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Ciência, cultura e a estagnação da agenda ambiental

PONTO DE VISTA

Ciência, cultura e a estagnação da agenda ambiental

George Martine

Consultor independente, Brasília-DF, Brasil (georgermartine@yahoo.com)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: George Martine SHIS QI 19/6/20 Brasilia, DF Brasil - CEP 71655-060

Diante da indiferença do público norte-americano com a problemática das mudanças climáticas, o sociólogo Andrew Hoffman (2012) convocou recentemente os cientistas sociais do seu país para assumir um papel mais efetivo a respeito desse tema. O autor registra uma disparidade crescente entre, por um lado, a consolidação do consenso científico sobre as mudanças climáticas derivadas de ações antropogênicas e, por outro, a falta de consenso social nos EUA em relação a esta literatura científica. Como o descrédito à ciência favorece a ausência de ações efetivas em torno dessa problemática, Hoffman considera que os cientistas sociais deveriam contribuir para esse debate com argumentos mais consistentes e mais bem veiculados. Ele analisa as razões de, na sociedade norte-americana, uma parcela crescente da população rejeitar a evidência científica cada vez mais fundamentada sobre a ocorrência de mudanças climáticas. A partir daí, sugere algumas estratégias na área de comunicação para diminuir a brecha entre a ciência e a percepção social, com o intuito de ajudar assim na elaboração de abordagens mais eficazes para contornar esta ameaça.

Trata-se, sem dúvida, de uma reflexão importante de alguém que conhece bem o tema e está comprometido com a necessidade de uma maior conscientização sobre as ameaças climáticas e, consequentemente, a urgência de ações públicas para fazer face ao problema, antes que seja tarde. O texto também tem a vantagem de apresentar uma síntese útil dos pontos-chave de concordância e discordância que existem a respeito da questão das mudanças climáticas. Entretanto, a efetividade de suas propostas concretas pode ser limitada, pois o autor deixa de contemplar três aspectos importantes da questão.

As mudanças climáticas não estão sozinhas

Hoffman analisa a questão climática como se fosse uma transformação isolada e única, o que enfraquece sua argumentação. Como no caso dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), produzidos pelos mais destacados cientistas do planeta, o enfoque exclusivo sobre questões climáticas facilita questionamentos e dúvidas - até de leigos - a respeito da dimensão e origem das mudanças em curso. Ou seja, o clima sempre foi volátil e imprevisível e a avaliação de tendências exige estudos longitudinais complexos e multidisciplinares que não são intuitivamente compreendidos pela população. O atual cenário de eventos extremos dificulta ainda mais a compreensão do leigo, pois, em pleno "aquecimento global", ocorrem períodos de frio intenso jamais registrados anteriormente. Tudo isso permite uma fácil manipulação da opinião pública pelas forças conservadoras que se opõem a qualquer sugestão de mudanças climáticas.

Na realidade, a crise ambiental é muito mais ampla e é mais convincente quando vista de forma integral. A ciência já demonstrou claramente que o risco de continuar ignorando os limites ambientais globais é gravíssimo, uma vez que existem várias fronteiras planetárias entrelaçadas que estão ameaçadas. Um trabalho seminal escrito em 2009 por 29 cientistas da University of Stockholm's Resilience Center mostrou que o uso abusivo dos recursos materiais, energéticos e bióticos da Terra pelo sistema econômico global já tinha superado os pontos de rotura (tipping points) em três campos conhecidos - mudanças climáticas, diversidade biológica e teor de nitrogênio na biosfera - e ameaça excedê-los em seis outras áreas conhecidas (ROCKSTRÖM et al., 2009; UNEP, 2012a). Uma pesquisa mais recente publicada por 22 cientistas da Universidade da Califórnia alerta para o fato de que o planeta está na iminência de sofrer um "state shift", ou seja, uma transição crítica que, repentinamente, altera as tendências conhecidas, produzindo efeitos bióticos não antecipados (BARNOSKY et al., 2012). As mudanças climáticas constituem a ameaça mais óbvia e mais discutida provocada pela atividade humana, mas não necessariamente a mais grave ou a mais fácil de acompanhar.

A felicidade do consumo e o desenvolvimento

A explicação de Hoffman a respeito da origem das discrepâncias entre ciência e opinião pública sobre mudanças climáticas negligencia fatores importantes. Ele parte do princípio de que as opiniões das pessoas em relação às mudanças climáticas, assim como sobre outros temas conflitivos, são baseadas nas suas preferências ideológicas, experiências pessoais e valores - os quais são fortemente influenciados por seus grupos de referência e por psicologias individuais. Mas o autor sugere também que a guerra cultural sobre mudanças climáticas faz parte de um conflito cultural/religioso/político mais amplo que gera debates intermináveis entre conservadores e liberais, ou democratas e republicanos nos EUA sobre assuntos como aborto, uso de armas, sistemas de saúde, evolução, etc.

