Acessibilidade / Reportar erro

Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade?

Economía, sociedad y medio ambiente en el siglo 21: triple vertiente o trilema de la sostenibilidad?

O progresso humano baseado no crescimento econômico tem sido notável em quase todas as áreas nos últimos 70 anos. Entretanto surgem dúvidas sobre a continuidade e a extensão deste avanço. O crescimento econômico tem repousado no uso insustentável de recursos não renováveis, na destruição da diversidade biológica e na emissão de gases de efeito estufa que aceleraram as crises ambientais globais, além de ter gerado fossos cada vez maiores entre ricos e pobres. Com o aprofundamento da globalização, avistam-se graves problemas ecológicos, econômicos e sociais que exigem repensar o desenvolvimento à luz dos limites impostos pela própria natureza. Neste trabalho são examinadas as interações entre os principais condicionantes da crise atual. Também se observa como o atual contexto modifica o significado e a direção do debate tradicional a respeito do papel da dinâmica demográfica nesta equação. Por outro lado, constata-se que o tão sonhado "desenvolvimento sustentável" passou a ser um oximoro. Como fica cada vez mais difícil conciliar crescimento econômico, bem-estar social e sustentabilidade ambiental, o tripé da sustentabilidade que foi o mote da Rio+20 passou a ser, na realidade, um trilema.

Palavras-chave:
Desenvolvimento sustentável; Degradação ambiental; Dinâmica demográfica


Resumen

El progreso humano basado en el crecimiento económico ha sido notable en casi todas las áreas durante los últimos 70 años. Sin embargo, surgen dudas al respecto de las posibilidades de continuar y extender estos avances. El crecimiento económico ha reposado en el uso insostenible de recursos naturales, en la destrucción de la diversidad biológica y en la emisión de gases de efecto invernadero que han acelerado la crisis ambiental global y generado brechas cada vez más grandes entre ricos y pobres. La profundización de la globalización ha creado graves problemas ecológicos, económicos y sociales que nos obligan a repensar el desarrollo a la luz de las limitaciones impuestas por la naturaleza. Este trabajo examina las interacciones entre los principales condicionantes de la crisis actual. También observa como el actual contexto modifica el significado y la dirección del debate tradicional sobre el papel de la dinámica demográfica en esta ecuación. Además, constata que el tan-deseado 'desarrollo sostenible' se ha transformado en un oxímoron. Dadas las dificultades crecientes para conciliar crecimiento económico, bien-estar social y sostenibilidad ambiental, la triple vertiente de Rio + 20 se ha transformado en trilema.

Palabras clave:
Desarrollo sostenible; Degradación ambiental; Dinámica Demográfica

Over the past 70 years, human progress founded on economic growth has been expressive in practically all areas. Nevertheless, doubts concerning the continuity and extension of these advances are mounting. Economic growth has been bankrolled by the unsustainable use of non-renewable resources, by the destruction of biological diversity and by the emission of greenhouse gases that have triggered global environmental crises while also increasing the gaps between rich and poor. Serious ecological, economic and social problems in the context of deepening globalization pressure us to rethink development in the light of nature's own limits. This paper examines the interactions between the main conditioning economic, social and political factors of the present crisis. It also observes that current dilemmas modify the meaning and the direction of traditional debates on the role of demographic dynamics in this equation. "Sustainable development", though much desired, has become an oxymoron. Given the increasing difficulties in conciliating economic growth, social well-being and environmental sustainability, the Three Pillars of the Rio + 20 Conference have morphed into a trilemma.

Keywords:
Sustainable development; Environmental degradation; Demographic dynamics


Introdução

O progresso humano ocorreu de forma lenta na maior parte da história, mas adquiriu uma dimensão exponencial nas últimas sete décadas, com a aceleração das atividades antrópicas do pós-guerra. Turbinada pela busca frenética do lucro na economia capitalista, pelo petróleo barato e pelo desenvolvimento tecnológico, a expansão da produção de bens e serviços contribuiu para uma melhoria significativa na qualidade de vida de bilhões de pessoas. A redução da miséria e dos níveis de pobreza e a melhoria dos indicadores de saúde, educação e bem-estar por conta deste progresso foram drásticas e incontestáveis.

Entretanto, existem sinais claros de que esse período de bonança poderia esfumar-se rapidamente. O crescimento econômico tem se baseado no uso insustentável de recursos não renováveis, na redução da biodiversidade, na concentração de dióxido de carbono na atmosfera e na acidificação dos oceanos, além de ter gerado fossos cada vez maiores entre ricos e pobres. Com o aprofundamento do processo de globalização, avistam-se graves crises ambientais e sociais, enquanto a trajetória da própria economia também apresenta sinais de exaustão do modelo hegemônico.

Continua havendo muita incompreensão, desinformação e deturpação programada a respeito da natureza e da gravidade dos problemas ambientais enfrentados pelo planeta Terra no século 21. A falta de uma visão consentida sobre determinantes e contornos da crise propicia o surgimento de soluções espúrias, ou favorece um clima de inação política que não se coaduna com a dimensão ou a gravidade da crise ambiental.

A ciência já determinou de forma incontestável que várias fronteiras ecológicas glo- bais estão sendo ultrapassadas, abrindo a probabilidade de transformações bruscas e incontroláveis na esfera planetária se não houver mudanças significativas e urgentes na trajetória da nossa civilização. O atual momento histórico, marcado por profundas crises ecológicas, econômicas e sociais, exige repensar essa situação à luz dos limites que estão sendo impostos pela própria natureza.

Este artigo apresenta um estudo estrutural da crise ambiental que sintetiza a natureza da problemática e analisa as interações entre seus principais condicionantes econômicos, sociais, demográficos e políticos. Pretende-se demonstrar algumas limitações para o tão sonhado desenvolvimento sustentável. Infelizmente, este termo passou a ser um oximoro, pois o desenvolvimento que conhecemos é tudo menos sustentável. O tripé da susten- tabilidade - econômico, social e ambiental - que foi o mote da Rio+20 passou a ser um trilema.1 1 Trilema refere-se a uma proposição formada de três lemas contraditórios ou que reúne uma escolha difícil entre três opções conflitantes Ou seja, está cada vez mais difícil conciliar crescimento econômico, bem-estar social e sustentabilidade ambiental. Aliás, está aumentando a cisão ou ruptura entre os polos desse trilema.

Como chegamos a esta situação e como poderemos sair dela? São complexas as inter-relações entre os fatores que levaram a humanidade e o planeta a esta situação. O debate mistura aspectos científicos derivados de muitas disciplinas com posturas ideológicas que giram em torno dos eixos conservador/liberal e otimista/pessimista.

A dinâmica demográfica figura de maneira importante na acentuação e resolução desse trilema, mas de uma forma diferente do que tem sido tradicionalmente discutida. Os debates entre neomalthusianos e antineomalthusianos, ou entre cornucopianos e pessimistas, mesmo os mais recentes, já se tornaram anacrônicos diante da gravidade do trilema atual. A grande questão não está relacionada apenas com o número de pessoas, mas também com as crises múltiplas do nosso paradigma de civilização, suas origens e suas consequências em diferentes grupos e classes sociais.

Os grandes embates históricos sobre população, desenvolvimento e meio ambiente

O mundo acadêmico das ciências sociais é multifacetado e policromático. Seria uma temeridade adotar qualquer visão binária e construir uma fotografia em preto e branco da evolução de qualquer campo de estudo. Mas pode ser útil dar uma rápida olhada nos principais debates que, direta ou indiretamente, opinavam sobre o papel da dinâmica populacional na história socioeconômica e ambiental e que marcaram uma certa polarização entre intérpretes otimistas e pessimistas das humanidades em diferentes épocas. Embora a dimensão ambiental nunca tenha sido totalmente ausente desse debate, o peso de tal fator cresceu radicalmente nestes últimos anos.

O século 19: Malthus, Marx e Mill

Thomas Robert Malthus (1766-1834) escreveu inicialmente para rebater as ideias progressistas dos pensadores iluministas Marquês de Condorcet (1743-1794) e William Godwin (1756-1836). Malthus era contra o capitalismo industrial e defendia os interesses dos proprietários de terra, da nobreza e do clero. Não tinha qualquer intenção de defender o meio ambiente ou a preservação da natureza. No modelo malthusiano, a população tendia a crescer em progressão geométrica em função de uma suposta correlação direta entre fecundidade e renda. Nesta visão, se a pobreza fosse reduzida haveria uma "explosão populacional", pois as pessoas se casariam mais cedo, teriam mais crianças e mais filhos sobreviventes devido à redução da mortalidade infantil, além do aumento da expectativa de vida. Como Malthus se opunha ao planejamento familiar e ao aborto, o controle da população deveria ocorrer via crescimento das taxas de mortalidade ("freio positivo") ou aumento da idade ao casar ("freio preventivo").

Entre os críticos do malthusianismo, Karl Marx (1818-1883) se destacou, especialmente ao rebater a suposta necessidade de um salário de subsistência para manter a população sob controle. Ele mostrou que o valor dos salários depende da produtividade do trabalho e da repartição dos seus frutos: o trabalho pago que se transforma em salário e o trabalho gratuito, ou mais-valia, que se transforma nas diversas formas do lucro. O valor do "salário de subsistência" depende, fundamentalmente, do grau de exploração do trabalho.

Embora não tivesse chegado a elaborar um arcabouço teórico consistente sobre a dinâmica populacional propriamente dita, Marx buscou mostrar que o "excesso" de população era resultado não das leis naturais, como afirmava Malthus, mas sim da dinâmica capitalista que produzia uma "superpopulação relativa" com dois objetivos principais: regular a oferta e a demanda de trabalhadores e colocar o estoque humano à disposição da expansão do capital. Para ele, as questões demográficas e sociais seriam resolvidas por uma revolução social capaz de garantir aos trabalhadores os frutos do seu próprio trabalho.

Nota-se, portanto, que Malthus tinha uma noção equivocada sobre a relação entre fecundidade e renda, enquanto Marx simplesmente ignorou a questão da transição demográfica (que já havia sido, de certa forma, teoricamente antecipada por Condorcet e Godwin). As questões ambientais, da biocapacidade e da biodiversidade não fizeram parte das preocupações centrais de Malthus e nem de Marx. O primeiro usou a ideia da escassez de recursos e os limites da natureza para fornecer os meios de subsistência à população não por preocupações ecológicas, mas sim para justificar a necessidade de um salário de subsistência e a inevitabilidade da pobreza. Já Marx achava que no comunismo, com o avanço das forças produtivas e o fim do conflito central entre as classes sociais, as pessoas atingiriam um estado de completa liberdade. Sem dúvida, o marxismo foi, no mínimo, conivente com a ideia de "domesticação" da natureza e não chegou a questionar o processo de dominação e exploração da vida natural, muito menos a "escravidão animal" e todas as questões éticas relacionadas aos direitos das espécies.

