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Somos racistas

RESENHA

Somos racistas

Paula Miranda-Ribeiro

Professora associada do Departamento de Demografia e pesquisadora do Cedeplar/UFMG

KAMEL, Ali. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 (144 páginas).

Não somos racistas já nasceu famoso. Alvo de revisões e resenhas em todos os grandes jornais do país, o livro tem como autor Ali Kamel, o igualmente famoso, temido, poderoso e controverso diretor de jornalismo da Rede Globo de Televisão.

Com 13 capítulos e prefácio escrito pela antropóloga Yvonne Maggie, o livro revisita escritos de Fernando Henrique Cardoso, em cujo governo as políticas de cotas foram inicialmente pensadas; traz indicadores e números dos mais variados; aborda a genética; e discorre sobre políticas de cotas no mundo, o estatuto da igualdade racial, o velho (mas ainda muito atual) debate raça versus pobreza e a educação.

O livro tem vários méritos. O primeiro, sem dúvida nenhuma, é trazer à baila e à mídia, mais uma vez, um tema de enorme importância quando se pensa em políticas públicas que visem reduzir a desigualdade nesse país. Nunca é demais falar sobre raça e racismo no Brasil, até porque muito ainda precisa ser dito para que se avance nesse debate e para que ele se transforme, efetivamente, em ações concretas. O segundo mérito é ser um livro corajoso. Kamel não é o único a considerar que não somos racistas, mas, talvez devido ao seu poder, seja um dos poucos com a coragem de se posicionar e afirmar isso com tanta veemência. Um outro mérito é o fato de o autor usar dados de qualidade indiscutível para fundamentar seus argumentos – censos e PNADs do IBGE.

Apesar de tão diferentes, Kamel e eu temos vários pontos em comum: temos uma filha Alice – não a mesma, obviamente; aplaudimos e valorizamos o belíssimo trabalho realizado pelo IBGE – o fato de Kamel ter feito estágio lá certamente lhe abriu os olhos para a importância dos dados e para a dificuldade de coletá-los; nossos caminhos são marcados por encontros com a Sociologia – o dele, um pouco mais cedo, na graduação; o meu, um pouco mais tarde, na pós-graduação e, atualmente, nas salas de aula da FAFICH/UFMG; acreditamos na educação básica, pública e de qualidade como a redenção deste país, apesar de termos estudado em escolas particulares religiosas; escrevemos sobre questões raciais, políticas de cotas ou qualquer outro assunto a partir de uma posição extremamente confortável e privilegiada na sociedade brasileira – a dos brancos –; achamos que reduzir as estatísticas sobre brancos, pretos e pardos no Brasil a apenas duas categorias seria um equívoco; e, finalmente, não nos consideramos racistas.

Entretanto, discordo veementemente sobre o que Kamel chama de políticas assistencialistas, entre as quais as políticas de cotas, e sobre racismo. Vou me concentrar, aqui, apenas nas políticas de cotas e no racismo, que dá nome ao livro e a esta resenha. Antes disso, gostaria de fazer uma ressalva quanto aos números mostrados pelo autor. Ao contrastar os gastos do governo federal com Bolsa-Família e educação, o autor se esquece de que, constitucionalmente, cabem a Estados e municípios os gastos com educação básica, e não ao governo federal. Para mostrar o quanto se investe em educação neste país, portanto, é preciso adicionar as despesas estaduais e municipais.

À primeira vista, o título do livro Não somos racistas poderia soar como ingênuo, uma vez que há pesquisas que mostram que os brasileiros, individualmente, não se consideram racistas – exatamente como Kamel e eu. No entanto, dizem as pesquisas, todos conhecem pessoas que o são. Tendo Kamel como autor, o título jamais seria ingênuo, porque, sendo quem é, Kamel pode ser tudo, ou quase tudo, mas jamais ingênuo.

Quem sabe o título não seria, então, uma provocação? Como jornalista, Kamel sabe da importância de uma manchete para atrair a atenção dos leitores. No entanto, a leitura do livro desmente essa hipótese e confirma o inverso: o autor acredita piamente na afirmação que faz no título. Portanto, não me resta outra alternativa senão afirmar o contrário: somos racistas.

O grande temor do autor é que se importe para o Brasil uma questão que não nos diz respeito: a nossa transformação num país bicolor, em que aqueles que não forem brancos serão, necessariamente, negros, assim como acontece nos EUA.

Como bem salientou Edward Telles, em seu livro Racismo à brasileira, de 2003, há três critérios de classificação racial/de cor no Brasil: o do IBGE, com suas cinco categorias; o popular, que tem na categoria morena o seu carro-chefe; e o do movimento negro, com a polarização entre brancos e negros. Cada qual tem suas vantagens e desvantagens. Em Não somos racistas, cabe um reparo: negro não é tudo aquilo que não é branco, conforme está logo na orelha do livro. Afinal, a categoria negra jamais incluiu amarelos e indígenas, os quais, apesar de representarem apenas cerca de 1% da população brasileira, têm enorme importância histórica, social e cultural para este país.

