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Analfabetismo da população brasileira nas análises de Giorgio Mortara sobre o censo de 1940

Illiteracy of the Brazilian population in Giorgio Mortara’s analyses of the 1940 census

Analfabetismo de la población brasileña en los análisis de Giorgio Mortara sobre el censo de 1940

Resumo

Este artigo apresenta análises de Giorgio Mortara sobre as informações do recenseamento populacional brasileiro realizado em 1940 referentes especificamente ao analfabetismo no Distrito Federal (Rio de Janeiro) e no município de São Paulo. Mortara nasceu na Itália, onde se formou e se estabeleceu como reconhecido estatístico, e, em 1939, mudou-se para o Brasil, tendo colaborado decisivamente na constituição do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e na produção demográfica brasileira. Vários de seus estudos dedicam-se à análise dos resultados dos levantamentos censitários brasileiros e são amplamente citados e conhecidos no país. No presente artigo, contudo, o foco são algumas análises elaboradas pelo autor sobre o analfabetismo, publicadas em 1945 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que são pouco citadas na literatura sobre o tema. Nesses estudos, o autor identifica aspectos e tendências que ainda não compunham o repertório analítico no período. São os casos da observação do alfabetismo mais acentuado nas gerações mais jovens, da tendência de menor índice de analfabetismo entre as meninas e das diferenças de índice em relação à categoria cor.

Palavras-chave:
Analfabetismo; História da demografia; Censo demográfico

Abstract

This article presents analyses by Giorgio Mortara on the information from the Brazilian population census carried out in 1940 referring specifically to illiteracy in the Federal District (Rio de Janeiro) and in the municipality of São Paulo. Mortara was born in Italy, where he graduated and established himself as a recognized statistician, and in 1939 moved to Brazil, where he significantly contributed to the constitution of the IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics) and to Brazilian demographic studies. Several of his studies are devoted to the analysis of results of the Brazilian census surveys and are widely cited and well known in the country. This article, however, focuses on some analyses elaborated by the author regarding illiteracy, which were published in the Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos in 1945 and are rarely mentioned in the literature on the subject. In these studies, the author identifies aspects and trends that had not yet become part of the analytical repertoire in the period. This is the case of the observation of more pronounced literacy in younger generations, the lower illiteracy rate trend among girls and the index differences regarding the color category.

Keywords:
Illiteracy; Demographic history; Demographic census

Resumen

Este artículo presenta el análisis de Giorgio Mortara sobre las informaciones del censo poblacional brasileño de 1940 referentes específicamente al analfabetismo en el distrito federal de Rio de Janeiro y en el municipio de São Paulo. Mortara nació en Italia, donde se formó y se estableció como reconocido estadístico, y en 1939 se mudó a Brasil, para colaborar decisivamente en la constitución del Instituto Brasileño de Geografía e Estadística (IBGE) y en la producción demográfica brasileña. Varios de sus estudios se dedican al análisis de los resultados de los censos brasileños y son ampliamente citados y conocidos en el país. En el presente artículo, sin embargo, el foco se pone en algunos análisis del autor que se refieren al analfabetismo, que fueron publicados en la Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos en 1945 y de los que se encuentra poca referencia en la literatura sobre el tema. En estos estudios, el autor identifica aspectos y tendencias que aún no componían el repertorio analítico en el período, como la observación del alfabetismo más acentuado en las generaciones más jóvenes, de la tendencia de menor índice de analfabetismo entre las niñas y de las diferencias de índice en relación a la categoría color.

Palabras clave:
Analfabetismo; Historia de la demografía; Censo demográfico

Introdução

Este artigo apresenta análises de Giorgio Mortara sobre as informações censitárias referentes ao analfabetismo no Brasil. Nascido na Itália, onde se formou e se estabeleceu como reconhecido estatístico, Mortara mudou-se para o Brasil em 1939, tendo colaborado decisivamente na constituição do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e na produção demográfica brasileira. Vários de seus estudos - nas décadas de 1940 e 1950 - dedicam-se à análise dos resultados dos levantamentos censitários brasileiros e são amplamente citados e conhecidos no país.

Aqui, o que se propõe é considerar algumas análises pouco referidas que foram elaboradas pelo autor em torno das informações sobre o nível de instrução da população em 1940. Trata-se de dois artigos publicados em 1945 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (periódico editado pelo Inep,1 1 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. órgão vinculado ao Ministério da Educação e responsável pelo desenvolvimento de pesquisas qualitativas e quantitativas sobre educação), em que figura o exame dos resultados do censo sobre a situação da alfabetização em duas capitais distintas. O primeiro aborda os dados do Distrito Federal2 2 Trata-se da cidade do Rio de Janeiro, que foi capital do país entre 1763 e 1960. e, o segundo, a situação do município de São Paulo, ou seja, dois dentre os mais importantes núcleos populacionais no período.

O autor destaca, em suas considerações, a posição proeminente dessas localidades quanto à questão aqui em foco, visto que a taxa de alfabetismo na população de seis anos e mais correspondia a 81,67% no Distrito Federal e 79% em São Paulo (o índice nacional divulgado era de 43,3% para a população de dez anos e mais). Cabe sublinhar que várias análises discutidas nesses dois artigos são inéditas naquele momento e muito relevantes, tais como a observação do alfabetismo mais acentuado nas gerações mais jovens, a tendência de menor índice de analfabetismo entre as meninas e as diferenças de índice em relação à categoria cor.

