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Por que as ocupações “femininas pagam menos? Um estudo longitudinal

Why do “female” occupations pay less? A longitudinal study

¿Por qué las ocupaciones «femeninas» tienen salarios más bajos? Un estudio longitudinal

Resumo

Nas últimas décadas, a taxa de participação feminina na força de trabalho cresceu de maneira expressiva no Brasil, passando de 18,5% em 1970 para 48,9% em 2010. Apesar disso, a segregação ocupacional por sexo persiste e pode ser um fator determinante para explicar a diferença salarial em desfavor das mulheres no país. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é compreender porque as ocupações femininas pagam menos. A fim de testar a teoria sociológica da desvalorização do trabalho feminino, avalia-se o impacto da transição entre ocupações distintas quanto à composição por sexo no rendimento dos trabalhadores. Para isso, são utilizados os microdados longitudinais de divulgação trimestral das edições de 2012 a 2019 da PNAD Contínua (IBGE) em um modelo de painel de efeitos fixos. A tipologia de integração ocupacional proposta por Oliveira (2001) é adotada para classificar as ocupações em predominantemente femininas, predominantemente masculinas ou integradas. Os resultados mostram que o trabalhador experimenta queda no rendimento quando transita para uma ocupação feminina, de modo que a hipótese da desvalorização é suportada. Observa-se, ainda, que os maiores rendimentos são recebidos nas ocupações integradas, indicando que a relação entre a composição ocupacional por sexo e os rendimentos é não linear.

Palavras-chave:
Segregação ocupacional por sexo; Diferencial salarial por sexo; Mercado de trabalho brasileiro; Teoria da desvalorização

Abstract

During the last decades, female participation in the labor force has increased significantly in Brazil, going from 18.5% in 1970 to 48.9% in 2010. Despite this, occupational gender segregation persists and may be determinant to explain the gender pay gap. This study aims to understand why female occupations have lower pay. In order to test the sociological theory of female work devaluation we evaluate the impact of the transition between different occupations regarding the sex composition on the salary of workers in the Brazilian labor market. To that end, we use a model with fixed effects with microdata from the 2012-2019 editions of the PNAD Contínua (IBGE). The typology of occupational integration proposed by Oliveira (2001) is adopted to classify occupations as predominantly female, predominantly male, or integrated. Results show that workers experience a decrease in wages when moving to a female occupation, hence supporting the devaluation theory. Also, the highest salaries are observed in integrated occupations, indicating that the relationship between occupational sex composition and pay is a non-linear one.

Keywords:
Occupational gender segregation; Gender pay gap; Brazilian labor market; Devaluation theory

Resumen

En las últimas décadas, la tasa de participación femenina en la fuerza de trabajo creció significativamente en Brasil, del 18,5 % en 1970 al 48,9 % en 2010. A pesar de esto, la segregación ocupacional por sexo persiste y puede ser un factor determinante para explicar la brecha salarial que desfavorece a las mujeres en el país. En este sentido, el objetivo de este trabajo es comprender por qué las ocupaciones femeninas tienen salarios más bajos. Con el fin de probar la teoría sociológica de la desvalorización del trabajo femenino, se evalúa el impacto de la transición entre distintas ocupaciones en cuanto a la composición por sexo sobre los salarios de los trabajadores. Para eso, se utilizan microdatos longitudinales de divulgación trimestral de las ediciones entre 2012 y 2019 de la PNAD continua (IBGE) en un modelo de panel de efectos fijos. Se adopta la tipología de integración ocupacional propuesta por Oliveira (2001) para clasificar las ocupaciones en predominantemente femeninas, predominantemente masculinas o integradas. Los resultados muestran que el trabajador sufre la caída de su salario cuando pasa a una ocupación femenina, lo que sustenta la hipótesis de la devaluación. También se observa que los salarios más altos se reciben en ocupaciones integradas, lo que indica que la relación entre la composición ocupacional por sexo y los salarios no es lineal.

Palabras clave:
Segregación ocupacional por sexo; Diferencial salarial por sexo; Mercado de trabajo brasileño; Teoría de la devaluación

Introdução

Desde a década de 1970, o Brasil tem vivenciado um importante aumento da taxa de participação das mulheres na força de trabalho, que chegou a 54,5% em 2019 (IBGE, 2021). Entretanto, a crescente presença feminina no mercado de trabalho - inclusive em ocupações predominantemente masculinas - não foi suficiente para eliminar a segregação ocupacional por sexo observada no país. Isso porque as mulheres seguem concentradas em ocupações distintas daquelas tradicionalmente desempenhadas por homens (OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.; MADALOZZO, 2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.; BOTASSIO; VAZ, 2020BOTASSIO, D. C.; VAZ, D. V. Segregação ocupacional por sexo no mercado de trabalho brasileiro: uma análise de decomposição para o período 2004-2015. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 37, p. 1-30, 2020.).

A segregação ocupacional por sexo é um fator determinante para explicar a diferença salarial em desfavor das mulheres, visto que as ocupações predominantemente femininas pagam menos (ENGLAND et al., 1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.; GERHART; EL CHEIKH, 1991GERHART, B.; EL CHEIKH, N. Earnings and percentage female: a longitudinal study. Industrial Relations, v. 30, n. 1, p. 62-78, Jan. 1991.; KILBOURNE et al., 1994KILBOURNE, B. S.; ENGLAND, P.; FARKAS, G.; BERON, K.; WEIR, D. Returns to skill, compensating differentials, and gender bias: effects of occupational characteristics on the wages of white women and men. American Journal of Sociology, v. 100, n. 3, p. 689-719, Nov. 1994.; OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.; KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; DEGRAFF; ANKER, 2004DEGRAFF, D. S.; ANKER, R. Gênero, mercados de trabalho e o trabalho das mulheres. In: PINELLI, A. (org.). Gênero nos estudos de população. Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004. p. 163-197.; SALAS; LEITE, 2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.; LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; MADALOZZO, 2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.; MADALOZZO; ARTES, 2017). É importante que se tenha conhecimento acerca da natureza e magnitude da relação entre segregação ocupacional e nível de rendimentos no mercado de trabalho brasileiro, pois os resultados encontrados podem amparar o desenho de políticas públicas que visem à redução da segregação ocupacional e, consequentemente, do diferencial salarial por sexo que persiste no país.

Nessa perspectiva, o presente trabalho objetiva compreender porque as ocupações femininas pagam menos no Brasil. Ao investigar como e em que medida a transição entre ocupações díspares quanto à composição por sexo se relaciona com a alteração nos níveis de rendimento dos trabalhadores no mercado de trabalho brasileiro, pretende-se averiguar se existem evidências que comprovem a teoria sociológica da desvalorização do trabalho feminino. Têm-se como objetivos específicos identificar a distribuição dos trabalhadores entre ocupações predominantemente femininas, masculinas e integradas, conforme tipologia proposta por Oliveira (2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.), analisar a probabilidade de os trabalhadores transitarem entre as diferentes ocupações e avaliar o efeito dessa transição nos rendimentos do trabalho.

A hipótese da desvalorização do trabalho feminino postula que uma mudança na composição por sexo de uma ocupação altera a valorização do trabalho desempenhado, modificando, consequentemente, seu nível de remuneração (ENGLAND, 1992 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; SORENSEN, 1994 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; STEINBERG, 2001 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; ENGLAND, 1992 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; SORENSEN, 1994 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009; STEINBERG, 2001 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009). Dessa maneira, se, ao transitar para uma ocupação predominantemente feminina, o trabalhador sofrer queda no salário, há evidência em favor dessa hipótese. Uma hipótese alternativa propõe que a relação de causalidade entre a composição sexual da ocupação e o nível de salários é espúria, ou seja, que havendo os controles corretos para as características do trabalho e para os requisitos de capital humano da ocupação, não há relação causal entre as duas variáveis (FILER, 1985, 1989, 1990 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; MACPHERSON; HIRSCH, 1995MACPHERSON, D. A.; HIRSCH, B. T. Wages and gender composition: why do women’s jobs pay less? Journal of Labor Economics, v. 13, n. 3, p. 426-471, Jul. 1995. apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; ROSEN, 1986 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009).

Para a realização desta pesquisa, utilizou-se a tipologia de integração ocupacional proposta por Oliveira (2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.) para classificar as ocupações em predominantemente femininas, predominantemente masculinas ou integradas. Os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua/IBGE) de 2012 a 2019 foram empregados em um modelo de painel de efeitos fixos. Esse tipo de modelo é o mais adequado para mensurar o efeito da composição ocupacional na remuneração, porque garante que todas as características individuais não observadas e invariantes no tempo relevantes para explicar a diferença salarial entre indivíduos sejam devidamente controladas. Embora tal metodologia tenha sido utilizada para estudar a relação entre a composição ocupacional por sexo e os rendimentos nos Estados Unidos e na Europa, até onde se sabe, não há para o Brasil pesquisas semelhantes, que avaliem o efeito sobre os rendimentos do trabalho da transição para uma ocupação predominantemente feminina, com o uso de dados longitudinais e um modelo de efeitos fixos. Desse modo, o presente estudo pretende contribuir com a literatura ao avaliar se tal efeito é semelhante entre países de continentes distintos, visto que existem significativas diferenças institucionais, sociais, culturais e de estrutura do mercado de trabalho entre eles. Tendo em vista o elevado percentual de trabalhadores no mercado de trabalho informal, que não está protegido pela regulação do Estado, é possível que se observem no Brasil maiores níveis de desvalorização salarial das ocupações predominantemente femininas. Cumpre notar, ainda, que este estudo é um dos poucos a empregar uma amostra tão grande de trabalhadores e o único a adotar um nível de desagregação das ocupações a quatro dígitos.

