 cães de raças grandes, 21 apresentaram essa alteração, principalmente entre T2-T3 e T4-T5, sendo 52,4% dos casos em cães da raça Pastor Alemão (Hearon et al., 2014HEARON, K.; BERG, J.M.; BONCZYNSKI J. J. et al. Upper thoracic disc disease (T1-T9) in large-breed dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.50, 105-111, 2014.).

Não foi possível identificar a característica do material responsável pela compressão no exame de ressonância magnética. Nem mesmo a cirurgia permitiu a diferenciação clara do tipo de lesão, uma vez que o disco é destruído antes de o canal medular ser alcançado, tornando difícil distinguir entre um anulo protruído perfurado pela fresagem e um material de disco livre no canal medular (Flegel et al., 2011FLEGEL, T.; BOETTCHER, I.C.; LUDEWIG, E.; KIEFER, I. et al. Partial lateral corpectomy of the thoracolumbar spine in 51 dogs: assessment of slot morphometry and spinal cord decompression. Vet. Surg., v.40, p.14-21, 2011.).

Na protrusão do disco intervertebral, o ânulo fibroso endurecido encontra-se comprimindo a medula espinhal. A mesma ocorrência pode ser observada em alguns casos de extrusão do disco intervertebral. Segundo Bray e Burbridge (1998BRAY, J.P.; BURBRIDGE, H.M. The canine intervertebral disk. Part one: structure and function. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.34, p.55-63, 1998.), cães com a DDIV tipo I muitas vezes apresentam um enfraquecimento do anel dorsal, com leve saliência contra a medula espinhal antes de o anel eventualmente romper-se com a extrusão do material do núcleo pulposo. Em uma série de 99 cães com doença do disco toracolombar, 11 tiveram protrusão associada a uma lesão aguda ou hiperaguda no início dos sinais clínicos (Macias et al., 2002MACIAS, C.; McKEE, W.M.; MAY, C. et al. Thoracolumbar disk disease in large dogs: a study of 99 cases. Journal Small Animal Practice, Ontario, v.43, p.439-446, 2002). Durante hemilaminectomia ou pediculectomia, cirurgiões podem ser capazes de remover o material do núcleo livre do canal raquidiano, mas o anel saliente ainda pode ser palpado. Com a corpectomia, o anel do disco pôde ser removido para aliviar ainda mais a compressão decorrente do seu abaulamento.

A remoção do material do disco a partir do canal medular é fundamental durante a cirurgia descompressiva. A laminectomia ou a hemilaminectomia sozinhas podem não fornecer suficiente descompressão medular em casos de doença do disco Hansen tipo II e/ou em casos de extrusão do disco crônica, pois o material do disco que se adere à dura-máter ou ao ligamento longitudinal dorsal é de difícil remoção (Bray e Burbidge 1998BRAY, J.P.; BURBRIDGE, H.M. The canine intervertebral disk. Part one: structure and function. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.34, p.55-63, 1998.), culminando em compressão persistente, o que não restaura a hemodinâmica arterial e venosa normal (Flegel et al., 2011FLEGEL, T.; BOETTCHER, I.C.; LUDEWIG, E.; KIEFER, I. et al. Partial lateral corpectomy of the thoracolumbar spine in 51 dogs: assessment of slot morphometry and spinal cord decompression. Vet. Surg., v.40, p.14-21, 2011.).

Moissonnier et al. (2004MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.) descrevem que, mesmo que as técnicas descompressivas clássicas permitam abordagem do canal medular por via dorsal ou dorsolateral, a observação e a remoção do material do disco envolvem substancial manipulação da medula espinhal durante a cirurgia e podem contribuir para uma lesão iatrogênica da medula espinhal. A utilização de potenciais motores evocados em humanos mostrou que a medula espinhal (já comprometida por alterações vasculares e degenerativas pela protrusão do disco) é altamente sensível à manipulação cirúrgica (Kitagawa et al., 1989KITAGAWA, H.; ITOH, T.; TAKANO, H. et al. Motor evoked potential monitoring during upper cervical spine surgery. Spine, v.14, p.1078-1083, 1989.). A corpectomia, nesse caso, permitiu o acesso ao disco numa posição ventrolateral, sem manipulação à medula espinhal.

Não foi observada qualquer deterioração da função neurológica após a corpectomia. Esses resultados concordam com Moissonnier et al. (2004MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.), os quais observaram que uma abordagem ventral ao canal vertebral permite a remoção do disco saliente com mínima manipulação, evitando, assim, lesão iatrogênica desnecessária da medula espinhal.