A trajetória profissional de Giorgio Mortara

Giorgio Mortara nasceu em Mântua, na Itália, em abril de 1885.3 3 As informações biográficas foram obtidas no texto de Marco Aurélio Martins Santos, que integra o volume Giorgio Mortara: ampliando os horizontes da demografia brasileira (n. 9 da série Documentos para disseminação. Memória institucional), publicado pelo IBGE em 2007. Para aprofundamento, ver também Berquó e Bercovich (1985) e Gil e Prévost (2012). Formou-se em Direito, em 1905, pela Universidade de Nápoles, onde desenvolveu interesse por economia política e social. Em 1907, fez pós-graduação em demografia internacional na Universidade de Berlim, realizando estudos acerca da mortalidade segundo a idade e a duração da vida economicamente ativa. No retorno à Itália, frequentou um curso de aperfeiçoamento em demografia na Universidade de Roma, onde obteve livre-docência em Estatística. Em 1909, tornou-se professor na Faculdade de Direito de Messina. No ano seguinte, Mortara e Alberto Beneduce assumiram a direção do Giornale degli Economisti, ao qual acrescentaram o título de Rivista di Statistica e que obteve, nesse período, grande prestígio na comunidade científica internacional. Em 1914-1915, Giorgio Mortara ocupou a cátedra de estatística no Instituto Superior de Ciências Econômicas e Comerciais de Roma. Em 1924, foi convidado a assumir a cátedra de Estatística da Faculdade de Direito, na recém-instalada Universidade de Milão, onde também lecionou economia política. No mesmo período, dirigiu o Instituto de Estatística da Universidade Bocconi.

Em 1938, sua vigorosa carreira acadêmica sofreu um abalo quando entrou em vigor na Itália a Lei Racial, que obrigava o afastamento dos docentes de origem judaica. Mortara teve, então, que se retirar do magistério e da editoria do Giornale, ficando sem emprego e apreensivo quanto à segurança de sua família. Como já era, na ocasião, um estatístico de notoriedade internacional, o conhecimento de sua situação chegou aos estatísticos brasileiros que, no mesmo período, estavam empenhados na criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e na consolidação da demografia brasileira, notadamente envolvidos na preparação do recenseamento da população. Assim, em 1939, por iniciativa desses estatísticos, especialmente Macedo Soares, Teixeira de Freitas e Carneiro Felippe, Giorgio Mortara foi convidado pelo governo brasileiro a trabalhar no IBGE, tendo imigrado naquele mesmo ano para o Brasil com sua família. Inicialmente assumiu a função de consultor técnico da Comissão Censitária Nacional, mas logo passou a ocupar, a convite de Teixeira de Freitas, a chefia do Gabinete Técnico do Serviço Nacional do Recenseamento.

Em 1948, encerrado o trabalho de apuração, seguiu-se a extinção do Serviço Nacional do Recenseamento, sendo que Mortara passou para assessor técnico do Conselho Nacional de Estatística. No mesmo período, ele recebeu, ainda, a atribuição de criar o Laboratório de Estatística. Entre os muitos estudos que aí o autor desenvolveu destacam-se: “Pesquisas sobre os diversos grupos de cor nas populações do Estado de São Paulo e do Distrito Federal” (1951); “Contribuições para o estudo da demografia do Sul” (1957); “Pesquisas sobre a mortalidade no Brasil” (1958); e “Contribuições para o estudo da demografia do Brasil” (1961). Mas é preciso citar, ainda, a relevância de sua atuação na formação de profissionais enquanto esteve no Laboratório. Não havia ainda no país curso específico para a formação de estatísticos e demógrafos. Uma das atribuições designadas ao Laboratório era, efetivamente, a capacitação em serviços desses profissionais. Na Resolução que o cria, consta que “[...] o Laboratório poderá funcionar, por meio de estágios remunerados, como escola prática de estatística” (apudSENRA, 2007SENRA, N. de C. Na questão da formação do estatístico, algumas atuações de Giorgio Mortara. In: IBGE. Giorgio Mortara: ampliando os horizontes da demografia brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. p. 23-27., p. 24).

Com o término da Segunda Guerra Mundial, Giorgio Mortara foi reconduzido à sua cátedra na Universidade de Roma, mas preferiu ficar no Brasil dando continuidade às atividades que desenvolvia no IBGE. Apenas em 1956, tendo sido reiterado o convite para retornar ao seu país natal, ele reassumiu suas atribuições naquela Universidade, onde ficou até 1960 quando, aos 75 anos, teve que se aposentar compulsoriamente em função da idade. Giorgio Mortara faleceu no Rio de Janeiro, em março de 1967.

Analfabetismo nos censos populacionais brasileiros

A aferição do alfabetismo/analfabetismo da população brasileira esteve presente desde o primeiro censo populacional realizado no país em 1872. Naquela ocasião, considerando-se a população livre e a escravizada de cinco anos e mais, registrou-se um índice de analfabetismo de 82,30%. Assumindo-se apenas a população livre, esse índice era de 77,49%, sendo 70,50% entre os homens e 84,37% entre as mulheres (SENRA, 2006SENRA, N. História das estatísticas brasileiras: estatísticas desejadas (1822-1889). Rio de Janeiro: IBGE, 2006. v. 1).