O artigo está organizado em cinco seções, além dessa introdução. A seguir é realizada uma revisão da literatura acerca da segregação ocupacional e do diferencial salarial por sexo no mercado de trabalho brasileiro. Posteriormente apresentam-se a base de dados e a metodologia utilizada para a realização da pesquisa. São analisados e discutidos os resultados do modelo de efeitos fixos, bem como mostrados dois modelos alternativos estimados a fim de verificar a robustez dos resultados. Por fim, discutem-se algumas políticas públicas indicadas pela literatura para combater a segregação ocupacional por sexo e são apresentadas as conclusões do trabalho.

Revisão bibliográfica

Usando dados de 73 países, as estimativas do Relatório Global sobre os Salários 2018/2019 mostram que a diferença salarial bruta entre homens e mulheres - calculada a partir dos salários-hora médios - é de 15,6% no mundo. Dentre os países de rendimento elevado, a Coreia do Sul e a Estônia têm o maior nível de diferença salarial, ambas com 32,5%. Já entre os países de rendimento médio alto, grupo no qual o Brasil se encontra (com 10,2%), o nível mais alto de diferença é o da Rússia, onde as mulheres recebem 22,9% a menos do que os homens (OIT, 2019). Esses números estão de acordo com Salas e Leite (2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.), que afirmam que o diferencial salarial por sexo, apesar de apresentar uma trajetória de queda nos últimos anos, é um fenômeno que se mantém e afeta diversos países do mundo, ainda que em magnitudes distintas.

Tendo em vista que, atualmente, a prática de remunerar de maneira diferente homens e mulheres que desempenham as mesmas tarefas é cada vez menos comum, muitos autores concordam que a explicação para a desigualdade salarial por sexo passa a residir em outros fatores. Dentre os principais estão a segregação ocupacional por sexo e os baixos salários das ocupações predominantemente femininas (ENGLAND et al., 1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.; GERHART; EL CHEIKH, 1991GERHART, B.; EL CHEIKH, N. Earnings and percentage female: a longitudinal study. Industrial Relations, v. 30, n. 1, p. 62-78, Jan. 1991.; KILBOURNE et al., 1994KILBOURNE, B. S.; ENGLAND, P.; FARKAS, G.; BERON, K.; WEIR, D. Returns to skill, compensating differentials, and gender bias: effects of occupational characteristics on the wages of white women and men. American Journal of Sociology, v. 100, n. 3, p. 689-719, Nov. 1994.; OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.; KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; DEGRAFF; ANKER, 2004DEGRAFF, D. S.; ANKER, R. Gênero, mercados de trabalho e o trabalho das mulheres. In: PINELLI, A. (org.). Gênero nos estudos de população. Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004. p. 163-197.; SALAS; LEITE, 2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.; LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; MADALOZZO, 2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.; MADALOZZO; ARTES, 2017).

A segregação ocupacional por sexo pode ser definida como a tendência que homens e mulheres têm de inserir-se em ocupações distintas (DEGRAFF; ANKER, 2004DEGRAFF, D. S.; ANKER, R. Gênero, mercados de trabalho e o trabalho das mulheres. In: PINELLI, A. (org.). Gênero nos estudos de população. Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004. p. 163-197.). Em outras palavras, homens e mulheres deveriam distribuir-se entre as ocupações na mesma proporção em que estão representados na força de trabalho; se isso não ocorre, há segregação por sexo (SALAS; LEITE, 2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.).

No Brasil, a aceleração do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, a partir dos anos 1970, foi acompanhada de acentuada segregação ocupacional por sexo. Entre 1970 e 1990, as mulheres se inseriram principalmente no setor de serviços, marcadamente no comércio, nas atividades sociais e na administração (BRUSCHINI, 1994BRUSCHINI, C. Trabalho feminino: trajetória de um tema, perspectiva para o futuro. Revista Estudos Feministas, v. 2, n. 3, p. 17-32, 1994.). Entre os nichos de ocupação feminina figuravam os serviços de cuidado pessoal, higiene e alimentação, a enfermagem, a nutrição, a psicologia, o magistério nos níveis pré-escolar, fundamental e médio, além dos serviços de escritório (BRUSCHINI, 2007) - em grande medida, ocupações relacionadas às atividades reprodutivas e que representavam uma extensão do trabalho doméstico não remunerado. A segregação ocupacional mostrou-se persistente ao longo das décadas, assim como o diferencial salarial por sexo. Madalozzo (2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.) analisa os rendimentos médios do trabalho de um conjunto de ocupações tradicionalmente femininas e masculinas. Em 1978, apenas duas delas apresentavam salários-hora médios maiores para as mulheres; nas outras 16, os homens ganhavam mais. Em 2007, essa situação pouco havia se alterado, com os homens ganhando mais do que as mulheres em 12 das ocupações consideradas.

Diversos estudos têm relacionado a desigualdade salarial por sexo às diferenças de inserção ocupacional entre homens e mulheres. England et al. (1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.) buscaram testar, por meio de um modelo de efeitos fixos, se as ocupações predominantemente femininas oferecem vantagens que compensam os salários médios mais baixos - conforme a teoria dos diferenciais compensatórios. Foram utilizados os dados da National Longitudinal Survey (EUA) e a amostra compreendeu homens e mulheres - divididos entre brancos e negros - com idade de 14 a 24 anos em 1968. Os autores observaram que as mulheres se situavam em ocupações com, em média, mais de 65% de mulheres em sua composição, enquanto os homens estavam em ocupações com menos de 23% de mulheres, em média. Para ambos os sexos, controlado o capital humano dos trabalhadores, bem como as habilidades demandadas em suas ocupações e as condições de trabalho, aqueles que se encontravam em ocupações com maior porcentagem de mulheres recebiam menores salários. Nessa perspectiva, os resultados encontrados por England et al. (1988) não corroboram a tese de que os diferenciais compensatórios explicam todas as diferenças salariais entre ocupações femininas e masculinas. Em vez disso, os autores concluem que parte do diferencial de salários é causada pela discriminação contra as ocupações dominadas por mulheres.

Gerhart e El Cheikh (1991GERHART, B.; EL CHEIKH, N. Earnings and percentage female: a longitudinal study. Industrial Relations, v. 30, n. 1, p. 62-78, Jan. 1991.), também com o uso de um modelo de efeitos fixos, procuraram mensurar a importância da composição por sexo das ocupações para explicar as diferenças de rendimentos entre homens e mulheres. Por meio da National Longitudinal Survey (EUA), os autores coletaram dados de homens e mulheres com idade entre 18 e 25 anos em 1983. De acordo com esse estudo, tanto para homens quanto para mulheres, o ato de migrar de uma ocupação predominantemente masculina para outra majoritariamente feminina está associado a um declínio de rendimentos. Os resultados mostram, ainda, que a penalidade pela mudança de ocupação é consistentemente mais alta para os homens.

Kilbourne et al. (1994KILBOURNE, B. S.; ENGLAND, P.; FARKAS, G.; BERON, K.; WEIR, D. Returns to skill, compensating differentials, and gender bias: effects of occupational characteristics on the wages of white women and men. American Journal of Sociology, v. 100, n. 3, p. 689-719, Nov. 1994.), utilizando o mesmo método, fonte de dados e amostra de England et al. (1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.), investigaram se a diferença salarial em desfavor das mulheres é explicada pela proporção feminina na ocupação e/ou pela demanda por habilidades tradicionalmente associadas às mulheres. Assim como Gerhart e El Cheikh (1991GERHART, B.; EL CHEIKH, N. Earnings and percentage female: a longitudinal study. Industrial Relations, v. 30, n. 1, p. 62-78, Jan. 1991.), os resultados relacionam o movimento de uma ocupação 100% masculina para outra 100% feminina a uma perda salarial. Todavia, em Kilbourne et al. (1994), as estimativas indicam que essa perda é significativamente maior para as mulheres.