Quanto à primeira parte deste argumento, concordo que as atitudes pessoais sobre todos esses temas têm um referencial de valores e experiências pessoais. As posturas de descrédito da maioria da população norte-americana a respeito de mudanças climáticas - que se refletem na ausência de atitudes e decisões políticas adequadas - representam efetivamente o resultado de determinada configuração de valores, visões dominantes, ideologias e culturas.

Entretanto, é possível discordar da ideia de Hoffman de que o conflito cultural sobre mudanças climáticas simplesmente faz parte de um leque de divergências típicas entre conservadores e liberais nos EUA. Há uma grande diferença entre as discussões setoriais que tipicamente dividem conservadores e liberais nos EUA e o debate sobre as grandes questões ambientais. Temas como aborto, armas, evolução, etc. são de uma relevância maior ou menor, em diferentes momentos, para diversos setores da população que, por uma razão ou outra, se sentem mais afetados pelo assunto. Porém, o debate sobre questões como as mudanças climáticas inevitavelmente levanta o tema da contribuição antropogênica a esses problemas, o que, se levado a sério, detona questionamentos que afetam diretamente o sentido da vida de todas as pessoas todo o tempo. A guerra cultural sobre mudanças climáticas e outras ameaças ambientais, portanto, é de natureza muito distinta e traz uma série de implicações muito mais profundas do que as clivagens que costumam distinguir republicano de democrata, conservador de liberal. Não se trata de questões que afetam marginalmente a população em alguns momentos, senão do âmago das suas crenças e de sua existência. Ou seja, uma vez convencidas da iminência de mudanças climáticas de origens antropogênicas, as pessoas se veem obrigadas a revisar os estilos de vida e os padrões de comportamento que têm condicionado suas ações desde o nascimento - e que estão na origem das ameaças climáticas.

Neste contexto, pode-se considerar que o autor dá importância insuficiente a um determinante cultural básico, o qual não somente sustenta e intensifica os fatores causadores das mudanças climáticas, mas também impede as pessoas de enxergarem a etiologia das mudanças climáticas. Trata-se da relevância da cultura do consumo. Esta dá forma, conteúdo e vigor ao crescimento econômico que, por sua vez, tem gerado a maioria das grandes ameaças ambientais. Entretanto, a cultura do consumo é tão profundamente arraigada na civilização atual que acaba manipulando o comportamento das pessoas sem ser percebida. Qualquer pessoa nascida numa coletividade que define felicidade, status social e êxito em termos da sua capacidade de adquirir bens materiais tem muita dificuldade em aceitar a necessidade de redefinir suas expectativas de vida e seu comportamento em função de uma ameaça ainda difusa e mal compreendida. No caso do texto do Hoffman, tal omissão talvez deva-se ao fato de a cultura do consumo ser uma criação social tão típica e tão profundamente enraizada dos norte-americanos que acaba passando desapercebida até para os estudiosos.

Considerando a importância notória da tecnologia na própria evolução e substância da cultura de consumo, torna-se mais fácil para os conservadores propagar a crença de que o desenvolvimento tecnológico eventualmente será capaz de varrer todos os problemas ambientais que se anunciam neste momento. Assim, é fácil entender a grande predisposição em aceitar argumentos que tranquilizam a sociedade a respeito de sua culpa nos eventos climáticos, que reforçam a confiança na capacidade do desenvolvimento tecnológico para resolver qualquer problema e, sobretudo, que exoneram a população de alterar seu comportamento dentro da cultura do consumo. Por isso, as campanhas propagandísticas vigorosas, financiadas pelos setores produtivos que mais contribuem para o caos ambiental, encontram facilmente um terreno fértil para suas ideias. Tendo em vista o grau de ignorância da população sobre questões científicas, conforme assinala Hoffman, qualquer argumento que defenda o tradicional "American Way of Life" acaba sendo plausível e permite a utilização de meios radicais, até a provocação de guerras, para garantir sua continuidade.