Outra vantagem da corpectomia parcial é que a compressão medular recorrente no local operado é praticamente impossível, pois ela permite eficiente fenestração do disco local. Além disso, a fenestração mecanicamente realizada possibilita uma remoção mais completa do núcleo do que a fenestração manual e resulta em uma baixa taxa de recorrência de problemas neurológicos (Holmberg et al., 1990HOLMBERG, D.L.; PALMER, N.C.; VANPELT, D.; WILLAN, A.R. A comparison of manual and power-assisted thoracolumbar disk fenestration in dogs. Vet. Surg., v.19, p.323-327, 1990.; Brisson et al., 2011BRISSON, B.A.; HOLMBERG, D.L.; PARENT, J.; SEARS, W.C. et al. Comparison of the effect of single-site and multiple-site disk fenestration on the rate of recurrence of thoracolumbar intervertebral disk herniation in dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.238, p.1593-1600, 2011.). No entanto, a corpectomia lateral parcial é tecnicamente mais exigente do que a hemilaminectomia padrão ou a laminectomia dorsal. A aproximação da coluna vertebral torácica cranial torna a técnica ainda mais difícil, pois os corpos vertebrais estão localizados profundamente sob a musculatura da coluna dorsal e as costelas, fazendo-se necessária a ressecção parcial da costela cranial em combinação com a desarticulação e a retração caudal da costela caudal (Moissonnier et al., 2004MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.; Böttcher et al., 2008BÖTTCHER, P.; FLEGEL, T.; BÖTTCHER, I.C. et al. Partial lateral corpectomy for ventral extradural thoracic spinal cord compression in a cat. J. Feline Med. Surg., v.10, p.291-295, 2008.). Embora o acesso cirúrgico a essa região seja descrito como mais complicado na literatura (Wilkens et al., 1996WILKENS, B.E.; SELCER, R.; ADAMS, W.H. et al. T9-T10 Intervertebral disc herniation in three dogs. Vet. Comp. Orthop. Traumatol., v.9, p.177-178, 1996.; Hearon et al., 2014HEARON, K.; BERG, J.M.; BONCZYNSKI J. J. et al. Upper thoracic disc disease (T1-T9) in large-breed dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.50, 105-111, 2014.), a corpectomia bem como a excisão do quarto proximal da nona costela e a desarticulação da 10ª costela transcorreram sem complicações, o que permitiu que a cirurgia descompressiva fosse realizada.

O principal ponto que deve ser questionado na DDIV crônica é quanto ao tipo de compressão, uma vez que, com base na fisiopatologia da compressão medular crônica, a degeneração axonal e a malácia podem ser irreversíveis, independentemente do tipo de cirurgia realizada (Macias et al., 2002MACIAS, C.; McKEE, W.M.; MAY, C. et al. Thoracolumbar disk disease in large dogs: a study of 99 cases. Journal Small Animal Practice, Ontario, v.43, p.439-446, 2002), o que pode justificar, apesar da melhora significativa, a ausência de recuperação neurológica completa do paciente no relato em questão.

CONCLUSÕES

A região torácica cranial não deve ser negligenciada como possível local de ocorrência de DDIV, sendo a corpectomia lateral parcial uma opção terapêutica exequível para a descompressão medular nessa região.

REFERÊNCIAS

  • BÖTTCHER, P.; FLEGEL, T.; BÖTTCHER, I.C. et al. Partial lateral corpectomy for ventral extradural thoracic spinal cord compression in a cat. J. Feline Med. Surg., v.10, p.291-295, 2008.
  • BRAY, J.P.; BURBRIDGE, H.M. The canine intervertebral disk. Part one: structure and function. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.34, p.55-63, 1998.
  • BRISSON, B.A.; HOLMBERG, D.L.; PARENT, J.; SEARS, W.C. et al. Comparison of the effect of single-site and multiple-site disk fenestration on the rate of recurrence of thoracolumbar intervertebral disk herniation in dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.238, p.1593-1600, 2011.
  • FLEGEL, T.; BOETTCHER, I.C.; LUDEWIG, E.; KIEFER, I. et al. Partial lateral corpectomy of the thoracolumbar spine in 51 dogs: assessment of slot morphometry and spinal cord decompression. Vet. Surg., v.40, p.14-21, 2011.
  • GAITERO, L.; AÑOR, S. Cranial thoracic disc protrusions in three German shepherd dogs. Vet. J., v.182, 349-351, 2009.
  • HEARON, K.; BERG, J.M.; BONCZYNSKI J. J. et al. Upper thoracic disc disease (T1-T9) in large-breed dogs. J. Am. Anim. Hosp. Assoc., v.50, 105-111, 2014.
  • HOLMBERG, D.L.; PALMER, N.C.; VANPELT, D.; WILLAN, A.R. A comparison of manual and power-assisted thoracolumbar disk fenestration in dogs. Vet. Surg., v.19, p.323-327, 1990.
  • JÄDERLUND, K.H.; HANSSON, K.; LINDBERG, R. et al. T3-T4 disc herniation in a German shepherd dog. Vet. Rec., v.151, 769-770, 2002.
  • KITAGAWA, H.; ITOH, T.; TAKANO, H. et al. Motor evoked potential monitoring during upper cervical spine surgery. Spine, v.14, p.1078-1083, 1989.
  • LIPTAK, J.M.; WATT, P.R.; THOMSON, M.J. et al. Hansen type I disk disease at T1-2 in a dachshund. Aust. Vet. J., v.77, 156-159, 1999.
  • MACIAS, C.; McKEE, W.M.; MAY, C. et al. Thoracolumbar disk disease in large dogs: a study of 99 cases. Journal Small Animal Practice, Ontario, v.43, p.439-446, 2002
  • MOISSONNIER, P.; MEHEUST, P.; CAROZZO, C. Thoracolumbar lateral corpectomy for treatment of chronic disc herniation: technique description and use in 15 dogs. Vet. Surg., v.33, p.620-628, 2004.
  • WILKENS, B.E.; SELCER, R.; ADAMS, W.H. et al. T9-T10 Intervertebral disc herniation in three dogs. Vet. Comp. Orthop. Traumatol., v.9, p.177-178, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2016
  • Aceito
    19 Out 2016
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Veterinária Caixa Postal 567, 30123-970 Belo Horizonte MG - Brazil, Tel.: (55 31) 3409-2041, Tel.: (55 31) 3409-2042 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: abmvz.artigo@gmail.com