Macpherson e Hirsch (1995MACPHERSON, D. A.; HIRSCH, B. T. Wages and gender composition: why do women’s jobs pay less? Journal of Labor Economics, v. 13, n. 3, p. 426-471, Jul. 1995.), empregando dados de trabalhadores com 16 ou mais anos de idade provenientes da Current Population Survey - e de outras fontes adicionais - entre 1973 e 1993, examinaram como os salários de homens e mulheres variam de acordo com a proporção feminina na ocupação. Os resultados encontrados por meio de uma análise transversal indicam que uma parcela considerável (aproximadamente 25% para as mulheres e 50% para os homens) do efeito negativo da composição por sexo da ocupação nos salários é devida a diferenças ocupacionais nos requisitos de habilidades e tempo de emprego. A partir de uma análise longitudinal, os autores avaliam que cerca de dois terços do efeito negativo da proporção de mulheres nos salários é devido a diferenças nas características do emprego, diferenças de produtividade entre os trabalhadores e diferentes preferências individuais em relação a atributos ocupacionais. Contudo, os autores enfatizam que a proporção feminina na ocupação, apesar de ter um efeito direto relativamente pequeno após controladas as características não observáveis dos trabalhadores, permanece sendo um determinante significativo dos salários e está associada às causas da segregação ocupacional, tais como discriminação do empregador, restrições à mobilidade laboral e preferências relacionadas ao gênero.

Murphy e Oesch (2015MURPHY, E.; OESCH, D. The feminization of occupations and change in wages: a panel analysis of Britain, Germany, and Switzerland. Berlin: German Socio-Economic Panel Study, 2015 (SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 731).), em estudo longitudinal realizado para a Europa (Grã-Bretanha, Alemanha e Suíça), avaliaram se a “feminização” ocupacional é acompanhada por um declínio nos salários. Foram coletados dados da British Household Panel (de 1991 a 2009), da German Socio-Economic Panel (de 1991 a 2010) e da Swiss Household Panel (de 1999 a 2011) para trabalhadores entre 24 anos e a idade legal para aposentadoria. Os resultados encontrados indicam que, para os três países analisados, as diferenças de produtividade (requisitos de capital humano e habilidades específicas de trabalho, tempo investido em qualificação profissional, tempo dedicado a tarefas domésticas e cuidado dos filhos) e de cobertura sindical dos trabalhadores não explicam totalmente a diferença salarial entre as ocupações masculinas e femininas. Dessa forma, os autores concluem que as disparidades salariais em desfavor das ocupações predominantemente femininas são devidas a normas sociais de gênero que valorizam mais o esforço de trabalho masculino e que, por consequência, implicam discriminação contra as mulheres no mercado de trabalho.

Uma questão central e comum a esses estudos são as razões por trás de as mulheres estarem inseridas em ocupações não apenas distintas das dos homens, mas também mais mal remuneradas. Diversas teorias buscam elucidar essa questão e, para esse trabalho, quatro delas são mais relevantes.

Existem duas visões sociológicas principais acerca da dinâmica causal entre composição ocupacional e taxa de salários. A primeira delas é a teoria da desvalorização, a qual postula que crenças culturais de gênero presentes na sociedade retratam os homens como mais competentes e dignos de status do que as mulheres. Assim, se uma ocupação é preenchida principalmente por mulheres, tanto os empregadores quanto os potenciais trabalhadores veem o trabalho como menos valioso ou menos exigente. Desse modo, é oferecido um nível de remuneração mais baixo para homens e mulheres nessa ocupação do que o que seria observado caso o mesmo trabalho fosse feito principalmente por homens (ENGLAND, 1992 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; SORENSEN, 1994 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; STEINBERG, 2001 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; ENGLAND, 1992 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; SORENSEN, 1994 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009; STEINBERG, 2001 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009).

A segunda visão é a teoria da fila - também chamada de teoria da atratividade relativa -, a qual assume que todos os trabalhadores - homens e mulheres - preferem trabalhar em ocupações com altos salários e que os empregadores preferem contratar homens em todas as ocupações (principalmente naquelas com maiores salários). Assim, para os trabalhadores, as ocupações estão ordenadas em uma fila de acordo com os salários, enquanto para os empregadores a fila de potenciais trabalhadores está ordenada segundo o sexo. Juntas, essas premissas levam à conclusão de que as mulheres conseguiriam se inserir apenas nas ocupações que os homens não desejam, isto é, aquelas com menores salários. Cabe salientar que essa teoria reconhece que a escolaridade é fundamental para o ingresso em determinados empregos; sendo assim, é quando os empregos pagam mal em relação ao nível de escolaridade exigido que os empregadores não conseguem contratar homens, fazendo com que as ocupações sejam compostas majoritariamente por mulheres (RESKIN; ROOS, 1990 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; STROBER, 1984 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; STROBER; ARNOLD, 1987 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; STROBER; CATANZARITE, 1994 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; RESKIN; ROOS, 1990 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; STROBER, 1984 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009; STROBER; ARNOLD, 1987 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009; STROBER; CATANZARITE, 1994 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009).

Essas duas perspectivas sociológicas enfocam tipos distintos de discriminação sexual (e viés de gênero) no mercado de trabalho, trazendo argumentos opostos - porém não necessariamente excludentes - acerca da direção da relação de causalidade entre a composição por sexo das ocupações e os salários. A teoria da desvalorização argumenta que a composição ocupacional afeta os salários - discriminação valorativa -, enquanto para a teoria da fila o caminho é o inverso - discriminação alocativa. Todavia, é importante ressaltar que não é descartada a hipótese de que a flecha causal aponte em ambas as direções simultaneamente (KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.).

Em oposição às visões sociológicas, duas outras teorias argumentam que não existe causalidade entre composição ocupacional e salários; ao contrário, a relação entre essas variáveis seria espúria. São elas as teorias econômicas neoclássicas do capital humano e dos diferenciais compensatórios, que a literatura costuma considerar conjuntamente.

De acordo com essas teorias, os empregos que exigem maior qualificação e treinamento específico e/ou são realizados em condições onerosas e desagradáveis precisam oferecer maiores salários para atrair potenciais trabalhadores. Assume-se que as mulheres, por valorizarem mais a maternidade e tenderem a passar menos tempo no mercado de trabalho, têm menos incentivos para investir em capital humano específico, de modo que preferem se inserir em ocupações menos exigentes e mais flexíveis, as quais, pelo fato de ofertarem vantagens não pecuniárias, pagam salários mais baixos. Assim, segundo a visão econômica neoclássica, os salários são determinados pelas habilidades demandadas e desvantagens associadas à ocupação. Desse modo, em termos estatísticos, controladas as características do trabalho e os requisitos de capital humano, não há relação entre a composição ocupacional por sexo e os salários (FILER, 1985, 1989, 1990 apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; MACPHERSON; HIRSCH, 1995MACPHERSON, D. A.; HIRSCH, B. T. Wages and gender composition: why do women’s jobs pay less? Journal of Labor Economics, v. 13, n. 3, p. 426-471, Jul. 1995. apud KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002; ROSEN, 1986 apud LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.).

Dos estudos empíricos com dados longitudinais feitos para os Estados Unidos e a Europa a fim de investigar a ordem causal entre a composição sexual das ocupações e seus salários, muitos encontram evidências em favor da visão sociológica de desvalorização do trabalho feminino (ENGLAND et al., 1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.; KILBOURNE et al., 1994KILBOURNE, B. S.; ENGLAND, P.; FARKAS, G.; BERON, K.; WEIR, D. Returns to skill, compensating differentials, and gender bias: effects of occupational characteristics on the wages of white women and men. American Journal of Sociology, v. 100, n. 3, p. 689-719, Nov. 1994.; KARLIN; ENGLAND; RICHARDSON, 2002KARLIN, C. A.; ENGLAND, P.; RICHARDSON, M. Why do “women’s jobs” have low pay for their educational level? Gender Issues, v. 20, n. 4, p. 3-22, 2002.; LEVANON; ENGLAND; ALLISON, 2009LEVANON, A.; ENGLAND, P.; ALLISON, P. Occupational feminization and pay: assessing causal dynamics using 1950-2000 census data. Social Forces, v. 88, n. 2, p. 865-891, Dec. 2009.; MAGNUSSON, 2013MAGNUSSON, C. More women, lower pay? Occupational sex composition, wages and wage growth. Acta Sociologica, v. 56, n. 3, p. 227-245, Aug. 2013.; MURPHY; OESCH, 2015MURPHY, E.; OESCH, D. The feminization of occupations and change in wages: a panel analysis of Britain, Germany, and Switzerland. Berlin: German Socio-Economic Panel Study, 2015 (SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 731).).

No que concerne ao Brasil, apesar de haver trabalhos que abordam a segregação ocupacional (SALAS; LEITE, 2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.; KING, 2009KING, M. C. Occupational segregation by race and sex in Brazil, 1989-2001. The Review of Black Political Economy, v. 36, n. 2, p. 113-125, 2009.; BOTASSIO; VAZ, 2020BOTASSIO, D. C.; VAZ, D. V. Segregação ocupacional por sexo no mercado de trabalho brasileiro: uma análise de decomposição para o período 2004-2015. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 37, p. 1-30, 2020.) e sua relação com o diferencial salarial por sexo no mercado de trabalho (OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.; MADALOZZO, 2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.; MADALOZZO; ARTES, 2017), não foram encontrados estudos que testem a dinâmica causal proposta pela teoria sociológica da desvalorização - ou, alternativamente, que verifiquem se a relação entre a composição por sexo das ocupações e seu nível de remuneração é espúria, conforme posto pela visão econômica neoclássica. Esta é a lacuna na literatura que o presente trabalho tenciona preencher.