Em suma, ao discutir os choques culturais, Hoffman parece não se ater na importância da cultura dominante da civilização atual - a cultura do consumo. Com crescente poder e amplitude desde os meados do século XX, esse paradigma cultural vem motivando as pessoas e definindo os contornos e objetivos da busca da felicidade, assim como os determinantes do status social das pessoas e de grupos sociais. Esta maneira de buscar a felicidade, por sua vez, alimenta o aumento constante da produção e, ao fazê-lo, compromete os recursos do planeta. Ou seja, o consumismo induz as pessoas a buscarem o contentamento e a aceitação social via a compra de bens e serviços. Por sua vez, o aumento constante do consumo resultante desta procura dinamiza a produção e o crescimento econômico - gerando, nesse processo, os diversos problemas ecológicos que despontam atualmente, inclusive as grandes ameaças ambientais. Os EUA são o berço e ainda o maior ator dessa cultura consumista que já se tornou global.

Que cientistas sociais são esses?

Ao chamar os cientistas sociais para atuarem mais efetivamente na conscientização da população a respeito da importância do consenso científico em torno das mudanças climáticas, Hoffman parece não considerar que a disciplina mais influente e atuante nas ciências sociais - a economia - é profundamente comprometida, por formação, tradição, convicção e talvez (em alguns casos) interesses pessoais, com o paradigma de desenvolvimento que nos levou à beira de um caos ecológico. A ciência econômica ensinada na maioria das universidades não inclui a dimensão ecológica e, consequentemente, os economistas desconhecem o papel central que o sistema natural assume na dinâmica econômica. Por outro lado, ela transmite para as gerações futuras de economistas a fé na capacidade do mercado livre e da tecnologia para resolver qualquer problema, inclusive os desastres ecológicos assinalados pelos "verdinhos" inconvenientes.

Obviamente, existem muitos economistas com uma visão mais ampla que até lideram ou animam movimentos ambientais. Entretanto, no mundo atual, economista que trabalha num governo, numa entidade de desenvolvimento internacional ou numa corporação nacional ou multinacional e que, portanto, tem mais influência concreta sobre a evolução da atividade econômica, possui como função precípua assegurar, viabilizar, implementar, defender e justificar o crescimento econômico e a redução da pobreza via generalização e ampliação de um modelo de desenvolvimento já conhecido como insustentável.

A conjugação desses dois fatores - a força da cultura do consumo e a influência predominante e negativa da classe de cientistas sociais mais poderosa na formulação de opinião e de políticas públicas - leva a se ter pouca confiança na capacidade das estratégias sugeridas por Hoffman para reduzir a brecha cultural sobre mudanças climáticas, seja nos EUA ou alhures. Essencialmente, ele recomenda táticas que surgem das ciências da comunicação e da negociação. Dificilmente estas práticas poderiam alterar valores e crenças tão profundamente arraigados, particularmente tendo em vista a eficácia comprovada da cultura do consumo e da maquinaria institucional criada em torno dela para estimular o processo produtivo e a geração de riquezas materiais.

O desenvolvimento necessário - e insustentável

As questões levantadas pelo ensaio de Hoffman têm uma transcendência que ultrapassa as fronteiras dos EUA, pois o resto do mundo já está se empenhando na incorporação da mesma cultura do consumo. Precisamos reconhecer que o êxito do consumismo universal como motor central do crescimento econômico tem permitido a redução da pobreza e o alcance generalizado de níveis de bem-estar material jamais imaginados na história da humanidade. De fato, ao ser globalizada, a cultura do consumo está operando algo que pode ser considerado a maior transformação socioeconômica na história do nosso planeta. A motivação do consumo, ao funcionar eficazmente em nível individual, tem uma forte capacidade de mobilização em âmbito agregado, o qual explica sua pujança na agenda não somente das grandes corporações, mas também dos governos nacionais e das agências de desenvolvimento internacional e do próprio sistema das Nações Unidas. Fomentar o consumo constitui a essência do único paradigma de desenvolvimento que conhecemos hoje.

Na realidade, esses avanços significativos reais impedem governos nacionais e instituições internacionais de desenvolvimento de contestarem o modelo. Não é à toa que políticos de todo o mundo - inclusive os nossos presidentes de "esquerda" - defendem com todas as suas forças o "desenvolvimento" que vai permitir à população do seu país consumir mais. Dado o sucesso inegável do atual paradigma de desenvolvimento via crescimento econômico, nenhum governo, rico ou pobre, se atreve a tomar qualquer medida que possa ameaçar a continuidade da espiral do consumo e do crescimento econômico. Isto ficou claramente demonstrado pelos resultados pífios da Conferência Rio+20, onde praticamente ninguém ousou colocar o dedo na chaga ambiental global - o modelo do throughput growth.1 1 Este conceito refere-se ao processo por meio do qual se utiliza energia para transformar recursos naturais em produtos que são consumidos no mercado e, posteriormente, transformados em dejetos. Todas as etapas deste processo contribuem crescentemente para o aguçamento de ameaças ambientais. Preferiu-se enfocar um mito natimorto, o da economia verde, que foi prontamente abocanhado pelos adeptos da maquiagem ecológica (greenwashing).

