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Processos de constituição, organização e manutenção da vida doméstico-familiar na Cidade do Salvador

NOTAS DE PESQUISA

Pesquisadora associada do Centro de Recursos Humanos - CRH da Universidade Federal da Bahia - UFBA, bolsista de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (UFBA)

O projeto "Processos de constituição, organização e manutenção da vida doméstico-familiar na Cidade do Salvador", em andamento desde 2009, é uma pesquisa de pós-doutorado que conta com o apoio institucional do Centro de Recursos Humanos (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

Este projeto foi inspirado por um conjunto de reflexões sobre as transformações mais recentes nas famílias e nas relações de gênero. Estudos sobre o contexto social baiano discorrem que a consolidação de novos padrões de procriação (CARVALHO; FREITAS; CAMPANÁRIO, 2000) e de sucessão das gerações (SOUZA, 2003 e 2005) tem promovido alterações no tamanho, na composição e na estrutura dos grupos domésticos (GDs), transformando, consequentemente, as formas e os referenciais pelos quais os indivíduos têm construído suas relações familiares e geracionais. A análise dos processos ou trajetórias que dão forma a estas mudanças na vida social e familiar, na Bahia, constitui um campo vasto a ser explorado.

Souza (2003 e 2005), por meio de análises de dados censitários, chama atenção, por exemplo, que no contexto social baiano os grupos domésticos que reúnem pessoas de várias gerações sucessivas com elos de descendência podem ser um reflexo de práticas e estratégias de solidariedade familiar, em que o responsável pelo domicílio acolhe outros membros familiares (pais, filhos, netos, bisnetos), provavelmente, em resposta a situações de crise geradas por uma separação conjugal ou pela perda de emprego. Ainda segundo a autora, muito embora tenha havido reduções no tamanho das proles e dos grupos domésticos na Bahia, isso não parece ser suficiente para reverter ou amenizar as pressões, custos e encargos voltados para o sustento e proteção dos membros familiares e a criação dos filhos. Algo que atingiria todos os segmentos sociais e grupos geracionais (SOUZA, 2005).

A proposta central do estudo é apreender aspectos simbólicos e estruturais referentes aos modos como famílias pertencentes a segmentos das camadas médias urbanas,1 1 Segmento social é concebido aqui enquanto um conceito descritivo que se refere a indivíduos que compartilham entre si semelhantes valores, estilos de vida, posições sociais ou outros "domínios de relevâncias" (SCHUTZ,1979 apud VELHO, 1994, p. 90). em Salvador, têm constituído e organizado sua vida doméstico-familiar. Para tal, foram coletadas informações que permitissem a reconstituição da trajetória de estruturação do grupo doméstico (GD), entendido enquanto "uma organização estruturada a partir de redes de relações sociais estabelecidas entre indivíduos unidos ou não por laços de parentesco, que compartem uma residência e organizam em comum a reprodução cotidiana" (OLIVEIRA; SALLES, 1994 apud SOUZA et al., 2008, p. 2). Recuperar e refletir sobre sua trajetória significou analisar os contextos nos quais as trajetórias dos indivíduos que compõem o GD, com seus respectivos conjuntos de eventos (conjugalidade, reprodução, trabalho, entre outras), que ocorrem sem um ordenamento preestabelecido, se inter-relacionam (BLANCO; PACHECO, 2003; PAREDES, 2003).

Desse modo, a partir da perspectiva da pessoa de referência, procurou-se destacar os eventos referentes aos momentos de constituição, ampliação e retração do GD, identificando tempos de duração e características desses eventos. A abordagem da formação da unidade doméstica, da vida conjugal e reprodutiva da pessoa de referência e de sua prole, das saídas e retornos de filhos e da incorporação de membros da família de procriação dos filhos à unidade doméstica ou outros parentes e não parentes permitiu realizar uma apreciação mais detalhada das mudanças ocorridas na composição e organização dos GDs, desde o período de sua formação até o momento em que a pesquisa foi realizada.

A pesquisa é de tipo domiciliar, com o desenvolvimento de duas fases de trabalho de campo em que se articularam técnicas qualitativas e quantitativas de coleta de dados, utilizando uma amostra intencional, ou seja, sem representatividade estatística, na medida em que o principal interesse não foi o de examinar a recorrência de determinadas trajetórias familiares, mas sim refletir sobre as características dos diferentes tipos identificados.

Em sua primeira fase, a pesquisa envolveu a aplicação de um questionário estruturado, com questões fechadas e um relato de campo do(a) entrevistador(a) sobre a dinâmica da entrevista. A segunda etapa compreendeu a realização de algumas entrevistas em profundidade, detalhando questões surgidas ou pouco trabalhadas na primeira fase do campo.