Material e métodos

Base de dados e recorte amostral

Para a realização deste estudo foram utilizados os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2012 a 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados referentes a 2020 e 2021 não foram considerados, a fim de excluir da análise a dinâmica atípica do mercado de trabalho observada durante a pandemia de Covid-19, que poderia enviesar os resultados.

Como toda pesquisa domiciliar, a PNAD Contínua padece da subdeclaração intencional de rendimentos por parte do informante. De acordo com Rocha (2002ROCHA, S. A investigação do rendimento na PNAD - comentários e sugestões à pesquisa nos anos 2000. Rio de Janeiro: Ipea, ago. 2002. (Texto para Discussão, n. 899).), esse problema é tanto maior quanto mais elevado for o rendimento do entrevistado. Além disso, é menor para os rendimentos do trabalho formal, as pensões e as aposentadorias, e maior para os rendimentos do trabalho informal e os rendimentos de capital (ROCHA, 2002ROCHA, S. A investigação do rendimento na PNAD - comentários e sugestões à pesquisa nos anos 2000. Rio de Janeiro: Ipea, ago. 2002. (Texto para Discussão, n. 899).). A principal consequência da subdeclaração de rendimentos é a impossibilidade de serem captados com precisão os valores declarados no topo da distribuição de rendimentos. Isso, entretanto, não inviabiliza a análise aqui realizada, tendo em vista que não afeta, em média, o sentido do efeito causal da transição entre ocupações díspares quanto à composição por sexo nos rendimentos.

Fez-se uso da estrutura longitudinal da PNAD Contínua, em que um domicílio é entrevistado em um mês e sai da amostra nos dois meses seguintes, sendo essa sequência repetida cinco vezes. Dentre as vantagens de utilizar dados longitudinais, em relação a dados de corte transversal, Baltagi (2005BALTAGI, B. H. Econometric analysis of panel data. 3. ed. John Wiley & Sons, 2005.) menciona o grande número de observações disponível, o que aumenta os graus de liberdade e reduz o grau de multicolinearidade entre as variáveis explanatórias, diminuindo, assim, a variabilidade das estimativas econométricas. Além disso, os dados em painel permitem que variáveis omitidas ou não observáveis sejam controladas, desde que permaneçam invariáveis ao longo do tempo. Assim, elimina-se uma possível fonte de endogeneidade, uma vez que tais variáveis podem estar correlacionadas com as variáveis explanatórias do modelo. Dados em painel permitem, ainda, estudar processos dinâmicos de mudança, tal como se pretende neste trabalho - dados de corte transversal não possibilitariam analisar a transição de um trabalhador entre ocupações distintas quanto à composição por sexo.

Cabe mencionar que a PNAD Contínua não foi planejada para ser utilizada em estudos longitudinais de indivíduos. Por conta disso, o IBGE não divulga, juntamente com os microdados dessa pesquisa, uma chave para identificação dos indivíduos nas diferentes entrevistas. Adicionalmente, os pesos fornecidos com os microdados são transversais, isto é, não são ajustados para a não resposta em uma ou mais entrevistas segundo a estrutura por idade e sexo da população, o que introduz viés nas estimativas (TEIXEIRA JÚNIOR et al., 2019TEIXEIRA JÚNIOR, A. E.; ROSSETI, E. S.; ALMEIDA, P. A.; SILVA, D. B. N. Pesos longitudinais para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Mercado de Trabalho: conjuntura e análise, ano 25, n. 67, p. 79-90, out. 2019.). Para contornar o primeiro desses problemas, no presente trabalho, utilizou-se a variável identificadora de indivíduo provida pelo DataZoom,1 1 O DataZoom é uma plataforma que oferece acesso gratuito aos dicionários e pacotes de leitura dos microdados das pesquisas domiciliares e censos do IBGE. Disponível em: http://www.econ.puc-rio.br/datazoom/index.html. que é construída pareando-se os moradores dos domicílios da amostra em ocasiões distintas da pesquisa a partir de informações sociodemográficas. Já os pesos populacionais foram utilizados sem o tratamento para a não resposta diferenciada segundo a estrutura de idade e sexo da população.

O universo de análise abrangeu trabalhadores brancos (considerando brancos e amarelos) e negros (pretos e pardos) a partir dos 14 anos de idade que estavam ocupados na semana de referência da pesquisa e que recebiam rendimentos do trabalho em dinheiro, produtos ou mercadorias. Foram eliminados os indivíduos que trabalhavam em tempo parcial (menos de 35 horas por semana) e os que se declararam indígenas, por serem pouco representativos na amostra. Ainda, foram descartados os indivíduos que figuravam em mais de um grupo de cor ou raça nas sucessivas entrevistas do painel, bem como aqueles que tinham a ocupação mal definida, por essas serem informações relevantes para a análise.

Os microdados foram organizados em um painel no qual a unidade de observação era um indivíduo em um determinado trimestre de um determinado ano. Desse modo, a amostra final foi composta por 4.427.189 observações, separadas em quatro grupos de análise: 754.147 observações de mulheres brancas; 826.000 observações de mulheres negras; 1.170.190 observações relativas a homens brancos; e 1.676.852 relativas a homens negros.

Por fim, foram utilizados os deflatores trimestrais regionalizados disponibilizados pelo IBGE para atualização dos rendimentos do trabalho para valores do trimestre móvel finalizado em dezembro de 2019.

Metodologia

Para investigar como e em que medida a transição entre ocupações díspares quanto à composição por sexo se relaciona com a alteração nos níveis de salários dos trabalhadores no mercado de trabalho brasileiro, o presente trabalho utilizou um modelo de painel de efeitos fixos, bem como a tipologia de integração ocupacional proposta por Oliveira (2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.).

Tipologia de integração ocupacional

Para capturar o processo de alocação de homens e mulheres em ocupações com diferentes composições por sexo, Oliveira (2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.) propôs a construção de uma tipologia de integração ocupacional ao nível de três dígitos que utiliza como base para classificação das ocupações as porcentagens de trabalhadores do sexo feminino e masculino em cada ocupação. De acordo com essa tipologia, as ocupações integradas são aquelas cuja proporção de mulheres encontra-se em um intervalo com amplitude de 20 pontos percentuais em torno da participação feminina média na força de trabalho para cada ano do período observado. As ocupações com proporção de mulheres acima do limite superior são definidas como predominantemente femininas, enquanto aquelas com participação feminina abaixo do limite inferior são ditas predominantemente masculinas (OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.).

Optou-se pelo uso dessa tipologia por ela representar a superação da visão dicotômica do mercado de trabalho dividido apenas em trabalho masculino e feminino. Além disso, considerar um intervalo em torno da proporção feminina na força de trabalho para a classificação das ocupações é mais aderente à realidade do que adotar uma linha de fronteira artificial (OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.).

Considerando a classificação das ocupações ao nível de quatro dígitos empregada pela PNAD Contínua, a tipologia de integração ocupacional proposta por Oliveira (2001OLIVEIRA, A. M. H. C. Occupational gender segregation and effects on wages in Brazil. In: XXIV GENERAL POPULATION CONFERENCE. Proceedings […]. Salvador: International Union for the Scientific Study of Population, 2001.) foi adaptada para este trabalho, de maneira que as ocupações definidas como integradas foram as que apresentaram a proporção de mulheres em um intervalo com amplitude de 20 pontos percentuais em torno da proporção feminina média no total de trabalhadores ocupados (independentemente do número de horas trabalhadas), com mais de 14 anos de idade e com rendimentos do trabalho recebidos em dinheiro, produtos ou mercadorias para cada ano entre 2012 e 2019. As definições das ocupações predominantemente masculinas ou femininas permaneceram inalteradas.

Modelo de efeitos fixos

A equação do modelo de efeitos fixos adotado neste trabalho é dada por:

Y i t = Σ β t X j t t + γ 1 Z 1 i t + γ 2 Z 2 i t + a i + u i t , c o m   i = 1,2, , n , t = 1,2, , T   e   j = 1,2, , K (1)

Em que a variável dependente Y it é o logaritmo natural do rendimento-hora habitualmente auferido em todos os trabalhos pelo indivíduo i no tempo t; X jit são variáveis explanatórias de controle para as características socioeconômicas do indivíduo i no tempo t - conforme apresentado no Quadro 1 -, β j são os parâmetros associados a essas variáveis; Z 1it e Z 2it são as variáveis dummy de interesse, que captam o tipo de ocupação, com as ocupações integradas como categoria de base; γ1 e γ2 são os coeficientes relacionados às dummies do tipo de ocupação; a i representa os efeitos não observados e fixos ao longo do tempo; e u it é o termo de erro. A principal hipótese identificadora desse modelo é a exogeneidade estrita das variáveis explanatórias, isto é, o erro aleatório u it não deve ser correlacionado com nenhuma variável explanatória ao longo de todos os períodos (WOOLDRIDGE, 2008WOOLDRIDGE, J. Introdução à econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Cengage Learning, 2008.).2 2 As demais hipóteses apontadas por Wooldridge (2008) são: cada variável explanatória muda ao longo do tempo (ao menos para algum i); não há relações lineares perfeitas entre as variáveis explanatórias; e condicionais a todas as variáveis explanatórias e a a i , os erros são homocedásticos, serialmente não correlacionados (ao longo de t) e normalmente distribuídos com média zero.