Ampliar a quantidade de pessoas que soubessem ler e escrever estava entre as preocupações das elites brasileiras desde o início do século XIX. Os debates sobre o tema ressaltavam que o conhecimento elementar de leitura e escrita era essencial no processo de civilização do povo brasileiro, buscando seguir os moldes estabelecidos pelos países europeus. Além disso, após a independência política, efetivada em 1822, as elites se atribuíram a tarefa de formar uma nova nação e, nesse sentido, a escola elementar foi considerada instituição estratégica no fomento ao sentimento de nacionalidade em toda a população (FARIA FILHO, 2003FARIA FILHO, L. M. de. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 135-150.). Diante disso, o propósito de ensinar as primeiras letras aos brasileiros livres, de ambos os sexos e independentemente da cor ou classe social, ganhou atenção entre os debates travados na esfera pública, notadamente nos jornais e no Parlamento. No entanto, as ações com vistas à efetivação desses anseios foram parcas e dispersas, de modo que em termos quantitativos pouco se avançou naquele século. Nas primeiras décadas da República, o debate ganhou novo fôlego, com a expectativa de que a escola contribuísse para a formação dos cidadãos e a consolidação dos ideais republicanos. Além disso, desde a reforma eleitoral de 1882, os analfabetos estavam impedidos de votar e, portanto, expandir a alfabetização da população constituía também exigência para o fortalecimento da democracia.

O índice de alfabetização da população pouco avançou nos recenseamentos seguintes. Em 1920, a taxa de pessoas não alfabetizadas na população de cinco anos e mais era de 71,20%, o que correspondia a um total de 18.549.085 indivíduos. Em 1940, data do primeiro censo organizado pelo IBGE e passada uma década desde o início do Governo Vargas, as expectativas eram de que os esforços de expansão da escolarização primária empreendidos no período tivessem dado algum resultado em termos de diminuição do analfabetismo. Esse governo, que teve início em 1930, envidou significativos esforços para a organização do aparato de administração do ensino público4 4 Apenas para indicar duas das mais expressivas iniciativas do período, em 1931 foi criado o Ministério da Educação e, em 1937, o Inep. e tornou possível a criação de escolas e ampliação de vagas no ensino primário, representando efetiva - mas ainda muito insuficiente - expansão da escolarização. Também a produção de estatísticas do ensino tinha avançado muito em rigor e regularidade nesse período, fornecendo números que permitiam um melhor planejamento das ações de governo e favorecendo a identificação de lacunas e problemas.

Teixeira de Freitas estimava que o trabalho de alfabetização realizado pela escola vinha dando bons resultados, embora ainda aquém do desejável. Analisando números dos censos populacionais (1872, 1890, 1900 e 1920) acrescidos das estatísticas do ensino de 1932, o autor afirmava que “claramente se vê o avanço conseguido pela Nação em pouco mais de meio século - precisamente 60 anos - no que respeita à alfabetização da infância” (FREITAS, 1937FREITAS, M. A. T. de. O que dizem os números sôbre o ensino primário. São Paulo: Melhoramentos, 1937., p. 143). A taxa de alfabetização seguia uma tendência ascensional, de modo que, segundo ele, os números davam uma confortadora certeza:

O analfabetismo brasileiro não é mais aquele espantalho que aterrava a consciência nacional. Por causa dêle não nos veremos mais na humilhante situação de caudatários nas estatísticas internacionais, com 80% de iletrados, ao lado de povos bárbaros, e em listas encabeçadas por taxas de menos de 1% para os povos mais cultos (FREITAS, 1937FREITAS, M. A. T. de. O que dizem os números sôbre o ensino primário. São Paulo: Melhoramentos, 1937., p. 144).

Divulgados os resultados do censo de 1940, contudo, a população não alfabetizada de cinco anos e mais era de 61,20% e, no grupo de dez anos e mais, o índice correspondia a 56,70%.

Tais avanços, entretanto, caminharam paralelamente à ampliação das desigualdades regionais. Como destaca Alceu Ferraro (2009FERRARO, A. R. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009.), em análise detalhada sobre a questão ao longo de mais de um século, no censo de 1872 a taxa de analfabetismo era alta no Brasil (82,30%), mas havia pouca diferença entre as províncias. Ocorre que a cada novo censo o índice se apresentava mais baixo que o anterior, ao mesmo tempo que se ampliava significativamente a diferença entre os percentuais das unidades federadas. Em 2000, a taxa de analfabetismo no Brasil era de 12,80%, tendo nos extremos o Distrito Federal (Brasília) e Santa Catarina, com 5,2% e 5,7% respectivamente, e o Ceará e a Paraíba, com 24,7% e 27,6%. As desigualdades regionais foram amplamente observadas e analisadas nos estudos estatísticos realizados por órgãos oficiais desde a primeira metade do século XX. Outros aspectos, no entanto, referentes ao avanço desigual desses índices levando em conta variados marcadores de diferença apenas começaram a fazer parte do debate e passaram a ser objeto de estudos estatísticos mais detalhados na segunda metade do século XX e, principalmente, a partir da década de 1990. Nesse sentido, é importante notar que algumas dessas tendências já apareciam nas análises realizadas por Giorgio Mortara acerca do censo de 1940.