Os instrumentos de campo foram estruturados em torno de quatro blocos temáticos: (a) caracterização dos GDs e principais características de seus integrantes; (b) modos de manutenção da vida doméstico-familiar (atividades domésticas, cuidados de bem-estar, auxílios e rendimentos financeiros, formação escolar dos jovens); (c) história de união e formação da família de procriação de todas as mulheres declaradas como pessoa de referência e todas aquelas com experiência de união e/ou com filhos residentes no GD; (d) história de nascimentos e trajetória de convivência com filhos e netos de todas as mulheres declaradas como pessoa de referência e todas aquelas com experiência de união e/ou com filhos residentes no GD.

Para o acesso a GDs pertencentes a segmentos médios, foi utilizado como delimitador do campo a tipologia socioespacial elaborada por Carvalho e Pereira (2008) para a Região Metropolitana de Salvador (RMS). Por conter uma representação acurada sobre a distribuição dos grupos sociais no espaço territorial do município de Salvador, a escolha desse referencial se mostrou muito pertinente para os objetivos da pesquisa.2 2 Trata-se de uma tipologia que define os grupos sociais com base nos dados censitários de ocupação da população, assumindo como "pressuposto teórico que o trabalho constitui a variável básica para a compreensão das hierarquias e da estrutura social, traduzindo em grande medida, o lugar que as pessoas ocupam nas relações econômicas e a dimensão simbólica que tem esse lugar" (CARVALHO; PEREIRA, 2008). Essa tipologia compreende sete categorias: superior; média-superior; média; popular; popular-inferior; popular-operária-agrícola; e popular agrícola. A média abrange 28 bairros de Salvador, entre os quais nove foram sorteados para a realização do campo. A meta por bairro foi de dez entrevistas, utilizando o "pulo 10" como critério de seleção dos domicílios a serem inquiridos.

Foram pesquisados 67 GDs, totalizando 254 pessoas. Em três bairros não foi possível atingir a meta proposta, devido ao alto número de recusas e domicílios vazios, e outros dois bairros sorteados foram descartados por dificuldades na realização das entrevistas. Entre os domicílios estudados, seis casos considerados modelares foram escolhidos para a entrevista em profundidade.

As análises preliminares revelam que, quanto à sua composição, os GDs são formados, majoritariamente, pela pessoa responsável, com ou sem cônjuge, e seus filhos (57 GDs). Em grande parcela, a pessoa responsável é do sexo feminino, com idade entre 40 e 59 anos. A composição de tipo monoparental feminina (mulheres sem cônjuge com filhos) foi aquela com o maior número de ocorrências, seguida por casais com filhos. A coabitação entre avós e netos esteve presente em 13 GDs, destacadamente nos arranjos com responsável feminino. Essas composições monoparentais aparecem associadas, em grande parte, a trajetórias de GDs de mulheres chefes que enviuvaram quando ainda estavam coabitando com algum(a) filho(a) solteiro(a) menor de 24 anos. As histórias de união das mulheres que integram os GDs estudados mostram que a ocorrência de recasamentos, principalmente para aquelas nas faixas etárias acima dos 40 anos, foi pouco comum, o que representou, para a maioria das viúvas e separadas, a permanência sem companheiro no transcorrer da trajetória de seu GD.

O compartilhamento da moradia com irmãos é um aspecto que se destacou, revelando estratégias de suporte de sobrinhos jovens. Em muitas dessas situações, a moradia foi herança deixada pelos pais e que, no momento da pesquisa, estava sendo compartilhada por vários irmãos, todos em faixas etárias acima dos 50 anos. Esses GDs sobressaem por apresentarem uma trajetória longeva e com composições extensas.

A instabilidade do emprego e os baixos salários são apontados como alguns dos elementos que têm contribuído para o adiamento do estabelecimento de uniões conjugais e, consequentemente, para a formação de novos GDs, promovendo a permanência, na casa dos pais, de filhos solteiros em idades adultas (CAMARANO, 2006). Nos GDs inquiridos, há no total 86 pessoas na posição de filhos da pessoa responsável, pouco mais da metade (54%) na faixa de 20 a 39 anos de idade e quase todos desse intervalo etário nunca moraram em outra residência ou tiveram alguma experiência de conjugalidade. Entre esses, cerca de 20% não estavam exercendo nenhuma atividade remunerada. Nas entrevistas em profundidade, foram recorrentes as avaliações de que atualmente seria mais difícil para os filhos jovens conseguirem "ser donos do próprio nariz" e "sair debaixo das asas da mãe".

No momento da entrevista, todos os filhos menores de 18 anos estavam morando no GD com sua respectiva mãe, não havendo casos de saída e retorno. Ou seja, nenhum filho menor de 18 anos deixou de residir no GD materno, mesmo que temporariamente. No que se refere aos filhos maiores de 18 anos, entre aqueles que deixaram o GD da família de origem, grande parte foi motivada pelo estabelecimento de uma união conjugal. Os casos de saída de filhos da casa da mãe impulsionados por migração em função de trabalho foram mais raros.