QUADRO 1
Variáveis do modelo de efeitos fixos

Os parâmetros de interesse γ1 e γ2 mensuram, tudo o mais constante, o impacto observado sobre o rendimento do indivíduo quando sua ocupação se modifica de integrada para predominantemente feminina ou masculina, respectivamente. Se, ao transitar para uma ocupação majoritariamente feminina, o efeito médio observado for de queda no rendimento do trabalho, há evidência em favor da hipótese da desvalorização. Cabe destacar que, como a transformação de efeitos fixos elimina e não permite medir o efeito das variáveis que permanecem constantes ao longo do tempo, este trabalho estimou o modelo para homens e mulheres e para brancos e negros separadamente, a fim de verificar se esse impacto difere de acordo com o sexo e a cor ou raça do indivíduo.

Para corrigir o viés de seleção das mulheres na amostra,3 3 De acordo com a literatura, as mulheres que recebem baixos salários podem reduzir as horas de trabalho ofertadas ou até mesmo sair do mercado de trabalho - o mesmo não ocorrendo entre os homens. Desse modo, as amostras que consideram apenas mulheres ocupadas em tempo integral podem ser truncadas nos rendimentos do trabalho, de maneira que enviesam as estimativas dos coeficientes que medem o efeito das variáveis do lado da demanda, como os retornos pelo nível de experiência ou escolaridade ou as ofertas salariais de ocupações específicas (ENGLAND et al., 1988). estimou-se um modelo logit para cada ano, para mulheres brancas e negras separadamente, a fim de prever a probabilidade de ocupação em tempo integral - em oposição à desocupação ou à ocupação em tempo parcial. As variáveis explanatórias utilizadas nesse modelo foram o nível de escolaridade, a idade e a idade ao quadrado (como proxy da experiência), uma variável binária que controla se a mulher é a pessoa responsável pelo domicílio, o número de crianças menores de seis anos no domicílio, o logaritmo natural da renda domiciliar per capita e três variáveis binárias que identificam os quatro trimestres do ano.

Após estimado o logit, a probabilidade prevista de a mulher estar ocupada em tempo integral em cada ano foi adicionada como variável explanatória aos modelos de efeitos fixos para as mulheres. A adição desse instrumento permite corrigir o viés de seleção que possa estar presente na amostra.

Por fim, cumpre notar que, para avaliar a adequação dos modelos à estrutura dos dados, foram conduzidos testes de Hausman4 4 No software estatístico Stata 17, o comando para o teste de Hausman não aceita pesos. Devido a essa limitação, os testes foram conduzidos sem a ponderação da amostra pelo peso trimestral do indivíduo com pós-estratificação pela projeção de população. para cada um dos grupos de análise (HAUSMAN, 1978HAUSMAN, J. A. Specification tests in econometrics. Econometrica, v. 46, n. 6, p. 1251-1271, Nov. 1978.). Em todos os casos, o teste foi estatisticamente significativo e o modelo de efeitos fixos mostrou-se mais adequado do que o de efeitos aleatórios.

Resultados

Estatísticas descritivas

A Tabela 1 apresenta, para cada grupo de análise, as médias dos rendimentos mensal e por hora habitualmente recebidos em todos os trabalhos, das horas trabalhadas por semana, da idade do trabalhador e de seus anos de escolaridade. Além disso, são mostrados a proporção de trabalhadores que são a pessoa responsável pelo domicílio e o percentual médio de mulheres na ocupação em que o trabalhador está inserido.

TABELA 1
Médias por grupos de análise Brasil - 2012-2019

Avaliando a média do rendimento-hora habitualmente recebido em todos os trabalhos, é possível perceber um diferencial em favor dos homens brancos. Tomando esse grupo de análise como referência, observa-se que as mulheres brancas, os homens negros e as mulheres negras recebem, respectivamente, rendimentos do trabalho 21,0%, 50,7% e 56,8% menores.

A Tabela 1 mostra também que, entre os trabalhadores ocupados em tempo integral, as mulheres são, em média, mais jovens do que os homens. Isso ocorre porque, após a maternidade, muitas mulheres tendem a ofertar menos horas de trabalho ou até mesmo a sair do mercado de trabalho. Conforme Hecksher, Barbosa e Costa (2020HECKSHER, M.; BARBOSA, A. L. N. H.; COSTA, J. S. De antes da gravidez até a infância: trabalho e estudo de mães e pais no painel da PNAD Contínua. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise, ano 26, n. 68, p. 81-88, abr. 2020.), enquanto o percentual de pais que trabalham se mantém estável antes e depois do nascimento de uma criança, há uma forte queda na probabilidade de trabalhar das mães já desde o período da gravidez, que se acentua após o nascimento.

Ainda, vale ressaltar que as trabalhadoras são mais escolarizadas do que seus pares masculinos de mesma cor ou raça. Isso pode ser explicado pelo fato de os homens ingressarem mais cedo no mercado de trabalho. Segundo o IBGE (2017), enquanto 44,9% dos homens ocupados começaram a trabalhar com 14 anos de idade ou menos, entre as mulheres esse percentual é de 32,5%.

Por fim, cabe salientar que tantos as mulheres negras quanto as brancas estão alocadas em ocupações com, em média, mais de 61% de trabalhadoras do sexo feminino, ao passo que os homens se encontram em ocupações com não mais que 27% de mulheres, em média.

Na Tabela 2 é apresentada a participação feminina entre os trabalhadores ocupados em tempo integral por tipo de ocupação.

TABELA 2
Proporção média de mulheres, por tipo de ocupação Brasil - 2012-2019 Em porcentagem

Na Tabela 2 observa-se que, para todos os tipos de ocupação, houve crescimento da proporção média de mulheres entre 2012 e 2019. Os maiores aumentos se deram nas ocupações integradas, com 1,57 ponto percentual, seguidas pelas ocupações predominantemente masculinas, com 1,37 p.p. Esses números refletem a elevação da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos.

Com relação ao aumento da proporção de mulheres nas ocupações tradicionalmente femininas, Madalozzo (2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.) aponta duas possíveis explicações: a primeira seria a resistência dos homens de se envolverem em atividades consideradas femininas; já a segunda seria a discriminação do trabalhador, que levaria os homens a cobrarem um prêmio para trabalhar em atividades femininas. Esse prêmio poderia ser muito elevado, a ponto de os empregadores preferirem contratar apenas mulheres.

A Tabela 3 mostra a probabilidade de o trabalhador permanecer ou transitar entre as diferentes ocupações quanto à composição por sexo. Tal probabilidade foi calculada considerando o tipo de ocupação em que o trabalhador estava inserido no momento da concessão da primeira e da última entrevistas, as quais têm um intervalo máximo de cinco trimestres.

TABELA 3
Matriz de probabilidade de transição dos trabalhadores entre ocupações Brasil - 2012-2019

De acordo com os dados da Tabela 3, nota-se que, em um período de até cinco trimestres, os trabalhadores tendem a permanecer nas (ou transitar para as) ocupações típicas de seu gênero, dificilmente transitando para ocupações dominadas pelo sexo oposto. Entre as mulheres brancas em ocupações predominantemente femininas, por exemplo, apenas 2,14% mudaram para ocupações masculinas. Em contraste, dentre aquelas em ocupações masculinas, um percentual mais de cinco vezes maior - 11,09% - transitaram para ocupações femininas. Esses números evidenciam a persistência da segregação ocupacional por sexo no mercado de trabalho brasileiro, que pode ser explicada, entre outros fatores, pela preferência dos trabalhadores - principalmente das mulheres - por atividades e carreiras identificadas com o seu papel social (SALAS; LEITE, 2007SALAS, C.; LEITE, M. Segregación sectorial por género: una comparación Brasil-México. Cadernos PROLAM/USP, ano 7, v. 2, p. 241-259, 2007.). Botassio e Vaz (2020BOTASSIO, D. C.; VAZ, D. V. Segregação ocupacional por sexo no mercado de trabalho brasileiro: uma análise de decomposição para o período 2004-2015. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 37, p. 1-30, 2020.) afirmam que essa explicação se sustenta nos estereótipos culturais de gênero presentes na sociedade, que, expressos pela divisão sexual do trabalho, afetam a trajetória e as escolhas da mulher no mercado de trabalho.

Por fim, para possibilitar a análise do efeito das diferenças ocupacionais no rendimento, a Tabela 4 traz o rendimento-hora médio dos trabalhadores por tipo da ocupação e por sexo - com abertura para cor ou raça.