Analfabetismo e escolarização em duas capitais brasileiras

Giorgio Mortara publicou sistematicamente seus estudos na Revista Brasileira de Estatística, editada pelo IBGE, os quais versavam sobre a gama variada de temas demográficos pelos quais o autor se interessava. Contudo, suas análises sobre os dados censitários brasileiros acerca do analfabetismo e da frequência à escola foram publicadas, como já mencionado, em dois artigos de sua autoria na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, editada pelo Inep.

A partir da divulgação dos resultados do recenseamento de 1940, foi publicada uma série de 11 artigos, entre 1945 e 1948, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em que figuram análises sobre a situação da alfabetização nos municípios e estados brasileiros. É possível supor que a série tenha sido toda coordenada por Mortara. No entanto, esse autor assina apenas os dois primeiros estudos. Em um deles, foram examinados os números do Distrito Federal (Rio de Janeiro) e, em outro, a situação do município de São Paulo.

O alfabetismo nessas duas capitais se destacava, primeiramente, por ser sensivelmente alto para o período.5 5 O censo de 1940 indicava no Brasil uma taxa de alfabetização de 38,8% na população de cinco anos ou mais e de 43,3% na população de dez anos ou mais. O Distrito Federal apresentava índice de 78,87% de alfabetização6 6 Mortara não coloca em questão a conceituação do analfabetismo, aspecto controverso cuja discussão vai se impor na segunda metade do século XX. A esse respeito ver, por exemplo, Rosemberg e Piza (1995-1996). na população de seis anos e mais e o município de São Paulo registrava 81,67%. O autor menciona que “em comparação com as demais unidades, o Distrito Federal ocupa uma posição de destaque, no que diz respeito à alfabetização” (MORTARA, 1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 44), sem, contudo, deter-se na explicitação das razões de tão acentuada diferença. Assim, pode-se aventar que fosse esperado pela experiência empírica, naquele momento, encontrar uma significativa proeminência dessas capitais no que se refere à capacidade de leitura e escrita de seus habitantes.

Do ponto de vista da análise demográfica, o autor explicita algumas ponderações. Para aferir o movimento de alfabetização ao longo dos censos populacionais realizados no país - 1872, 1890, 1900, 1920 - Mortara afirma tomar a população de sete anos e mais,7 7 Apesar dessa menção, observa-se uma considerável variação das idades assumidas nas análises apresentadas nos dois artigos. que havia sido o critério assumido em 1920 e ao qual se podiam reduzir os dados dos demais censos. Ele menciona que as pequenas divergências de critério entre os censos não haveriam de influir sensivelmente na comparação: no Distrito Federal a cota de alfabetização somava 43,6% em 1872, 60,19% em 1890, 60,84% em 1906,8 8 Em 1906 foi realizado um recenseamento apenas na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. 72,38% em 1920 e 80,27% em 1940. O contraste dos números revela, na opinião do autor, que

[...] é possível que os resultados do censo de 1890 sejam otimistas, visto que a cota de alfabetização então verificada excede fortemente à do censo precedente, quase atingindo a que foi depois encontrada no censo seguinte. Não é verossímil que a 18 anos de rápido progresso de alfabetização se sigam 16 anos de estagnação, como constaria dos censos. De outro lado, não há razão para supor fortemente errada por defeito a cota de alfabetização de 1906, embora não se possa excluir um pequeno erro neste sentido (MORTARA,1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 46).

Essa consideração põe em relevo a questão sempre debatida da confiabilidade dos dados censitários, preocupação que não deixava de estar presente nas análises do autor.9 9 Os trabalhos censitários de 1900 sofreram fortes críticas que apontavam graves imperfeições. Assim, em 1906, decidiu--se refazer o levantamento acerca do Distrito Federal. Alceu Ferraro, por exemplo, desconsidera aqueles dados em seus estudos sobre o analfabetismo por concordar que “foi o inquérito de 1900 o mais imperfeito pela deficiência dos dados censitários em muitas localidades e até mesmo por completa omissão de vários distritos e não menor número de municípios” (Recenseamento Geral do Brasil, 1920 apud FERRARO, 2009, p. 89).

É interessante observar, nas ponderações que Mortara faz, sua preocupação em compreender a origem e a significação dos números coligidos, em lugar de apenas contrastar os valores, o que também se aplica ao caso de São Paulo, em que a dificuldade era a comparação diacrônica, uma vez que os limites territoriais e as características demográficas desse município não correspondiam em 1940 ao que eram em 1872. O autor ponderava, assim, que “o crescimento da Capital de São Paulo nos últimos decênios foi tão rápido que tem escassa significação toda comparação entre o nível da cultura da grande cidade hodierna, de importância mundial, e o da modesta cidade provincial de há 50 ou 60 anos” (MORTARA, 1945bMORTARA, G. Alfabetização e instrução no município de São Paulo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 17, p. 243-256, nov. 1945b., p. 246). Feita a ressalva, ele afirmava que os resultados de 1872 têm algum interesse “justamente porque revelam como estava ainda atrasada no caminho da instrução, naquela época relativamente próxima, a cidade que hoje está em primeira linha entre os centros intelectuais do Brasil” (MORTARA, 1945b, p. 246). Assumindo um critério aproximativo que corresponderia às fronteiras do município em 1940, o autor informa que apenas 31,32% dos habitantes de sete anos e mais sabiam ler e escrever em 1872. Mortara ressalta que nesse cálculo estão incluídos os escravizados, sendo que em São Paulo, naquela ocasião, nenhum sabia ler e escrever.