Dentro da lógica do atual paradigma de desenvolvimento, não surpreende portanto a reação imediata do governo Lula, diante da crise econômica de 2008/09, de reduzir impostos para alguns dos produtos industrializados que, direta e indiretamente, mais contribuem para as emissões de gases de efeito estufa. Este exemplo foi seguido, em plena Conferência Rio+20, pelo governo da Dilma Roussef. A desoneração fiscal para a compra de carros novos e a manutenção dos ajustes do preço da gasolina abaixo dos índices de inflação contribuem não só para o aquecimento global, mas também para a crise da mobilidade urbana.

Infelizmente, esse paradigma de desenvolvimento não é sustentável no médio e longo prazos, conforme já amplamente demonstrado. O mundo consumista ligado ao mercado globalizado, apesar de englobar hoje apenas um terço da população mundial, já ameaça seriamente nossa 'civilização'. Obviamente, a contínua incorporação de novos contingentes a essa máquina aumenta a ameaça.

Portanto, o grande dilema da humanidade no século XXI é: como controlar o ritmo de consumo sem travar o progresso social da enorme massa que ainda não faz parte do grupo de consumidores e que, em grande medida, ainda sofre de deficiências em suas necessidades básicas? Essa parece ser a questão que deveria predominar na nossa agenda atual.

O dilema do desenvolvimento mundial pode ser ilustrado pela evolução notável da situação brasileira. Aqui, a classe média (medida em termos de renda) passou de 38% para 54% da população brasileira entre 2003 e 2014. Representa hoje um contingente populacional de 108 milhões de pessoas, mais do que a população total de países como Alemanha e França. Se fosse uma nação, esse contingente seria o 18º país do mundo em consumo e mais rico do que 54% da população mundial (OJIMA et al., 2014). Esse crescimento recente da renda na classe média obviamente tem significado uma melhoria necessária nas condições de vida de uma enorme parcela da população pobre. Ao mesmo tempo, o aumento do consumo destas classes tem tido um efeito benéfico sobre a economia do país. Entretanto, é forçoso reconhecer que a multiplicação desse fenômeno altamente positivo, quando ocorre em nível global, intensifica rapidamente as emissões que ameaçam deslanchar uma crise ecológica de proporções inusitadas. A título de exemplo, o consumo de energia per capita aumentou aqui em 67% entre 1992 e 2011(OJIMA et al., 2014). Dado o aumento populacional, isto significa que o consumo absoluto de energia quase dobrou em menos de 20 anos.

Quando a questão é colocada desta forma, é fácil esquecer que tal ameaça ecológica global foi inicialmente produzida diretamente pelos padrões de consumo de uma minoria da população mundial - os residentes dos países industrializados, juntamente com as elites dos países pobres. Entretanto, o fato é que o agravamento desta crise hoje em dia reflete, em parte importante, a entrada de elevado contingente de consumidores provenientes de países que eram - há pouco tempo - classificados como "subdesenvolvidos" e agora são chamados de "emergentes". Mesmo assim, a classe de consumidores mundiais é ainda minoria. A despeito do crescimento galopante desta classe nas últimas décadas, estima-se que pouco mais de um terço da população mundial pode ser classificado como consumidor no mercado globalizado (e portanto emissor) nos dias de hoje (McKINSEY, 2012). Este número relativamente reduzido tem sido suficiente para colocar o equilíbrio ecológico global em sérios problemas. Apesar do grande progresso econômico dos últimos tempos, a maioria da população mundial ainda não é integrada ao mercado global, a desigualdade econômica aumentou e 1,2 bilhão de pessoas ainda estão na pobreza extrema.

Mas o fato é que o número de consumidores cresce diariamente: segundo a consultora global McKinsey (2012), a classe média vai aumentar de 2,4 bilhões para 4,2 bilhões de pessoas até 2025. A sede de consumo já se encontra generalizada e está presente até na etnografia dos nossos recentes "rolezinhos", em que o poder das grandes marcas da moda manifestou-se de maneira inusitada. Ninguém ousaria negar o direito do mundo ainda "subdesenvolvido" de sair da pobreza, ou seja, de tornar-se também consumidor. Entretanto, na ausência de uma reviravolta dramática na concepção do desenvolvimento e na cultura do consumo que a sustenta, essa incorporação de massas significativas de novos consumidores, fato que tanto alegra os economistas, as corporações e as instituições de desenvolvimento, significa evidentemente a catalisação da crise ecológica.

