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Desigualdade de gênero e o equilíbrio entre trabalho e família

GOLDIN, Claudia. Career and family: women’s century-long journey toward equity. Princeton University Press, 2021

O livro Career and family: women’s century-long journey toward equity, lançado em 2021 pela editora Princeton University Press, trata da busca pelo equilíbrio entre trabalho e família que vem ocorrendo no último século entre as mulheres de alta escolaridade nos Estados Unidos. Claudia Goldin discute interdependências entre normas de gênero, maternidade e carreira, não apenas considerando o que ela chama de “sintomas” da desigualdade, como salários menores e poucas mulheres em altos cargos, mas também reforçando a necessidade de transformar o que causa tal desigualdade: o trabalho ganancioso, que remunera melhor as atividades que demandam mais horas e são menos flexíveis. O termo greedy work, popularizado no New York Times, é, de acordo com Goldin, a principal barreira para eliminar a diferença salarial entre homens e mulheres.

A mística feminina, livro de Betty Friedan publicado em 1963FRIEDAN, B. The feminine mystique. New York: Norton and Company, 1963., tratava do “problema sem nome”: donas de casa com alta escolaridade que se sentiam frustradas com a vida doméstica. Goldin afirma que as mulheres com elevada escolaridade hoje também têm um problema que precisa ser nomeado. Apesar de inseridas no mercado de trabalho, elas não conseguem equiparar seus salários aos dos seus colegas homens e nem são promovidas como eles.

Paga-se desproporcionalmente mais aos funcionários que trabalham por longas horas e nos finais de semana. O trabalho ganancioso é particularmente prevalente em empregos com possibilidade de estabilidade, parcerias, promoções e aumentos salariais. Como as responsabilidades de cuidar dos filhos e das tarefas domésticas ainda recaem desproporcionalmente sobre as mulheres, muitas mães trabalhadoras optam por empregos com maior flexibilidade, embora esses paguem menos, aumentando assim a diferença salarial entre homens e mulheres.

O conflito existente entre a construção da carreira e da família é central para a literatura empírica recente sobre as penalidades da maternidade, entendidas como a redução nos rendimentos que as mães vivenciam após o nascimento dos filhos. Há aumento das desigualdades entre os casais, pois, além de o homem buscar e performar o “trabalho ganancioso”, tendo maior recompensa financeira, as mulheres ganham menos. Isso não apenas gera disparidades salariais entre homens e mulheres, mas também reforça a desigualdade de um casal em termos de envolvimento com a carreira e com a família.

Quanto mais as mulheres precisam estar disponíveis para a família, menos disponibilidade elas têm para demandas profissionais. Muitas vezes, ocorre uma escolha entre um casamento entre iguais e um casamento com mais renda para o casal. Assim, o gap salarial começa após o casamento e aumenta depois do nascimento dos filhos. Segundo Goldin, o gap salarial decorre de um gap da carreira e este último determina a desigualdade que ocorre entre o casal.

Goldin é pesquisadora de história econômica e mercado de trabalho e escreve de forma leve, misturando gráficos e tabelas com exemplos de filmes e séries. Ela estuda a trajetória das mulheres de alta escolaridade, que completaram o ensino superior, no que se refere às suas possibilidades de escolhas, dividindo as coortes em cinco grupos, cujos percursos se entrelaçam.

Anteriormente, Goldin (2006GOLDIN, C. The quiet revolution that transformed women’s employment, education, and family. American Economic Review, v. 96, n. 2, p. 1-21, 2006.) já havia definido fases de evolução e revolução em relação à oferta de trabalho feminino que causaram mudanças sociais e econômicas. Nesse sentido, o livro de 2021 amplia a análise sobre o papel da mulher na economia americana e suas transformações no último século. A obra se divide em dez capítulos - Goldin inicia as discussões sobre o problema sem nome (o trabalho ganancioso), para em seguida descrever os cinco grupos definidos por ela.

Apesar de nenhuma definição de família ser perfeitamente inclusiva, no livro, ter família significa a presença de um filho. A autora usa seu próprio exemplo (casada, sem filhos, com um cachorro) para explicar que está analisando as demandas familiares exigidas pelas crianças. O livro se baseia no contexto dos Estados Unidos, mas as reflexões incitadas também são válidas para os países ocidentais que se estruturam socialmente com base na família nuclear tradicional.

A análise do livro se concentra nas mulheres que concluíram o ensino superior por terem mais chances de construir uma carreira. A carreira está relacionada à identidade pessoal e a propósitos de vida, enquanto empregos são considerados apenas atividades geradoras de renda. A partir de dados econômicos e demográficos sobre casamento, fecundidade e trabalho, a autora explica como as alterações entre os grupos são reflexos das mudanças na economia e na sociedade. Cada grupo pegou o bastão da geração anterior e correu uma distância adicional, enfrentando barreiras específicas da sua época.