Na comparação entre o Distrito Federal e o município de São Paulo, o que primeiro se menciona é a diferença do alfabetismo masculino e feminino. No Distrito Federal, para uma alfabetização de 79% (na população de seis anos e mais), contavam-se 83,19% entre os homens e 74,61% entre as mulheres. Em São Paulo, a situação era semelhante: 81,67% no total, sendo 86,97% entre os homens e 76,52% entre as mulheres. A partir dessa apreciação geral, Mortara se põe a detalhar esse aspecto pelo desdobramento dos números, por idade, cor e região de moradia. Cabe aqui enfatizar a novidade que representava a análise do analfabetismo do modo como a propõe Mortara. Embora a alfabetização da população discriminada por sexo e idade tenha sido coligida em todos os censos precedentes - como também em todos os que se seguiram até a presente data -, esses números não tinham sido até ali objeto de análises detidas, para além do confronto simples que permite mostrar avanços e retrocessos no índice global. Mortara, ao contrário, vai empreender, com as informações específicas desses dois municípios, um exame mais minucioso que traz à tona elementos importantes da situação cultural da população brasileira. Na ocasião, a observação da diferença entre homens e mulheres permitiu ver tendências até então não referidas. A primeira evidência diz respeito à constante inferioridade feminina nessa comparação. Mas o que desponta nas análises de Mortara como digno de maior interesse é a tendência para equalização desses valores.

O autor verifica que, embora o índice global de alfabetização feminina seja inferior ao da masculina, desagregadas as idades, o quadro adquiria novas feições. Para o Distrito Federal, nas idades de 6 a 9 anos, a cota masculina (47,89%) era um pouco inferior à feminina (49,35%), enquanto nas idades de 10 a 14 anos era apenas levemente superior (85,55% e 84,94%, respectivamente). Se observados os números absolutos, entre 6 e 19 anos há sempre mais mulheres do que homens alfabetizados. Diante disso, Mortara (1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 45, grifo nosso) afirma que

[...] esta marcha comparativa das cotas referentes aos dois sexos atesta que a inferioridade da alfabetização da mulher, característica das velhas gerações, tende a desaparecer nas gerações moças. Esta tendência, aliás, fôra encontrada e salientada na demais populações anteriormente estudadas.

Anos depois, em publicação da Unesco (1953) dedicada à análise da alfabetização em diversos países do mundo, encontra-se semelhante conclusão a partir da constatação de que, no grupo de 10 a 19 anos, havia 57,3% de analfabetismo masculino e 57,4% de feminino no Brasil. Alceu Ferraro (2009FERRARO, A. R. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009., p. 158) menciona que “tais dados foram interpretados como apontando para uma tendência à paridade ou igualdade entre homens e mulheres quanto à alfabetização”. Diversos estudos realizados ao longo da segunda metade do século XX confirmam essa tendência e indicam uma inversão das posições. Segundo Fúlvia Rosemberg e Edith Piza (1995-1996, p. 115), “a tendência que vem se delineando, de forma pronunciada nos últimos tempos, é a equalização dos índices de alfabetização masculinos e femininos na população jovem, ocorrendo, em certos grupos etários, a superação dos índices das mulheres”.10 10 Para além de uma maior alfabetização entre as mulheres, observa-se uma maior e mais prolongada frequência à escola desse grupo populacional, o que tem instigado e reclamado novas investigações. Ver, por exemplo, a esse respeito, os estudos sociológicos de Marília Carvalho (2001; 2004a; 2004b), pioneiros no Brasil, que discutem as razões do recorrente fracasso escolar dos meninos.

O que se destaca nessas análises é a evidência de que a melhoria do nível de alfabetização das mulheres deveu-se à crescente escolarização das populações jovens. Também no caso de São Paulo, Mortara percebe que, desagregados os dados por idade, encontram-se níveis elevados de alfabetização nas gerações femininas mais novas, seguidos de queda acentuada conforme a progressão das idades (Tabela 1).