TABELA 4
Rendimento-hora médio por tipo de ocupação, segundo sexo e cor ou raça Brasil - 2012-2019 Em reais

A partir da Tabela 4, pode-se perceber que, para todos os grupos de análise, os maiores rendimentos são recebidos nas ocupações integradas, seguidas pelas ocupações predominantemente masculinas e depois pelas predominantemente femininas, assim como encontrado por Magnusson (2013MAGNUSSON, C. More women, lower pay? Occupational sex composition, wages and wage growth. Acta Sociologica, v. 56, n. 3, p. 227-245, Aug. 2013.) e Murphy e Oesch (2015MURPHY, E.; OESCH, D. The feminization of occupations and change in wages: a panel analysis of Britain, Germany, and Switzerland. Berlin: German Socio-Economic Panel Study, 2015 (SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 731).). Uma das explicações possíveis para essa configuração dos salários é o maior nível de escolaridade dos trabalhadores alocados nas ocupações integradas, que é de 12,1 anos, em média, contra 11,4 e 9,2 anos nas ocupações femininas e masculinas, respectivamente.

Todavia, enquanto nas ocupações predominantemente femininas e integradas os homens têm rendimentos maiores do que as mulheres, no caso das ocupações predominantemente masculinas são as mulheres que ganham mais. Para Madalozzo (2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.), isso seria devido a características individuais específicas das mulheres alocadas nessas ocupações, como, por exemplo, o maior nível de escolaridade. Os maiores rendimentos recebidos pelos homens nas ocupações predominantemente femininas poderiam ser explicados, conforme mencionado anteriormente, pelo fato de os homens cobrarem um “prêmio” para trabalhar com mulheres em um emprego considerado feminino (MADALOZZO, 2010MADALOZZO, R. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil; an empirical analysis. Economia Aplicada, v. 14, n. 2, p. 147-168, 2010.).

Coeficientes dos modelos de efeitos fixos

A Tabela 5 apresenta os coeficientes do modelo de efeitos fixos estimado separadamente para homens e mulheres brancos e negros. As regressões femininas incluem a variável instrumental que corresponde à probabilidade prevista, segundo um modelo logit, de ocupação das mulheres em tempo integral, conforme indicado anteriormente. Em todos os modelos, a variável dependente é o logaritmo natural do rendimento-hora dos trabalhadores ocupados em tempo integral e com 14 anos ou mais de idade, de modo que os coeficientes, equacionados por , revelam, ceteris paribus, a variação percentual no rendimento médio de cada grupo de análise dada uma variação marginal em cada variável explanatória.

TABELA 5
Regressões do modelo de efeitos fixos, por sexo e cor ou raça Brasil - 2012-2019

Na Tabela 5 observa-se que, para todos os modelos, os coeficientes são conjuntamente significativos ao nível de 1% de significância, de maneira que é possível dizer que o conjunto de variáveis explanatórias especificadas é capaz de explicar as variações observadas no rendimento-hora dos trabalhadores. Individualmente, a maior parte dos coeficientes mostraram-se significativos. Os detalhes são discutidos a seguir.

Os sinais dos coeficientes das variáveis idade e idade ao quadrado (significativos a 1% para todos os grupos), utilizadas como proxy para a experiência do indivíduo no mercado de trabalho, indicam uma relação em formato de parábola côncava para baixo entre a idade do indivíduo e seu rendimento, ou seja, o rendimento cresce até atingir determinada idade e, a partir daí, passa a decrescer. Para cada grupo de análise foi calculada a idade em que o rendimento-hora do trabalhador atinge seu ponto de máximo, sendo de 61,9 anos para as mulheres brancas, 63,0 anos para as negras, 54,9 anos para os homens brancos e 52,7 anos para os negros.

Esses números evidenciam a maior dificuldade enfrentada pelas mulheres para ascender na carreira. Na literatura, há dois fatores principais que podem representar obstáculos à ascensão profissional feminina. O primeiro é a dificuldade em retornar ao mercado de trabalho após a maternidade. Hecksher, Barbosa e Costa (2020HECKSHER, M.; BARBOSA, A. L. N. H.; COSTA, J. S. De antes da gravidez até a infância: trabalho e estudo de mães e pais no painel da PNAD Contínua. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise, ano 26, n. 68, p. 81-88, abr. 2020.) avaliam que o percentual de mulheres que não estudam nem trabalham aumenta desde o início da gravidez e chega a 54,5% três trimestres após o nascimento de um filho. De acordo com os autores, esse crescimento da inatividade no mercado de trabalho é explicado pelo fato de as mulheres serem as principais responsáveis por cuidar da casa, dos filhos e/ou de outros parentes.

O segundo fator seria a existência de um teto de vidro para as mulheres. Em Madalozzo (2011MADALOZZO, R. CEOs e composição do conselho de administração: a falta de identificação pode ser motivo para existência de teto de vidro para mulheres no Brasil? RAC, Curitiba, v. 15, n. 1, art. 7, p. 126-137, jan./fev. 2011.), esse fenômeno é definido como uma barreira artificial invisível que impede o acesso de mulheres a oportunidades de promoção e progressão na carreira. A autora aponta que, no Brasil, a existência de conselhos administrativos diminui significativamente a chance de as mulheres serem indicadas para o cargo mais alto da empresa (CEO). Isso ocorre devido à importância de o conselho reconhecer no futuro CEO características semelhantes às dos próprios conselheiros, que são, em sua grande maioria, homens.

Foram calculados os efeitos sobre o rendimento de um incremento de dez anos na idade do indivíduo, considerando-se a idade média de cada grupo de análise (vide Tabela 1). O maior efeito foi encontrado para as mulheres negras (+7,7%) e o menor, para os homens brancos (+4,4%).

Os resultados da Tabela 5 mostram ainda que, ao se tornarem a pessoa responsável pelo domicílio, os trabalhadores têm um incremento em seu rendimento que varia entre 4,3% (para homens negros) e 2,2% (para mulheres brancas) - para as mulheres negras o efeito foi não significativo.

Quanto ao nível de escolaridade, para todos os grupos de análise, o efeito de o indivíduo ter entre menos de 1 ano e 11 anos de estudo é sempre negativo em comparação à categoria de base (12 anos de estudo), ainda que a magnitude não esteja ordenada de acordo com o nível. Já para os níveis de escolaridade entre 13 e 16 ou mais anos de estudo, o efeito no rendimento-hora do trabalhador é, para todos os grupos de análise, significativo, positivo e sua magnitude aumenta sistematicamente de acordo com o nível, de maneira que, quando o indivíduo completa 16 anos de estudo, seu rendimento-hora cresce, em média, 11,4%, caso seja um homem negro, e 9,1%, se for uma mulher branca.

Para avaliar os efeitos associados à transição do trabalhador entre os grupamentos ocupacionais definidos pelo IBGE, consideram-se os técnicos e profissionais de nível médio a categoria de base. É possível observar que, dentre as ocupações para as quais o efeito da transição é positivo, o maior deles ocorre no grupamento dos membros das Forças Armadas, policiais e bombeiros militares, com incremento de 11,8% no rendimento-hora das mulheres negras e de 3,3% no dos homens brancos - para as mulheres brancas o efeito de transitar para essa ocupação não foi significativo. Dentre as ocupações com efeito negativo no rendimento, a queda mais sensível está relacionada à transição para o grupo dos trabalhadores qualificados da agropecuária, florestais, da caça e da pesca, com -16,6% para os homens negros e -4,9% para as mulheres brancas.

Ademais, pela Tabela 5 também é possível perceber que, ao deixarem de ter carteira assinada, os trabalhadores experimentam queda de 2,4% a 4,8% no rendimento-hora médio, enquanto aqueles que se tornam funcionários públicos ganham entre 6,3% e 13,5% a mais, em média.

Depois de aplicados os devidos controles para as características socioeconômicas que afetam os rendimentos do indivíduo, é possível mensurar, tudo o mais constante, o impacto sobre o rendimento-hora do trabalhador da mudança de uma ocupação integrada para outra dominada por sexo. Segundo os dados da Tabela 5, para todos os grupos de análise, quando a ocupação do trabalhador se modifica de integrada para predominantemente feminina, o efeito médio observado é de queda no rendimento-hora. Em ordem do maior para o menor efeito, a queda é de 2,2% para as mulheres brancas (significativa a 1%), 1,8% para os homens brancos (significativa a 1%), 1,3% para as mulheres negras (significativa a 1%) e 0,5% para os homens negros (significativa a 10%). No caso da transição de uma ocupação predominantemente masculina para outra predominantemente feminina, os efeitos observados são de -2,6% para as mulheres brancas, -2,1% para mulheres negras, -1,3% para os homens brancos e -1,1% para os homens negros.