Na mesma época, um dos precursores na consideração da relação entre população, desenvolvimento e ambiente foi John Stuart Mill (1806-1873), que publicou o livro Princípios de economia política, em 1848. Antecipando de maneira clara o debate atual, ele escreveu no capítulo VI, do livro IV, que o crescimento ilimitado do Produto Interno Bruto (PIB) e da população seria, no longo prazo, uma impossibilidade histórica e que o "Estado estacionário" deveria prevalecer, mais cedo ou mais tarde, no mundo. O autor observou que, assim como o planeta, o crescimento econômico e populacional também tem limites. Por isso, Mill foi inovador ao ver, de maneira afirmativa, o fim do crescimento e da competição econômica desenfreada e ao defender a natureza.

Um século depois: o medo da explosão demográfica e o revisionismo

A partir da década de 1950, a percepção de que uma explosão demográfica global estava por ocorrer devido aos níveis de crescimento dos países pobres gerou um súbito interesse de cientistas e políticos pelos temas populacionais. Vários demógrafos deram legitimidade a esforços bilaterais e multinacionais para controlar a fecundidade dos países pobres. Mas foram os biólogos e os ecologistas que tomaram a bandeira neomalthusiana a partir de meados dos anos 1960. A oposição de muitos economistas a estas posturas despertou novas polêmicas acirradas.

Paul R. Ehrlich (nascido em 1932) lançou o livro A bomba populacional, em 1968, época em que a transição da fecundidade já estava em etapa avançada nos países desenvolvidos, mas ainda em seus primórdios nos países do chamado de Terceiro Mundo. Ehrlich apresentou, como ecologista, uma visão apocalíptica baseada nos seus conhecimentos sobre os limites de ecossistemas naturais. Ele acreditava que qualquer espécie que se multiplicasse excessivamente seria fadada à miséria, ou mesmo à extinção.

O autor misturou propostas malthusianas (controle da população por aumento das taxas de mortalidade) e neomalthusianas (controle da população por meio da redução das taxas de fecundidade). A meta seria igualar as taxas de natalidade e mortalidade para se chegar ao crescimento populacional zero (ZPG). Paralelamente, deveria haver ações para reverter a deterioração do meio ambiente. Ele concordava com a necessidade de medidas compulsórias, caso falhassem os métodos voluntários para reduzir a fecundidade. Vários outros estudiosos, oriundos das ciências naturais, defenderam ideias similares, incluindo Norman Myers (que também travou longo debate com Simon) (MYERS; SIMON, 1994MYERS, N.; SIMON, J. Scarcity or abundance? A debate on the environment. New York, London: W.W Norton & Co. Inc., 1994.), Lester Brown e John Holdren, embora outros, como o biólogo Barry Commoner, foram seus adversários ferrenhos.

O debate sectário da década de 1960 iria se estender até a Conferência Mundial de População, organizada pela ONU, em Bucareste, em 1974, quando os países desenvolvidos, liderados pelos Estados Unidos, advogavam pela defesa do neomalthusianismo voluntário, como meio para reduzir a pobreza. Mas os países pobres e não desenvolvidos - capitaneados pela China e a Índia - defendiam a prioridade das políticas de apoio ao desenvolvimento em contraposição ao controle da natalidade. O neomalthusianismo foi derrotado e venceu a palavra de ordem: "O desenvolvimento é o melhor contraceptivo".

Porém, antes mesmo da nova Conferência de População, ocorrida no México, em 1984, houve uma reviravolta na ordem internacional sobre as questões reprodutivas. A China comunista, que liderou o combate às ideias defendidas por Paul Ehrlich em Bucareste, passou a adotar, a partir de 1979, uma rígida política coercitiva de filho único, ou seja, a política neomalthusiana mais draconiana da história. Os Estados Unidos, por outro lado, sob o tacão neoliberal do governo Ronald Reagan, deixaram de lado a defesa do controlismo e passaram a defender o laissez-faire populacional e a prevalência da lei da oferta e da procura também para as questões reprodutivas (ALVES, 2002ALVES, J. E. D. A polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição demográfica. Rio de Janeiro: IBGE, Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2002 (Textos para discussão, n. 4).; ALVES; CORRÊA, 2003ALVES, J. E. D.; CORRÊA, S. Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo+10. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 20, n. 2, jul./dez. 2003.).

No contexto deste debate, é interessante observar que a prestigiosa National Academy of Sciences dos Estados Unidos comissionou dois estudos por demógrafos-economistas daquele país que marcaram época a respeito da relação entre população, desenvolvimento e meio ambiente. O primeiro, publicado em 1971, ofereceu uma postura bastante equidistante com relação aos impactos do crescimento populacional, mas foi interpretado na mídia como sendo mais neomalthusiano. O segundo estudo, publicado em 1986, foi descrito como "revisionista", pois sustentava claramente a ideia de que as forças do mercado e o desenvolvimento tinham capacidade para resolver tais questões populacionais. Este segundo estudo foi considerado por otimistas a última palavra na matéria durante muito tempo e as posições deste livro têm predominado entre a maioria dos economistas/ demógrafos desde então.

Foi neste contexto que ganhou proeminência o economista Julian Simon (1932-1998), um dos ideólogos neoliberais do governo Reagan. No auge das discussões, Simon resolveu apostar em um radicalismo antípoda ao de Paul Ehrlich, pois, além de sua postura antineomalthusiana extrema, ele investiu na formatação de uma política pronatalista radical e sem quaisquer restrições do lado ambiental. Simon é um exemplo típico do que os analistas chamam de fundamentalista de mercado. Ele foi um dos fundadores do movimento "free-market environment", sendo um dos primeiros negacionistas e céticos das mudanças climáticas.

Simon defendeu a ideia de que não há limites ambientais para o desenvolvimento econômico e nem problemas de escassez. Para ele, cada novo bebê é como um bem de capital que vai produzir mercadorias e trazer riqueza para as famílias e a sociedade. Simon discordou das visões catastrofistas de Ehrlich, acreditava que a oferta de petróleo era infinita e criticava os autores da escola da economia ecológica. Foi um "cético ambiental" de primeira hora, pois não acreditava que as atividades humanas fossem a causa de problemas ambientais globais, como a destruição da camada de ozônio e a acidificação dos oceanos. Ele defendia a ideia de que as possibilidades infinitas da engenhosidade humana e o sistema de preços seriam capazes de contornar todos os problemas ambientais do mundo.

No meio deste debate, Ehrlich e Simon fizeram uma aposta em 1980 sobre a provável elevação do preço de algumas commodities para testar suas concepções teóricas. Para Simon, os preços diminuiriam ao longo de dez anos e, evidentemente, para Ehrlich, haveria crescente escassez e subida dos preços. Em 1990, o pessimista perdeu a aposta, pois os preços dos minerais, assim como os do petróleo e dos alimentos, caíram na década de 1980 em função da crise internacional ocorrida no período. Contudo, a aposta não foi decisiva, pois, em anos posteriores, os preços das commodities têm flutuado significativamente. O desenvolvimento tecnológico e a descoberta de novos minerais certamente têm ajudado a aliviar a pressão sobre alguns recursos naturais escassos. Mas a questão mais relevante é se, e por quanto tempo, isso pode continuar, dado o Paradoxo de Jevons (ver próxima seção) e os aumentos do consumo global.

O debate no século 21 - Lam versus Becker e o agravamento da questão ambiental

O demógrafo e economista David Lam publicou um trabalho, em 2011LAM, D. How the world survived the population bomb: lessons from 50 years of extraordinary demographic history. Demography, v. 48, n. 4, p. 1231-1262, Nov. 2011., no qual fazia uma crítica ao pessimismo de Malthus e Ehrlich e defendia basicamente a ideia de que o progresso extraordinário observado durante os últimos 50 anos demonstrava a capacidade humana para lidar com os desafios futuros. O otimismo de Lam em relação à dinâmica demográfica baseia-se no fato de que a "bomba populacional" foi desativada e que a transição demográfica vai levar ao crescimento zero ainda no século 21. Além disso, a mudança na estrutura etária favorece o surgimento de um "dividendo demográfico" que é um fator positivo para o aumento das taxas de escolaridade e a redução da pobreza.

Lam (2011)LAM, D. How the world survived the population bomb: lessons from 50 years of extraordinary demographic history. Demography, v. 48, n. 4, p. 1231-1262, Nov. 2011. aborda três desafios potenciais, criados pelo rápido crescimento demográfico: fome, depleção dos recursos não renováveis e pobreza. Segundo ele, o problema da fome teria sido fortemente reduzido pela revolução verde. Quanto à depleção dos recursos naturais não renováveis, o autor mostra que os principais recursos não renováveis custam aproximadamente o mesmo hoje em relação há 50 anos, apesar do acréscimo de 4 bilhões de pessoas. Lam também cita a queda vertiginosa da pobreza e relaciona três fatores econômicos (respostas do mercado, inovação e globalização) e três demográficos (urbanização, declínio da fecundidade e investimento nas crianças) que explicariam porque caiu o crescimento populacional.

Menos radical que Simon, Lam reconhece dois fatores negativos: o aquecimento global e os níveis de consumo insustentáveis. Em relação ao consumo, ele ressalta o aumento da renda em países grandes e anteriormente pobres, como China e Índia, o que acabou elevando o preço das commodities e aumentando os desafios ambientais. Contudo, ao estilo Polyana, Lam (2011, p. 1258)LAM, D. How the world survived the population bomb: lessons from 50 years of extraordinary demographic history. Demography, v. 48, n. 4, p. 1231-1262, Nov. 2011. ressalta: "Mas eu quero enfatizar o quão incrível é que em 2011 estejamos preocupados com os problemas decorrentes de tal rápido aumento do consumo na Índia e na China". O autor também admite que há muito que se preocupar nas próximas décadas, pois o mundo vai adicionar 2 bilhões de pessoas entre 2011 e 2050, mas se considera otimista tendo em vista a capacidade humana demonstrada para enfrentar tais desafios.

A obra de Lam pode ser vista como um contraponto importante às mensagens sim- plistas, tanto do "population establishment" tradicional como da "Northern Perspective"2 2 Cf. Hummel et al. (2009). mais recente, os quais tendem a ver o crescimento populacional como a origem principal dos grandes problemas da humanidade. Entretanto, seu otimismo em relação às capacidades do mercado de superar todas as questões, inclusive as ambientais, é questionável. A resposta a Lam veio de muitos lados, mas de forma mais visível por Stan Becker (2013)BECKER, S. Has the world really survived the population bomb? New Orleans: Population Association of America, 2013., que abordou justamente as limitações ambientais do "desenvolvimento" e do crescimento econômico via mercado na mesma arena acadêmica. Em resumo, Becker critica Lam por seu antropocentrismo, por sua visão limitada sobre a utilização não sustentável dos recursos da Terra e por sua desconsideração dos efeitos devastadores das atividades antrópicas sobre os ecossistemas do planeta.