TABELA 1
Distribuição dos que sabem ler e escrever, de 6 anos e mais, por sexo e grupos de idade, e sua proporção sobre 100 presentes e cada grupo de sexo e idade no Município de São Paulo em 1940

O autor observa que até 14 anos a alfabetização é bastante semelhante entre os sexos, encontrando-se a cota mais elevada de alfabetização na faixa de 15 a 19 anos para os homens e entre 10 e 14 anos para as mulheres. Nota-se, portanto, uma alfabetização sensivelmente maior na idade escolar, o que também acontece no Distrito Federal. Embora esse aspecto seja percebido em ambas as capitais, os percentuais de alfabetização da população jovem são mais expressivos em São Paulo. Nesse ponto, para além de apresentar os números, o autor tece considerações explicativas das razões que permitem compreender essas diferenças. Segundo ele,

[...] o maior crescimento migratório da metrópole paulista é o fator principal desse contraste; afluem a essa cidade, em maior número do que à Capital Federal, adultos analfabetos; enquanto as gerações novas, nascidas ou pelo menos criadas, na maior parte, na própria cidade, aproveitam as vantagens da instrução bem organizada. (MORTARA, 1945bMORTARA, G. Alfabetização e instrução no município de São Paulo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 17, p. 243-256, nov. 1945b., p. 245)

Outro aspecto inovador na análise feita por Mortara a partir dos números de alfabetização de 1940 é a consideração do critério de cor. Desde 1940 esse aspecto vem sendo coletado nos censos populacionais, baseando-se na autoclassificação dos indivíduos. Embora venha sendo constantemente alvo de críticas (CARVALHO; WOOD; ANDRADE, 2003CARVALHO, J. A. M. de; WOOD, C. H.; ANDRADE, F. C. D. Notas acerca das categorias de cor dos censos e sobre a classificação subjetiva de cor no Brasil: 1980/90. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 20, n. 1, p. 29-42, jan./jun. 2003.), o levantamento continuado desse aspecto tem permitido pensar questões de identidade e composição étnica da população brasileira, explicitando desigualdades raciais persistentes. Naquela ocasião, eram apresentadas quatro possibilidades de classificação: branco, preto, amarelo e outros. Mortara explica, nos artigos aqui examinados, que a categoria “outros” compreendia as gradações intermediárias entre branco e preto e, assim, abarcava a população mestiça e parda.

Observando esses números, o autor verifica o índice de alfabetização sempre mais baixo entre os pretos. Assim, na população da capital do país, enquanto se tinha 87,84% de alfabetização entre os brancos, esse percentual caía para 53,64% entre os pretos. Mortara aponta dois elementos explicativos desse quadro. Em primeiro lugar, ele afirma que

Quem queira estudar as causas desta situação - totalmente dependente de circunstâncias de caráter social - não deve esquecer que uma notável fração dos analfabetos é constituída por pessoas não naturais do Distrito Federal (e, em particular, por empregadas domésticas), que não puderam aproveitar a boa organização da educação primária na capital. (MORTARA, 1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 52)

O autor ressalta, em seguida, que “outra circunstância que se deve ter presente é o estado de absoluta ignorância em que eram mantidos dos escravos” (MORTARA, 1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 52). A esse propósito, lembra que no censo de 1872, dos 45.040 escravos existentes no Município Neutro,11 11 Trata-se da designação dada ao Rio de Janeiro, entre 1835 e 1889. apenas 329 eram alfabetizados. Mortara destaca a consequência negativa na difusão da alfabetização advinda do fato de os pretos terem pais e avós analfabetos e, por fim, menciona que “a grande pobreza da maioria dos pretos, com as conseqüentes condições de habitação e necessidade de prematuro trabalho das crianças, afasta muitas destas da escola primária” (MORTARA, 1945a, p. 52).

É notável que as interpretações construídas por Mortara para explicar o maior percentual de analfabetismo entre os pretos evoquem decisivamente a situação de pobreza e a história de exclusão cultural dos escravizados e seus descendentes e não se aproximem de formulações deterministas da superioridade e inferioridade das raças, em circulação nos discursos intelectual e científico desde o século XIX (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.) e ainda muito recorrentes nos debates das elites intelectuais brasileiras no período. Com efeito, em análise dos dados do censo de 1991, Rosemberg e Piza (1995-1996, p. 116) enfatizam a forte vinculação entre pobreza e analfabetismo no Brasil, afirmando que, “para todas as faixas etárias, os índices de analfabetismo são piores nas regiões que concentram um maior número de pobres”. As autoras sustentam, pela análise dos números de 1991, que

[...] não é a região fisiográfica ou a localização urbana ou rural que determinariam, em si, os diferenciais nos índices de analfabetismo, mas a maior ou menor concentração de pobres nesses locais; o que vale dizer a maior ou menor concentração de renda em tais espaços geográficos. É por isso que os índices de analfabetismo variam entre os segmentos raciais e não variam mais entre os sexos, a não ser para uma pequena parcela da população feminina mais idosa. (ROSEMBERG; PIZA, 1995-1996, p. 116)

Em análise dos dados de 1940 no Distrito Federal, Mortara localiza diferenças acentuadas nos valores de alfabetização em função do local de residência - urbana, suburbana ou rural. Ao contrário das interpretações mencionadas anteriormente quanto à década de 1990, Mortara não vai se dedicar a explicar as razões dessa diferença. De qualquer modo, é essa sua análise que permite deslocar o foco da diferença de alfabetização em função da cor para pensar as condições objetivas de vida, já que o autor encontra um menor índice de alfabetização para todos os grupos de cor na região ocidental, onde predomina o caráter suburbano e rural. Consegue assim mobilizar uma variável que permite, ainda que vagamente, supor a centralidade do pertencimento socioeconômico na compreensão do analfabetismo.