O efeito negativo associado à transição para uma ocupação majoritariamente desempenhada por mulheres representa evidência em favor da existência de discriminação valorativa no mercado de trabalho brasileiro, assim como posto pela visão sociológica da desvalorização do trabalho feminino. Assumindo que foram adotados os controles corretos para as características relevantes para explicar o diferencial de rendimentos, é possível interpretar o sinal negativo do coeficiente da variável qualificadora de ocupações predominantemente femininas como indicador do viés social de gênero que deprecia tais ocupações. Murphy e Oesch (2015MURPHY, E.; OESCH, D. The feminization of occupations and change in wages: a panel analysis of Britain, Germany, and Switzerland. Berlin: German Socio-Economic Panel Study, 2015 (SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 731).) chegam a conclusões semelhantes ao avaliarem as disparidades salariais em desfavor das ocupações femininas na Alemanha, Suíça e Grã-Bretanha, visto que, para os autores, tais disparidades decorrem de normas sociais de gênero que desvalorizam o trabalho desempenhado majoritariamente por mulheres. A consequência direta desse fenômeno é a manutenção de um hiato salarial por sexo no mercado de trabalho, já que as mulheres se concentram nas ocupações que, em média, remuneram menos que as ocupações masculinas.

Tais resultados concordam também com os de England et al. (1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.), os quais indicam que, para todos os grupos de análise - homens e mulheres brancos e negros -, controladas as características do indivíduo e do emprego, os trabalhadores alocados em ocupações com maior participação de mulheres em sua composição recebem menores salários. Assim como em Kilbourne et al. (1994KILBOURNE, B. S.; ENGLAND, P.; FARKAS, G.; BERON, K.; WEIR, D. Returns to skill, compensating differentials, and gender bias: effects of occupational characteristics on the wages of white women and men. American Journal of Sociology, v. 100, n. 3, p. 689-719, Nov. 1994.), no presente estudo, o efeito de queda do salário ao se transitar para uma ocupação feminina é maior para as mulheres - quando comparado ao efeito para seus pares de mesma cor ou raça. Por outro lado, esses resultados diferem daqueles encontrados por Gerhart e El Cheikh (1991GERHART, B.; EL CHEIKH, N. Earnings and percentage female: a longitudinal study. Industrial Relations, v. 30, n. 1, p. 62-78, Jan. 1991.), que apontam que a penalidade pela mudança para uma ocupação com maior proporção de mulheres é consistentemente mais alta para os homens.

Por fim, os efeitos associados à transição de uma ocupação integrada para outra predominantemente masculina se mostraram significativos para mulheres negras (+0,8%), homens brancos (-0,5%) e homens negros (+0,7%). O sinal positivo dos coeficientes também pode ser entendido como evidência que suporta a hipótese da desvalorização do trabalho feminino. Por outro lado, o sinal negativo do coeficiente para os homens brancos concorda com os resultados encontrados para a Suécia por Magnusson (2013MAGNUSSON, C. More women, lower pay? Occupational sex composition, wages and wage growth. Acta Sociologica, v. 56, n. 3, p. 227-245, Aug. 2013.), os quais, por indicarem que a mudança de uma ocupação integrada para outra dominada por sexo (tanto feminino quanto masculino) acarreta queda no rendimento do indivíduo, sugerem que a relação entre a composição ocupacional por sexo e os salários é não linear, o que contraria a hipótese da desvalorização.

England et al. (1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.) chamam a atenção para o fato de que parte do efeito líquido da porcentagem de mulheres sobre os salários pode advir do fenômeno de crowding em ocupações femininas e não apenas da discriminação valorativa de ocupações com base em sua composição por sexo (BERGMANN, 1974; BERGMANN, 1986 apud ENGLAND et al., 1988ENGLAND, P.; FARKAS, G.; KILBOURNE, B. S.; DOU, T. Explaining occupational sex segregation and wages: findings from a model with fixed effects. American Sociological Review, v. 53, n. 4, p. 544-558, Aug. 1988.). O fenômeno do crowding ocorre porque a discriminação do empregador, ao limitar o acesso das mulheres às ocupações masculinas, leva a um excesso de oferta de mão de obra nas ocupações femininas, ocasionando a queda de salários.

Macpherson e Hirsch (1995MACPHERSON, D. A.; HIRSCH, B. T. Wages and gender composition: why do women’s jobs pay less? Journal of Labor Economics, v. 13, n. 3, p. 426-471, Jul. 1995.) apontam outras razões que explicariam porque as ocupações predominantemente femininas pagam menos, dentre elas a existência de padrões históricos de discriminação contra mulheres em ocupações com atributos associados a rendimentos mais altos - tipicamente masculinas -, assim como posto pela teoria da fila. Com respeito à discriminação, Bergmann (2005BERGMANN, B. R. The economic emergence of women. New York: Palgrave Macmillan, 2005.) chama a atenção para dois fatores. Primeiro, o papel da tradição, que faz com que certas ocupações sejam vistas como masculinas por natureza. Esse fator é reforçado pelo fato de as mulheres terem ingressado no mercado de trabalho remunerado após os homens e, assim, quando quase todos os trabalhos eram masculinos. Segundo, a misoginia, isto é, o desejo de parte dos homens de manter as mulheres em um status inferior e, assim, fora das ocupações que as tornariam iguais ou superiores a eles.

Macpherson e Hirsch (1995MACPHERSON, D. A.; HIRSCH, B. T. Wages and gender composition: why do women’s jobs pay less? Journal of Labor Economics, v. 13, n. 3, p. 426-471, Jul. 1995.) mencionam, ainda, como explicação para os menores salários médios das ocupações femininas, a divisão sexual do trabalho, que molda a escolha profissional de homens e mulheres. Esse conceito foi cunhado para designar a separação e hierarquização do trabalho desempenhado por homens e mulheres: a eles é destinado o trabalho produtivo, feito para o mercado e considerado de maior valor social, ao passo que às mulheres cabem as tarefas reprodutivas, realizadas em âmbito doméstico (KERGOAT, 2009KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, H. et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2009. p. 67-75.). As ocupações predominantemente femininas - enfermeiras, professoras, assistentes sociais, psicólogas, trabalhadoras domésticas, etc. - pagam menores salários porque são vistas como extensões das atividades domésticas e de cuidado, consideradas de menor importância.

Exercícios de robustez

A fim de verificar a robustez dos resultados encontrados, foram estimados dois modelos alternativos. No primeiro, adotou-se como variável de interesse a proporção de mulheres na ocupação do trabalhador em lugar das duas variáveis dummy que captam o tipo de ocupação segundo sua composição por sexo. Assim como no modelo principal, as regressões femininas incluem a variável instrumental que corresponde à probabilidade prevista de ocupação das mulheres em tempo integral.

A Tabela 6 apresenta os resultados para cada um dos grupos de trabalhadores.5 5 As estimativas dos demais coeficientes do modelo foram omitidas em vista da limitação de espaço, mas podem ser obtidas mediante solicitação aos autores. Observa-se que, controladas as demais características individuais e o tipo de ocupação, o efeito de um aumento na porcentagem de mulheres na ocupação sobre o rendimento- -hora é negativo e significativo a 1% para todos os grupos de análise. Porém, enquanto o rendimento dos homens diminui entre 1,8% (brancos) e 2,6% (negros) para cada ponto percentual de aumento na porcentagem feminina na ocupação, para as mulheres esse efeito é significativamente maior, sendo de -4,4% para as negras e de -5,3% para as brancas. O efeito negativo sobre os rendimentos de se transitar para uma ocupação com maior porcentagem feminina indica um processo de desvalorização do trabalho, uma vez que ele é mais desempenhado por mulheres, endossando a teoria sociológica.

TABELA 6
Regressões do modelo de efeitos fixos, por sexo e cor ou raça, adotando a proporção de mulheres na ocupação como variável explanatória de interesse Brasil - 2012-2019

No segundo modelo alternativo, substituiu-se a amostra de trabalhadores ocupados em tempo integral pelos ocupados em tempo parcial (menos de 35 horas por semana). De maneira semelhante ao primeiro modelo alternativo, os resultados encontrados - apresentados na Tabela 7 - configuram evidência estatística em favor da hipótese da desvalorização. Para as mulheres, encontrou-se efeito de queda no rendimento-hora médio quando da transição para uma ocupação predominantemente feminina, sendo esta de -2,1% (significativo a 5%) e de -1,5% (significativo a 10%) para as brancas e negras, respectivamente.

TABELA 7
Regressões do modelo de efeitos fixos, por sexo e cor ou raça, para trabalhadores em tempo parcial Brasil - 2012-2019

Vale enfatizar que a confiabilidade de tais estimativas se sustenta no uso de um modelo de efeitos fixos, capaz de controlar as características estáveis e não observáveis que diferenciam os trabalhadores, na adoção de variáveis de controle para atributos ocupacionais e individuais relevantes para explicar a remuneração, e na inclusão de uma variável que corrige o viés de seleção das mulheres na amostra. Os resultados sugerem a importância do combate à segregação ocupacional, que concentra as mulheres em ocupações que pagam menos e faz perdurar o hiato salarial por sexo ainda observado no Brasil.

Considerações finais

Este trabalho buscou compreender a razão pela qual as ocupações femininas pagam menos no Brasil. Para testar a hipótese de desvalorização do trabalho feminino, investigou-se como e em que medida a transição entre ocupações díspares quanto à composição por sexo se relaciona com a alteração nos níveis de rendimento dos trabalhadores no mercado de trabalho brasileiro. A análise descritiva das características dos trabalhadores ocupados em tempo integral, mediante os dados da PNAD Contínua de 2012 a 2019, mostrou que, mesmo sendo mais escolarizadas do que os homens, as mulheres recebem rendimentos do trabalho até 58,7% menores, em média. Além disso, constatou-se que as mulheres estão alocadas em ocupações com mais de 61% de participação feminina, enquanto os homens trabalham em ocupações com menos de 27% de mulheres, em média.