Para Becker, o aumento da produção per capita de alimentos mostrado por Lam só ocorreu em função do uso maciço de recursos não renováveis. Ele nota que o preço dos alimentos ao longo do século 21 deve aumentar devido ao uso maciço de fertilizantes, tipicamente produzidos a partir de combustíveis fósseis e minerais não renováveis, e ao fato de a irrigação massiva estar ultrapassando a capacidade de carga dos rios e aquíferos subterrâneos.

O autor ainda cita vários outros efeitos negativos da ação humana já bem conhecidos que foram omitidos por Lam, tais como a deflorestação, a sobrepesca, a poluição por nitrogênio de córregos, estuários e mares, a remoção do cume de montanhas para obtenção de carvão e outros minerais. Segundo Becker, embora o homo sapiens tenha alcançado vários sucessos, como descreve Lam, o resto do "mundo" tem sofrido regresso no Antropoceno, período em que nossa espécie alterou a dinâmica da Terra em escala planetária. Em suma, ele afirma que Lam não faz justiça aos grandes problemas ecológicos iminentes que são resultado do progresso humano que ele tanto admira.

O debate foi retomado em 2013 na XXVII Conferência da IUSSP - International Union for the Scientific Study of Population, onde foi organizada uma plenária para debater a seguinte afirmação: "Para os países em desenvolvimento, o desenvolvimento econômico precisa ser uma prioridade maior do que a proteção do ambiente e a conservação dos recursos naturais". Em defesa dessa afirmativa falaram David Lam e Alex Chika Ezeh e, em posição contrária, se manifestaram Stan Becker e Eliya Msiyaphazi Zulu. Após o debate dos convidados, a palavra foi aberta para os participantes da plenária que se alternaram em duas filas, uma a favor e outra contra a afirmativa. No final, foi feita uma votação com as, aproximadamente, 500 pessoas presentes. O resultado foi um empate.

Ou seja, a comunidade demográfica internacional estava dividida entre uma pers- pectiva mais desenvolvimentista e outra mais ecológica. Apenas dois anos depois, a acumulação adicional de evidências científicas a respeito das ameaças ecológicas provocadas pela atividade humana faz esse debate parecer anacrônico. Em julho de 2015, o editorial de Marcia McNutty, editora-chefe da Science, uma das duas revistas científicas mais prestigiosas dos Estados Unidos, resumiu a situação num tom surpreendentemente agressivo "we face a slowly escalating but long-enduring global threat to food supplies, health, ecosystem services, and the general viability of the planet to support a population of more than 7 billion people... The time for debate has ended. Action is urgently needed" (McNUTTY, 2015McNUTT, M. The beyond-two-degree inferno. Science, v. 349, n. 6243, p. 7, 3 July 2015. Disponível em: <www.sciencemag.org/content/349/6243/7.full>.
www.sciencemag.org/content/349/6243/7.fu...
, p. 7).

Dada a importância nevrálgica da matéria, é imprescindível aprofundar as análises. Nos próximos segmentos deste texto, procura-se conjugar uma série de elementos sobre os três componentes do trilema da sustentabilidade que servem para adensar uma reflexão adicional sobre o debate otimista/pessimista. Vistos em conjunto, tais elementos aconselham uma atitude muito mais cautelosa com relação à capacidade dos mecanismos de mercado e da engenhosidade humana para resolver os problemas sociais, econômicos e ambientais da nossa era.

O progresso socioeconômico e seus fracos alicerces

Os otimistas têm toda razão em destacar os enormes avanços da humanidade durante os últimos 50-70 anos. Mas, vistos à luz do rápido agravamento dos grandes problemas ambientais, estes avanços podem ser comparados à reação do cidadão que, tendo caído do vigésimo andar, observa que está tudo bem ao deslizar rapidamente diante do quinto piso. Na realidade, a resposta definitiva aos cornucopianos está surgindo tanto na literatura científica como na própria natureza. As grandes dúvidas que surgem com relação ao progresso humano recente podem ser resumidas em dois tipos:

  • a humanidade vai conseguir continuar nessa mesma trilha de progresso indefinidamente?

  • Este progresso poderá ser estendido para toda a população mundial?

Estas duas perguntas merecem uma análise mais cuidadosa, pois vão definir nada menos do que o futuro da humanidade a partir das próximas décadas. A resposta a estas questões passa pela trajetória presente e futura do que foram considerados, na Conferência Rio+20, os três pilares, ou tripé do desenvolvimento sustentável - o econômico, o social e o ecológico. As limitações ao progresso de cada um desses pilares, analisadas nos próximos segmentos, constituem o que estamos chamando de trilema da sustentabilidade no século 21.

Os alicerces e as limitações do progresso econômico

Auge e decadência econômica

Antes da Revolução Industrial e Energética, ocorrida no final do século 18, o crescimento econômico e demográfico do mundo era lento. Porém, entre 1900 e 2000, o PIB global cresceu 18,6 vezes, a população ampliou-se em 3,9 vezes e a renda per capita mundial aumentou 4,8 vezes. As maiores taxas de crescimento ocorreram entre 1950 e 1973, período que corresponde à recuperação pós-Segunda Guerra Mundial e pré-crise do petróleo (MADDISON, 2008MADDISON, A. The west and the rest in the world economy: 1000-2030. Maddisonian and Malthusian interpretations. World Economics, v. 9, n. 4, p. 75-99, Oct.-Dec. 2008.).

Este período excepcional, certamente, nunca mais vai se repetir. De fato, o enorme crescimento econômico ocorrido no século 20 só foi possível por uma única conjugação de fatores favoráveis num determinado momento histórico, que podem ser resumidos em dez itens: grande disponibilidade de energia fóssil a preços muito baixos; elevada disponibilidade de recursos naturais até então pouco explorados (terra, água, florestas, biodiversidade, etc.); grande crescimento da população, com aumento da esperança de vida e dos anos médios dedicados às atividades produtivas; rápida concentração da população em áreas urbanas, facilitando as economias de escala que estimularam tanto os aumentos da produtividade como a extensão da educação, da saúde, da participação social e política e de outros benefícios sociais; estrutura etária favorável com aumento da parcela de "produtores" (idade 15 a 64 anos) sobre os "consumidores"; aumento dos níveis educacionais e do capital humano; ampliação do estoque de capital fixo; avanço do progresso técnico; aumento da produtividade dos fatores de produção; e condições favoráveis do meio ambiente, inclusive a estabilidade do clima.

Entretanto, no início do século 21, vários destes determinantes e condicionantes já chegaram ao seu limite e isso poderá levar ao esgotamento do modelo de produção e consumo que sustentou o crescimento econômico nos últimos dois séculos. Acostumar-se a este declínio não será nada fácil. Por um lado, o objetivo do crescimento econômico é totalmente dominante em nível global, particularmente depois da queda do Muro de Berlin. Existe uma lógica e consistência interna que faz com que as sociedades e todos os seus atores econômicos - Estado, empresários e trabalhadores -, assim como os organismos internacionais de desenvolvimento, se empenhem fundamentalmente na sua promoção, pois o crescimento econômico tem sido a base das melhorias materiais obtidas pela humanidade neste período de bonança. Por outro lado, como será discutido a seguir, esse modelo exige um aumento constante da produção, o qual é alimentado pela cultura de consumo, cujos valores já são profundamente arraigados e, consequentemente, muito difíceis de "arrancar".

A despeito deste arcabouço e dos seus mecanismos que garantem a prevalência e a persistência do modelo, as condições objetivas estão colocando um freio ao crescimento econômico. Desde a comentada palestra do ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Larry Summers, na reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI), em novembro de 2013, o termo "estagnação secular" entrou em evidência, significando que a economia mundial deve entrar em um longo período de baixo crescimento econômico (BALDWIN; TEULINGS, 2014BALDWIN, R.; TEULINGS, C. (Eds.). Secular stagnation:facts, causes and cures. London: Centre for Economic Policy Research - CEPR, 2014.). O baixo desempenho dos países desenvolvidos contamina as economias emergentes. O Banco Mundial (WORLD BANK, 2015WORLD BANK. The global economy in transition, global economic prospects. Washington, June 2015.) fala em "lerdeza estrutural" dos países em desenvolvimento, pois estão enfrentando uma difícil transição, com os custos de empréstimos mais elevados e preços mais baixos para o petróleo e outras commodities. De acordo com o FMI (2015)FMI - Fundo Monetário Internacional. Rise in emerging market corporate debt driven by global factors. IMF Survey, September 29, 2015. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/survey/so/2015/POL092915B.htm>.
http://www.imf.org/external/pubs/ft/surv...
, o endividamento das empresas dos países de mercados emergentes passou de US$ 4 para US$ 18 trilhões entre 2004 e 2014. Na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), a fatia da dívida subiu 26 pontos percentuais. Na visão do FMI, "Esta situação torna as economias de mercados emergentes mais vulneráveis aos aumentos de juros, à apreciação do dólar e ao aumento da aversão ao risco." (FMI, 2015FMI - Fundo Monetário Internacional. Rise in emerging market corporate debt driven by global factors. IMF Survey, September 29, 2015. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/survey/so/2015/POL092915B.htm>.
http://www.imf.org/external/pubs/ft/surv...
, p. 86).

Como explicado no próximo segmento, o esgotamento da base ecológica constitui uma das principais limitações à persistência deste modelo. Acrescentam-se a este enorme obstáculo a diminuição da População Economicamente Ativa (PEA), o envelhecimento populacional e o aumento da razão de dependência nos países superdesenvolvidos, o fim do bônus demográfico, o aumento no longo prazo do preço da energia e dos alimentos, os crescentes problemas ambientais e o processo de endividamento que dificulta manter a capacidade de investimento e inovação do progresso técnico.

Crises terríveis, como no caso atual da Grécia, podem se multiplicar. Crises são fatos recorrentes na história do capitalismo e a economia clássica já tinha noção de que é impossível manter o crescimento de forma infinita. Tudo indica que haverá uma desaceleração do crescimento econômico no século 21 e o mundo deverá repensar seu modelo de civilização baseado no consumo e no aumento constante da produção.

O desenvolvimento tecnológico e seus paradoxos

Na visão de Simon, Lam e outros otimistas, o desenvolvimento tecnológico e a engenhosidade humana são elementos integrais da fé no milagre do mercado. Pensadores cornucopianos continuam insistindo que a tecnologia e a inventividade humana podem superar os limites da natureza e que o desenvolvimento pode manter taxas de crescimento por um longo prazo.3 3 Para uma versão mais radical deste pensamento, ver Matt Ridley (2010). Como exemplo, eles citam sempre a "Revolução Verde" que possibilitou o aumento significativo da produção de alimentos, mas esquecem, obviamente, que essa revolução verde contribuiu para a depleção do solo, dos aquíferos, dos rios, dos lagos e oceanos, além da redução da biodiversidade, e que pode encontrar dificuldades estruturais no futuro.