Os dados relativos à cor permitem observar o sentido constante das diferenças, em São Paulo e no Distrito Federal. Em todos os grupos de idade e em todas as regiões examinadas, a alfabetização dos brancos é superior à dos pretos. Além disso, em cada grupo de cor, a alfabetização das mulheres é inferior à dos homens, mas essa diferença é mais acentuada entre os pretos. A Tabela 2 mostra esses dados para o município de São Paulo.

Da observação desses números, o autor conclui que “a inferioridade da alfabetização feminina é sensível em todos os grupos, sendo, entretanto, mais acentuada nos pretos e pardos do que nos brancos e amarelos” (MORTARA, 1945bMORTARA, G. Alfabetização e instrução no município de São Paulo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 17, p. 243-256, nov. 1945b., p. 249). Semelhante evidência já tinha sido apontada na análise sobre o Distrito Federal.

TABELA 2
Distribuição dos alfabetizados na população de 10 anos e mais por cor, segundo sexo no Município de São Paulo em 1940

Um último elemento mobilizado pelo autor nos artigos aqui em consideração diz respeito à informação censitária sobre a frequência escolar. Era a primeira vez que um levantamento populacional incluía perguntas acerca desse tema. Nesse caso, um primeiro aspecto está na inconsistência entre os dados do censo e as estatísticas escolares. Isso não constitui propriamente novidade, visto que informações quantitativas sobre um mesmo tema coligidas por órgãos diferentes sempre estiveram em desacordo. O autor também não dá muito destaque ao caso, restringindo-se a mencionar que os dados estatísticos de matrícula geral no ensino primário pareciam muito elevados, totalizando 234.261, se comparados com os dados censitários que, incluindo os indivíduos que estavam no ensino secundário e aqueles que recebiam instrução no lar, apontavam uma frequência escolar de 237.370 na população de 6 a 15 anos.

Para a história da educação importa reter uma informação interessante e pouco referida nos estudos da área acerca das idades de maior frequência à escola.12 12 Alguns estudos, no entanto, vêm sendo conduzidos a esse respeito. São exemplos Gouveia (2004), Veiga (2005) e Gil e Hawat (2015). Tanto em São Paulo quanto no Distrito Federal, 9, 10 e 11 anos são as idades de maior afluxo à instituição escolar. A observação dessa informação por sexo indicava que, naquele período, meninos e meninas vinham sendo escolarizados em muito semelhante proporção. Por sua vez, atingido o pico em torno dos dez anos, o percentual de população recebendo instrução caía notavelmente nas idades seguintes. Assim, no caso do Distrito Federal, por exemplo, tem-se em torno de 82% de frequência nas idades de 10 e 11 anos, seguidos de 45% aos 15 anos e 16% aos 20 anos. Na população feminina essa queda é ainda mais acentuada: são 23% dos moços recebendo instrução aos 20 anos e apenas 10% das moças. Procedendo à análise por região, Mortara (1945aMORTARA, G. Alfabetização e instrução no Distrito Federal. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 16, p. 44-65, out. 1945a., p. 63, itálico no original) afirma que, de modo geral, “essas proporções, embora elevadas [nas idades de 9, 10 e 11 anos], não são completamente satisfatórias, porque mostram que até nas zonas adiantadas se manifesta sensível evasão escolar”. Uma outra constatação do autor nessa análise é que, nas zonas geográficas por ele consideradas mais adiantadas (notadamente as urbanas), as crianças começam a frequentar a escola mais cedo (aos sete anos) do que nas demais regiões (em torno dos 8 e 9 anos).

Por fim, na comparação entre as duas capitais, segundo Mortara, os números permitem falar de uma maior eficiência da escola de São Paulo, embora a frequência fosse ali um pouco menor. Segundo ele, o progresso de alfabetização foi bastante acentuado na faixa dos 7 aos 14 anos, passando de 65,73% em 1920 para 82,33% em 1940. As razões apontadas pelo autor recaem na “aumentada eficiência da instrução primária” nesse município. Nesse mesmo sentido, como a cota de alfabetização entre os que estão recebendo instrução é maior em São Paulo do que no Distrito Federal, Mortara (1945b, p. 253) indica que “as diferenças entre as duas Capitais confirmam a impressão da maior eficiência, ou pelo menos do melhor rendimento, da organização da instrução primária na Capital de São Paulo”. Outra evidência do melhor rendimento da escola em São Paulo, segundo o autor, vem do fato de que a cota de alfabetização só é menor naquele município, se comparada à do Distrito Federal, nas idades de 6 a 9 anos. Na sua interpretação, isso indicava que “inicia-se a instrução um pouco mais tarde, em média, em São Paulo; mas o resultado médio é melhor” (MORTARA, 1945bMORTARA, G. Alfabetização e instrução no município de São Paulo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. VI, n. 17, p. 243-256, nov. 1945b., p. 254). Feito esse exercício comparativo, contudo, Mortara (1945b, p. 156) alertava:

A proporção de 61,81% [de crianças de 6 a 15 anos recebendo instrução] é inferior à verificada na Capital Federal, que é de 67,33%, e ambas estão ainda muito longe do nível, próximo de 100%, a que se deverá chegar com o progresso da instrução; entretanto a situação de 1940 mostra uma grande melhoria em comparação com o passado.