Até aqui, Kamel e eu estamos relativamente de acordo: juntar pretos e pardos assim, de antemão, seria um reducionismo, um atentado contra a beleza e a variedade do espectro de cores que representa o povo brasileiro. Seria, também, uma forma de melhorar, de forma artificial, a situação daqueles que se autoclassificam como pretos, grupo cujos indicadores são, na maioria das vezes, piores que o dos pardos e que, por causa do seu tamanho reduzido, tenderia a se perder no meio dos pardos, cujos indicadores são, em média, melhores. Nesse sentido, Kamel e eu discordamos na nossa concordância. Sim, os dois grupos vão se misturar caso haja uma classificação bicolor, mas quem some, com base nas categorias do IBGE e devido à diferença de tamanho, são os pretos, e não os pardos.

Cabe aqui um importante parêntese, que talvez explique a nossa discordância anterior. O livro começa com o que o autor considera uma surpresa: os negros dos números do IBGE são diferentes dos negros das ruas. Ora, a categoria negra utilizada pela academia nada mais é do que a reunião daqueles autodeclarados pretos e pardos, ou seja, uma categoria analítica. A categoria nativa negra, conforme entendida pelas pessoas nas ruas, está, de fato, mais próxima de ser sinônimo da categoria preta do IBGE. Como boa parte da mídia e do público em geral, o autor confunde negros e pretos ao longo de todo o texto. Portanto, os números que o autor apresenta para os negros são, na verdade, referentes aos pretos.

Explicitada a nossa concordância, ainda que relativa, seguem os dois pontos de discordância radical. Em primeiro lugar, é possível ser favorável ao investimento em educação básica e a alguma forma de política de cotas ao mesmo tempo. Adotar uma política de cotas não implica abandonar a educação básica, pois ambas são complementares. Sem entrar nas especificidades desse tipo de política e nas diferentes formas de implementá-la, a política de cotas, no caso das universidades, nada mais é do que uma forma de tentar corrigir, no curtíssimo prazo, distorções graves na educação básica, que acabam por premiar os estudantes egressos de escolas particulares – como Kamel e eu – com o ingresso nas melhores universidades deste país – na maioria dos casos, as universidades públicas, exatamente (e não por coincidência) onde Kamel e eu estudamos. É possível (e na minha opinião, desejável) que a política de cotas reserve vagas para egressos de escolas públicas, mas que, entre estas, uma porcentagem seja reservada aos negros. Junto a uma política de cotas, qualquer que seja o seu formato, é imperativo que sejam feitos investimentos maciços em educação básica, pública e de qualidade, a fim de que as futuras gerações de estudantes de escolas públicas, onde se concentram os pretos e pardos deste país, possam disputar as vagas nas universidades públicas em pé de igualdade com aqueles que, tais como as nossas Alices, estudam em escolas particulares. Só assim a política de cotas fará sentido: como algo paliativo, a vigorar somente enquanto não se colhem os frutos da nova realidade do ensino básico, a fim de que as gerações que ainda não se beneficiaram deste novo momento não fiquem sem as devidas e merecidas oportunidades.

Finalmente, para ser contra o projeto de nação bicolor, não é preciso negar o racismo. Aí está, a meu ver, o maior equívoco do autor. Dizer que o racismo está necessariamente vinculado à pobreza é acreditar nas idéias da Escola Paulista de Sociologia, da qual Fernando Henrique Cardoso fazia parte e que é duramente criticada por Kamel no início do livro. Talvez o exemplo do futebol, também citado no livro, seja uma evidência de que somente dinheiro e prestígio não eliminam o racismo: jogadores negros bem pagos são alvo de racismo pelos colegas brancos, igualmente bem pagos. Dizer que não somos racistas é negar uma infinidade de vivências e de evidências que estão por todos os lados. Como tantos de nós, sei de casos de racismo contra pessoas de alta renda e/ou alta escolaridade – professor universitário negro barrado por porteiro na portaria da faculdade onde trabalha, estudante negro de graduação abordado e agredido por policiais, aluna negra de pós-graduação associada a ocupação manual que não exige nenhuma escolaridade. Nesse sentido, estar sentada na minha confortável posição de branca me dá uma enorme vantagem: ninguém pode me acusar de estar sendo passional, de ser mais uma das "vozes iradas do Movimento Negro", expressão que li, indignada, numa resenha sobre o livro, ou de estar tentando dar aos casos da minha vida privada uma conotação científica, argumento barato com que se tenta, com freqüência, desconstruir o que dizem os acadêmicos negros sobre racismo. Apesar de sociólogo e jornalista e de ter tantos números, talvez falte a Kamel um pouco mais de sensibilidade sobre a realidade racial brasileira e os enormes abismos raciais que nos cercam.

Recebido para publicação em 16/10/2006.

Aceito para publicação em 06/11/2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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