Em sentido mais amplo, todo avanço tecnológico tem suas limitações e condicionantes:

  • ao longo dos séculos 20 e 21 foram realizados enormes avanços na utilização de recursos e na eficiência energética do crescimento econômico. Entretanto, muitos desses avanços foram empregados para aumentar ainda mais a produção e o consumo, em vez de reduzir o impacto ambiental;

  • o Paradoxo de Jevons ensina que cada novo avanço tecnológico, ao elevar a eficiência de um dado recurso natural, incrementa o seu uso total, ao invés de diminuí-lo (POLIMENI et al., 2008POLIMENI, J. et al. The Jevons Paradox and the myth of resource efficiency improvements. London: Earthscan, 2008.). Um exemplo deste fenômeno está na maior eficiência dos motores a combustão da indústria automobilistica, já que os carros do século 21 são muito mais econômicos no uso da energia e dos materiais do que os modelos da década de 1970; entretanto, o consumo global de gasolina não parou de aumentar e o incremento da eficiência dos motores dos carros não reduziu a demanda por materiais, mas possibilitou que os veículos americanos ficassem cada vez mais pesados (SMIL, 2014SMIL, V. Making the modern world: materials and dematerialization. Sussex: John Wiley & Sons, 2014.).

Pico do petróleo e a bolha de carbono

Desde a Revolução Industrial, o rápido crescimento econômico dependeu de uma oferta ampla e barata de energia extrassomática. A economia mundial funcionou com base em volumes crescentes de combustíveis fósseis. Porém, a teoria do pico do petróleo, como sugerida pelo geólogo americano M. King Hubbert (1956)HUBBERT, M. K. Nuclear energy and the fossil fuels. San Antonio: American Petroleum Institute, 1956., estabelece que a produção de hidrocarbonetos segue o padrão de uma curva normal (curva de Gauss). As evidências atuais sugerem que devemos atingir, em breve, o pico previsto por Hubbert:

  • o petróleo barato já foi extraído e o custo de exploração das novas reservas é cada vez mais alto. A produção convencional de petróleo cru mundial atingiu seu pico em algo como 75 milhões de barris em 2008. Cerca de 60% da oferta mundial vem de países cuja produção já está em declínio. Na Arábia Saudita, 90% do petróleo vem de poucos poços já cinquentões e, como a demanda interna cresce muito, já existem previsões que indicam o fim das exportações sauditas até 2030. A produção do gás de xisto e das areias betuminosas nem de longe deve acompanhar a demanda e suas perspectivas são cada vez mais postas em questão em termos de viabilidade financeira e ambiental;

  • as empresas petrolíferas investiram pesadamente em reservas de combustíveis fósseis, mas, devido ao alto custo de extração e por serem incompatíveis com a segurança climática, podem nunca vir a ser usadas. Segundo o instituto britânico Carbon Tracker (2013)CARBON TRACKER. Investors ask fossil fuel companies to assess how business plans fare in low-carbon future. London, 2013., como resultado de um excesso de valorização pelos mercados globais das reservas de carvão, gás e petróleo detidas por empresas de combustí- veis fósseis, foi gerada uma "bolha de carbono". As empresas que trabalham com combustíveis fósseis possuem ativos estimados em bilhões de dólares, porém, se todo este investimento conseguir extrair petróleo, gás e carvão, as emissões de CO2 provocarão uma aceleração do aquecimento global e uma grave crise ambiental.

    Mas, se os acordos internacionais forem efetivos para conter a emissão de GEE (como espera-se da COP-21), então haverá uma crise financeira em decorrência da "bolha de carbono".4 4 Por exemplo, a retirada (tardia) da Shell do Ártico, típica dos investimentos globais que vão abandonando seus investimentos fósseis, custou aos acionistas da empresa nada menos que US$ 7 bilhões e vai custar ainda mais US$ 4 bilhões (http://www.environmentalleader.com/2015/09/29/shell-ends-arctic-drilling-operations/).

A fraqueza ambiental dos alicerces do "progresso"

Como resultado da "grande aceleração" do desenvolvimento social e econômico a nível mundial desde 1950, a quantidade de bens e serviços disponíveis para os habitantes do globo cresceu muito em pouco tempo. Mas todo esse sucesso humano dependeu fundamentalmente do uso de recursos naturais não renováveis (IGBP, 2015INTERNATIONAL GEOSPHERE-BIOSPHERE PROGRAMME (IGBP) 2015. Disponível em: < http://pt.slideshare.net/IGBPSecretariat >. Acesso em: 24 maio 2015.
http://pt.slideshare.net/IGBPSecretariat...
). O conjunto de graves alertas ambientais nos obriga a revisar urgentemente o argumento de que a engenhosidade humana, os mecanismos do mercado e o desenvolvimento tecnológico vão continuar sendo capazes de superar qualquer crise.

As fronteiras planetárias: a ameaça do caos ecológico

O desequilíbrio entre as atividades humanas e o meio ambiente tem aumentado persistentemente, como demonstra a metodologia utilizada pela Global Footprint Network (2014)GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, 2014. Disponível em: <http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/>.
http://www.footprintnetwork.org/en/index...
. A pegada ecológica serve para avaliar o impacto exercido pelo ser humano sobre a biosfera. A biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza. Até meados da década de 1970, a humanidade ainda vivia dentro dos limites renováveis do planeta. Mas, a partir daí, a pegada ecológica da população mundial foi crescendo continuamente à medida que aumentavam o número de habitantes e a renda per capita, diminuindo a biocapacidade per capita. Em 2008, a pegada ecológica per capitamundial ficou em 2,7 gha e a biocapacidade em 1,8 gha, sendo que a população global chegou a 6,75 bilhões de habitantes. Portanto, a humanidade já estava usando um planeta e meio em 2008.

As consequências desta rápida caminhada em direção à insustentabilidade já se fazem notar na transgressão das fronteiras planetárias. Um estudo publicado em 2009 pelo Stockholm Resilience Centre, da Universidade de Stockholm, traçava um primeiro quadro dos limites planetários e definia um espaço operacional seguro para a humanidade com base nos processos biofísicos intrínsecos que regulam a estabilidade do Sistema Terra. O trabalho identificava nove dimensões centrais para a manutenção de condições de vida decentes para as sociedades humanas e o meio ambiente, indicando que os limites já tinham sido ultrapassados em três dimensões e estavam se agravando nas demais (ROCKSTRÖM et al., 2009).

Uma atualização recente deste estudo (STEFFEN et al., 2015STEFFEN, W. et al. Planetary boundaries: guiding human development on a changing planet. Science, v. 347, n. 6223, January 15 2015.) alertou para um agravamento da violação das fronteiras planetárias. O novo trabalho baseia-se em um grande número de publicações científicas criticamente avaliadas e procura melhorar a metodologia das fronteiras planetárias desde sua publicação original. Ele confirma o conjunto original de limites e fornece uma análise atualizada e a quantificação de vários deles. Este segundo estudo mantém os mesmos processos de 2009, mas aperfeiçoou a metodologia e o quadro das fronteiras planetárias, com foco na ciência biofísica subjacente e com base nos avanços científicos dos últimos cinco anos. Várias das fronteiras têm agora uma abordagem em dois níveis, o que reflete a importância em termos de escala e heterogeneidade do nível regional. Segundo os autores, a metodologia das fronteiras planetárias não visa ditar a forma como as sociedades humanas devam se desenvolver, mas pode ajudar a sociedade civil e os tomadores de decisão na definição de um espaço operacional seguro para a humanidade e a vida na Terra.

Neste segundo estudo, as nove fronteiras planetárias são caracterizadas como: mudanças climáticas; mudança na integridade da biosfera (perda de biodiversidade e extinção de espécies); depleção da camada de ozônio estratosférico; acidificação dos oceanos; fluxos biogeoquímicos (ciclos de fósforo e nitrogênio); mudança no uso da terra (por exemplo, o desmatamento); uso global de água doce; concentração de aerossóis atmosféricos (partículas microscópicas na atmosfera que afetam o clima e os organismos vivos); e introdução de novas entidades (por exemplo, poluentes orgânicos, materiais radioativos, nanomateriais e microplásticos).

Esses nove processos afetam os mecanismos que regulam e mantêm a estabilidade e a resiliência do sistema Terra. As interações entre a terra, os oceanos e a atmosfera oferecem as condições sob as quais as nossas sociedades dependem para sobreviver. Transgredir uma fronteira aumenta o risco sobre todas as atividades humanas e poderia conduzir o planeta a um estado muito menos hospitaleiro, prejudicando os esforços para reduzir a pobreza e levando a uma deterioração do bem-estar humano em muitas partes do mundo, incluindo nos países ricos.

A principal novidade do segundo estudo é a descoberta de que quatro das nove fronteiras planetárias já foram ultrapassadas: mudanças climáticas; perda da integridade da biosfera; mudança no uso da terra; e fluxos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas - mudança climática e integridade da biosfera - constituem o que os cientistas chamam de "limites fundamentais" e têm o potencial para conduzir o Sistema Terra a um novo estado que pode ser catastrófico. O agravamento da violação destas fronteiras fundamentais pode levar a civilização ao colapso. Existem "pontos de inflexão" que não devem ser ultrapassados.

Os riscos de um caos ecológico que pode ocorrer se continuarmos ultrapassando as fronteiras planetárias foram dramatizados em outro trabalho, publicado em 2012 por 22 cientistas da Universidade da Califórnia. Nele, os cientistas alertam para o fato de que o planeta está na iminência de sofrer um "state shift", ou seja, uma transição crítica que, repentinamente, altera as tendências conhecidas, produzindo efeitos bióticos não antecipados (BARNOSKY et al., 2012BARNOSKY, A. D. et al. Approaching a state shift in Earth's biosphere. Nature, n. 486, p. 52-58, 07 June 2012.). Dessa forma, os estudos sobre as fronteiras planetárias conferem com os trabalhos teóricos anteriores de Beck (1995)BECK, U. Ecological enlightenment. Essays on the politics of the risk society. New York: Humanity Books, 1995. e Giddens (2002)GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002., no sentido de que a modernização capitalista, enquanto avança e supera velhos conflitos, agudiza a relação entre sociedade e natureza, gerando riscos globais de magnitudes catastróficas.

Fica claro que, ao contrário da visão cornucopiana, o atual sistema econômico está nos levando para um futuro insustentável e as novas gerações terão mais dificuldade para sobreviver com qualidade de vida. A história tem mostrado que as civilizações seguem um ciclo de ascensão, porém, quando ficam presas aos valores tradicionais e sem capacidade de alterar o rumo, entram em colapso. Mas nenhuma civilização se arriscou tão deliberadamente a sofrer devastação tão generalizada quanto a nossa! Em seguida, são analisadas brevemente as duas ameaças particularmente críticas para o nosso modelo de civilização segundo a ciência mais atualizada: as mudanças climáticas e a integridade da biosfera.