Encerra assim sua análise, afirmando em tom otimista e confiante que havia um progresso linear em curso, sem, contudo, estimar os prazos necessários para que se chegasse aos 100% de escolarização - como anteriormente haviam feito Rui Barbosa (1947BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. v. X, tomos I.), nos Pareceres de 1882, e Teixeira de Freitas (1937FREITAS, M. A. T. de. O que dizem os números sôbre o ensino primário. São Paulo: Melhoramentos, 1937.).13 13 Um exame detido dessas estimativas encontra-se em Gil (2019). O autor não chega nem mesmo a discutir os ritmos desse progresso que, na sua avaliação da comparação entre 1872 ou 1920 e 1940, são reputados bons. Talvez fossem percebidos como bons diante da baixa expectativa que se tinha naquele momento de, efetivamente, inserir toda a população na escola. Ademais, provavelmente, a discussão dessas questões extrapolava aquilo que um demógrafo considerava sua tarefa diante dos números.

Considerações finais

A análise histórica dos estudos estatísticos e demográficos permite tanto conhecer o modo pelo qual a pesquisa científica avançou ao longo do tempo quanto observar o início de tendências demográficas. Nesse sentido, o presente artigo buscou descrever o estudo feito por Giorgio Mortara com números referentes ao analfabetismo no Distrito Federal (Rio de Janeiro) e no município de São Paulo, coligidos no recenseamento populacional brasileiro de 1940. Mortara foi um importante estatístico italiano que se radicou no Brasil e contribuiu expressivamente na organização da demografia brasileira. Realizou estudos detalhados sobre os resultados dos censos e colaborou no aperfeiçoamento técnico e conceitual dos trabalhos produzidos entre os anos 1940 e 1950.

Nesse artigo, a intenção foi enfatizar análises sobre o analfabetismo publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em 1945, e que ainda são pouco conhecidas. O exame da documentação histórica permitiu observar o pioneirismo de Giorgio Mortara nesse sentido, em especial no que se refere à percepção de que o analfabetismo tendia à redução no Brasil pela ampliação do acesso à escola. Sendo assim, eram menores os índices de analfabetismo entre os mais jovens, cujo acesso à escolarização vinha se ampliando nas décadas precedentes. Também importa observar que o autor foi precursor em apontar que, no que se refere ao saber ler e escrever, a diferença entre meninos e meninas vinha sendo reduzida, enquanto se mantinham importantes as diferenças de índice em relação à categoria cor.

Referências

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  • UNESCO. L’analphabétisme dans divers pays: étude statistique préliminaire sur la base des recensements effectués depuis 1900. Paris: Unesco, 1953.
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  • 1
    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
  • 2
    Trata-se da cidade do Rio de Janeiro, que foi capital do país entre 1763 e 1960.
  • 3
    As informações biográficas foram obtidas no texto de Marco Aurélio Martins Santos, que integra o volume Giorgio Mortara: ampliando os horizontes da demografia brasileira (n. 9 da série Documentos para disseminação. Memória institucional), publicado pelo IBGE em 2007. Para aprofundamento, ver também Berquó e Bercovich (1985) e Gil e Prévost (2012).
  • 4
    Apenas para indicar duas das mais expressivas iniciativas do período, em 1931 foi criado o Ministério da Educação e, em 1937, o Inep.
  • 5
    O censo de 1940 indicava no Brasil uma taxa de alfabetização de 38,8% na população de cinco anos ou mais e de 43,3% na população de dez anos ou mais.
  • 6
    Mortara não coloca em questão a conceituação do analfabetismo, aspecto controverso cuja discussão vai se impor na segunda metade do século XX. A esse respeito ver, por exemplo, Rosemberg e Piza (1995-1996).
  • 7
    Apesar dessa menção, observa-se uma considerável variação das idades assumidas nas análises apresentadas nos dois artigos.
  • 8
    Em 1906 foi realizado um recenseamento apenas na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal.
  • 9
    Os trabalhos censitários de 1900 sofreram fortes críticas que apontavam graves imperfeições. Assim, em 1906, decidiu--se refazer o levantamento acerca do Distrito Federal. Alceu Ferraro, por exemplo, desconsidera aqueles dados em seus estudos sobre o analfabetismo por concordar que “foi o inquérito de 1900 o mais imperfeito pela deficiência dos dados censitários em muitas localidades e até mesmo por completa omissão de vários distritos e não menor número de municípios” (Recenseamento Geral do Brasil, 1920 apud FERRARO, 2009, p. 89).
  • 10
    Para além de uma maior alfabetização entre as mulheres, observa-se uma maior e mais prolongada frequência à escola desse grupo populacional, o que tem instigado e reclamado novas investigações. Ver, por exemplo, a esse respeito, os estudos sociológicos de Marília Carvalho (2001; 2004a; 2004b), pioneiros no Brasil, que discutem as razões do recorrente fracasso escolar dos meninos.
  • 11
    Trata-se da designação dada ao Rio de Janeiro, entre 1835 e 1889.
  • 12
    Alguns estudos, no entanto, vêm sendo conduzidos a esse respeito. São exemplos Gouveia (2004), Veiga (2005) e Gil e Hawat (2015).
  • 13
    Um exame detido dessas estimativas encontra-se em Gil (2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    01 Jul 2022
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