Destaca-se igualmente, entre os resultados preliminares, o papel fundamental exercido pelas mulheres no gerenciamento do GD, principalmente naqueles em que há presença de mulheres mais velhas e sem companheiro. A centralidade das ações cotidianas dessas mulheres evidencia-se não somente nas atividades apontadas como desempenhadas primordialmente por elas, mas também nos relatos de campo e nas entrevistas em profundidade. Tal posição da figura feminina na unidade doméstica e na articulação das redes de parentesco remete a outros trabalhos sobre a temática de grupos domésticos na Bahia (WOORTMAM, 1987) e em outras localidades da Região Nordeste (SCOTT, 1990). O refinamento da análise permitirá adquirir maior conhecimento sobre como essa centralidade da figura feminina, principalmente das mais idosas, se constrói e se legitima ao longo da trajetória dos GDs em que estão inseridas.

As observações feitas em campo e as entrevistas em profundidade apontam, ainda, que há uma constante troca entre GDs de aparentados, que em muitos casos moram próximos ou compartilham um terreno. Extensões nas construções das casas e no compartilhamento do terreno, que popularmente são conhecidos como "puxadinhos", constituem um tipo de padrão de residência que se mostrou comum nos bairros onde se realizou a pesquisa e onde se identificam trocas intensas de variados tipos de suporte - material, financeiro e de serviços.

O próximo passo envolve o refinamento da análise, identificando com maior detalhamento os tipos de trajetórias doméstico-familiares encontradas pela pesquisa.

Recebido para publicação em 11/03/2010

Aceito para publicação em 20/07/2010

  • BLANCO, M.; PACHECO, E. Trabajo y família desde el enfoque del curso de vida: dos subcohortes de mujeres mexicanas. Papeles de Poblacion, México, n. 38, p.159-193, 2003.
  • CAMARANO, A. A. (Org.). Transição para a vida adulta ou vida adulta em transição? Rio de Janeiro: Ipea, 2006.
  • CARVALHO, A. L. B.; FREITAS, M. A. S.; CAMPANÁRIO, P. Mudanças na dinâmica demográfica de Salvador e sua Região Metropolitana na segunda metade do século XX. Bahia Análise & Dados, v. 10, n. 1, p. 35-48, julho 2000.
  • CARVALHO, I. M. M.; PEREIRA, G. C. As «cidades» de Salvador. In: CARVALHO, I. M. M.; PEREIRA, G. C. (Orgs.). Como anda Salvador e sua região metropolitana. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 81-211.
  • MACÊDO, M. S. Tecendo os fios e segurando as pontas: trajetórias e experiências entre mulheres chefes de família em Salvador. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 1999.
  • PAREDES, M. Trayectorias reproductivas, relaciones de género y dinámicas familiares em Uruguay. Barcelona. Tese (Doutorado em Demografia) - Centro de Estudios Demográficos, Universidad Autónoma de Barcelona, 2003.
  • SAAD, P. M. Transferência de apoio intergeracional no Brasil e na América Latina. In: CAMARANO, A. A. (0rg.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: Ipea, 2004, p. 169-209.
  • SCOTT, P. O homem na matrifocalidade: gênero, percepção e experiências do domínio doméstico. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 73, p. 38-47, 1990.
  • SOUZA, G. A. A. de; BRITO, D. T. de; FREITAS, C. S.; VIANA, F. P. Mudanças nas configurações de grupos domésticos na Bahia, de 1991-2000: características e condições de sociabilidade dos tipos mais significativos. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais... Caxambu, 2008. Disponível em: <http://www.abep.org.br>. Acesso em 15 mar. 2009.
  • SOUZA, G. A. A. de. Implicações sociais dos novos padrões de reprodução demográfica na Bahia. Caderno CRH (UFBA), Salvador, v. 18, n. 43, p. 71-86, 2005.
  • ______. Padrões de sucessão das gerações. Persistências e mudanças históricas. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 20, n. 1, p. 5-28, 2003.
  • VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
  • WOORTMANN, K. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/ CNPq, 1987.
  • Processos de constituição, organização e manutenção da vida doméstico-familiar na Cidade do Salvador

    Glaucia dos Santos Marcondes
  • 1
    Segmento social é concebido aqui enquanto um conceito descritivo que se refere a indivíduos que compartilham entre si semelhantes valores, estilos de vida, posições sociais ou outros "domínios de relevâncias" (SCHUTZ,1979 apud VELHO, 1994, p. 90).
  • 2
    Trata-se de uma tipologia que define os grupos sociais com base nos dados censitários de ocupação da população, assumindo como "pressuposto teórico que o trabalho constitui a variável básica para a compreensão das hierarquias e da estrutura social, traduzindo em grande medida, o lugar que as pessoas ocupam nas relações econômicas e a dimensão simbólica que tem esse lugar" (CARVALHO; PEREIRA, 2008).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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