As mudanças climáticas

A ameaça mais óbvia e a que tem chamado mais atenção do público, dos cientistas e dos políticos refere-se às mudanças climáticas. A volatilidade inerente do clima facilita questionamentos e dúvidas - particularmente de negacionistas, mas até de leigos - a respeito da dimensão e das origens das mudanças em curso. Entretanto, a evidência científica é cada vez mais contundente. Entre outros, os documentos do Intergovernmental Panel on Climate Change − IPCC 2013, produzidos pelos mais destacados cientistas do planeta, lançaram uma dura advertência sobre a realidade do aquecimento global.

A despeito dos esforços dos negacionistas, a enorme maioria dos cientistas que trabalham com estas questões está absolutamente convencida de que as mudanças climáticas já estão ocorrendo e que isso deve-se aos padrões de desenvolvimento. Ou seja, nesse período "antropoceno", o principal responsável pela crise é a ampla difusão e aplicação do que tem sido chamado de "o imperativo do crescimento".

Os detalhes referentes ao agravamento das mudanças climáticas e aos seus prová- veis efeitos já são bem conhecidos e confirmados pela literatura. Não cabe aqui arrolar novamente todas essas informações. Basta citar um relatório recente típico feito por Mario Molina, ganhador do prêmio Nobel de química de 1995, que liderou um comitê da Associação Americana para o Progresso da Ciência. O documento What we know: the reality, risks, and response to climate change, publicado em 2014, alerta que os efeitos das emissões humanas de gases do efeito estufa já estão sendo sentidos e as consequências podem ser terríveis: "A evidência é esmagadora: os níveis de gases de efeito estufa na atmosfera estão aumentando. As temperaturas estão subindo. Primaveras estão chegando mais cedo. Os mantos de gelo estão derretendo. O nível do mar está subindo. Os padrões de chuvas e secas estão mudando. As ondas de calor estão piorando, assim como as precipitações extremas" (AAAS, 2014AAAS - American Association for the Advancement of Science. What we know: the reality, risks, and response to climate change. Pensilvânia, 2014., p. 2).

A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA), fornecendo dados atualizados sobre a gravidade da situação climática, anunciou que o mês de junho de 2015 foi o mais quente desde que se têm registros sistemáticos sobre a temperatura do planeta. Os seis primeiros meses de 2015 marcaram também o semestre mais quente desde 1880.

A perda de biodiversidade e o holocausto biológico

Outra grande ameaça que tem sido pouco alardeada, mas que poderá ter impactos tão significativos quanto as conhecidas mudanças climáticas, é a redução drástica da flora e da fauna e, portanto, da diversidade biológica. O fato de a humanidade ocupar cada vez mais espaço no planeta significa que ela tem avançado de forma danosa sobre todas as outras formas de vida ecossistêmicas da Terra, aumentando os riscos globais. A amplitude do impacto humano sobre a perda de biodiversidade se torna cada vez mais evidente, pois o Índice do Planeta Vivo (LPI, sigla em inglês), que mede as tendências de milhares de populações de vertebrados, diminuiu 52% entre 1970 e 2010. Em outras palavras, a quantidade de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes em todo o planeta corresponde, em média, à metade daquela existente há apenas 40 anos (WWF, 2014WWF - World Wildlife Fund. Living planet report:species and spaces, people and places. 2014. Disponível em: <wwf_lpr2014_low_res%20(1).pdf>.
wwf_lpr2014_low_res%20(1).pdf...
).

A revista Science publicou, em julho de 2014, uma série de estudos mostrando taxas alarmantes de crimes contra os demais seres vivos. A humanidade é responsável pelo risco de espécies desaparecerem com mil vezes mais intensidade do que os processos naturais. A revista confirma que o ser humano está provocando, em um curto espaço de tempo, a sexta extinção em massa no planeta. Isso acontece em função dos impactos da perda da fauna devido ao empobrecimento da cobertura vegetal, à falta de polinizadores, ao aumento de doenças, à erosão do solo, aos impactos na qualidade da água, entre outros fatores conexos. Ou seja, os efeitos são sistêmicos e resultam do aprofundamento da discriminação contra as espécies não humanas e da generalização do crime de ecocídio.

Existem várias propostas para tentar mitigar os danos da crescente presença humana no planeta e evitar uma situação de colapso da biodiversidade. O biólogo da Universidade de Harvard, Edward Osborne, que classifica a situação atual como "holocausto biológico", defende um plano de conservação, chamado de "Half Earth", destinando metade do planeta para a vida selvagem e para a ampliação da cobertura florestal capaz de sequestrar carbono e mitigar os efeitos do aquecimento global (HISS, 2014HISS, T. Can the world really set aside half of the planet for wildlife? Smithsonian Magazine, September 2014.). Elizabeth Kolbert (2014)KOLBERT, E. The sixth extinction: an unnatural history hardcover. New York: Henry Holt and Company, 2014., no livro The sixth extinction, também chama a atenção para os perigos da redução da biodiversidade não só por questões éticas, mas também porque as perdas ambientais prejudicam os mecanismos naturais que possibilitam o equilíbrio dos ecossistemas, a regulação do clima, a purificação do ar, a proteção da fertilidade dos solos, o controle de pragas e a renovação saudável das bacias hidrográficas.

A insustentabilidade do desenvolvimento desigual: globalização, ecologia e população

A sustentabilidade social é componente crítico da sustentabilidade global. Embora o crescimento econômico tenha melhorado as condições de vida de bilhões de pessoas, seus frutos têm sido distribuídos de forma crescentemente desigual. O mecanismo que produziu o crescimento foi, principalmente, o "throughput growth" ("extrai/produz/descarta") estimulado pelo consumo. A globalização massificou este processo e estendeu rapidamente o crescimento a todos os continentes. Entretanto, o ritmo de depleção dos recursos naturais que sustentam esse crescimento, juntamente com o agravamento dos riscos ambientais, limita a possibilidade de extensão dos benefícios do "desenvolvimento" a toda a crescente população mundial (CAVALCANTI, 2012CAVALCANTI, C. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. Estudos Avançados, v. 26, n. 74, p. 35-50, 2012.).

De acordo com a consultora McKinsey, o número de consumidores globais5 5 "Consumidores" são definidos como adultos que têm renda de pelo menos US$10 dólares por dia (MCKINSEY, 2012). já estaria acima de 2,5 bilhões de pessoas e deve ascender para 4 bilhões até 2025. Ou seja, a população consumidora constituiria atualmente 36% da população total e essa proporção subiria para 49% em 2025. Vale mencionar que estas estimativas são baseadas numa definição muito abrangente de consumidores (pessoas que auferem uma renda de mais de dez dólares por dia). Porém, estudo mais recente do Pew Research Center (KOCHHAR, 2015KOCHHAR, R. A global middle class is more promise than reality: from 2001 to 2011, nearly 700 million step out of poverty, but most only barely. Washington, D.C.: Pew Research Center, July 2015.), utilizando o mesmo critério para definir "classe média", encontrou um percentual de pobres e baixa renda de 71%, em 2011, e uma proporção de 29% de consumidores de classe média ou alta. O estudo conclui que o crescimento da classe média é mais promessa do que realidade.

Dessa forma, pode-se afirmar que, ao contrário do otimismo que o empresariado global pretende mostrar, há um enorme volume de pessoas que NÃO estarão participando deste desenvolvimento no futuro previsível. Em 2025, quando, de acordo com todas as previsões científicas, a crise ambiental produzida por este modelo de crescimento já estará dando sinais claros de agravamento, a metade da população mundial ainda não estará participando do banquete do consumo.

É justamente nesta interseção entre o crescimento do consumo, as limitações ambientais do crescimento econômico baseado no aumento constante do consumo e a crescente desigualdade global que deve ser posicionada a importância social e política da questão demográfica nos dias de hoje.

O progresso via o aumento do consumo

O crescimento econômico atual exige aumentos constantes de produção e consumo, seja por meio da incorporação de novos consumidores, seja pela ampliação do consumo entre os atuais consumidores. O motor dos incrementos da produção que têm gerado o crescimento econômico e a redução da pobreza é o consumo. O interesse no consumo vem de longa data. A humanidade sempre foi aliciada pelo bem posicional, ou seja, aquele bem que os outros não têm e que desperta inveja.6 6 Giannetti (2012) cita Petrônio, um poeta satírico romano que há dois mil anos já dizia: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los". Adam Smith, em A riqueza das nações (1776), também descrevia a opulência posicional (GIANETTI, 2012). O capitalismo, como já demonstrava Veblen (1899)VEBLEN, T. The theory of the leisure class: an economic study of institutions. 1899. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/files/833/833-h/833-h.htm>.
http://www.gutenberg.org/files/833/833-h...
no final do século 19, descobriu há tempos a possibilidade de aumentar os lucros ao estimular uma parcela crescente da população a fazer um "consumo conspícuo". Keynes, nos anos 1930, foi mais longe ao destacar a necessidade de estimular uma "demanda efetiva" como forma de sair da estagnação econômica (MARTINE; TORRES; FREIRE DE MELLO, 2012MARTINE, G.; TORRES, H.; FREIRE DE MELLO, L. Cultura do consumo e desenvolvimento econômico na era de mudanças climáticas. In MARTINE, G. (Ed). População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Abep/Librum, 2012.).

No período pós-guerra, a acentuação do consumo foi adotada nos Estados Unidos como estratégia explícita para mobilizar o complexo militar industrial que, de outra forma, seria sucateado. Mecanismos cada vez mais eficientes foram criados para induzir a população mundial a consumir mais bens e serviços, uma parcela crescente dos quais tendia a ser supérflua. Não por acaso, expandiram-se nessa época também os grandes veículos de comunicação de massa, como o rádio e a TV, da mesma forma que aumentaram práticas como a "obsolescência planejada"7 7 A obsolescência planejada refere-se à estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante por meio da oferta de produtos que se tornam obsoletos em um curto espaço de tempo, ou por serem de má qualidade ou porque são rapidamente suplantados por outros, supostamente melhores ou mais atrativos. de bens de consumo massivo, o estímulo à renovação constante de produtos e processos gerada pelo desenvolvimento tecnológico e a facilidade de acesso físico aos canais de consumo protagonizada pelas grandes redes de supermercados e pelos shopping centers. Posteriormente, o processo de globalização econômica iniciado no final da década de 1980, associado à queda do Muro de Berlim e à prevalência das formas capitalistas de produção mesmo em países "comunistas" como a China, deu um novo e imenso impulso ao consumismo (MARTINE; TORRES; FREIRE DE MELLO, 2012MARTINE, G.; TORRES, H.; FREIRE DE MELLO, L. Cultura do consumo e desenvolvimento econômico na era de mudanças climáticas. In MARTINE, G. (Ed). População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Abep/Librum, 2012.).