Nesta situação, haveria recursos e tecnologia suficientes para garantir condições de bem-estar mínimas para toda a população mundial? Claro que sim, mas isto exigiria uma mudança radical do paradigma de desenvolvimento e obrigaria a modificações culturais importantes e reduções dramáticas do consumo. Isto somente seria conseguido por meio de uma nova governança global voltada para a sustentabilidade e não para o "desenvolvimento". Infelizmente, conforme demonstrado claramente na Rio+20, nenhum país ou contingente populacional mais rico está disposto a descontinuar sua trajetória em direção ao consumo e à riqueza crescente. Neste cenário, obviamente, os outros dois terços da humanidade não vão abrir mão do seu direito de consumir e se "desenvolver".

A Conferência Rio+20, portanto, apenas seguiu a tendência já demonstrada em relação à atitude global em praticamente todas as outras iniciativas ambientais. Um estudo recente realizado pela Unep e o Stockholm Environmental Institute, sobre os 90 compromissos ambientais assumidos pelos governos nas últimas décadas, identificou um progresso real em apenas quatro casos: retirar o chumbo da gasolina; melhorar o acesso à água potável de qualidade; promover pesquisas sobre o ambiente marino; e evitar danos adicionais à camada de ozônio (UNEP, 2012b). Nesta situação em que cada um defende o seu direito de continuar crescendo e consumindo, de que forma vamos criar mecanismos eficientes de governança global para as fronteiras planetárias?

Em suma, é muito interessante o artigo de Hoffman, apresentando uma excelente discussão sobre o conflito entre o científico e o social, mas insuficiente. Suas recomendações a respeito das estratégias que deveriam ser adotadas pelos cientistas sociais norte-americanos com vistas a um maior consenso social naquele país, apesar de muito bem estruturadas tecnicamente, não seriam muito eficazes. Quando se discute a questão - "o que fazer?" - é essencial colocar esse debate no âmbito de uma perspectiva mais ampla, pois tanto as questões de desenvolvimento como as ambientais são, inevitavelmente, globais. As mudanças climáticas, assim como as outras questões ambientais ameaçadoras, estão à mercê de transformações culturais embutidas no paradigma de desenvolvimento hegemônico que praticamente o mundo inteiro adotou. Enquanto não se reconhece explicitamente que a cultura do consumo impele a demanda e que o aumento da produção nos moldes atuais para atender a essa demanda gera vários males ecológicos, podendo acarretar uma desestabilização abrupta do ambiente global, as estratégias de comunicação sugeridas por Hoffman terão pouco impacto.

Autor

George Martine é sociólogo/demógrafo e PhD pela Universidade de Brown nos Estados Unidos e mestre pela Universidade de Fordham. Foi senior fellow da Universidade de Harvard, diretor da equipe de apoio técnico do UNFPA no México e diretor do Instituto Sociedade População e Natureza em Brasília, dentre outras atividades. Atualmente atua como consultor nos temas de desenvolvimento social, população e meio ambiente.

Recebido para publicação em 30/01/2014

Aceito para publicação em 28/02/2014

  • BARNOSKY et al. Approaching a state shift in Earth's biosphere. Nature, n. 486, p. 52-58, 07 June 2012.
  • HOFFMAN, A. Climate science as cultural war. Stanford Social Innovation Review, Fall, 2012. Disponível em: <http://www.ssireview.org/articles/entry/climate_science_as_culture_war>
  • McKINSEY. Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets. Insights & Publications 2012. Disponível em: <http://www.mckinseyquarterly.com>
  • OJIMA, R.; DIOGENES, V.H.D.; SILVA, B.L. Dynamique démographique et politiques sociales au Brésil. Dilemnes et défis politiques du "bonus démographique". Problèmes d' Amérique Latine, Eska, Paris, n. 94, 2014.
  • ROCKSTRÖM, J. et al. A safe operating space for humanity. Nature, n. 461, p. 472-475, 2009.
  • UNEP. Emerging issues in our global environment. UNEP Yearbook 2012 United Nations, 2012a.
  • _________. World remains on unsustainable track despite hundreds of internationally agreed goals and objectives. GEO5 press release Rio de Janeiro, 6 June 2012b.
  • Endereço para correspondência:
    George Martine
    SHIS QI 19/6/20 Brasilia, DF
    Brasil - CEP 71655-060
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    Este conceito refere-se ao processo por meio do qual se utiliza energia para transformar recursos naturais em produtos que são consumidos no mercado e, posteriormente, transformados em dejetos. Todas as etapas deste processo contribuem crescentemente para o aguçamento de ameaças ambientais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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