Goldin descreve como a carreira e a maternidade eram inicialmente decisões mutuamente exclusivas para as mulheres americanas no início do século XX. Já para as coortes subsequentes, isso se tornou uma escolha sequencial, com carreiras precedendo ou seguindo uma fase de criação dos filhos. As coortes mais recentes de mulheres americanas aspiram ter uma família e uma carreira ao mesmo tempo, enfrentando desafios para obter apoio para cuidar dos filhos.

O grupo 1 (família ou carreira) lançou a busca pela conciliação entre trabalho e família. Nascidas entre 1878 e 1897, as mulheres que terminaram a faculdade entre 1900 e 1920 viveram restrições que tornavam impossível conciliar família e carreira. As taxas de casamento e de fecundidade para mulheres que concluíram o ensino superior eram baixas em relação às mulheres com menor escolaridade.

Normas sociais e regulações estatais (marriage bars) não permitiam que as mulheres casadas trabalhassem em algumas ocupações, como professoras e acadêmicas. A maioria das mulheres do grupo 1 não teve carreira, mesmo as que não tiveram filhos. Muitas se inseriram em empregos que permitiam alguma independência financeira na ausência do casamento.

O grupo 2 (emprego depois família) é formado pelas mulheres nascidas de 1898 a 1923, que se formaram entre 1920 e 1945, vivenciando o período da crise econômica de 1929. Esse é o grupo de transição entre as baixas taxas de casamento e de fecundidade do grupo 1 e as altas taxas do grupo 3. Goldin faz uma divisão entre as mulheres nascidas entre 1898 e 1914 (mais parecidas com o grupo 1) e as nascidas de 1915 a 1923 (mais parecidas com o grupo 3).

Na época do grupo 2, houve aumento da demanda por white-collar jobs, trabalhos em escritório que possibilitaram às mulheres empregos que não exigiam força física. Além disso, os avanços tecnológicos trouxeram o surgimento de eletrodomésticos, como a geladeira e o aspirador de pó, que reduziam o tempo gasto pelas mulheres em tarefas domésticas. Vale ressaltar que os grupos 1 e 2 tratam de mulheres brancas. As barreiras de casamento (marriage bars) não valiam para as mulheres negras no sul dos Estados Unidos, pois as escolas segregadas precisavam de professoras negras.

O grupo 3 (família depois emprego) é retratado no livro de Friedan, A mística feminina (1963FRIEDAN, B. The feminine mystique. New York: Norton and Company, 1963.). As mulheres desse grupo nasceram entre 1924 e 1943 e terminaram a faculdade entre 1946 e 1965. Casaram jovens, tiveram mais filhos do que os grupos anteriores e posteriores e foram trabalhar após os filhos estarem crescidos. São as mães do baby boom, que rejuvenesceram o padrão de fecundidade americano e planejaram suas trajetórias com foco na vida familiar. Friedan considera que o contexto vivido pelo grupo 3 foi um retrocesso para as mulheres, mas Goldin argumenta que houve avanço. Elas construíram famílias e depois tiveram a chance de trabalhar no que escolhiam, enquanto os grupos anteriores não tiveram essa oportunidade.

O grupo 4 (carreira depois família) retrata as mulheres nascidas de 1944 a 1957, que se formaram entre 1965 e 1979. Elas tiveram menos filhos, adiaram o casamento e a maternidade por conta das aspirações profissionais e do advento da pílula anticoncepcional, o que permitiu às mulheres com ensino superior investirem em carreiras que demandam mais tempo, como advocacia e medicina. Tanto no capítulo do livro quanto no artigo de 2006, Goldin intitula esse momento de revolução silenciosa.

Antes, o início da vida sexual era seguido do casamento. Agora, sem o risco de gravidez, o sexo e o casamento não estão mais associados. Ocorreram mudanças ocupacionais e nos direcionamentos de carreira, aumentando a participação de mães com filhos pequenos no mercado. Elas puderam planejar a gravidez após terem carreiras estabelecidas, o que compensava a continuidade na profissão.

Já o grupo 5 (carreira e família) usou a tecnologia reprodutiva a favor da concepção. As mulheres nascidas entre 1958 e 1978 mantêm tendência de adiamento do casamento e da fecundidade, mas priorizam o equilíbrio entre carreira e família. No grupo 3, 19% das mulheres não haviam tido filhos até os 40 anos. No grupo 4, esse percentual é de 28% e, no grupo 5, de 20%. Já os gaps salariais são menores nos grupos 4 e 5 do que nos 2 e 3.