A elevação constante do consumo em níveis individual, nacional e global vem sendo garantida de maneira cada vez mais eficaz por uma conjugação eficiente de atores e instituições que nos convencem diariamente de que precisamos comprar e consumir cada vez mais. Sagrou-se a cultura do consumo como o engenho mais eficaz do capitalismo para dinamizar o crescimento econômico que, por sua vez, se tornou sinônimo de "desenvolvimento". Esta cultura apresenta um conjunto de valores, crenças e padrões de comportamento considerados apropriados. Existem até templos do consumo que são os shoppings onipresentes no mundo todo. A cultura define os contornos e os objetivos da busca da felicidade, assim como os determinantes do status social das pessoas e de grupos sociais que conseguem participar desta civilização. Ou seja, o consumismo induz as pessoas a buscar o contentamento e a aceitação social via a compra de bens e serviços. Não importa que todos os estudos mostram que o consumo não garante a felicidade (GIANNETTI, 2002GIANNETTI, E. Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.; WORLDWATCH, 2010WORLDWATCH. State of the world 2010: transforming cultures. Washington, 2010.).

A cultura do consumo pode ser considerada a maior força humana destas décadas, superando religiões, crenças, ideologias, etnias ou partidos políticos. Esta motivação do consumo, ao funcionar eficazmente em nível individual, tem uma forte capacidade de mobilização em âmbito agregado. A busca da felicidade pelo consumo, por mais efêmera que seja, alimenta o aumento constante da produção que dinamiza o crescimento econômico. Sendo eficiente na promoção do crescimento econômico e, portanto, na redução da pobreza, esse modelo é agressivamente promovido não somente pelo mercado e pelas empresas, mas também por todos os governos nacionais e os organismos de desenvolvimento internacionais. Fomentar o consumo passou a constituir a essência do paradigma de desenvolvimento.

Entretanto, essa cadeia circular entre a valorização do consumo que alimenta aumentos constantes da produção e que dá forma, conteúdo e vigor ao crescimento econômico gera as duas maiores ameaças à humanidade no século 21: o caos ecológico - conforme visto nas seções anteriores -; e a desigualdade global profunda. Estas duas ameaças estão intimamente ligadas e, como veremos a seguir, estão diretamente condicionadas pela dinâmica demográfica.

O aumento da desigualdade e o dilema populacional

Em que pese a vasta literatura, tanto sobre os benefícios do crescimento econômico como sobre a ampliação das ameaças ambientais, três aspectos significativos da questão não têm sido destacados suficientemente:

  • a grande maioria da população mundial não participa da sociedade de consumo global;

  • essa maioria não contribuiu praticamente nada para os problemas ecológicos globais;

  • essa maioria pobre vai sofrer as piores consequências das mudanças climáticas devido às emissões de gases de efeito estufa geradas pelo desenvolvimento.

A conjugação dessas três situações configura o perfil da desigualdade que assola o mundo nesse período histórico e que, por sua vez, dá uma nova dimensão à questão demográfica. Resolver as desigualdades de renda e riqueza é uma necessidade imperiosa e uma condição essencial para se obter a justiça social. Mas a desigualdade é problema até para a sustentação do crescimento econômico. A desigualdade crescente significa não apenas que uma parcela enorme da humanidade persiste presa na pobreza, mas também que a riqueza aumenta sobretudo em setores limitados da humanidade.

O relatório sobre a riqueza global, em 2014, do banco The Credit Suisse (2014)THE CREDIT SUISSE. Global wealth report 2014. Zurich, Switzerland, October 2014. - banco global que está obviamente acima de qualquer suspeita esquerdista ou socialista -, não deixa dúvida sobre o grau de desigualdade do patrimônio das pessoas adultas do mundo. A riqueza global foi estimada em USD$ 263 trilhões em 2014. Na base da pirâmide da desigualdade estavam 3,28 bilhões de pessoas, ou seja, pouco mais de dois terços dos adultos do mundo, que possuíam somente 2,9% do patrimônio global da riqueza em 2014. No grupo seguinte (riqueza entre USD$ 10.000,00 e USD$ 100.000,00) 21,5% do total de adultos detinham 11,8% da riqueza global. No grupo de riqueza entre USD$ 100.000,00 e USD$ 1.000.000,00 havia 7,9% do total de adultos no mundo, com 41,3% da riqueza global. No topo da pirâmide havia 35 milhões de adultos (0,8% do total) que concentravam 44% da riqueza global.

Portanto, nos dois grupos do alto da pirâmide estavam 408 milhões de adultos (8,7%), com patrimônio total de USD$ 224,5 trilhões, representando 84,7% da riqueza global em 2014. Na parte de baixo da pirâmide, havia 4,3 bilhões de pessoas, correspondendo a 92,3% da população de adultos, que detinham somente 15,3% da riqueza mundial em 2014. O pior é que este padrão de desigualdade está em trajetória de alta. Nesse contexto, o sonho de uma classe média global não está se realizando (KOCHHAR, 2015KOCHHAR, R. A global middle class is more promise than reality: from 2001 to 2011, nearly 700 million step out of poverty, but most only barely. Washington, D.C.: Pew Research Center, July 2015.).

Mas, a despeito de toda a injustiça desta arquitetura social, o número de consumidores e o valor da riqueza têm aumentado ao longo das últimas décadas, pressionando a demanda sobre os recursos naturais. O agravamento da crise ambiental hoje em dia reflete, em parte, a entrada deste elevado contingente de consumidores, especialmente dos mais ricos, provenientes, inclusive, de países que eram - há pouco tempo - classificados como "subdesenvolvidos".

No contexto da preocupação crescente com os problemas ambientais na China e em outros países emergentes, é fácil esquecer que a ameaça ecológica global foi gerada unicamente pelos padrões de consumo de uma minoria da população mundial - a dos países industrializados em conjunto com as elites dos países pobres. Ou seja, antes mesmo da expansão econômica dos emergentes, uma parcela relativamente reduzida da humanidade já tinha colocado o equilíbrio ecológico global em sérios problemas. Na babilônia das grandes conferências sobre a crise ambiental, os países pobres e em desenvolvimento obviamente reclamam o mesmo direito de consumir - e, portanto, de "degradar" - que os causadores iniciais da crise. Os desenvolvidos, por sua vez, se negam a alterar suas trajetórias para dar margem a isso; ao contrário, apontam para o perigo do desenvolvimento nos países emergentes.

Pode-se negar o direito do mundo ainda "subdesenvolvido" de sair da pobreza, ou seja, de tornar-se também consumidor? Apesar do grande progresso econômico dos últimos tempos, quase dois terços da população mundial ainda não participam do consumo globalizado e um quarto é pobre mesmo. Os países industrializados procrastinam sistematicamente qualquer compromisso ambiental que implique uma ameaça para seu estilo de vida. Retardar os avanços socioeconômicos das populações mais pobres enquanto o consumo e a degradação se estabilizam, ou mesmo aumentam, nos países ricos significaria ampliar ainda mais o enorme fosso entre os dois blocos.

Como controlar o ritmo e o nível de consumo da humanidade sem travar o progresso social desta enorme massa que ainda não faz parte do grupo de consumidores e que, em grande medida, ainda sofre de deficiências em suas necessidades básicas? Melhorar a situação das classes mais pobres é um imperativo, mas a generalização dos padrões de produção e consumo dos ricos a uma parcela significativa dos ainda pobres exigiria recursos naturais de muitos planetas. Ou seja, na ausência de uma reviravolta dramática na concepção do desenvolvimento e na cultura do consumo que a sustenta, a incorporação de massas significativas de novos consumidores - que tanto alegra os economistas, as corporações e as instituições de desenvolvimento - significa evidentemente a catalisação da crise ecológica.

Haveria recursos e tecnologia suficientes para garantir condições de bem-estar mínimas para toda a população mundial atual e futura? Pode ser, mas isso exigiria uma mudança radical do paradigma de desenvolvimento e obrigaria a uma redução dramática do consumo. Apesar de a demanda humana já estar mais de 50% acima da capacidade regenerativa do planeta e de terem sido ultrapassadas várias fronteiras planetárias, nenhum país ou contingente populacional está disposto a descontinuar sua trajetória em direção ao consumo. Isso é comprovado pela falta de compromisso ambiental efetivo no âmbito internacional. Um estudo realizado pela Unep e o Stockholm Environmental Institute, sobre os 90 compromissos ambientais assumidos pelos governos nas últimas décadas, identificou um progresso real em apenas quatro casos: retirar o chumbo da gasolina; melhorar o acesso à água potável de qualidade; promover pesquisas sobre o ambiente marino; e evitar danos adicionais à camada de ozônio (UNEP, 2012UNEP. Emerging issues in our global environment. UNEP Yearbook 2012. St-Martin-Bellevue: UNEP, 2012.).

A conciliação de uma população crescente - que deseja consumir cada vez mais em um sistema capitalista que deseja gerar mais lucro vendendo cada vez mais mercadorias que utilizam cada vez mais recursos naturais num planeta que é finito e onde o fluxo energético é entrópico - parece extremamente difícil. Que soluções podem ser oferecidas para sair desse dilema básico da humanidade no século 21? Várias alternativas têm sido propostas, mas, na prática, ainda existe "clima" apenas para a discussão de soluções indolores, ou seja, alternativas que não implicam alterações de fundo neste paradigma de desenvolvimento baseado no crescimento constante do consumo que tem sido tão eficaz no aumento da riqueza e na redução da pobreza - ao custo do meio ambiente.

Nesse contexto, a primeira sugestão que costuma ser feita em relação aos grandes problemas ambientais é a necessidade de reduzir o tamanho populacional e o seu ritmo de crescimento via a ampliação de programas de planejamento familiar. A questão é complexa mas muito importante; precisa ser mais bem entendida.

Primeiro, é essencial observar que os impactos ambientais da dinâmica populacional são de graus muito diferenciados. No nível mais geral, pode-se dizer que qualquer desafio ambiental se torna mais complicado com o crescimento populacional. Conforme expressado por Vaclav Smil (1993, p. 207)______. Global ecology: environmental change and social flexibility. London and New York: Routledge, 1993.: "Acho impossível acreditar que o congestionamento possa levar a uma melhor qualidade de vida". Mas a natureza e a extensão dos desafios populacionais para o meio ambiente não são nem uniformes nem lineares, pois dependem da maneira como se organizam a produção e o consumo em determinada sociedade, em determinado momento histórico.

Os incrementos nas emissões globais que resultam do crescimento econômico de- vem-se à ampliação da riqueza e não ao aumento de população. Os países que criaram originalmente a crise ecológica apresentavam baixa fecundidade e os de fecundidade elevada contribuem pouco para os grandes problemas ambientais. Conforme já observado, os consumidores globais que colaboram de fato para a crise ambiental constituem, hoje, pouco mais de um terço da população mundial. Portanto, uma unidade populacional (i.e. uma pessoa) não representa uma unidade de consumo. À luz destes fatos, o controle po- pulacional continua sendo uma solução ineficaz por si mesmo, pois o problema não surge do crescimento da população global, mas sim do aumento do número de consumidores na economia global de hoje.