Encontrou-se, ainda, que os maiores rendimentos são recebidos em ocupações integradas, seguidas pelas predominantemente masculinas e depois pelas predominantemente femininas, assim como em Magnusson (2013MAGNUSSON, C. More women, lower pay? Occupational sex composition, wages and wage growth. Acta Sociologica, v. 56, n. 3, p. 227-245, Aug. 2013.) e Murphy e Oesch (2015MURPHY, E.; OESCH, D. The feminization of occupations and change in wages: a panel analysis of Britain, Germany, and Switzerland. Berlin: German Socio-Economic Panel Study, 2015 (SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 731).). Além disso, exceto no caso das ocupações dominadas por homens, existe um hiato salarial em desfavor das mulheres.

As estimativas obtidas mediante um modelo de painel de efeitos fixos indicaram que, aplicados os devidos controles para as características socioeconômicas que afetam os rendimentos, ao transitar de uma ocupação predominantemente masculina para outra predominantemente feminina, o trabalhador sofre queda no rendimento-hora. As mulheres são as mais penalizadas por isso, sendo seu rendimento reduzido em 2,6% no caso das brancas e em 2,1% para as negras. Para os homens, o efeito de queda observado é de 1,3% para os brancos e de 1,1% para os negros. Tais resultados se conservam quando as variáveis binárias que controlam o tipo de ocupação - se feminina, masculina ou integrada - são substituídas no modelo pela proporção de mulheres na ocupação, ou quando se altera a amostra de trabalhadores ocupados em tempo integral para aqueles em tempo parcial.

Assim, em vista do efeito negativo associado à transição para uma ocupação majoritariamente desempenhada por mulheres, é possível afirmar que existem evidências estatísticas em favor da hipótese sociológica de desvalorização do trabalho feminino no mercado de trabalho brasileiro. Porém, cabe ressaltar que, no caso dos homens brancos, o efeito negativo da transição para uma ocupação masculina no rendimento sugere que a relação entre a composição ocupacional por sexo e os rendimentos do trabalho é não linear, o que contraria a hipótese da desvalorização. Tais conclusões concordam com Magnusson (2013MAGNUSSON, C. More women, lower pay? Occupational sex composition, wages and wage growth. Acta Sociologica, v. 56, n. 3, p. 227-245, Aug. 2013.).

Em virtude dos resultados apresentados, para eliminar o hiato salarial por sexo ainda observado no Brasil, faz-se imperativa a desconstrução dos estereótipos de gênero presentes na sociedade que afetam negativamente as mulheres no mercado de trabalho, segregando-as em ocupações “femininas” e dificultando seu desenvolvimento profissional e seu acesso a maiores salários. Para que isso aconteça, são necessárias políticas que visem reduzir a segregação ocupacional por sexo.

Diversos estudos mostram que uma maneira efetiva de superar as barreiras criadas no mercado de trabalho pelos estereótipos de gênero é por meio da exposição de meninas a mulheres bem-sucedidas em ocupações dominadas por homens, o que tem o poder de aumentar o senso de pertencimento e a probabilidade de que mais mulheres optem por e se mantenham nessas carreiras (HERRMANN et al., 2016HERRMANN, S. D.; ADELMAN, R. M.; BODFORD, J. E.; GRAUDEJUS, O.; OKUN, M. A.; KWAN, V. S. Y. The effects of a female role model on academic performance and persistence of women in STEM courses. Basic and Applied Social Psychology, v. 38, n. 5, p. 258-268, 2016.; SHIN; LEVY; LONDON, 2016SHIN, J. E. L.; LEVY, S. R.; LONDON, B. Effects of role model exposure on STEM and non-STEM student engagement. Journal of Applied Social Psychology, v. 46, n. 7, p. 410-427, jul. 2016.; GONZÁLEZ-PÉREZ; MATEOS DE CABO; SÁINZ, 2020GONZÁLEZ-PÉREZ, S.; MATEOS DE CABO, R.; SÁINZ, M. Girls in STEM: is it a female role-model thing? Frontiers in Psychology, v. 11, art. 2204, Sep. 2020.).

Além disso, programas de desenvolvimento, aprimoramento e empoderamento profissional da mulher são fundamentais para aumentar sua visibilidade em ocupações tradicionalmente masculinas, bem como para reduzir a discriminação e as percepções de falta de pertencimento e interesse em tais ocupações, que configuram obstáculos à ascensão feminina a cargos gerenciais. Programas e iniciativas nesse sentido são essenciais para que cada vez mais mulheres sejam exemplos de sucesso em ocupações “masculinas”.

No campo das políticas públicas, faz-se necessária a ampliação das ações de apoio à mulher no mercado de trabalho, como o Programa Empresa Cidadã, que oferece benefícios fiscais a empresas que prolonguem a licença-maternidade de 120 para 180 dias e a licença-paternidade de cinco para 20 dias.6 6 Há um espaço muito grande para o aprimoramento das políticas de licença parental no Brasil, haja vista os programas vigentes nos países escandinavos. Na Suécia, por exemplo, os pais dispõem de um total de 480 dias de licença remunerada, dos quais 90 dias são reservados separadamente para cada pai (ou seja, esses 90 dias não podem ser intercambiados entre o casal e, caso não usufruídos, são perdidos). Os restantes 300 dias podem ser divididos entre o casal da forma como acharem melhor, mas, caso compartilhados igualmente, dão direito a um bônus. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença parental ao mesmo tempo por no máximo 30 dias. Além disso, é preciso estender e aprimorar as ações afirmativas para acelerar a participação feminina em nichos masculinos, a exemplo da Lei das Eleições, que estabelece que no mínimo 30% das candidaturas de cada partido ou coligação devem ser preenchidas por mulheres. Outro exemplo são as cotas femininas nos conselhos de administração de empresas de capital aberto, que vigoram em alguns países europeus (Noruega, França, Bélgica, Holanda, Itália, entre outros), onde variam entre 33% e 40%.

Por fim, tais medidas precisam ser acompanhadas por uma mudança das crenças de gênero presentes na sociedade que colocam a mulher como a principal e, em muitos casos, a única responsável pelos afazeres domésticos e pelos cuidados de crianças e/ou outros parentes. A superação dos estereótipos de gênero e da segregação ocupacional por sexo no mercado de trabalho brasileiro passa primeiro pela superação da divisão sexual do trabalho que acontece dentro de casa e que limita as escolhas profissionais da mulher e o seu desenvolvimento no mercado no trabalho.

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  • WOOLDRIDGE, J. Introdução à econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
  • 1
    O DataZoom é uma plataforma que oferece acesso gratuito aos dicionários e pacotes de leitura dos microdados das pesquisas domiciliares e censos do IBGE. Disponível em: http://www.econ.puc-rio.br/datazoom/index.html.
  • 2
    As demais hipóteses apontadas por Wooldridge (2008) são: cada variável explanatória muda ao longo do tempo (ao menos para algum i); não há relações lineares perfeitas entre as variáveis explanatórias; e condicionais a todas as variáveis explanatórias e a a i , os erros são homocedásticos, serialmente não correlacionados (ao longo de t) e normalmente distribuídos com média zero.
  • 3
    De acordo com a literatura, as mulheres que recebem baixos salários podem reduzir as horas de trabalho ofertadas ou até mesmo sair do mercado de trabalho - o mesmo não ocorrendo entre os homens. Desse modo, as amostras que consideram apenas mulheres ocupadas em tempo integral podem ser truncadas nos rendimentos do trabalho, de maneira que enviesam as estimativas dos coeficientes que medem o efeito das variáveis do lado da demanda, como os retornos pelo nível de experiência ou escolaridade ou as ofertas salariais de ocupações específicas (ENGLAND et al., 1988).
  • 4
    No software estatístico Stata 17, o comando para o teste de Hausman não aceita pesos. Devido a essa limitação, os testes foram conduzidos sem a ponderação da amostra pelo peso trimestral do indivíduo com pós-estratificação pela projeção de população.
  • 5
    As estimativas dos demais coeficientes do modelo foram omitidas em vista da limitação de espaço, mas podem ser obtidas mediante solicitação aos autores.
  • 6
    Há um espaço muito grande para o aprimoramento das políticas de licença parental no Brasil, haja vista os programas vigentes nos países escandinavos. Na Suécia, por exemplo, os pais dispõem de um total de 480 dias de licença remunerada, dos quais 90 dias são reservados separadamente para cada pai (ou seja, esses 90 dias não podem ser intercambiados entre o casal e, caso não usufruídos, são perdidos). Os restantes 300 dias podem ser divididos entre o casal da forma como acharem melhor, mas, caso compartilhados igualmente, dão direito a um bônus. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença parental ao mesmo tempo por no máximo 30 dias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2022
  • Aceito
    16 Jun 2022
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