Coletivamente, as mulheres dos cinco grupos representam uma importante evolução da história econômica e social. A leitura do livro traz reflexões sobre as nossas próprias mães, avós e bisavós que viveram um contexto tão diferente de possibilidades de escolhas, familiares e profissionais. Estudos futuros poderiam verificar se é possível delimitar grupos de coortes similares no Brasil.

É importante notar que os diferenciais apresentados no livro variam de acordo com o ciclo de vida dos indivíduos. Mesmo dentro de cada grupo, as mulheres mais velhas tiveram maior sucesso na conciliação entre vida profissional e vida familiar. Há maior probabilidade de as mães terem mais sucesso na carreira ao envelhecerem, dentre outras coisas, porque filhos mais velhos demandam menos cuidados.

Após a descrição dos cinco grupos, Goldin retoma o tema do trabalho ganancioso, explicando como a substituição entre trabalhadores é fundamental para reduzir horas extras e o alto valor pago por hora, de forma que a organização do trabalho permita maior controle individual sobre as horas trabalhadas. São citados exemplos de profissões e setores que migraram para um sistema de maior flexibilidade de horários, como médicos, farmacêuticos e veterinários. As causas dessa mudança são variadas, desde a reorganização do trabalho para alcançar economias de escala, reduções nos custos trabalhistas até modificações possivelmente induzidas pela pressão dos funcionários.

Uma possibilidade discutida por Goldin é a de governos facilitarem a coordenação entre empresas concorrentes em direção a uma organização de trabalho mais favorável à família, por meio do fornecimento de incentivos e informações. No entanto, é preciso compreender como a flexibilidade varia entre setores e ocupações, para elaboração de políticas eficazes que possam reorganizar o trabalho. Um exemplo de política discutida no livro é o fornecimento de incentivos aos empregadores e às empresas para reduzir as penalidades associadas a acordos de trabalho flexíveis.

À medida que os empregos possam ser redesenhados para aumentar a flexibilidade temporal com pouco ou nenhum custo de produtividade, haveria redução das penalidades no mercado de trabalho pelo tempo gasto com a família. Além de diminuírem as penalidades salariais associadas às preferências mais fortes das mulheres por flexibilidade no local de trabalho, essas mudanças também ajudarão a promover a equidade do casal, reduzindo o incentivo adicional do trabalho ganancioso, para que um dos cônjuges se especialize no mercado de trabalho a fim de obter retornos mais altos.

A pandemia de Covid-19 trouxe o crescimento do trabalho remoto e flexível, que pode beneficiar as mães que trabalham. De acordo com Goldin, tudo depende se a pandemia vai amenizar a ganância do trabalho, tornando os trabalhos flexíveis mais produtivos e reduzindo o prêmio dos empregos mais gananciosos e a penalidade dos mais flexíveis. Ao longo de toda narrativa, é inegável que Goldin apresenta um olhar muito baseado na especialização do casal, à la Becker (1991BECKER, G. S. A treatise on the family. Enlarged edition. Cambridge, Massachusetts London: Harvard University Press, 1991.).

A ênfase de Goldin no trabalho ganancioso e no consequente trade-off entre especialização e igualdade para os casais é importante no contexto delimitado no livro. Porém, a autora não aborda as pré-condições necessárias para que as mulheres cheguem ao ensino superior, como o acesso à educação básica de qualidade e a contraceptivos desde a adolescência. Mulheres negras estão ausentes dos grupos 1 e 2 descritos por Goldin e ainda hoje são minoria dentro dos grupos de alta escolaridade, tanto nos Estados Unidos como no Brasil.

Além disso, na análise das desigualdades de gênero, não são discutidos, no livro, a violência doméstica contra as mulheres e os assédios sofridos no local de trabalho, como se as relações de poder que refletem e reforçam as desigualdades não existissem. Por vezes durante a leitura, tem-se a impressão de que os homens não possuem papel na estruturação das desigualdades, apenas o mercado.

Somente no epílogo, Goldin aborda a participação dos homens no cuidado com os filhos e com as tarefas domésticas, bem como a importância de eles se posicionarem em seus ambientes de trabalho sobre a conciliação da vida familiar com a profissional. É sim preciso mudar como o trabalho está estruturado e criar mais posições flexíveis que sejam mais produtivas. No entanto, a desigualdade de gênero é sistêmica e multidimensional, sendo improvável que apenas explicações econômicas tradicionais sobre trade-offs quanto à alocação de tempo consigam explicar e solucionar a questão.

Referências

  • BECKER, G. S. A treatise on the family. Enlarged edition. Cambridge, Massachusetts London: Harvard University Press, 1991.
  • FRIEDAN, B. The feminine mystique. New York: Norton and Company, 1963.
  • GOLDIN, C. The quiet revolution that transformed women’s employment, education, and family. American Economic Review, v. 96, n. 2, p. 1-21, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    02 Ago 2022
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