Segundo, os programas de planejamento familiar não constituem uma panaceia, pois não garantem a redução rápida nem da fecundidade nem do crescimento populacional. As evidências sugerem que a fecundidade só declina depois de algum deslocamento socioeconômico da sociedade em direção ao desenvolvimento. Conforme explicado por Demeny (1992DEMENY, P. Policies seeking a reduction of high fertility: a case for the demand side. Population and Development Review, v. 18, n. 2, p. 321-332, 1992., 1994)______. Population and development. Liège: IUSSP, 1994 (IUSSP Distinguished Lecture Series)., os mecanismos que conduzem a menores taxas vitais são promovidos por transformações no sistema socioeconômico que estabelecem os parâmetros do comportamento individual; a fecundidade cai quando muitos indivíduos numa sociedade acham vantajoso ter menos filhos. Portanto, a redução da fecundidade num país ou grupo é geralmente ligada a melhorias nas suas condições de vida e à urbanização. Oferecer os meios de planejar a prole é muito importante para o bem-estar, a saúde e a liberação das mulheres, mas não reduz drasticamente a fecundidade se as pessoas não vislumbram melhorias nas suas condições de vida. Além disso, grande parte do crescimento popu- lacional nos dias de hoje é inercial, ou seja, é tanto ou mais afetado pelo tamanho das coortes derivado dos padrões de fecundidade nas gerações anteriores do que pelas taxas de fecundidade atuais. Concretamente, portanto, não se divisam reduções rápidas da população global no curto prazo.

Terceiro, a queda da fecundidade não garante diminuição do consumo. Em si mesma, a redução do tamanho da família é geralmente acompanhada por um aumento do consumo per capita, anulando de certa forma os ganhos de um decréscimo no número total de pessoas. Os mesmos fatores que reduzem a fecundidade - o desenvolvimento e a urbanização - acabam aumentando o consumo. Portanto, sem uma mudança no padrão de desenvolvimento baseado no aumento constante do consumo, a redução da fecundidade, per se, terá pouco impacto ambiental no curto prazo.

Quarto, e em que pesem os argumentos anteriores, o papel da população nas questões ambientais adquire uma urgência muito maior quando visto numa perspectiva temporal. Dependendo da trajetória do desenvolvimento, as taxas de crescimento populacional deste momento podem ter um impacto crítico sobre o número de consumidores no futuro. Os países pobres com fecundidade elevada neste momento podem aumentar seu consumo drasticamente se eles tiverem êxito na adoção do modelo econômico hegemônico. Esta observação é crucial, conforme está sendo ilustrado de maneira dramática pela trajetória recente da China. Portanto, mesmo que seu impacto ambiental não seja imediato, o bom senso sugere que uma redução mais rápida da fecundidade seria preferível, caso venha a ser adotado um caminho mais racional para o "desenvolvimento" e a redução da pobreza. Paradoxalmente, a queda rápida das taxas de fecundidade é improvável sem acesso à urbanização e a algum tipo de desenvolvimento.

Quinto, o crescimento moderado da população é visto pelos desenvolvimentistas como um estímulo importante para o "throughput growth", que exige aumentos constantes de produção e consumo. Do ponto de vista ambiental, isto é fatal, pois, se a população cresce, toda ela também terá direito ao consumo. O dilema é que já temos, mundialmente, um número de pessoas (consumidores ou consumidores em potencial) muito maior daquele que pode ser sustentado com um padrão de vida similar, digamos, à classe média do Brasil. Como observa Abramovay ao comentar Vaclav Smil, parafraseando o Paradoxo de Jevons:

Para Smil, é impossível generalizar o padrão de consumo que marca a afluência atual ao conjunto da espécie humana, sem que isso comprometa irreversivelmente a oferta dos serviços ecossistêmicos de que dependemos todos. O problema não está no progresso técnico, cujo ritmo é extraordinário, o que conduz, claro, à redução na quantidade de materiais e de energia para a fabricação de bens. O problema é que, globalmente, essa redução é apenas relativa (ABRAMOVAY, 2014ABRAMOVAY, R. PIB pró-consumo é bom, menos nas consequências. Valor Econômico, 4 de novembro de 2014. Disponível em: < http://www.valor.com.br/cultura/3764316/pib-pro-consumo- e-bom-menos-nas-consequencias >. Acesso em: 01 set. 2015.
http://www.valor.com.br/cultura/3764316/...
).

Em síntese, a questão central é que os recursos da nossa ecosfera estão sendo seriamente ameaçados pela expansão do modelo de "throughput growth". A dinâmica populacional é, sem dúvida, crítica neste cenário, mas seu impacto sobre as questões ambientais se registra por meio dos padrões de desenvolvimento e de organização social. Mesmo que tivéssemos apenas três bilhões de pessoas no mundo, ainda seria preciso atacar eficazmente a questão do desenvolvimento insustentável. Neste contexto, o controlismo continua não sendo uma solução em si porque o problema não começa com o aumento de população, mas sim com a ampliação de consumidores dentro da economia globalizada.

Um aspecto insuficientemente considerado nesta discussão sobre a relação entre dinâmica demográfica e a crise ambiental é o fato de que - em nível agregado - todo crescimento futuro ocorrerá em áreas urbanas. Isso tem diversas implicações importantes. Primeiro, a urbanização é, em si, o fator mais dinâmico na etiologia da redução da fecundidade. Nas cidades, as pessoas têm mais motivação para reduzir sua prole e, ao mesmo tempo, possuem mais acesso àqueles outros fatores que, reconhecidamente, influenciam negativamente a fecundidade, tais como maior educação, maior participação na força de trabalho, melhor acesso a serviços, maior informação, maior equidade de gênero, etc. (MARTINE; ALVES; CAVENAGHI, 2013MARTINE, G.; ALVES, J. E.; CAVENAGHI, S. Urbanization and fertility decline: cashing in on structural change. International Institute for Environment and Development - IIED, December 2013 (Working paper).). Segundo, a população urbana é mais rica e, portanto, mais consumista. Terceiro, a luta futura pela mitigação e adaptação às mudanças climáticas dependerá muito do que ocorre nas cidades. Nesse sentido, as atuais tendências das políticas antiurbanas em países subdesenvolvidos preocupam muito. Sem uma atitude proativa em relação ao crescimento urbano inevitável, as favelas e a desorganização social se multiplicam, assim como os efeitos deletérios da expansão econômica.

Em suma, sem mudanças na definição e na prática do "desenvolvimento" e dos padrões de consumo embutidos nele, pode não fazer muita diferença se a população global atingir um máximo de oito ou quinze bilhões. Algum dos lados do trilema não vai suportar e vai "quebrar" de qualquer jeito. Muito antes destes bilhões terem se transformado em consumidores, o caos da insustentabilidade terá se instalado, fazendo renascer algumas das ameaças malthusianas e marxistas. Por outro lado, um desenvolvimento mais sustentável seria certamente acompanhado por uma redução significativa do ritmo de crescimento populacional.

Conclusão: as perspectivas e as limitações na generalização do progresso

Malthus só via a questão populacional e Erhlich via os limites malthusianos pelo lado ambiental. Simon e Lam acreditam que o capitalismo, a racionalidade e a tecnologia podem resolver o trilema. Marx achava que uma revolução comunista resolveria tudo. Obviamente não resolveu, mas ele tinha razão no sentido de que, se o capitalismo não incluísse os pobres e marginalizados, os conflitos sociais aumentariam.

De fato, constata-se nestes tempos a multiplicação de conflitos, assim como de protestos fragmentados e dispersos de insatisfação e resistência. O descontentamento crescente pode ser observado particularmente naqueles setores que não participam da ideologia ou dos benefícios do modelo hegemônico. As manifestações ditas de "Primavera..." em diferentes partes do mundo, juntamente com as ações de movimentos fundamentalistas, refletem uma tensão crescente derivada de uma crise profunda do sistema econômico e político mundial. A globalização ampliou os desejos de bem-estar e de consumo, mas conseguiu satisfazê-los em apenas uma parcela ainda reduzida da população mundial, acentuando as desigualdades já existentes. As ondas de migrações forçadas e de refugiados causam enormes transtornos nas fronteiras internacionais e desafiam os esforços humanitários tradicionais em nível global.

É de se esperar que o volume das vozes da indignação aumente, em parte porque o mundo nunca esteve tão conectado. O aumento das comunicações facilita a rápida resposta popular e até a formação de facções radicais pelas redes sociais, dispensando as lideranças políticas tradicionais. A intensificação das comunicações facilita também a constatação de profundas desigualdades e de diferenciais nos valores básicos de diferentes grupos até pelas classes sociais que não acederão nunca às benesses desse "desenvolvimento", criando um caldo de cultura para a revolta.

As crises econômicas, sociais e ambientais refletem a incapacidade de se gestar os graves problemas planetários provocados pelo modelo de desenvolvimento. O grande dilema da humanidade hoje se resume em como reduzir a pobreza e a desigualdade no mundo sem transgredir ainda mais os limites planetários. A impressionante redução da pobreza dos últimos tempos, fenômeno que teve impacto determinante para a melhoria de vários outros indicadores, deve-se ao forte crescimento econômico sustentado, particularmente a partir do final da década de 1990. Mesmo entre os detratores do paradigma neoliberal imperante, há reconhecimento de que o crescimento econômico, a despeito das desigualdades sociais, propiciou o aumento da renda de uma enorme massa de pessoas, ao mesmo tempo que fortaleceu a base fiscal do setor público de muitos países, facilitando assim a adoção de mecanismos de redistribuição mais eficazes. Nesse aspecto, os otimistas que olham para o "sucesso" do paradigma ganharam - temporariamente.

Entretanto, um olhar para a degradação ambiental, para as ameaças às fronteiras planetárias e para a desigualdade social no presente e no futuro muda radicalmente a perspectiva, pois revela que esse desenvolvimento aconteceu em detrimento dos ecossistemas e em função da desigualdade. Nos últimos 70 anos, o sistema de produção e consumo explorou os recursos naturais renováveis e não renováveis com intensidade e extensão inéditas na história. Os ecossistemas estão sendo desconfigurados, alterados e destruídos a um ritmo jamais atingido no passado, enquanto a demanda por alimentos, água potável, madeira, minério de ferro, cimento, energia, etc. cresce de maneira insustentável.

O crescimento econômico é um fenômeno essencial para a sobrevivência do capitalismo ou até mesmo do socialismo (entendido como "capitalismo de Estado"). Como as demandas e as necessidades humanas são infinitas e ilimitadas, tanto capitalistas quanto trabalhadores desejam, respectivamente, o crescimento do lucro e do salário. Mas os recursos naturais são finitos e limitados e daí nasce o impasse que o avanço tecnológico não consegue resolver. Como tem sido demonstrado insistentemente por vários cientistas, as atividades humanas já ultrapassaram os seus limites econômicos planetários e entraram em uma fase de "crescimento deseconômico".

Para estabelecer o equilíbrio é preciso haver decrescimento até o ponto de intercessão entre as curvas de utilidade marginal e desutilidade marginal. Depois de restaurado o equilíbrio, a adoção de uma economia de Estado estacionário evitaria que se ultrapassas-se novamente o limite econômico sustentável. Como já previa Mill e outros economistas clássicos, o Estado estacionário é necessário. Que esse Estado seja alcançado em um ponto anterior ao crescimento deseconômico é um seguro contra o risco de uma catástrofe ecológica (DALY, 2014DALY, H. Three Limits to Growth. Resilience, 05 Sep. 2014.).

Em suma, é preciso uma mudança de rumo. Além de um forte decrescimento, é urgente diminuir o grau de desigualdade existente entre e dentro dos países. A humanidade precisa continuar reduzindo a pobreza, mas deve se focar mais na diminuição das desigualdades sociais e menos no crescimento quantitativo da economia. O crescimento deve também ficar contido dentro das fronteiras planetárias, sem comprometer a biocapacidade da Terra e a biodiversidade das espécies. O "sistema de produção e consumo hegemônico" (capitalista ou socialista) não consegue ser, ao mesmo tempo, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Por isso, é impossível que esse modelo, tal como o conhecemos, mantenha de pé as três bases do tripé da sustentabilidade, que na verdade se transformou em um trilema.

  • 1
    Trilema refere-se a uma proposição formada de três lemas contraditórios ou que reúne uma escolha difícil entre três opções conflitantes
  • 2
    Cf. Hummel et al. (2009)HUMMEL, D. et al. Theoretical and methodological issues in the analysis of population dynamics and supply systems. In: CYBERSEMINAR ON "THEORETICAL AND METHODOLOGICAL ISSUES IN THE ANALYSIS OF POPULATION DYNAMICS AND THE ENVIRONMENT. Population-Environment Research Network (PERN), 2-13 February 2009. Disponível em: <www.populationenvironmentresearch.org/ papers/PERN_P-E_theory-methods_paper_final.pdf>.
    www.populationenvironmentresearch.org/ p...
    .
  • 3
    Para uma versão mais radical deste pensamento, ver Matt Ridley (2010)RIDLEY, M. The rational optimist: how prosperity evolves. London: Fourth Estate, 2010..
  • 4
    Por exemplo, a retirada (tardia) da Shell do Ártico, típica dos investimentos globais que vão abandonando seus investimentos fósseis, custou aos acionistas da empresa nada menos que US$ 7 bilhões e vai custar ainda mais US$ 4 bilhões (http://www.environmentalleader.com/2015/09/29/shell-ends-arctic-drilling-operations/).
  • 5
    "Consumidores" são definidos como adultos que têm renda de pelo menos US$10 dólares por dia (MCKINSEY, 2012McKINSEY. Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets. Insights & Publications, August 2012. Disponível em: <http://www.mckinseyquarterly.com>.
    http://www.mckinseyquarterly.com...
    ).
  • 6
    Giannetti (2012)______. Consumo e consumismo: nem sei se posso, mas quero comprar. Ecodebate, 20 ago. 2012. cita Petrônio, um poeta satírico romano que há dois mil anos já dizia: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los". Adam Smith, em A riqueza das nações (1776), também descrevia a opulência posicional (GIANETTI, 2012______. Consumo e consumismo: nem sei se posso, mas quero comprar. Ecodebate, 20 ago. 2012.).
  • 7
    A obsolescência planejada refere-se à estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante por meio da oferta de produtos que se tornam obsoletos em um curto espaço de tempo, ou por serem de má qualidade ou porque são rapidamente suplantados por outros, supostamente melhores ou mais atrativos.

Referências

  • AAAS - American Association for the Advancement of Science. What we know: the reality, risks, and response to climate change. Pensilvânia, 2014.
  • ABRAMOVAY, R. PIB pró-consumo é bom, menos nas consequências. Valor Econômico, 4 de novembro de 2014. Disponível em: < http://www.valor.com.br/cultura/3764316/pib-pro-consumo- e-bom-menos-nas-consequencias >. Acesso em: 01 set. 2015.
    » http://www.valor.com.br/cultura/3764316/pib-pro-consumo- e-bom-menos-nas-consequencias
  • ALVES, J. E. D. A polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição demográfica Rio de Janeiro: IBGE, Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2002 (Textos para discussão, n. 4).
  • ALVES, J. E. D.; CORRÊA, S. Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo+10. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 20, n. 2, jul./dez. 2003.
  • ATSMON, Y.; CHILD, P.; DOBBS, R.; NARASIMHAN, L. Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets. London: McKINSEY, August 2012.
  • BALDWIN, R.; TEULINGS, C. (Eds.). Secular stagnation:facts, causes and cures. London: Centre for Economic Policy Research - CEPR, 2014.
  • BARNOSKY, A. D. et al. Approaching a state shift in Earth's biosphere. Nature, n. 486, p. 52-58, 07 June 2012.
  • BECK, U. Ecological enlightenment Essays on the politics of the risk society. New York: Humanity Books, 1995.
  • BECKER, S. Has the world really survived the population bomb? New Orleans: Population Association of America, 2013.
  • CAVALCANTI, C. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. Estudos Avançados, v. 26, n. 74, p. 35-50, 2012.
  • CARBON TRACKER. Investors ask fossil fuel companies to assess how business plans fare in low-carbon future London, 2013.
  • DALY, H. Three Limits to Growth. Resilience, 05 Sep. 2014.
  • DEMENY, P. Policies seeking a reduction of high fertility: a case for the demand side. Population and Development Review, v. 18, n. 2, p. 321-332, 1992.
  • ______. Population and development Liège: IUSSP, 1994 (IUSSP Distinguished Lecture Series).
  • FMI - Fundo Monetário Internacional. Rise in emerging market corporate debt driven by global factors. IMF Survey, September 29, 2015. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/survey/so/2015/POL092915B.htm>.
    » http://www.imf.org/external/pubs/ft/survey/so/2015/POL092915B.htm
  • GIANNETTI, E. Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • ______. Consumo e consumismo: nem sei se posso, mas quero comprar. Ecodebate, 20 ago. 2012.
  • GIDDENS, A. Modernidade e identidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
  • GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, 2014. Disponível em: <http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/>.
    » http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/
  • HISS, T. Can the world really set aside half of the planet for wildlife? Smithsonian Magazine, September 2014.
  • HUBBERT, M. K. Nuclear energy and the fossil fuels San Antonio: American Petroleum Institute, 1956.
  • HUMMEL, D. et al. Theoretical and methodological issues in the analysis of population dynamics and supply systems. In: CYBERSEMINAR ON "THEORETICAL AND METHODOLOGICAL ISSUES IN THE ANALYSIS OF POPULATION DYNAMICS AND THE ENVIRONMENT. Population-Environment Research Network (PERN), 2-13 February 2009. Disponível em: <www.populationenvironmentresearch.org/ papers/PERN_P-E_theory-methods_paper_final.pdf>.
    » www.populationenvironmentresearch.org/ papers/PERN_P-E_theory-methods_paper_final.pdf
  • INTERNATIONAL GEOSPHERE-BIOSPHERE PROGRAMME (IGBP) 2015. Disponível em: < http://pt.slideshare.net/IGBPSecretariat >. Acesso em: 24 maio 2015.
    » http://pt.slideshare.net/IGBPSecretariat
  • KOLBERT, E. The sixth extinction: an unnatural history hardcover. New York: Henry Holt and Company, 2014.
  • KOCHHAR, R. A global middle class is more promise than reality: from 2001 to 2011, nearly 700 million step out of poverty, but most only barely. Washington, D.C.: Pew Research Center, July 2015.
  • LAM, D. How the world survived the population bomb: lessons from 50 years of extraordinary demographic history. Demography, v. 48, n. 4, p. 1231-1262, Nov. 2011.
  • MADDISON, A. The west and the rest in the world economy: 1000-2030. Maddisonian and Malthusian interpretations. World Economics, v. 9, n. 4, p. 75-99, Oct.-Dec. 2008.
  • MARTINE, G. Ciência, cultura e a estagnação da agenda ambiental. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 31, n.1, p. 231-238, 2014.
  • MARTINE, G.; ALVES, J. E.; CAVENAGHI, S. Urbanization and fertility decline: cashing in on structural change. International Institute for Environment and Development - IIED, December 2013 (Working paper).
  • MARTINE, G.; TORRES, H.; FREIRE DE MELLO, L. Cultura do consumo e desenvolvimento econômico na era de mudanças climáticas. In MARTINE, G. (Ed). População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Abep/Librum, 2012.
  • McKINSEY. Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets. Insights & Publications, August 2012. Disponível em: <http://www.mckinseyquarterly.com>.
    » http://www.mckinseyquarterly.com
  • McNUTT, M. The beyond-two-degree inferno. Science, v. 349, n. 6243, p. 7, 3 July 2015. Disponível em: <www.sciencemag.org/content/349/6243/7.full>.
    » www.sciencemag.org/content/349/6243/7.full
  • MYERS, N.; SIMON, J. Scarcity or abundance? A debate on the environment. New York, London: W.W Norton & Co. Inc., 1994.
  • NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES. Rapid population growth:consequences and policy implications. Baltimore: John Hopkins Press, 1971. 2 v.
  • ______. Population growth and economic development:policy questions. Washington, D.C.: National Academy Press, 1986.
  • NOAA. June 2015 Global Climate Report National Oceanic and Atmospheric Administration, July 2015.
  • PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2013 PNUD, março de 2013.
  • POLIMENI, J. et al. The Jevons Paradox and the myth of resource efficiency improvements London: Earthscan, 2008.
  • RIDLEY, M. The rational optimist: how prosperity evolves. London: Fourth Estate, 2010.
  • SMIL, V. Making the modern world: materials and dematerialization. Sussex: John Wiley & Sons, 2014.
  • ______. Global ecology: environmental change and social flexibility. London and New York: Routledge, 1993.
  • STEFFEN, W. et al. Planetary boundaries: guiding human development on a changing planet. Science, v. 347, n. 6223, January 15 2015.
  • THE CREDIT SUISSE. Global wealth report 2014 Zurich, Switzerland, October 2014.
  • UNEP. Emerging issues in our global environment UNEP Yearbook 2012. St-Martin-Bellevue: UNEP, 2012.
  • VEBLEN, T. The theory of the leisure class: an economic study of institutions. 1899. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/files/833/833-h/833-h.htm>.
    » http://www.gutenberg.org/files/833/833-h/833-h.htm
  • WORLD BANK. The global economy in transition, global economic prospects. Washington, June 2015.
  • WORLDWATCH. State of the world 2010: transforming cultures. Washington, 2010.
  • WWF - World Wildlife Fund. Living planet report:species and spaces, people and places. 2014. Disponível em: <wwf_lpr2014_low_res%20(1).pdf>.
    » wwf_lpr2014_low_res%20(1).pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2015
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2015
  • Revisado
    16 Set 2015
  • Aceito
    05 Out 2015
Associação Brasileira de Estudos Populacionais Rua André Cavalcanti, 106, sala 502., CEP 20231-050, Fone: 55 31 3409 7166 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: editor@rebep.org.br